Kitabı oku: «A Revolução Portugueza: O 5 de Outubro (Lisboa 1910)», sayfa 4
O resto é sabido. A carruagem real, depois de ter parado uns momentos, hesitante, seguiu apressadamente para o Arsenal, emquanto a policia e uns officiaes do exercito, n'uma furia extranha de exterminar revolucionarios, espadeiravam, disparavam tiros e cevavam um odio inconcebivel não só sobre os dois homens que realmente tinham atacado a carruagem real, como sobre creaturas inoffensivas, que, por curiosidade, haviam comparecido ao desembarque do rei e da sua familia. N'esse lapso de tempo decorrido entre a morte do monarcha e a installação dos dois corpos, o d'elle e o do filho, no Arsenal da Marinha, a policia commetteu brutalidades sem nome. D'uma d'ellas resultou a morte de Alfredo Costa e d'um modesto empregado de ourives, João Sabino da Costa. Alfredo Costa vivia ainda quando o transportaram para a esquadra da Camara Municipal. Dentro d'essa mesma esquadra, a piedade de um guarda impediu que uma duzia de selvagens massacrasse varios populares capturados no momento do regicidio e que, repetimos, não tinham responsabilidades effectivas na execução do monarcha dos adeantamentos.
CAPITULO VIII
Os regicidas calcularam que a Revolução rebentaria imediatamente ao seu acto
É natural que o leitor d'estas narrativas, chegado a este ponto da chacina de 1 de fevereiro, deseje saber os nomes dos tres companheiros de Buiça e Costa. O mysterio tem attractivos poderosissimos e não é facil contentar em absoluto o publico apenas com a promessa vaga de que o futuro desvendará o que o presente não permitte conhecer em todos os seus pormenores.
N'este caso especial, porém, o mysterio não pode ser, não deve ser profundado. De resto, mesmo que o quizessemos fazer por um impulso de furiosa reportage, esbarravamos com esta muralha impenetravel: o segredo dos conspiradores. A quem não andou implicado em qualquer movimento revolucionario é difficil affirmar que as cousas se passaram de tal ou tal modo. Ha naturalmente quem possua informações precisas sobre o regicidio; entre o muito de phantastico e de tendencioso que a esse respeito se disse na imprensa, ha, evidentemente, uma nesga da verdade; mas d'ahi a garantir a narrativa completa do facto vae uma distancia consideravel, que poucos ousariam transpôr.
Durante muito tempo disse-se que o individuo que a rainha Amelia, no instante da tragedia, sacudira com um ramo de flôres era um dos filhos do visconde da Ribeira Brava. Lembra-nos perfeitamente que, tendo recebido n'essa tarde ordem de ir ao Terreiro do Paço e ao Arsenal verificar a exactidão das noticias alarmantes que o telephone transmittira á redacção do Seculo (onde trabalhavamos), o primeiro pormenor que alcançámos, repetido por meia duzia de pessoas, foi o de que um dos regicidas era o sr. Francisco Heredia. Um popular asseverava até que esse sportsman é que disparara primeiro que qualquer outro uma carabina sobre a carruagem real. Mais tarde, julgando-se insubsistente esse boato malevolo, engendrou-se um outro: o de que o sr. Francisco Heredia emprestara um varino ao professor Buiça e lhe offerecera a famosa arma, instrumento da execução. A propria policia, orientada no mesmo sentido, fez varias tentativas para enredar no regicidio aquelle nome tão citado pelos reaccionarios á bocca pequena. E mais do que uma vez pelas redacções dos jornaes se affirmou discretamente que o juiz de instrucção criminal passara um mandato de captura contra o pretendido regicida. O sr. Alpoim, referindo-se ao caso, commenta-o deste modo:
«Nenhum dos tres filhos do sr. visconde da Ribeira Brava, nenhum, tomára parte no movimento; nenhum se inscrevera; seu pae não os implicara em qualquer facto revolucionario; sobre nenhum d'elles incidia qualquer responsabilidade, como incidia sobre o tenente Bernardo d'Alpoim que, de combinação com seu pae, collaboraria n'um dos factos mais graves da Revolução. Valentissimos, lealissimos, mas casados e com filhos, seu pae sequestrara-os a todas as responsabilidades. Pois foi um d'esses bons, admiraveis rapazes, que a gente do Paço e a escoria clerical escolheram para alvo dos seus odios e accusações! Chegou-se a comprar policias para falarem no seu nome; e o sr. visconde da Ribeira Brava procurou o ultimo juiz de Instrucção Criminal para lhe communicar factos gravissimos a tal respeito!
«Aconteceu que o sr. D. Francisco Heredia, á hora em que o attentado se commettia, estava com pessoas respeitabilissimas que depozeram. E – o que ninguem sabe! – a pessoa mais indignada foi a rainha sr.ª D. Amelia, que recebeu sempre no Paço, com todo o affecto, o sr. D. Francisco e sua esposa. Ao chefe dissidente contou aquella senhora que era uma infamia semelhante accusação e que ella propria dissera ao juiz de Instrucção Criminal que, conhecendo muito bem o sr. D. Francisco Heredia, estava prompta a affirmar que não se achara entre os que assaltaram o coche real e sobre elle dispararam. Garantimos esta affirmação, estas palavras da rainha; e, comtudo, ellas não desarmaram gente da côrte e politicos que tinham todo o empenho em envolver o nome d'um dissidente, ou de pessoa que lhe fosse proxima, no tragico acontecimento do Terreiro do Paço!»
Mas não foi só o sr. Francisco Heredia que a opinião desvairada apontou como tendo tomado parte no regicidio. Na tarde de 1 de fevereiro de 1908, a policia prendeu, como suspeitos, varios individuos, entre elles um de nacionalidade hespanhola. Durante oito dias, approximadamente, teve-os incommunicaveis no governo civil e findo esse periodo de clausura libertou-os. O hespanhol sahiu logo de Lisboa e foi para San Sebastian. Passados mezes, quando a policia voltou a proceder a investigações minuciosas sobre a morte do rei Carlos e do principe Luiz Filippe, teve denuncia de que o hespanhol realmente atirára sobre um e outro, e um dos agentes do juiz de instrucção encaminhou-se para o paiz visinho na peugada do supposto companheiro do professor Buiça. Baldado empenho: o hespanhol já não vivia em San Sebastian e o seu rasto perdera-se completamente. Seria, com effeito, esse homem o tal que a rainha Amelia viu atirar sobre o marido e o filho e de quem, d'ahi a semanas, fez um croquis, fixando-o bem nos seus traços physionomicos? Não é possivel dizel-o com segurança. Pessoas que se nos affiguram bem informadas desmentem redondamente esse boato, como antes já tinham egualmente desmentido o que incidia sobre o sr. Francisco Heredia. E uma d'ellas declarou-nos terminantemente, assim que o juiz Silva Monteiro recomeçou a respectiva indagação policial:
– O X… que o juiz procura não é nem o filho do Visconde da Ribeira Brava nem o hespanhol de S. Carlos (o individuo suspeito fôra musico no nosso theatro lyrico). Tambem não é, como para ahi se disse, o estudante preso por causa da explosão na rua do Carrião, que ao tempo se achava escondido em Lisboa (Aquilino Ribeiro). Pelo pouco que sei do regicidio creio que o X… é outro rapaz bem differente d'esses tres, pouco conhecido como revolucionario, mas dispondo d'uma energia capaz de um acto semelhante á execução do monarcha dos adeantamentos.
«Cousa curiosa… Ia jurar que a policia teve em seu poder durante alguns mezes o X… do regicidio. Não por esse facto… Capturou-o, conservou-o por semanas incommunicavel, mas sem suspeitar sequer ao de leve que aferrolhava nos seus calabouços um authentico companheiro do Buiça e do Costa, o tal regicida de quem a rainha Amelia fez um croquis elucidativo. Eram cinco os do complot… Alfredo Costa, o professor Buiça, o X… o Y… e o Z. Os dois primeiros morreram na tragedia; os restantes escaparam…»
Vamos concluir este capitulo da historia contemporanea, mas antes faremos referencia a uma conversa trocada entre o professor Buiça e Alfredo Costa á 1 e 30 da tarde de 1 de fevereiro de 1908. Foi no Café do Gelo, a conhecida cervejaria que desde tempos immemoraveis tem servido a rendez-vous de estudantes e… estudantes de idéas avançadas.
Na vespera do regicidio, o professor Buiça, que tinha no café do Gelo o seu quartel-general de propaganda libertaria, apareceu ali, acompanhado de Alfredo Costa e d'um outro rapaz, e abancou a uma das mezas. Os tres conversaram demoradamente e ha todas as razões para crêr que só se separaram na manhã de 1. Á 1 e 30 da tarde d'esse dia, o professor Buiça e Alfredo Costa voltaram ao Gelo e tomaram logar n'uma das mezas da sala que deita para a rua do Principe. O professor Buiça bebeu uma cerveja e Alfredo Costa serviu-se d'uma omolette. Na mesma sala, alem dos dois revolucionarios, encontravam-se apenas o dr. Maximo Brou e um cadete da Escola do Exercito. O professor Buiça desenvolveu um plano qualquer ao seu companheiro e fel-o sem reservas, alto e bom som, completando a palavra com gestos expressivos:
– A carruagem avança, disse elle, a carroça apparece, esbarra e eu intervenho…
E ao affirmar a sua intervenção, o professor Buiça moveu os dois braços de modo significativo, como se mettesse uma espingarda á cara.
– E nós? perguntou-lhe Alfredo Costa… O que fazemos?
– Vocês… procederão como a opportunidade indicar.
O outro calou-se e continuou a comer a omolette. O professor Buiça piscou um olho ao dr. Maximo Brou e disse lentamente e ironico:
– Estamos aqui, estamos em Timor…
O dr. Maximo Brou procurou desfazer essa apprehensão, argumentando risonho com a belleza do dia – á 1 e 30 da tarde o sol inundava a cidade de luz faiscante – mas o professor Buiça insistiu na previsão e d'ahi a pouco um silencio melancholico amortalhou o ambiente. Ás 5 e tal, quando o dr. Maximo Brou soube no Martinho que o rei Carlos fôra alvejado no Terreiro do Paço, não poude conter-se, e recordando o que ouvira no Gelo, exclamou para uns amigos:
– O Buiça não errou a pontaria!..
E não errara, com effeito. Até ha pouco, ainda se asseverava convictamente que o primeiro regicida a atacar a carruagem real fôra o Alfredo Costa e que o Buiça se limitara a secundar-lhe o gesto. Não succedeu assim. O professor é que atirou primeiro, collocando-se no meio da rua e visando serenamente o pescoço do rei Carlos que emergia da capota do vehiculo. Depois, a policia postada do lado das arcadas do ministerio da fazenda disparou sobre elle varios tiros de revolver, emquanto mais adiante Alfredo Costa investia contra o lado direito da carruagem.
Não admira, por isso, que o Buiça ficasse na chronica da execução como o principal dos regicidas e que a opinião extrangeira o houvesse immediatamente collocado em plano superior ao dos seus companheiros. De resto, o nome do professor soou logo no dia 2 de fevereiro de modo bastante suggestivo para o grande publico. Por outro lado, a circumstancia de ter empunhado e desfechado uma carabina – arma que exige, na sua utilisação, sangue-frio extraordinario; e a aureola que um jornalista extrangeiro lhe teceu, evocando deante do seu cadaver na Morgue uma vida de apostolado e de martyrio, o sacrificio da familia, dos filhos votados á orphandade por amor da libertação do paiz; uma e outra coisa concorreram egualmente para que elle alcançasse uma supremacia de heroicidade que a historia futura indubitavelmente conservará.
Mas, pergunta-se agora: os cinco homens que na tarde de 1 de fevereiro se abalançaram ao regicidio tinham unicamente em mira supprimir um dos seus semelhantes – o rei ou o dictador? O que previam afinal sobre as consequencias do seu acto? Admittindo a hypothese de que pensavam apenas em matar o dictador (e essa hypothese, repetimos, é a mais verosimil) diremos que obedeciam naturalmente ao seguinte raciocinio:
Attingido o primeiro ministro do rei Carlos, a policia, se os apanhasse em flagrante, procuraria logicamente poupar-lhes as existencias, esperançada em que qualquer d'elles, succumbindo cedo ou tarde ante o juiz investigador, revelaria todos os pormenores do complot. Apoz a suppressão de João Franco, rebentaria irremissivelmente a revolta e a Republica, uma vez triumphante, veria com olhos differentes dos dos monarchicos o arrojo e decisão de quem lhe facilitara a proclamação por uma maneira tão notavel. O proprio Buiça, como n'outro logar registamos, contava em que o degredo de Timor seria o mais provavel dos castigos que sobre elle incidiria no momento opportuno.
CAPITULO IX
As iniciações na carbonaria augmentam consideravelmente
Falemos da carbonaria, a grande organisação secreta que representou um papel importante na revolta de 4 e 5 de outubro. Tão importante, que d'ella sahiram todos os grupos de populares armados que auxiliaram o triumpho e um dos seus membros, da mais elevada cathegoria dentro da associação vinculou indelevelmente o nome e os feitos á implantação da Republica Portugueza.
A Carbonaria vinha de longe. Ha quem supponha, talvez, que ella nasceu propositadamente para a preparação do 28 de janeiro. Não é exacto. Em 1893 já se falava vagamente na existencia d'essa organisação e em 1894 um bom nucleo de estudantes conimbricenses realisava nas margens do Mondego, pela calada da noite, reuniões secretas com todo o cerimonial mysterioso das chamadas lojas revolucionarias, independentes da maçonaria regular.
A gréve do grelo, occorrida em Coimbra ahi por alturas de 1905-1906, revelou pela primeira vez ao publico o funccionamento da Carbonaria n'aquella cidade. Um jornal de Lisboa teve a idéa de entrevistar um dos estudantes mandados sahir de Coimbra por essa occasião e elle, com uma franqueza digna de nota, pôz a questão tal qual se lhe affigurava veridica e irrefutavel. Explicou a interferencia que a Carbonaria certamente poderia ter tido na agitação da população conimbricense, a frequencia das reuniões no Choupal, estrada da Beira e para os lados de Santa Clara, em recantos ignorados da policia e dos espiões monarchicos e explicou… outras coisas mais. No dia seguinte, um grupo de estudantes, alheio a essa organisação de insubmissos, apressou-se a desmentir na imprensa as affirmações d'esse seu collega. A Carbonaria sorriu, encolheu os hombros e o incidente não tardou a esquecer. E foi bom que assim succedesse, para não reavivar as diligencias policiaes effectuadas a proposito do apedrejamento proximo de Coimbra, do comboio que transportava a Lisboa o negociador d'um famigerado convenio financeiro.
Mais tarde, Lisboa vê despontar officialmente a Carbonaria para as luctas politicas, embalada pela fé ardente, a tenaz propaganda de Luz d'Almeida. É o momento em que a idéa inicial d'um nucleo forte, aguerrido, de acção immediata e directa contra as instituições monarchicas, apparece tomando corpo, adquirindo um relevo fóra do commum. Da maçonaria regular, a que Luz d'Almeida já dava, n'essa época, o melhor do seu esforço intelligente, sahe como que um filamento, que é o rastilho a applicar a uma bomba monumental. Esse filamento avulta, insinua-se vagarosamente na camada popular, contorce-se em evoluções cautelosas e discretas e a Associação Carbonaria Portugueza, até então uma sombra de resistencia nacional ao despotismo, á tyrannia do throno e dos governantes deshonestos, começa a illuminar o futuro, projectando sobre a treva que o envolve uma luz viva e inapagavel. A nova aggremiação secreta não tem ainda aquelle nome. Tem outro bem differente e não tarda a ser apadrinhada por um dos mais populares caudilhos republicanos.
Luz d'Almeida multiplica-se na conquista de elementos revolucionarios. E é curioso observar como esse homem calmo, d'uma calma que se confunde com a indolencia, desenvolve uma energia rara, uma actividade incomparavel. Conhecemol-o ha quinze annos, quando, ao lado d'um companheiro inseparavel, Ferreira Manso, elle se demorava todas as noites pelo Gelo em propaganda discreta, mas infatigavel. Sempre sereno, sempre conciso, vagaroso no andar, conservando no rosto uma impassibilidade caracteristica, o olhar incidindo certeiramente sobre o pensamento de qualquer dos seus interlocutores, Luz d'Almeida é o typo por excellencia do homem de acção que, uma vez lançado n'uma idéa de combate, vae direito ao fim sem hesitações, sem pressas inuteis, sem medo, sem precipitação. O gesto é sobrio e o vestuario tambem. Não faz alarde da sua decisão nem da sua palavra persuasiva. É methodico, correcto e cauteloso e, dentro d'essa couraça de apparente indifferença, esboça os planos mais audaciosos, resolve as situações as mais difficeis.
Na primeira phase da Carbonaria é com o dr. Antonio José d'Almeida que elle collabora assiduamente. A Floresta– o nome por que é então conhecida a poderosa aggremiação secreta – conta a breve trecho milhares de adeptos. Luz d'Almeida inicia-os dia a dia n'uma progressão assombrosa. De sorte que, antes do 28 de janeiro, elle e o dr. Antonio José d'Almeida adquirem a certeza absoluta de que é justificado confiar ao elemento popular uma boa parte da execução da revolta. E se é certo que na preparação d'aquelle movimento os grupos organisados de civis não apparecem ainda, como na preparação do 4 e 5 d'outubro, totalmente filiados na Carbonaria, não o é menos que a expansão da associação secreta já é tão vasta e tende tão nitidamente a augmentar que Luz d'Almeida, tres dias após o regicidio, inicia d'uma assentada cerca de cincoenta conjurados.
Por essa altura, ao lado do vigoroso e tenaz propagandista, figuram tambem dois revolucionarios de temperamento bem diverso, mas devotadissimos ambos á causa da liberdade: Machado dos Santos e o engenheiro Antonio Maria da Silva. As suas primeiras entrevistas realisam-se no jardim de S. Pedro d'Alcantara. É ahi que esses tres homens combinam de começo a forma de dar uma orientação absolutamente pratica á Carbonaria, formando entre si o Comité Alta Venda ou, melhor, a cabeça dirigente da organisação secreta. Depois passam a reunir em casa de Machado dos Santos, na rua José Estevão, casa que a policia assalta uma bella noite, disfarçando esse assalto com uma proeza de gatunos, e decidem levar aos quarteis a semente revolucionaria. É, repetimos, no periodo de maior agitação popular provocada pela politica nefasta do regimen monarchico. Rara é a noite em que se não inicia na Carbonaria uma duzia de adeptos pelo menos.
As iniciações divergem no cerimonial. Ha iniciações rigorosas, com todos os pormenores que constituem a bem dizer uma apertada fieira e tambem as ha pró forma, quando o adepto é sobejamente conhecido e inspira absuluta confiança. Em qualquer dos casos, porém, o iniciado é sujeito a um interrogatorio sobre as suas ideias politicas e aquillo de que se julga capaz de executar no momento propicio. Muitos d'elles affirmam desde logo as suas disposições para uma acção directa e individual; outros limitam-se a prometter concurso efficaz n'uma acção collectiva. A Carbonaria não repelle os que se declaram francamente incapazes d'um acto isolado, mas que juram – o juramento é obrigatorio para todos – auxiliar a communidade uma vez chegado o ensejo de luctar contra a monarchia ou a tyrannia.
Em dado momento surge uma contrariedade. Machado dos Santos, tendo escripto um artigo violento no Radical– jornal fundado e dirigido por Marinha de Campos – é, dado o seu posto de commissario naval, levado a conselho de guerra. Os juizes absolvem-no, mas como os inimigos dos revolucionarios não descansam, conseguem em breve afastal-o de Lisboa, desterrando-o para o ultramar. Esta contrariedade, porém, não impede que a Carbonaria progrida a olhos vistos. O comité Alta Venda decide abrir a primeira choça em Alcantara, bairro que sempre se evidenciou pelo grande amor á causa, bairro revolucionario por excellencia.
O comité recebe adhesões valiosas e a propaganda fructifica. Marinheiros, contra-mestres, cabos, sargentos, artifices, operarios, tudo acode á iniciação. Na conquista d'esses adeptos distinguem-se dois homens: o cabo Antonio (aliás sargento) e o artifice Carlos Freitas, que um zelo excepcional caracterisa. Este revolucionario toma sobre os hombros a ardua tarefa de desdobrar a choça de Alcantara e funda outra em Valle do Zebro, fornecendo ao comité um plano da escola de torpedos e varia documentação topographica.
Na choça d'Alcantara, a direcção superior da Carbonaria possue egualmente elementos civis de modelar actividade: entre muitos, Augusto Rodrigues, chefe de barraca, e José Madeira. Da choça de marinha sahem elementos de propaganda para junto dos quarteis de infantaria 2 e caçadores 2. É curiosa a forma por que esses elementos entram nos quarteis:
«A principio – reportamo-nos a uma informação do engenheiro Antonio Maria da Silva – cada carbonario tinha um primo no quartel; depois, conforme a necessidade de repetir as entradas, assim ia augmentando o numero de primos. Carbonario houve que, em pouco tempo, se tornou primo de toda a soldadesca. Naturalmente surgiram desconfianças por parte dos officiaes, e estas avolumaram-se com a coincidencia do apparecimento d'um folheto de Luz d'Almeida, intitulado «Dialogo entre um medico militar e um «magala», que foi largamente distribuido pelos elementos militares.»
Principiam então as buscas nos quarteis, buscas rigorosas que lançam o sobresalto no comité Alta Venda por causa da dureza do castigo que os iniciados certamente soffrem quando descobertos. Mas a dedicação dos carbonarios é tão grande que os maiores escolhos são transpostos com exito. Um exemplo: d'uma vez, o official de certo regimento revista a caixa d'um magala e o clarim que o acompanha na busca descobre o interessante folheto de Luz d'Almeida. Não hesita; disfarça como pode a comprometedora descoberta, apanha o folheto e occulta-o no instrumento… O clarim tambem era carbonario. E assim se consegue que esse Dialogo, d'uma propaganda utilissima, continue a espalhar pelas forças militares a ideia da revolta, apesar da campanha que os jornaes reaccionarios lhe movem sem treguas, apontando-o dia a dia ás attenções e á revindicta do governo monarchico.
Tratando-se da Carbonaria e da sua acção nos movimentos revolucionarios que caracterisam o ultimo periodo da vida monarchica portugueza, é necessario, antes de proseguirmos na narrativa que vimos fazendo, abrir um parenthesis que fixa um ponto de historia. Já dissemos que Coimbra antecedeu Lisboa na organisação d'essa força mysteriosa, que devia no 4 e 5 de outubro representar um papel importante. Podemos talvez falar do assumpto ainda com maior precisão. A Carbonaria de Coimbra teve o seu periodo aureo – digamos assim – de 1892 a 1894; a de Lisboa soltou os primeiros vagidos em 1897, fundada por Heliodoro Salgado, Benjamim José Rebello, Julio Dias, Sebastião Eugenio, José do Valle e varios democratas de Alcantara, que constituiam o nucleo de resistencia da chamada Aliança Revolucionaria. Pouco depois, a Alliança cedia o passo á loja irregular Obreiros do Futuro, installada na Rocha do Conde d'Obidos n'uma casa pertencente ao Credito Predial e que foi alugada a um dos carbonarios – a José do Valle se não estamos em erro – pelo sr. José Bello, ao tempo administrador das propriedades d'aquella companhia.
Essa loja irregular congregou durante largo tempo tudo o que Lisboa possuia n'essa occasião de elementos avançados, radicalissimos. A ella pertenceram os homens que mais tarde o juiz de instrucção criminal devia encarcerar como implicados em incidentes da politica interna (que o grande publico conheceu vagamente sob a designação de attentados anarchistas) e d'ella sahiram resoluções vigorosas cuja descoberta o ex-irmão Hoche d'essa epoca pagaria por bom preço. Facto digno de nota e que nos não cançaremos de repetir: a policia teve por vezes nas mãos, fechados a sete chaves, os meios de esclarecer certos mysterios, de pôr a nu intrincadas meadas revolucionarias. E não o fez porque? Porque, para alcançar exito completo, bastava-lhe concatenar habilmente certas informações. Tinha as informações, recebia denuncias que borboleteavam em volta da verdade, mas como não dispunha de sangue-frio e de esperteza sufficientes para as reunir, para as methodisar, disparatava horrivelmente e, disparatando no começo, ia até final, cega, estupida, laborando sempre no erro.
Occorre-nos n'este momento um incidente curioso a que é interessante fazer referencia. A policia um dia – e quem diz policia diz juiz de instrucção porque de certa altura por diante, desde que o Cyro e os seus superiores hierarchicos se convenceram de que a engrenagem revolucionaria não andava resumida aos tantos anarchistas que enfileiravam na famosa lista negra, as diligencias importantes passaram a ser encaminhadas com o auxilio de personagens de cathegoria– a policia um dia, insistimos, ouviu falar em que um homem de determinado appellido tomara parte saliente n'um facto que alarmou Lisboa. Não quiz saber de mais nada. Lançou-se na pista d'um rapaz, então ausente de Portugal, que usava do mesmo appellido, e forcejou imbecilmente por trazel-o ás mãos, sem procurar obter a confirmação absoluta da vaga denuncia. E tão cega, tão absorvida n'essa orientação errada, que ainda pouco antes de ser implantada a Republica tentava arrancar d'um prisioneiro politico a confissão de que esse tal rapaz realmente preponderara na execução do facto alludido… O appellido denunciado á policia era, effectivamente, o de um revolucionario ligado intimamente a esse facto; o rapaz que a policia perseguia, embora de appellido identico e amigo d'um outro que planeara o complot de exito indiscutivel, não entrara n'esse complot e só d'elle tivera conhecimento apoz a consumação do facto! É um pouco sybillino, mas é a verdade…
Outro caso pittoresco revelador da argucia policial: Certo dia os espiões da Bastilha descobriram a existencia d'um deposito de bombas n'uma casa da Baixa. Prisões, buscas, etc., o juiz de instrucção poz em scena todo o reportorio do costume. D'ahi a quarenta e oito horas, o mesmo juiz, por effeito d'uma denuncia, mandou capturar um operario extrangeiro, que se suspeitava ter no predio onde morava alguns explosivos devidamente aprestados para uma acção decisiva. A noticia d'essa captura lançou o alarme nos carbonarios que ainda andavam á solta. A denuncia era fundada e d'esta vez a policia ia, indubitavelmente, realisar uma diligencia de absoluto successo. Tornava-se necessario afastar do predio suspeito as bombas comprometedoras. Um grupo de homens decididos tomou sobre os hombros tal encargo e, meia hora antes da policia passar a busca do estylo á casa do operario, as bombas em questão eram transportadas para logar mais seguro, atravessando impunemente diversas ruas de Lisboa.
No dia seguinte, o ex-irmão Hoche chamou á sua presença o prisioneiro e quasi lhe pediu desculpa de o ter incommodado sem motivo.
– Eu sempre me quiz parecer – disse o juiz ao operario anarchista – que o senhor nada tinha com este caso das bombas… Vá descançado e trate de não se misturar com os incidentes da nossa politica interna. A minha opinião a seu respeito está formada.
O operario cumprimentou amavelmente o juiz e o juiz esfregou as mãos de contente, murmurando para o Sota da praça:
– Eu bem dizia… este rapaz nada tem com o caso das bombas…