Kitabı oku: «Romancistas Essenciais - Camilo Castelo Branco», sayfa 3

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IV

O coração de Teresa estava mentindo. Vão pedir sinceridade ao coração!

Para finos entendedores, o diálogo do anterior capítulo definiu a filha de Tadeu de Albuquerque. E mulher varonil, tem força de caráter, orgulho fortalecido pelo amor, desapego das vulgares apreensões, se são apreensões a renúncia que uma filha fez do seu alvedrio às imprevidentes e caprichosas vontades de seu pai. Diz boa gente que não, e eu abundo sempre no voto da gente boa. Não será aleive atribuir-lhe uma pouca de astúcia ou hipocrisia, se quiserem; perspicácia seria mais correto dizer. Teresa adivinha que a lealdade tropeça a cada passo na estrada real da vida, e que os melhores fins se atingem por atalhos onde não cabem a franqueza e a sinceridade. Estes ardis são raros na idade inexperta de Teresa; mas a mulher do romance quase nunca é trivial, e esta de que rezam os meus apontamentos era distintíssima. A mim me basta crer em sua distinção, a celebridade que ela veio a ganhar à conta da desgraça.

Da carta que ela escreveu a Simão Botelho, contando as cenas descritas, a crítica deduz que a menina de Viseu contemporizava com o pai, pondo a mira no futuro, sem passar pelo dissabor do convento, nem romper com o velho em manifesta desobediência. Na narrativa que fez ao acadêmico omitiu ela as ameaças do primo Baltasar, cláusula que. a ser transmitida, arrebataria de Coimbra o moço, em quem sobejavam brios e bravura para mantê-los.

Mas não é esta ainda a carta que surpreendeu Simão Botelho.

Parecia bonançoso o céu de Teresa. Seu pai não falava em claustro nem em casamento. Baltasar Coutinho voltara ao seu solar de Castro-d'Aire. A tranqüila menina dava semanalmente estas boas novas a Simão, que, aliando às venturas do coração as riquezas do espírito, estudava incessantemente, e desvelava as noites arquitetando o seu edifício de futura glória.

Ao romper d'alva dum domingo de junho de 1803, foi Teresa chamada para ir com seu pai à primeira missa da igreja paroquial. Vestiu-se a menina, assustada, e encontrou o velho na antecâmara a recebê-la com muito agrado, perguntando-lhe se ela se erguia de bons humores para dar ao autor de seus dias um resto de velhice feliz. O silêncio de Teresa era interrogador.

— Vais hoje dar a mão de esposa a teu primo Baltasar, minha filha. É preciso que te deixes cegamente levar pela mão de teu pai. Logo que deres este passo difícil, conhecerás que a tua felicidade é daquelas que precisam ser impostas pela violência. Mas repara, minha querida filha, que a violência dum pai é sempre amor. Amor tem sido a minha condescendência e brandura para contigo. Outro teria subjugado a tua desobediência com maus tratos, com os rigores do convento, e talvez com o desfalque do teu grande patrimônio. Eu, não. Esperei que o tempo te aclarasse o juízo, e felicito-me de te julgar desassombrada do diabólico prestígio do maldito que acordou o teu inocente coração. Não te consultei outra vez sobre este casamento, por temer que a reflexão fizesse mal ao zelo de boa filha com que tu vais abraçar teu pai, e agradecer-lhe a prudência com que ele respeitou o teu gênio, velando sempre a honra de te encontrar digna do seu amor.

Teresa não desfitou os olhos do pai; mas tão abstraída estava, que escassamente lhe ouviu as primeiras palavras, e nada das últimas.

— Não me respondes, Teresa?! - tornou Tadeu, tomando-lhe cariciosamente as mãos.

— Que hei de eu responder-lhe, meu pai? - balbuciou ela.

— Dá-me o que te peço? Enches de contentamento os poucos dias que me restam?

— E será o pai feliz com o meu sacrifício?

— Não digas sacrifício, Teresa... Amanhã a estas horas verás que transfiguração se fez na tua alma. Teu primo é um composto de todas as virtudes; nem a qualidade de ser um gentil moço lhe falta, como se a riqueza, a ciência e as virtudes não bastassem a formar um marido excelente.

— E ele quer-me. depois de eu me ter negado? - disse ela com amargura irônica.

— Se ele está apaixonado, filha!... e tem bastante confiança em si para crer que tu hás de amá-lo muito!...

— E não será mais certo odiá-lo eu sempre?! Eu agora mesmo o abomino como nunca pensei que se pudesse abominar! Meu pai... - continuou ela, chorando, com as mãos erguidas - mate-me; mas não me force a casar com meu primo! É escusada a violência, porque eu não caso!

Tadeu mudou de aspecto, e disse irado:

— Hás de casar! - Quero que cases! Quero!... Quando não, amaldiçoada serás para sempre, Teresa! Morrerás num convento! Esta casa irá para teu primo! Nenhum infame há de aqui pôr pé nas alcatifas de meus avós. Se és uma alma vil, não me pertences, não és minha filha, não podes herdar apelidos honrosos, que foram pela primeira vez insultados pelo pai desse miserável que tu amas! Maldita sejas! Entra nesse quarto, e espera que daí te arranquem para outro, onde não verás um raio de Sol.

Teresa ergueu-se sem lágrimas, e entrou serenamente no seu quarto. Tadeu de Albuquerque foi encontrar seu sobrinho, e disse-lhe:

— Não te posso dar minha filha, porque já não tenho filha. A miserável, a quem dei este nome, perdeu-se para nós e para ela.

Baltasar, que, a juízo de seu tio, era um composto de excelência, tinha apenas um quebra; a absoluta carência de brios. Malograda a tentativa do seu amor de emboscada, tornou para a terra o primo de Teresa, dizendo ao velho que ele o livraria do assédio em que Simão Botelho lhe tinha o coração da filha. Não aprovou a reclusão no convento, discorrendo sobre as hipóteses infamantes que a opinião pública inventaria. Aconselhou que a deixasse estar em casa, e esperasse que o filho do corregedor viesse de Coimbra.

Ponderaram no ânimo do velho as razões de Baltasar. Teresa maravilhou-se da quietação inesperada de seu pai e desconfiou da incoerência. Escreveu a Simão. Nada lhe escondeu do sucedido; nem as ameças de Baltasar por delicadeza suprimiu. Rematava comunicando-lhe as suas suspeitas de algum plano de violência.

O acadêmico, chegando ao período das ameças. já não tinha clara luz nos olhos para decifrar o restante da carta. Tremia sezões, e as artérias frontais arfavam-lhe entumescidas. Não era sobressalto do coração apaixonado: era a índole arrogante que lhe escaldava o sangue. Ir dali a Castro-d'Aire e apunhalar o primo de Teresa na sua própria casa, foi o primeiro conselho que lhe segredou a fúria do ódio. Neste propósito saiu, alugou cavalo, e recolheu a vestir-se de jornada. Já preparado, a cada minuto de espera assomava-se em frenesis. O cavalo demorou-se meia hora, e o seu bom anjo, neste espaço, vestido com as galas com que ele vestia na imaginação Teresa, deu-lhe rebates de saudade daqueles tempos e ainda das horas daquele mesmo dia em que cismava na felicidade que o amor lhe prometia, se ele a procurasse no caminho do trabalho, e da honra. Contemplou os seus livros com tanto afeto, como se em cada um estivesse uma página da história do seu coração. Nenhuma daquelas páginas tinha ele lido, sem que a imagem de Teresa lhe aparecesse a fortalecê-lo para vencer os tédios da continuada aplicação, e os ímpetos dum natural inquieto e ansioso de comoções desusadas. "E há de tudo acabar assim? - pensava ele, com a face entre as mãos, encostado à sua banca de estudo. - Ainda há pouco eu era tão feliz!... - Feliz! - repetiu ele, erguendo-se de golpe. - Quem pode ser feliz com a desonra duma ameaça impune7 Mas eu perco-a! Nunca mais hei de vê-la!. . . Fugirei como um assassino, e meu pai será o meu primeiro inimigo, e ela mesmo há de horrorizar-se da minha vingança... A ameaça só ela a ouviu; e, se eu tivesse sido aviltado no conceito de Teresa pelos insultos do miserável, talvez que ela os não repetisse.

Simão Botelho releu a carta duas vezes, e à terceira leitura achou menos afrontosas as bravatas do fidalgo cioso. A5 linhas finais desmentiam formalmente a suspeita do aviltamento, com que o seu orgulho o atormentava: eram expressões ternas, súplicas ao seu amor como recompensa dos passados e futuros desgostos, visões encantadoras do futuro, novos juramentos de constância, e sentidas frases de saudade.

Quando o arreeiro bateu à porta, Simão Botelho já não pensava em matar o homem de Castro-d'Aire; mas resolvera ir a Viseu, entrar de noite, esconder-se e ver Teresa. Faltava-lhe, porém, casa de confiança onde se ocultasse. Nas estalagens, seria logo descoberto. Perguntou ao arreeiro se conhecia alguma casa em Viseu onde ele pudesse estar escondido uma noite ou duas, sem receio de ser denunciado. O arreeiro respondeu que tinha, a um quarto de légua de Viseu, um primo ferrador; e não conhecia em Viseu senão os estalajadeiros. Simão achou aproveitável o parentesco do homem, e logo daí o presenteou com uma jaqueta de peles e uma faixa de seda escarlate, à conta de maiores valores prometidos, se ele o bem servisse numa empresa, amorosa.

No dia seguinte, chegou o acadêmico a casa do ferrador. O arreeiro deu conta ao seu parente do que vinha tratado com o estudante.

Foi Simão Botelho cautelosamente hospedado, e o arreeiro abalou no mesmo ponto para Viseu, com uma carta destinada a uma mendiga, que morava no mais impraticável beco da terra. A mendiga informou-se miudamente da pessoa que enviava a carta, e saiu, mandando esperar o caminheiro. Pouco depois. voltou ela com a resposta, e o arreeiro partiu a galope.

Era a resposta um grito de alegria. Teresa não refletiu, respondendo a Simão que naquela noite se festejavam os seus anos, e se reuniam em casa os parentes. Disse-lhe que às onze horas em ponto ela iria ao quintal e lhe abriria a porta.

Não esperava tanto o acadêmico. O que ele pedia era falar-lhe da rua para a janela do seu quarto, e receava impossível este prazer, que ele avaliava o máximo. Apertar-lhe a mão, sentir-lhe o hálito, abraçá-la talvez, cometer a ousadia de um beijo, estas esperanças, tão além de suas modestas e honestas ambições, igualmente o enlevavam e assustavam. Enlevo e susto em corações que se estreiam na comédia humana são sentimentos congeniais.

A hora da partida, Simão tremia, e a si mesmo pedia contas da timidez, sem saber que os encantos da vida, os mais angélicos momentos da alma, são esses lances de misterioso alvoroço que aos mais seródios de coração sucedem em todas as razões da vida, e a todos os homens, uma vez ao menos.

As onze horas em ponto estava Simão encostado á porta do quintal, e a distância convencionada o arreeiro com o cavalo à rédea. A toada da música, que vinha das salas remotas, alvoroçava-o, porque a festa em casa de Tadeu de Albuquerque o surpreendera. No longo termo de três anos nunca ele ouvira música naquela casa. Se ele soubesse o dia natalício de Teresa, espantara-se menos da estranha alegria daquelas salas, sempre fechadas como em dias de mortório. Simão imaginou desvairadamente as quimeras que voejam, ora negras, ora translúcidas, em redor da fantasia apaixonada. Não há baliza racional para as belas, nem para as horrorosas ilusões, quando o amor as inventa. Simão Botelho, com o ouvido colado à fechadura, ouvia apenas o som das flautas, e as pancadas do coração sobressaltado.

V

Baltasar Coutinho estava na sala, simulando vingativa indiferença por sua prima. As irmãs do fidalgo e a demais parentela da casa não deixavam respirar Teresa. Moças e velhas, todas, uma, se repetiam, aconselhando-a a reconciliar-se com seu primo, e dar a seu pai a alegria que o pobre velho tanto rogava Deus, antes de fechar os olhos. Replicava Teresa que não queria mal a seu primo, nem sequer estava sentida dele; que era sua amiga, e se-lo-ia sempre enquanto ele lhe deixasse livre o coração.

O velho esperava muito daquela noitada de festa. Alguns parentes presumidos de circunspectos, lhe tinham dito que seria proveitoso regalar a filha com os prazeres congruentes à sua idade, dando-lhe ensejo a que ela repartisse o espírito, concentrado num só ponto, por diversões em que a natural vaidade se preocupa, e a força do amor contrariado se vai a pouco e pouco quebrantando. Aconselharam-lhe as reuniões amiúdas, já em sua casa, já na dos seus parentes, para deste modo Teresa se mostrar a muitos, ser cortejada de todos, e ter em opinião de menos valia o único homem com quem falava, e a quem julgava superior a todos. O fidalgo acedeu, mas com dificuldade: é que tinha lá um sistema seu de ajuizar das mulheres, vivera trinta anos de vida libertina e dispendiosa, e se estava agora saboreando na economia e na quietação. Os anos de Teresa eram pela primeira vez festejados com estrondo. A morgada viu então o que era o minueto da corte e certos jogos de prendas com que os intervalos naqueles tempos se aligeiravam em delícias, sem fadiga do corpo, nem desagrado da moral.

Mas, de agitada que estava, Teresa não compartia do gozo dos seus hóspedes. Desde que soaram as dez horas daquela noite, a rainha da festa parecia tão alienada das finezas com que as senhoras e homens à competência a lisonjeavam, que Baltasar Coutinho deu tento do desassossego de sua prima, e teve a modéstia de imaginar que ela se ofendera da indiferença dele, Generoso até ao perdão, o morgado de Castro-d'Aire, compondo o rosto com gesto grave e melanc6lico, dirigiu-se a Teresa, e pediu-lhe desculpa da frieza que ele disse ser como a das montanhas, que têm vulcões por dentro e neve por fora. Teresa teve a sinceridade de responder que não tinha reparado na frieza de seu primo, e chamou para junto dela uma menina, para evitar que a montanha se fendesse em vulcões. Pouco depois ergueu-se e saiu da sala.

Eram dez horas e três quartos. Teresa correra ao fundo do quintal, abrira a porta, e, como não visse alguém, tornou de corrida para a sala. No momento, porém, de subir a escada que ligava o jardim à casa, Baltasar Coutinho, que a espiava desde que ela saiu da sala, chegou a uma das janelas sobre o jardim, bem longe de imaginar que a via. Retirou-se, e entrou com Teresa na sala, ao mesmo tempo, por diversa porta. Decorridos alguns minutos, a menina saiu outra vez e o primo também. Teresa ouviu, a distância, o estrépito dum cavalo, quando passou ao patamar da escada. Baltasar também o ouviu, e notou que sua prima, receosa de ser vista e conhecida pela alvura do vestido, levava uma capa ou chale que a envolvia toda. O de Castro-d'Aire fez pé atrás para não ser visto. Teresa, porém, num relance de olhar temeroso, ainda vira um vulto retirar-se. Teve medo, e retrocedeu a largar a capa, e entrou na sala, ofegante de cansaço e pálida de medo.

— Que tens, minha filha? - disse-lhe o pai - Já duas vezes saíste da sala, e vens tão alvoraçada! Tens algum incômodo, Teresa?

— Tenho uma dor: preciso de ir respirar de vez em quando... Nada é, meu pai.

Tadeu acreditou, e disse a toda a gente que a sua filha tinha uma dor; só o não disse a seu sobrinho, porque o não encontrou, e soube que ele tinha saído.

Também Teresa dera pela ausência do primo, e fingiu que o ia procurar, resolução de que o velho gostou muito. Desceu ela ao jardim, correu à porta onde a esperava Simão, abriu-a, e, com a voz cortada pela ansiedade, apenas disse:

— Vai-te embora; vem amanhã às mesmas horas... Vai, vai!

Simão, quando isto ouvia, os olhos fitos num vulto que se aproximava dele, rente com o muro do quintal. O arreeiro, que primeiro o vira, dera um sinal, e entalara as rédeas do cavalo entre umas pedras, para ficar desembaraçado, se o estudante se não pudesse haver com o inimigo.

Simão Botelho não se moveu do local, e Baltasar Coutinho parou na distância de seis passos. O arreeiro tinha lentamente avançado a meio caminho do patrão, quando este lhe disse que não se aproximasse. E, caminhando para o vulto, aperrou duas pistolas, e disse-lhe:

— Isto aqui não é caminho. Que quer?

O fidalgo não respondeu.

— Parece-me que lhe abro a boca com uma bala - tornou Simão.

— Que lhe importa o senhor quem está?! - disse Baltasar - Se eu tiver um segredo, como o senhor parece que tem o seu nestes sítios, sou obrigado a confessar-lho!?

Simão refletiu, e replicou.

— Este muro pertence a uma casa onde mora uma só família, e uma só mulher.

— Estão nessa casa mais de quarenta mulheres esta noite - redargüiu o primo de Teresa. - Se o cavalheiro espera uma, eu posso esperar outra.

— Quem é o senhor? - tornou com arrogância o filho do corregedor.

— Não conheço a pessoa que me interroga, nem quero conhecer. Fiquemos cada um com o nosso incógnito. Boas noites.

Baltasar Coutinho retrocedeu, dizendo entre si:

— "Que partido tem uma espada contra dois homens e duas pistolas?"

Simão Botelho cavalgou, e partiu para casa do hospitaleiro ferrador.

O sobrinho de Tadeu de Albuquerque entrou na sala sem denunciar levemente alteração de ânimo. Viu que Teresa o observava de revés, e soube dissimular-se de modo que a sossegou. A pobre menina, ansiosa por se ver sozinha, viu com prazer erguer-se para sair a primeira família, que deu rebate às outras, menos ao de Castro-d'Aire e suas irmãs, que ficaram hospedados em casa de seu tio, com tenção de se demorarem oito dias em Viseu.

Velou Teresa o restante da noite, escrevendo a Simão a longa história dos seus terrores, e pedindo-lhe perdão de o ela não ter advertido do baile, por ficar doida de alegria com a sua vinda. No tocante ao plano de se encontrarem na seguinte noite não havia alteração na carta. Isto espantou o acadêmico. A seu ver, o vulto era Baltasar Coutinho, e o pai de Teresa devia ser avisado naquela mesma noite.

Respondeu ele contando a história do incidente com o encapotado; receando, porém, assustar Teresa e privar-se da entrevista, escreveu nova carta em que não transluzia medo de ser atacado, nem sequer receio de marear-lhe a fama. Quis parecer a Simão Botelho que este era o digno porte de um amante corajoso.

Passou o estudante aquele dia contando as longas horas, e meditando instantes nos funestos resultados que podia ter a sua temerária ida, se Baltasar Coutinho era aquele homem que reservara para melhor relance a vingança da provocação insolente. Mas de si para si tinha ele que pensar em que tal era mais cobardia que prudência.

O ferrador tinha uma filha, moça de vinte e quatro anos, formas bonitas, um rosto belo e triste. Notou Simão os reparos em que ela se demorava a contemplá-lo, e perguntou-lhe a causa daquele olhar melancólico com que ela o fitava. Mariana corou, abriu um sorriso triste, e respondeu:

— Não sei o que me adivinha o coração a respeito de vossa senhoria. Alguma desgraça está para lhe suceder...

— A menina não dizia isso - replicou Simão - sem saber alguma coisa da minha vida.

— Alguma coisa sei... - tornou ela.

— Ouviu contar ao arreeiro?

— Não, senhor. E que meu pai conhece o paizinho de vossa senhoria, e também conhece o senhor. E há bocadinho que eu ouvi estar meu pai a dizer a meu tio, que é o arreeiro que veio com vossa senhoria, que tinha suas razões para saber que alguma desgraça lhe estava para acontecer...

— Por quê?

— Por amor duma fidalga de Viseu, que tem um primo em Castro-d'Aire.

Simão espantou-se da publicidade do seu segredo, e ia colher pormenores do que ele julgava mistério entre duas famílias, quando o mestre ferrador João da Cruz entrou no sobrado, onde o precedente diálogo se passara. A moça, como ouvisse os passos do pai, saíra lentamente por outra porta.

— Com sua licença - disse mestre João.

Dizendo, fechou por dentro ambas as portas, e sentou-se sobre uma arca.

— Ora, meu fidalgo - continuou ele, descendo as mangas arregaçadas da camisa, e apertando-as com dificuldade nos grossos pulsos, como quem sabe as etiquetas das mangas - há de desculpar que eu viesse assim em mangas de camisa; mas não dei com a jaqueta...

— Está muito bem, senhor João - atalhou o acadêmico.

— Pois, senhor, eu devo um favor a seu pai, e um favor daquela casta. Uma vez armou-se aqui à minha porta uma desordem, a troco de um couce que um macho dum almocreve deu numa égua, que estava ferrando, e, em tão boa hora foi, que lhe partiu rente o jarrete por aqui, salvo tal lugar.

João da Cruz mostrou na sua perna o ponto por onde fora fraturada a da égua, e continuou:

— Eu tinha ali à mão o martelo, e não me tive que não pregasse com ele na cabeça do macho, que foi logo pra terra. O recoveiro de Carção, que era chibante, deitou as unhas a um bacamarte, que trazia entre uma carga, e desfechou comigo, sem mais tirte nem garte. "Ó alma danada! - disse-lhe eu - pois tu vês que o teu macho me aleijou esta égua, que custou vinte peças a seu dono, e que eu tenho de pagar, e dás-me um tiro por eu te atordoar o macho!?"

— E o tiro acertou-lhe? - atalhou Simão.

— Acertou; mas saberá vossa senhoria que me não matou; deu-me aqui por este braço esquerdo com dois quartos. E vai eu, entro em casa, vou à cabeceira da cama, e trago uma clavina, e desfecho-lha na tábua do peito. O almocreve caiu como um tordo, e não tugiu nem mugiu. Prenderam-me, e fui para Viseu e já lá estava há três anos, no ano que o paízinho de vossa senhoria veio corregedor. Andava muita gente a trabalhar contra mim, e todos me diziam que eu ia pernear na forca. Estava lá na enxovia comigo um preso a cumprir sentença, e disse-me ele que o senhor corregedor tinha muita devoção com as sete dores de Nossa Senhora. Uma vez que ele ia passando com a família para a missa, disse-lhe eu: - "Senhor corregedor, peço a vossa senhoria, pelas sete dores de Maria Santíssima, que me mande ir à sua presença para eu explicar a minha culpa a vossa senhoria". O paizinho de vossa senhoria chamou o meirinho-geral, e mandou tomar o meu nome. Ao outro dia fui chamado ao senhor corregedor, e contei-lhe tudo, mostrando-lhe ainda as cicatrizes do braço. Seu pai ouviu-me, e disse-me: - "Vai-te embora, que eu farei o que puder". O caso é, meu fidalgo, que eu saí absolvido, quando muita gente dizia que eu havia de ser enforcado à minha porta. Faz favor de me dizer se eu não devo andar com a cara onde o seu paizinho põe os pés?!

— Tem o senhor João motivo para lhe ser grato, não há dúvida nenhuma.

— Agora faz favor de ouvir o mais. Eu, antes de ser ferrador, fui criado de farda em casa do fidalgo de Castrod'Aire, que é o senhor Baltasar. Conhece-o vossa senhoria? Ora, se conhece...

— Conheço de nome.

— Foi ele que me abonou dez moedas de ouro para me estabelecer; mas paguei-lhas, Deus louvado. Há de haver seis meses que ele me mandou chamar a Viseu, e me disse que tinha trinta peças para me dar, se eu lhe fizesse um serviço. - "O que vossa senhoria quiser, fidalgo". E vai ele disse-me que queria que eu tirasse a vida a um homem. Isto buliu cá por dentro comigo, porque. a falar a verdade, um homem que mata outro num aperto não é matador de oficio, acho eu, não é assim?

— De certo... - respondeu Simão, adivinhando o remate da história. - Quem era o homem que ele queria morto?

— Era vossa senhoria... O homem! - disse o ferrador com espanto - O senhor nem sequer mudou de cor!

— Eu não mudo nunca de cor, senhor João - disse o acadêmico.

— Estou pasmado!

— E vossemecê não aceitou a incumbência, pelo que vejo - tornou Simão.

— Não, senhor; e, então, logo que ele me disse quem era, a minha vontade era pregar-lhe com a cabeça numa esquina.

— E ele disse-lhe a razão por que me mandava matar?

— Não, meu fidalgo; eu lhe conto: Na semana adiante, quando soube que o senhor Baltasar (raios o partam!> tinha saído de Viseu, fui falar com o senhor corregedor, e contei-lhe tudo como se passara. O senhor corregedor esteve a cismar um pouquinho, e disse-me, e vossa senhoria há de perdoar por eu lhe dizer o que seu pai me disse, tal e qual.

— Diga.

— Seu pai começou a esfregar o nariz, e disse-me: -"Eu sei o que é isso. Se aquele brejeiro de meu filho Simão tivesse honra, não olharia para a prima desse assassino. Cuida o patife que eu consentia que meu filho se ligasse a uma filha de Tadeu de Albuquerque Ainda disse mais coisas que me não lembram; mas eu fiquei sabendo tudo. Ora aqui tem o que houve. Agora apareceu-me aqui vossa senhoria, e a noite passada foi a Viseu. Perdoará a minha confiança: mas vossa senhoria foi falar com a tal menina; e eu estive vai não vai a segui-lo; mas, como ia meu cunhado, que é homem para três, fiquei descansado. Ele contou-me um encontro que vossa senhoria teve à porta do quintal da menina. Se lá torna, senhor Simão, vá preparado para alguma coisa de maior. Eu bem sei que vossa senhoria não é medroso; mas duma traição ninguém se livra. Se quer que eu vá também, estou às suas ordens; e a clavina que deu polícia ao almocreve ainda ali está, e dá fogo debaixo de água, como diz o outro. Mas, se vossa senhoria dá licença que eu lhe diga a minha opinião, o melhor é não andar nessas encamisadas. Se quer casar com ela, vá pedir a seu pai licença, e deixe o resto cá por minha conta; ponto é que ela queria. que eu, num abrir e fechar de olhos, atiro com ela para cima duma égua de chupeta. que ali tenho, e o pai e mais o primo ficam a ver navios.

— Obrigado, meu amigo - disse Simão - aproveitarei os seus bons serviços quando me forem necessários. Esta noite hei de ir, como fui a noite passada, a Viseu. Se houver novidade, então veremos o que se há de fazer. Conto com vossemecê, e creia que tem em mim um amigo.

Mestre João da Cruz não replicou. Dali foi examinar mudamente a fecharia da clavina, e entender-se com o cunhado sobre cautelas necessárias, enquanto descarregava a arma, e a carregava de novo com uns zagalotes especiais, que ele denominava "amêndoas de pimpões".

Neste intervalo, Mariana, a filha do ferrador, entrou no sobrado, e disse com meiguice a Simão Botelho:

— Então sempre é certo ir?

— Vou; para que não hei de ir?!

— Pois Nossa Senhora vá na sua companhia - tornou ela, saindo logo para esconder as lágrimas.

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