Kitabı oku: «Romancistas Essenciais - Coelho Neto»
O Autor
Henrique Maximiano Coelho Netto (Caxias, 21 de fevereiro de 1864 — Rio de Janeiro, 28 de novembro de 1934) foi um escritor, político e professor brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras onde foi o fundador da Cadeira número 2. Foi considerado o "Príncipe dos Prosadores Brasileiros", numa votação realizada em 1928 pela revista O Malho. Apesar disto, foi consideravelmente combatido pelos modernistas, sendo pouco lido desde então, em verdadeiro ostracismo intelectual e literário.
Filho do português Antônio da Fonseca Coelho com a índia Ana Silvestre Coelho, que mudaram-se do Maranhão para o Rio de Janeiro quando o filho contava apenas seis anos de idade. Estudou no Colégio Pedro II, onde realizou os cursos preparatórios e ingressou na Faculdade de Medicina, que abandonou em seguida, matriculando-se em 1883 na Faculdade de Direito de São Paulo.
No curso jurídico Coelho Neto expande suas revoltas, logo se envolvendo no movimento de alunos contra um professor e, para evitar represálias, transfere-se para a faculdade do Recife, e ali conclui o primeiro ano tendo por principal mestre Tobias Barreto. Após este lapso, retorna para São Paulo, e logo participa de movimentos abolicionistas e republicanos, entrando em choque com os professores, não chegando a concluir o curso.
Sem se formar, retorna em 1885 para o Rio onde, ao lado de escritores como Olavo Bilac, Luís Murat, Guimarães Passos e Paula Ney forma um grupo cujas experiências vem a retratar no romance A Conquista, de 1899. Ativo na campanha pela extinção da escravatura, alia-se a José do Patrocínio; labora como colaborador do jornal Gazeta da Tarde e, depois, para o A Cidade do Rio, onde foi secretário, ocasião em que inicia a publicação de seus textos literários.
Casou-se em 1890 com Maria Gabriela Brandão, filha do professor Alberto Olympio Brandão, com quem teve catorze filhos. Neste mesmo ano é nomeado secretário de governo do estado e em 1891 ocupa a direção de Negócios do Estado. Em 1892 é nomeado para o magistério de História da Arte na Escola Nacional de Belas Artes. Depois leciona literatura no Colégio Pedro II; nesta atividade é nomeado, em 1910, para as cátedras de História do Teatro e Literatura Dramática na Escola de Arte Dramática do Rio, da qual foi mais tarde seu diretor.
Na política tornou-se deputado federal pelo estado natal, em 1909, reeleito em 1917. Ocupou ainda diversos cargos, e integrou diversas instituições culturais.
Em 1923 converteu-se ao Espiritismo, proferindo um discurso no Salão da Guarda Velha no Rio de Janeiro sobre sua adesão. Sobre a matéria, o "Jornal do Brasil" publicou entrevista com o escritor (7 de junho de 1923), anteriormente intransigente adversário do Espiritismo, e que a ele se converteu após ter participado, na extensão do seu escritório, de uma conversa ao telefone entre a sua neta, falecida em tenra idade, e a mãe dela.
Sua vida divide-se, assim, em três fases distintas: na primeira, aquela em que procura se firmar como escritor; a segunda, quando integra o movimento pela Academia, participa da política e obtém reconhecimento e consagração e, finalmente, a terceira, na qual experimenta os ataques modernistas e o consequente esquecimento.
Durante muitos anos, Coelho Neto foi o autor mais lido do Brasil. O autor assinava trabalhos com seu próprio nome e também escrevia sob inúmeros pseudônimos, como por exemplo: Anselmo Ribas, Caliban, Ariel, Amador Santelmo, Blanco Canabarro, Charles Rouget, Democ, N. Puck, Tartarin, Fur-Fur, Manés.
Sua extensa obra não se prendia a um só gênero. Escreveu romances realistas e naturalistas. Sua fecunda produção valeu-lhe a crítica de ser um "fabricante de romances". Em 1928, foi eleito Príncipe dos Prosadores Brasileiros, num concurso realizado pelo O Malho. João Neves da Fontoura, no discurso de posse, traçou-lhe o perfil: “As duas grandes forças da obra de Coelho Neto residem na imaginação e no poder verbal. [...] Havia no seu cérebro, como nos teatros modernos, palcos móveis para as mutações da mágica. É o exemplo único de repentista da prosa. [...] Dotado de um dinamismo muito raro, Neto foi um idólatra da forma.”
Apesar disto, foi consideravelmente combatido pelos modernistas, sendo pouco lido desde então, caindo em verdadeiro ostracismo intelectual e literário. Ainda assim, muitos críticos literários vêem sua obra como cheia de “pompa e formalismos”, dotada de “artifícios retóricos”.
Arnaldo Niskier, jornalista e membro da Academia Brasileira de Letras, disse sobre a relação do Modernismo para com o autor: "A vitória do modernismo se fez como se houvesse necessidade de abater um grande inimigo, no caso, Coelho Neto"
Atualmente, o autor não é tão conhecido pelo grande público leitor. Sua fama é mais conhecida pelos estudiosos da área da literatura. Seu atual anonimato dá-se pelo fato de seu nome, bem como sua história, estar ausentes da maioria dos livros didáticos e das listas de livros exigidos pelos vestibulares.
Em A Literatura Brasileira, Alfredo Bosi escreve sobre o autor: “A fortuna crítica de Coelho Neto conheceu os extremos do desprezo e da louvação, desde “o sujeito mais nefasto que tem aparecido no nosso meio intelectual”, de Lima Barreto, a “o maior romancista brasileiro” de Otávio Faria. Lima ainda chegou a publicar artigos em periódicos literários, como a Revista Contemporânea e A Lanterna nos quais direciona ataques a Coelho Neto, e sua visão tradicional da literatura; dizia que este preocupava-se somente com o estilo, vocabulário e passava ao largo das questões sociais, políticas e morais, deixando de usar a escrita como instrumento de transformação social.
Em outro artigo, Barreto escreveu: "Em um século deste, o senhor Coelho Neto ficou sendo unicamente um plástico, um contemplativo, magnetizado pelo Flaubert da Madame Bovary, com as suas Chinesices de estilo, querendo como os Goncourts, pintar com a palavra escrita (...) mas que não fez de seu instrumento artístico um veículo de difusão das ideias de seu tempo...
Turbilhão
I
Revistas as últimas provas do conto de Aurélio Mendes o Anacharsis dos "Idílios pagãos", Paulo Jove arredou a cadeira e pôs-se de pé, desabafando. Doía-lhe a espinha e, como havia fumado quase todo o maço de cigarros, tinha a boca amarga e áspera, os olhos ardidos, não só do fumo e da claridade intensíssima das lâmpadas elétricas, como da fixidez atenta em que os mantinha desde as sete e meia até àquela hora alta da noite.
Curvou-se de mãos nas ilhargas, d'ímpeto esticou os braços, arrojou-os à frente com um ahn! surdo de atleta que exercita os músculos entorpecidos e desabou-os depois, com força, sacudindo-se todo, virando, revirando a cabeça, como em ânsia angustiosa. Levantou-os, de novo, acima da cabeça, as mãos juntas, estrincando os dedos enclavinhados e bocejou, espichando-se nas pontas dos pés caindo depois, rijamente, sobre os tacões.
Já as primeiras páginas haviam descido para a clichagem. Embaixo, martelavam pancadas crebas, como de matracas. A caldeira reboava num retroar soturno de caverna que repercutisse, sem descontinuar, o gorgorejo possante de águas encachoeiradas.
Na sala da revisão, estreita e abafada, mal comportando as quatro mesas de serviço, os revisores repousavam; apenas o Brites, esgalgado e míope, lia o antigo de fundo, todo em períodos lamentosos augurando fome e lutas; e o Amaro, conferente, acusando a pontuação de quando em quando batia na mesa pancadas secas com um lápis ou dizia claramente uma palavra, repetindo-a devagar, sílaba a sílaba, enquanto o Brites, debruçado sobre a prova, fazia a emenda resmungando.
O Malheiros, em mangas de camisa, suado, afogueado, derreava-se na cadeira, com a cabeça no respaldo, fumando, de olhos distraidamente cravados no teto, de onde escorriam os fios oscilantes das lâmpadas elétricas. O Bruno, abaçanado, raquítico, nervoso, sempre a calcar sobre a mola flácida do pince-nez, que lhe escorregava do nariz tressuante, todo pendido para o Freire, com uma rosa murcha à botoeira, silvava endecassílabos, preconizando a grande Arte do Mendonça, o inimitável cinzelador do "Fauno Trêmulo".
Paulo enxugou a fronte e, tirando de um prego o colete e o paletó, lentamente, vergado de fadiga, a bocejar, vestiu-os, com os olhos no entusiasta penegirista do Decadismo, que falava precipitado com desabalados gestos, sem dar pelo estremunho do Freire que molemente com uma ponta de cigarro ao canto da boca, sacudia a cabeça em afirmações condescendentes.
Na grande sala, ao lado, vozes morosas apregoavam letras e números.
A colmeia fervilhava. Os compositores - uns de pé, em mangas de camisa; outros em altos bancos, em quatro filas paralelas, estendidas ao longo da sala, cabisbaixos, à luz branca e viva das lâmpadas, precipitavam os dedos nos caixotins, enchendo os componedores com um trepidar metálico de gotas d'água em zinco.
O Mário, d'óculos, apressado, ia de um a outro, examinando: inclinava-se sussurrando, como se comunicasse segredos, e havia, por vezes, um zumbido de vozes surdas, interrompido pela tosse cavernosa de um rapaz bronzeado, esguio e ossudo que, de instante a instante, ia à janela escarrar e lá ficava, curvado, tossindo aos arrancos, cavadamente. como se tivesse o peito devastado e oco.
O Sampaio, diante do mármore, a mascar o charuto, ia desligando os paquets para a paginação, enquanto o Lúcio, retranca, besuntado de tinta, mangas arregaçadas, tirava as últimas provas que os revisores esperavam.
Subitamente um bufo, como da expansão de uma válcula, subiu das oficinas, e foi depois um chiado e logo um silvo de jato, e, lentamente, com rumor de ferragens, como à partida de um comboio, as máquinas moveram-se, abalando o soalho em trepidações contínuas.
O Malheiros, dobrando-se, tomou entre as mãos enlaçadas um dos joelhos e suspirou:
"Não podia ouvir aquilo sem saudade: lembrava-se da sua viagem e pensava no Norte. Parecia-lhe que se achava a bordo, no convés, estirado num banco, ao clarão da lua, ouvindo as fontes pulsações da máquina que impelia o navio pelo mar luminoso." E, sonhando, deixava-se ficar muito quieto, olhos semicerrados, viajando imaginariamente para o seu torrão longínquo: praias longas, ondulando em dunas alvas, praias que o mar bravio lambe e assoalha de espumas, donde os jangadeiros, cantando, arrastam as jangadas que, de velas pandas, aos galões, partem, montando a vaga, perdendo-se nos horizontes azuis.
O Bruno, esse detestava a oficina: o "antro do Dragão". O prelo era: o Monstro devorador do gênio; e, sempre que ouvia a crepitação das correias nas polias ou o rolar dos cilindros das marinônis, murmurava, com ódio e nojo: "Lá está a besta mastigando!"
Nessa noite, mais irritado, irrompeu furioso:
— Eu podia estar na redação, ganhando mais e com outras regalias: escrevo com sintaxe e com arte, tenho a minha porção de ciência e de literatura, coisas que não possuem muitos dos que se inculcam, com vaidade, jornalistas; mas não quero: prefiro ficar por aqui, em nível inferior, conservando a integridade perfeita do meu espírito; ao menos não se dirá que cevo o "Monstro" que lá está experimentando as mandíbulas de ferro em folhas velhas, babando-as de saliva negra, como a jibóia lubrifica a presa antes de a engolir. Faz apetite à espera da ração, o estúpido.
"Eu sei que o escrito é um alimento indispensável ao espírito das gentes: entendo, porém, que os intelectuais devem apenas preparar o néctar divino e não essa mixórdia em que entra tudo - desde o espargo até a couve tronchuda.
"Vejam vocês: um artista como o Penante faz uma bela página de prosa ática - períodos polidos a capricho, como só ele os sabe polir. Compõe o Mendonça, com a magnificência do seu talento, um poemeto de rendilhados versos bizantinos. Escreve o Rocha um daqueles antigos de original beleza, nos quais a gente encontra a Musa cantando, desolada. no serralho da Política, como a Cativa, de Hugo, na alcáçova do Turco, e vêm esses primores aqui para cima, na mesma cesta em que sobem as ignomínias das penas anônimas, como as rosas que chegam do mercado num samburá entre repolhos e nabos.
"Aqui misturam-se com os artigos pífios, cuja sintaxe temos de arranjar, raspando-lhes os solecismos - porque, meus amigos, a verdade é esta: nós somos como os ajudantes de cozinha, que lavam as ervas das hortas tirando-lhes a terra e as lesmas. O mesmo rolo que passou sobre as imbecilidades do a pedido, passa por eles; o mesmo componedor, onde se acomodaram aqueles alexandrinos de ouro e aqueles períodos lapidares, acolhe a mofina salaz e covarde e o atoucinhado anúncio, a ignomínia da charada e o sórdido folhetim desconchavado, sem nexo, sem forma, e, depois, lá vai tudo, como um guisado. ser triturado, digerido e lançado, por fim, na página, alfuja onde fermenta a estrumeira da civilização.
"Bolas! Arte é arte! A palavra é uma centelha, é preciso que tenha uma trípode. Prefiro ser revisor. Não tenho cérebro para regalo da Besta que se contenta com a panelada farta e grossa. O meu cérebro, se algum dia fornecer alimento ao animal, dará o néctar ideal, sem ingredientes pulhas da horta indígena, como a mofina, ou da salsicharia universal, como os telegramas. Isso é a Besta máxima da Vulgaridade. Lá está mastigando cérebros: o cérebro suntuoso do Mendonça e o miolo infame do taverneiro, que anuncia malas de carne-seca ou sessões na sua Beneficente. Que te saiba, bruto! essa polenta ignóbil."
Os companheiros riam vendo o Bruno, de mãos atafulhadas nos bolsos, indo e vindo no estreito espaço que havia entre as mesas da revisão, a cuspilhar, resmungando contra aquela "moenda infame".
O Malheiros gostava de provocá-lo, sublinhando-lhe os disparates:
— Ó Bruno, o monstro come cérebros e faz estrumeira ou prepara o guisado para o público? Vê lá em que ficas.
— Fico em afirmar que é o realejo da palavra! - concluiu, indignado, o puritano da Arte.
Riram. E o Bruno foi resmungar, debruçado à balaustrada da escada que descia para a oficina.
Paulo conservava-se indiferente. Debalde o Bruno bramia e gesticulava, ele não estava de veia alegre: sentia-se mole, exausto, com uma dorzinha de cabeça. Andara todo o dia, rua abaixo, rua acima com receitas e medicamentos, porque a moléstia da mãe agravara-se com a umidade daqueles dias, prendendo-a à cama. Não fora à Escola, estava abatido e com um vazio no estômago como se estivesse em jejum.
Tomou o chapéu e o guarda-chuva a um canto, apanhou um embrulhinho na mesa e, secamente, despediu-se dos companheiros atirando uma leve pancada ao ombro do Brites, que respungou, sem levantar a cabeça: "Boa noite!" O Sampaio, vendo-o sair, perguntou com o charuto nos dentes:
— Então, já?
— É verdade. - E foi descendo lentamente.
No primeiro andar, numa sala escura dos fundos, o pessoal do correio cortava as listas da expedição e o Moraes, plantonista, gordo, pletórico, sempre empanzinado, que tinha fama nos clubes de ser um garfo respeitável, para não ficar só na redação, lá estava encostado à comprida mesa, roncando pilhérias com ânsias de asma e muita gosma.
Descendo mais alguns degraus, Paulo deteve-se, como sempre fazia para olhar um instante, através das grades, a oficina toda tomada pelos complicados maquinismos - desde as marinônis soberbas, juntas, como dois animais de raça, ocupando uma ala à parte, até os pequenos prelos de mão que uma criança movia.
O motor, ao fundo, com a chaminé esgalgada como um pescoço de girafa, furava o teto atravessado de longos eixos sobre os quais giravam polias movidas pelas correias, que eram como os nervos daquele possante organismo.
No meio da sala, ao rés-do-chão, dois cilindros brancos rodavam rapidamente ligados por uma larga faixa. Sobre um deles caía um estilicídio perene: eram os rolos de papel que, depois de umedecidos, deviam ser levados às marinônis para que, impressos e cortados, saíssem aos milheiros. com a primeira luz da madrugada, propagando sucessos e desastres.
Homens iam e vinham apressados, outros cercavam o mármore, onde jazia a página e, com pedacinhos de papelão, iam acamando certos tipos para que ressaltassem na estereotipia; outros levavam grandes folhas de estanho, reluzentes como prata e mergulhavam-nas nos fundidores, onde se derretiam como se fossem de neve e, com o volteio daquelas rodas céleres e as vozes e os passos dos que se moviam e o chiar das correias que estralejavam, de quando em quando, um constante e estranho rumor de vida agitava a oficina onde as lâmpadas suspensas brilhavam como grossas gotas de luz.
— Parado, coçando a barba, como em grande cuidado, um velho olhava para uma das marinônis, em cujos cilindros já reluziam as matrizes. De repente afastou-se, tomou várias folhas de papel tisnadas, andou com elas em volta do "Monstro" vendo, revendo, curvado, de cócoras. Meteu o papel entre os cilindros, ergueu-se, deu um puxão à alavanca e a máquina moveu-se com rapidez trepidando, a espichar aquelas folhas de papel que os rolos apertavam e impeliam manchadas de tachas sórdidas, como as primeiras vasas anunciadoras do parto.
Paulo, satisfeita a curiosidade, desceu ouvindo sempre o estrondoso rumor do trabalho. Era o "Monstro" do Bruno, pior que o touro brônzeo de Fálaris, porque do seu bojo saíam, não os gemidos de uma só vítima, mas o clamor de toda a humanidade, a resenha da vida universal, cuja percentagem de angústias sobreleva-se avassaladoramente à parte mínima de prazer. E, olhando, parecia-lhe ouvir o arquejo doloroso do mundo, a zoada ansiosa do enxame humano atroando, subindo daquelas finas lâminas flexíveis, como a voz cativa irrompe quando a despertam nos tubos sensíveis do fonógrafo. Desceu.
No corredor, encostado à parede, com as pernas estiradas, um homem dormia, a cabeça pendida sobre um dos ombros, os pés nus, imundos, o peito da camisa aberto, uma bolsa a tiracolo. A porta, em torno dum negro que vendia café, às canecas, um grupo chalrava alegremente, na treva.
Paulo subiu a Rua do Ouvidor obscura e calada.
Um vento frio soprava. O céu negro, sem estrelas, ameaçava aguaceiro e, como chovera copiosamente à tarde, com ventania e trovões, poças d'água refletiam a luz dos combustores. Um cão magro percorria a sarjeta farejando.
Na esquina da Rua dos Ourives estacionava a patrulha. Os soldados, emblocados nos capotes, fumavam pachorrentamente, e os cavalos muito juntos, a cabeça baixa, pareciam dormir fitando, de vez em vez, as orelhas agudas como se perscrutassem rumores no vento.
Uma luzinha tíbia, como de lamparina, atraiu para uma casa os olhares do retardatário. As portas eram fortes e negras, como de ferro e, por um postigo engradado, via-se o interior de uma ourivesaria com os mostradores atopetados de jóias de preço e de baixelas que reluziam.
Taroucando tamancos, dois homens passaram por ele discutindo e, já longe, romperam em gargalhada estrondosa.
Chegando ao Largo de S. Francisco teve uma exclamação e deitou a correr para um bonde que partia, quase vazio, com as cortinas descidas. Tomou-o na volta, apesar do aviso do condutor: "Que ia recolher." Morando na Rua Senador Pompeu tanto lhe servia aquele como outro. Sentou-se, acendeu um cigarro e, de pernas cruzadas, imaginando fortunas e aventuras, foi-se deixando levar, como em sonho, sem ver, sem ouvir, alheio ao real que o cercava. Repentinamente, porém, lembrou-se da mãe. Que seria dele se a boa velha morresse?
Achacada, sempre a gemer, arrastando a perna túmida e pesada, era ela, ainda assim, quem lhe prestava auxílios, cuidando da casa, regulando as despesas, porque a irmã, sempre a pensar em enfeites, fazendo e desfazendo penteados ao espelho, polindo as unhas, passava os dias na cadeira de balanço, a ler romances e, à tarde, encharcada de essências, com muito pó-de-arroz, debruçava-se à janela, para ver os trens e receber bilhetinhos que os rapazes metiam por entre as rexas da persiana.
Era bonita e esbelta, de um moreno quente de crioula, tez fina e rosada, olhos negros, boca pequena, sensual, de lábios carnudos e úmidos. Os cabelos, quando os desprendia, passavam-lhe da cinta em ondas negras e reluzentes. Tinha uma voz lânguida, como ressentida de tristeza; falava em tom dolente de queixa e o seu olhar quebrantado, sonolento, amortecia-se em êxtases sob as longas pestanas curvas.
Paulo dominava-a com aspereza, exprobrando-lhe a vida desmazelada e, quando a velha, na intimidade, referia-lhe algum pequenino escândalo de Violante, rompia, assomado, ameaçando pregar a janela, atirar ao lixo todas aquelas caixas, todos aqueles vidros que entulhavam o toucador. Mas a irmã tinha crises - rolava pela casa, aos gritos, rangendo os dentes, rasgando a roupa, escabujando. E a boa velha, lamentando-se, corria os cantos, procurando remédios e, de joelhos, com a cabeça da filha ao colo, beijando-a, chamava-a, pedindo ao outro que a não tratasse com tanta aspereza, que tivesse pena dela, e instava para que, com afagos, procurasse chamá-la à razão. Ele obedecia contrariado. E Violante, amuada e mais linda depois da excitação nervosa, com os olhos mais brilhantes e a cor das faces mais viva, ia trancar-se no quarto, resmungando ameaças.
Voluntariosa, criada aos joelhos do pai, que a tratava de "princesa", anunciando-lhe sempre um noivo formoso e rico, que a havia de cobrir de sedas e carregá-la de jóias, foi acostumando o espírito com estas idéias de nobreza e fausto; de sorte que, quando lhe morreu o pai, já mocinha, sentiu-se como deserdada: foi como se, com ele, houvesse perdido uma fortuna que já possuía e um noivo que já a visitava em sonhos, formoso como os príncipes dos romances que ela devorava, revendo-se, com enlevo, em todas as heroínas.
Com a monte do pai, major de cavalaria, condecorado por feitos no Paraguai, todo o peso da casa recaiu sobre Paulo que, então, concluía os preparatórios.
Abandonando a idéia de bacharelar-se no Ginásio, matriculou-se na Faculdade de Medicina, conseguindo um lugar na revisão do Equador e algumas lições particulares, com o que fazia uma soma regular que, reunida ao meio-soldo que a mãe recebia, dava para irem vivendo, se não com luxo, ao menos com decência e fartura.
Posto que não achasse gravidade no estado da mãe, andava apreensivo, receoso, imaginando complicações e, volta e meia, lá ia um médico à casa; eram, às vezes, colegas. E os frascos de remédios enchiam prateleiras.
Com aqueles dias úmidos, Dona Júlia sofria atrozmente: mal podia mover-se na casa; sempre acaçapada nas cadeiras, as mãos espalmadas nas coxas, a gemer, dando ordens à cozinheira, que era a criada única que tinham. Ainda assim, se as dores abrandavam, lá ia ela para a vassoura, varrer, limpar os móveis ou arranjar a sala, porque não podia ver um fósforo no chão, nem um átomo de poeira nos seus velhos trastes do tempo do falecido. E, se a moléstia a prendia à cama, lá mesmo, com a perna esticada e untada, com o cesto de costura ao colo, ia cerzindo roupas, remendando meias ou reformando, pacientemente, os casacos da filha.
Profundamente religiosa, tinha no seu quanto, defronte da cama, sobre a cômoda, o oratório ante o qual ardia, perene, a lamparina de azeite iluminando registros milagrosos e duas imagens: a da Conceição e a do Senhor dos Passas.
Paulo ia pensando na boa velha e, quando o bonde passava pela Estrada de Ferro, saltou, subindo a Rua do Dr. João Ricardo, deserta àquela hora da noite. Grossas gotas de chuva bateram nas pedras, uma lufada de vento passou e, ao clarão de um relâmpago, o céu apareceu negro, acastelado de nuvens. Levantou a gola do casaco e, com o guarda-chuva à frente, como um escudo, a cabeça encolhida, partiu, rompendo a ventania.