Kitabı oku: «Romancistas Essenciais - Franklin Távora», sayfa 2
Profundo silêncio reinava no vasto areal que guarnecia o rio por aquele lado. As águas mal se moviam. Desceram os dois à margem a ajuntar-se ao Teodósio conforme o convencionado, mas a sua expectativa foi iludida; não havia aí viva alma; unicamente se mostrou aos seus olhos um corpo negro, oscilando debaixo da folhagem, ao brando ondear das águas: era uma canoa que estava presa por uma corda ao tronco da ingazeira.
Depois de alguns momentos de espera não sem inquietação para os recém-chegados, um ruído que veio interromper o silêncio reinante na margem, obrigou-os a pôr-se em armas por precaução. A corda rapidamente encurtando atraiu sem auxílio visível a canoa à margem e um corpulento canoeiro, nu da cintura para cima, arrastando uma vara pela mão, soltou à frente dos malfeitores.
— Sou eu, Cabeleira, sou eu.
— Teodósio! Meteste-te em boas.
— Eu estava escondido dentro da canoa para fazer um susto a vocês.
— A bom diabo te encomendaste hoje que o meu bacamarte mentiu fogo duas vezes — disse Cabeleira.
— Não falemos mais nisso — acudiu Teodósio; celebraremos depois o caso. Para agora vamos ao que importa.
— Que é que há?
— Não me estão vendo em figura de canoeiro? Vamos a ela enquanto é tempo.
Teodósio inclinou-se para. passar aos dois um segredo que em pouco tempo foi por ambos compreendido, e que entrou no mesmo instante a ser posto em execução pelos três. O pai e o filho foram guardar as suas armas de fogo na canoa, e o cabra saltou novamente dentro dela e fez-se ao largo. Quem visse um instante depois o lenho resvalando na vasta superfície do rio à claridade dos astros da noite, juraria que nessa sombra fugitiva, nesse ponto que se perdeu por fim nos seios da escuridão, não ia mais que um canoeiro, sabedor das manhas das águas e senhor dos meios de as vencer. Ia entretanto aí uma maldade muito mais considerável e perigosa, porque era hipócrita e estava disfarçada, do que a malvadez de Joaquim sempre alerta, e a impavidez de José sempre franco até na estratégia e na emboscada.
Estes dois últimos, tanto que o cabra se afastou da margem, atravessaram a ponte da Boa Vista e, ladeando o canal que cercava Santo Antônio pelo lado ocidental e ia encher ao sul as valas da fortaleza das Cinco Pontas, e ao norte as do forte Ernesto, hoje inteiramente desaparecido, passaram em frente do palácio do governador e por este forte, o qual ficava pouco adiante do convento de S. Francisco, e entraram na ponte do Recife que apresentava uma vista majestosa e deslumbrante. Colunas e arcos triunfais profusamente iluminados tinham sido ali erguidos a iguais distâncias. Ao som das músicas marciais, o povo percorria o aéreo passeio entre risos e folgares.
Ainda bem não se haviam os malfeitores confundido com os passeantes, quando se ouviu um grito arrancado pelo pânico terror de um matuto que os conhecera.
— O Cabeleira! O Cabeleira! Grandes desgraças vamos ter, minha gente! — clamou o mal-avisado roceiro.
Estas palavras caíram como raios mortíferos no meio da multidão que se entregava, incuidosa e confiante, ao regozijo oficial.
A confusão foi indescritível. Às expansões da pública alegria sucederam as demonstrações do geral terror. Homens, mulheres, crianças atropelaram-se, correndo, fugindo, gritando, caindo como impelidos por infernal ciclone. A faina do Cabeleira tinha, não sem razão, criado na imaginação do povo um fantasma sanguinário que naquele momento se animou no espírito de todos e a todos ameaçou com inevitável extermínio.
Ouvindo aquelas palavras e sendo assim surpreendidos por uma ocorrência com que não contavam, os dois malfeitores instintivamente bateram mãos das parnaíbas primeiro para se defenderem, por lhes parecer que corria a sua liberdade iminente perigo, que para investirem com a massa ingente, a qual aliás fugia como rebanho apavorado pela presença das onças. Os seus gestos concorreram para aumentar o terror da multidão, a qual, mal interpretando-os, imaginou que ia ter começo a carnificina.
— Sim, é o Cabeleira, gente fraca. Ele não vem só, vem seu pai também[1] — gritou José Gomes, cujo rosto começou a anuviar-se.
Joaquim, feroz por natureza, sanguinário por longo hábito, descarregou a parnaíba sobre a cabeça do primeiro que acertou de passar por junto dele. A cutilada foi certeira, e o sangue da vitima, espadanando contra a face do matador, deixou aí estampada uma máscara vermelha através da qual só se viam brilhar os olhos felinos daquele animal humano.
José Gomes, por irresistível força do instinto que muitas vezes o traiu aos olhos do carniceiro pai, voltou-se de chofre e lhe disse:
— Para que matar se eles fogem de nós?
— Matar sempre, Zé Gomes — retorquiu o mameluco com as narinas dilatadas pelo odor do sangue fresco e quente que do rosto lhe descia aos lábios e destes penetrava na boca cerval. Não temos aqui um só amigo. Todos nos querem mal. É preciso fazer a obra bem feita.
Este homem era o gênio da destruição e do crime. Por sua boca falavam as baixas paixões que à sombra da ignorância, da impunidade e das florestas haviam crescido sem freio e lhe tinham apagado os lampejos da consciência racional que todo homem traz do berço, ainda aqueles que vêm a ser depois truculentos e consumados sicários.
Seu coração estava empedernido, seu senso moral obcecado.
Nenhum sentimento brando e terno, nenhum pensamento elevado exercitava a sua salutar influência nas ações deste ente degenerado e infeliz.
— Estás com medo, Zé Gomes, deste poviléu? Parece-me ver-te fraquear. Por minha bênção e maldição te ordeno que me ajudes a fazer o bonito enquanto é tempo. Não sejas mole, Zé Gomes; sê valentão como é teu pai[2].
Tendo ouvido estas palavras, o Cabeleira, em cuja vontade exercitava Joaquim irresistível poder, fez-se fúria descomunal e, atirando-se no meio do concurso de gente, foi acutilando a quem encontrou com diabólico desabrimento. Como dois raios exterminadores, descreviam pai e filho no seio da massa revolta desordenadas e vertiginosas elipses.
A geral consternação teria cessado em poucos instantes se o povo pudesse escapar pelas duas entradas da ponte. Achavam-se porém estas já tomadas por piquetes de infantaria às pressas organizados para embargarem a fuga aos matadores e reduzi-los à prisão.
À medida que estes piquetes se foram movendo das extremidades para o centro, a população obrigada a aproximar-se dos assassinos, preferiu a este perigo atirar-se ao rio, e a baldeação não se fez esperar.
Em poucos momentos os perturbadores da ordem acharam-se debaixo das vistas da força pública. O lugar da cena estava quase inteiramente desocupado. As colunas militares operaram um movimento único, indescritível. Carregaram sem demora sobre os delinqüentes que, à vista da estreiteza do passo e do cerco, só nas águas puderam, como as suas vítimas, achar salvação.
Um soldado, impelido talvez primeiro pelo ímpeto da paixão que pela consciência do dever, o qual em ocasiões iguais àquela raramente fala mais alto que os instintos animais, atirou-se de arma em punho após os assassinos com o fim de apreender um dos dois, ainda que custasse a própria vida. Não logrou o seu intento este valente defensor da sociedade e da lei. Quando sua mão tocava em um dos delinquentes, de cima de uma canoa que nesse momento desatracara da ponte, desfecharam-lhe com a vara tão forte golpe sobre a cabeça, que o infeliz, perdendo os sentidos, foi arrebatado pela corrente. Igual cena se presenciou em 1821, figurando como vítima João Souto Maior que procurara salvar-se no rio depois de haver ferido com um tiro de bacamarte na ponte da Boa Vista o governador Luís do Rego Barreto.
Assim se passou na vila do Recife a noite do primeiro domingo de dezembro de 1773, noite memorável, que principiou pela alegria e terminou pelo terror público.
II
POR entre as vítimas do terror que lutavam com as águas do Capibaribe nas sombras da noite deslizou indiferente a canoa onde ia o Teodósio, assassino do soldado que se atirara ao rio em busca dos delinqüentes.
Teodósio, como os leitores hão de lembrar-se, viera só mas não voltava agora desacompanhado. José, taciturno e quieto, e rosnando como besta-fera que indiscreto caçador irrita em escuso bosque, testemunhavam ao pé do cabra, sentados na popa do fugitivo lenho, com os bacamartes nas mãos, o espetáculo de aflição e desespero; e, como se o fizessem de caso pensado para denotarem a pouca conta em que tinham uma sociedade que eles dois unicamente acabavam de entregar em alguns minutos à perturbação e à dor, pareciam afrontar com olhares insultuosos não somente os homens mas também aquele que ao fulgor das estrelas vê melhor do que os mortais à luz do dia, e que das alturas, onde paira, distribui por todos a sua indefectível justiça, tanto para premiar como para punir. Foi Deus o único que conheceu os três aventureiros rompendo as águas, o único que em suas frontes manchadas do sangue e do opróbrio recente leu o passado que os condenava e o futuro que por eles esperava para justiçá-los com a excessiva severidade que havemos de ver.
Os náufragos só trataram de salvar-se e fugir; qual se agarrasse aos mangues, então muito bastos e numerosos, que bordam o rio como ilhas de verdura, qual demandasse, a fim de escapar da inclemência da corrente, os bancos de areia formados pelo fluxo e refluxo das marés. Ninguém cuidou mais no Cabeleira senão para se distanciar com horror crescente da sua sombra cruel, do seu vulto fatal e ominoso.
Achavam-se na ponte o pai e o filho, não para serem socorridos, como foram, pelo companheiro, mas para protegerem a sua fuga, caso fosse ele descoberto antes de haver concluído o roubo que assentaram de praticar em um dos armazéns. A denúncia do matuto transtornara esta combinação pela forma que o leitor conhece, não impedindo porém que no essencial viesse ela a verificar-se, porque, ouvindo o trovão do alarido e fazendo conta que o conflito fora provocado pelos amigos como meio de concentrar em um só ponto as gerais atenções a fim de deixá-lo ao abrigo de qualquer surpresa, tratara Teodósio de aproveitar o tempo com a prontidão e perícia que lhe eram habituais em semelhante gênero de ocupação.
Na extremidade de uma vara fora acinte atado um ferro adunco para facilitar o escalamento. Prendê-lo na varanda do armazém, subir pela longa haste até à estiva, passar desta à janela, e saltar dentro fora obra de um instante para o Teodósio. Em poucos minutos quinquilharias preciosas, armas de fogo, perfumarias, miudezas de toda sorte desceram por cordas em suas caixas ou pacotes para a canoa. As gavetas, primeiro que as vidraças foram violadas e revistadas, e o dinheiro que continham passara a povoar o bolso do atrevido roubador.
São tradicionais os roubos que deste modo se praticaram na ponte do Recife por aqueles tempos e durante muitos anos depois. Segundo contam os antigos, eles reproduziram-se no começo deste século com tanta frequência, que os armazéns ao princípio com razão cobiçados pelos comerciantes, perderam de valor, e ficariam de todos depreciados se a polícia, por uma rigorosa vigilância que lhe faz honra, não houvesse impedido a continuação destes atentados.
Quando não houve mais objeto de preço que baldear, Teodósio desceu. Era tempo. Ainda bem não tinha terminado o seu aéreo trajeto, quando dois corpos surgiram dentre ruidoso espumeiro produzido por violenta queda e passaram-se à embarcação. Eram Joaquim e José Gomes que se haviam atirado ao rio para escaparem à prisão, como vimos.
A escuridão que reinava no Capibaribe, as auras da noite e uns restos da enchente favoreceram a evasão dos navegantes. Mantendo-se a igual distância das duas margens, o improvisado canoeiro, ao passo que se subtraía a qualquer inspeção do lado da terra, era arrebatado com os hóspedes pelas águas do canal que são profundas e correm ali com impetuosidade.
Em pouco tempo, contornando o palácio do governador, e deixando à direita o forte Waerdenburch construído em 1631 nas Salinas, hoje Santo Amaro, pelos holandeses que lhe deram esta denominação para honrarem o seu general Diederik van Waerdenburch, seguiu no rumo do sul rompendo, por entre ilhas de mangues, a escuridão e as águas.
Entre as casas de que por esse tempo se compunha a povoação dos Afogados contava-se a de um colono por nome Timóteo, sujeito pontista, como tal conhecido das vizinhanças, e por isso mesmo buscado sempre que se tratava de realizar qualquer transação ilícita ou simplesmente equívoca.
Era uma casa de taipa como quase todas as outras do lugar, e achava-se a pouca distância do forte tomado pelos holandeses sob o comando do Coronel Lourenço van Rembach aos portugueses em 1633 e denominado por estes Forte da Piranga e por aqueles Príncipe Guilherme em honra do príncipe de Orange. Ficava à direita da entrada da povoação, por detrás das primeiras casas. Foi demolido em 1813, pelo intendente da marinha Siqueira, que com o respectivo material aterrou a camboa que contornava pelo lado do rio a primeira casa, na qual morava.
Timóteo estabelecera ali uma vendola ou bodega aonde ia ter o açúcar, a galinha, a colher de prata, a peça de roupa ou qualquer objeto que era furtado pelos negros dos engenhos da redondeza. No exercício desta criminosa indústria comprava-lhes muitas vezes por dez réis de mel coado objetos de valor que revendia depois pela hora da morte aos boiadeiros e almocreves que acertavam de entrar na venda.
Timóteo tivera por companheira uma mameluca de nome Chica, mulher bem apessoada, ainda moça, metida a valentona, finalmente uma dessas mulheres que tomam satisfações a Deus e ao mundo por dá cá aquela palha. Diziam as más línguas que nos primeiros tempos da sua vida com o colono ela lhe fora por diferentes vezes ao pêlo; e que, compreendendo ele que não podia fazer cinco montes, e renunciando à pretensão, que a princípio nutrira, de trazer sopeada a caseira, deixara esta também, por justa compensação de repetir o caridoso ensino com que o edificara logo depois de sua lua-de-mel.
Uma manhã um rapazito descorado parou à porta da bodega, saltou do cavalo abaixo e mandou medir contra-metade de aguardente.
— Olá, menino José. Muito cedo navega você hoje; disse Timóteo ao recém-chegado.
— Parti de Santo Antão na madrugada velha, tornou-lhe o hóspede.
Enquanto o taverneiro aviava o matinal freguês, o cavalo que jejuava desde a véspera pôs-se a devorar a grama do pátio e, sem consciência dos riscos em que se ia meter, foi cair muito naturalmente dentro da pequena roça da mameluca e começou a destruí-la mostrando tenção de dar conta dela.
Mas ainda bem o primeiro jerimum não se havia derretido entre os poderosos molares do faminto animal, quando a dona da plantação desfechou neste tamanho golpe com uma das estacas da cerca, que o pobrezito, dando às popas pelo meio do pátio, foi atirando os sacos aqui, os caçuás acolá, a cangalha além, e desembestou por fim, pela margem afora, em violenta fuga.
Não satisfeita com semelhante desforra, Chica em um pulo ganhou a venda, e investiu com o inofensivo matutinho.
— Amarelo de Goiana! gritou-lhe ela ao pé do ouvido. Não sei onde estou que não te ponho mole com este pau para te ensinar a amarrares melhor a tua besta esganada de fome.
O rapaz, volvendo a vista ao volume humano que lhe acabava de falar e cujos olhos pareciam querer saltar das órbitas, respondeu-lhe sem se alterar nem mover:
— Besta! Besta é ela.
E, senhor de si qual se estivesse gracejando com um amigo, levou o copo aos lábios com o maior sangue-frio que ainda se pôde mostrar na taverna, onde as paixões se acendem com a prontidão do raio.
Irritada por esta represália que a seus olhos pareceu condensar todo o desprezo do mundo, a mameluca não teve dúvida não, e levantou a acha para o rapazito.
Tinha este deposto o copo sobre o imundo balcão quando pressentiu a arremetida; pôde por isso fugir em tempo com o corpo à violenta pancada. A estaca bateu a meio no balcão, e metade dela voou pelos ares em estilhaços que foram quebrar as panelas de barro e as poentas botijas com que se achavam adornadas as sujas prateleiras da pocilga.
Ouviu-se então um estalo, e logo o baque de um pesado corpo. José havia desandado com tanta força uma bofetada na mameluca, que a fizera cair redondamente no chão.
Quis Timóteo acudir à companheira na apertada conjuntora que se lhe desenhou aos olhos com as negras cores de um desastre, ou vergonha para o lar e bodega onde nunca sofrera afronta igual ou que com esta se parecesse. Mas quando apercebia o ânimo para dar o arriscado passo, descobriu na mão de José uma faca de Pasmado que o reteve à respeitosa distância,
Julgando-se José, à vista do agravo que recebera, com direito a público e estrondoso despique, arrastou por uma perna a mameluca, ainda tonta, para o terreiro, e aí com uma raiz de gameleira com que os meninos tinham brincado na véspera, começou a pôr em prática a mais edificativa sova de que nos dão notícia as tradições matutas.
A mameluca tentou por diferentes vezes livrar-se das mãos do rapazito, espernegando como possessa. As mãos de José porém pareciam, pela dureza e pelo peso, manoplas fundidas de propósito para esmagar um gigante. Demais, José havia posto um pé no pescoço da Chica, e com ele comprimia-lhe o gasnete, tirava-lhe a respiração, afogava-a sem piedade.
A estrada estava deserta. Os moradores da povoação, de ordinário madrugadores, por infelicidade da caseira de Timóteo dormiram mais nesse dia do que tinham por costume. Além disso, as casas mais próximas da venda ficavam ainda a distância, sendo todas, como então eram, muito espalhadas. Esta circunstância, tirando toda esperança de pronto socorro, animou José a prolongar o exercício para o qual podia dizer-se estava preparado por diuturno hábito.
Depois de alguns minutos, sentiu Timóteo subirem-lhe enfim às faces os restos do equivoco brio e gritou, sempre de longe:
— Você quer matar-me a Chica, José?
— Deixe ensinar esta cabra, seu Timóteo. Ela nunca viu homem, e por isso anda aqui feito galinho de terreiro, ou peru de roda, metendo medo a todos estes papa-sirís dos Afogados.
Assim dizendo, José montava-se literalmente na mameluca, e dava-lhe com os restos da raiz da gameleira já sem serventia. A faca, que minutos antes reluzira em uma das mãos, estava agora atravessada na boca do matuto, em quem o ignóbil vendeiro parecia ver, não uma figura humana, mas uma visão infernal que o ameaçava, a ele também, não com igual pisa, mas com a morte, que para ele era mil vezes pior.
De repente José colheu o ímpeto, pôs-se de pé, e inquiriu de si para si:
— E o meu cavalo?
Correu incontinente à margem e soltou um longo assobio que atroou a solidão mal desperta; a margem estava erma, e só o silêncio respondeu ao seu chamamento. Tornou ao pátio onde alguns vizinhos, finalmente atraídos pelos gritos, a princípio furiosos, depois rouquenhos, e por último cansados e quase imperceptíveis da moribunda mulher banhada em sangue, tratavam de restitui-la à casa.
— É o que te vale, cabra do diabo! disse José, olhando para o volume inanimado que mãos tardiamente piedosas arrastavam ao casebre. O que te vale é ter eu que ir em busca do meu cavalo. Se não fosse ele, nunca mais comias farinha.
Dias depois voltou José, montado no seu cavalo, trazendo uma espingarda nova na mão, uma faca de arrasto pendente da cintura, os caçuás cheios de peças de pano e outros objetos que se vendiam nas lojas da vila.
— Boa tarde, seu Timóteo, disse ele, pondo-se em terra de um pulo e entrando sem-cerimônia na tasca. Dá-me notícias da Chica?
— Você ainda vem falar nisso? redargüiu o vendeiro com semblante hipócrita, mas na realidade sobressaltado.
— Por que não? Queria acabar de dar-lhe a lição que principiei na quarta-feira. Mas desta feita a coisa havia de ser de outra moda. Queria ver se lhe entrava nas banhas da barriga este facão, como entra nesta melancia.
— Pois não sabe que a Chica morreu da sua tirania?
— Ah! fez esta bestidade? Pois então, para celebrarmos o caso, bote aguardente e bebamos.
Timóteo encheu sem demora o copo que apresentou a José.
— Beba primeiro; disse este.
— Não, eu não bebo; respondeu o taverneiro.
— Não bebe? Há de beber. E não se demore que tenho pressa. Atrás de mim vem alguém em minha procura, e eu não estou disposto a fazer mais carniça por hoje.
— Que imprudência a sua, menino! Não bebo, não quero beber, está acabado. Veja se me obriga.
A este rasgo de covarde arrogância que seria digna do riso e não despertasse compaixão, José retrucou, fitando os olhos no colono:
— Seu Timóteo, você vai errado. Olhe que eu não posso demorar-me nem sou de graças. Beba a aguardente por quem é.
O taverneiro, sem replicar, pôs o copo na boca, e, depois de haver sorvido alguns goles que lhe souberam a quássia ou jurubeba, restituiu-o ao rapazito, que o esvaziou quase de um trago.
Então, sem cuidar de pagar a despesa, José saltou sobre a cangalha, pôs o cavalo a todo o galope e desapareceu no caminho como desaparece um raio na atmosfera.
Com pouco uma escolta subiu a ponte e foi fazer alto na vendola de Timóteo. Vinha na batida de José, que havia cometido um roubo considerável na praça, tendo, para escapar-se, assassinado um caixeiro e deixado às portas da morte, com um sem-número de golpes, dois soldados que diligenciaram prendê-lo.
Pertencem estas ao número das primeiras proezas do Cabeleira. Não contava ele então dezesseis anos completos. Perpetrava, entretanto, destes crimes, e com esta firmeza que daria renome aos mais hábeis e audaciosos assassinos.
Não obstante o modo por que o tratara desta vez o jovem Cabeleira, nunca Timóteo ficara mal ou se arrufara sequer com ele. Quem não descobre a razão de tal segredo? O colono respeitava e temia o matuto. Por detrás, dizia àqueles de cuja fraqueza estava certo, que o José era uma oncinha que se estava criando e que era preciso, enquanto não passava de tempo, tirar do pasto; na presença do rapaz, que já lhe tinha mostrado por duas vezes de quanto era capaz, só tinha ele atenções e baixezas que bem denotavam os quilates do seu espírito.
José cresceu, reformou, pôs-se de todo homem. Perdeu a cor terrena e pálida com que o vimos da primeira vez na taverna, e tornou-se robusto de corpo e bonito de feições. Cabelos compridos e anelados, que lhe caíam nos ombros, substituíram a penugem que mal lhe abrigava a cabeça nos primeiros anos.
Timóteo fora testemunha de todas estas transformações. O rapaz tinha escolhido para seu ponto de operações contra a vila a taverna dos Afogados. Esta taverna passara a ser um como entreposto onde ele depositava o que roubava com o pai, e mais tarde, com o Teodósio que viera associar-se-lhes nos perigos e nos proveitos. O taverneiro achara-se assim em condições de acompanhar dia por dia as diferentes faces, os variadíssimos sucessos de uma das existências mais admiráveis que se conhecem na carreira do crime.
Por sua vez José vira o florescer e o declinar do taverneiro. Quando o livrara da companhia da Chica achava-se Timóteo nos seus quarenta e oito anos. Agora orçava pelos cinquenta e cinco. Tornara-se-lhe o cabelo branco; destendera-se-lhe o abdome, caíram-lhe um pouco as faces, sumiram-se-lhe os olhos debaixo das espessas sobrancelhas, que pareciam espinhos de cardeiro.
Sem que um entrasse nos segredos do outro, os dois diziam-se amigos, e até certo ponto apoiavam-se reciprocamente, havendo a muitos respeitos entre ambos perfeito acordo de intenções e inteira comunidade de interesses.
As barras vinham quebrando quando a canoa dirigida por Teodósio encostou na beira do Capibaribe, junto à ponte dos Afogados. Dentro em pouco a pingue messe da noite, colhida às custas de sustos, sangue e morte, passou para os esconderijos da taverna. Beberam em comum os quatro; celebraram todos a magistral façanha. Timóteo aplaudiu a. coragem do pai e do filho, e a finura e as mágicas do Teodósio.
De repente este levou a mão à testa e correu como desesperado à margem. Os companheiros meteram mãos às armas e prepararam-se para o que desse e viesse.
Timóteo, chegando à porta e estendendo os olhos pelo aterro dos Afogados afora, nada descobriu na extensa solidão que pudesse justificar a inquietação do seu digno conviva.
Só o Teodósio, de pé sobre uma das mais altas ribanceiras, olhava para um e outro lado do rio, e dava mostras de querer arrancar os cabelos no auge do desespero. José dispôs-se a arrostar com o que pudesse acontecer e foi ter com o consternado amigo.
— Que diabo tens tu, Teodósio?
— O dinheiro, Cabeleira, o dinheiro!
E o pardo, com o semblante desfigurado por uma dor profunda, apontou o rio que suavemente discorria por entre o deserto, mobilizando as águas azuladas em que se refletia o belo céu pernambucano que disputa a primazia ao céu de Itália.
— O dinheiro que tirei das gavetas do armazém lá se foi no camarote da canoa! disse o Teodósio, fulo de pesar que se não descreve.
— E que fim levou ela? interrogou José.
— Fugiu, desapareceu! Lá se foi tudo pela água abaixo.
Não acabava quando, ei-la que aponta movida por dois meninos que, tendo ido encher os potes no rio, se haviam apoderado dela para brincarem como costumavam sempre que davam com alguma canoa sem dono. Pobres crianças!
Tanto que os viu, Teodósio empalideceu. Cabeleira porém correu a encontrá-los aceso em ira, gritando e ralhando como louco. Amedrontados, saltaram na margem os pobrezinhos, e fugiram, ao passo que a canoa, ficando solta, desaparecia novamente impelida pela enchente da maré.
Fazendo conta José que os meninos se haviam assenhoreado do dinheiro, continuou a correr no encalço deles sem ter outra idéia que apanhá-los para arrancar-lhes das mãos o que considerava propriedade sua. Mas como sua cólera aumentou com a fugitiva resistência dos pequenos, atirou ele sobre o primeiro que lhe ficou ao alcance o facão com tanta certeza, que o pobrezinho, cravado pelas costas, caiu banhado em seu próprio sangue.
Não parou aí então a fereza inaudita. José, achando limpas as mãos da vítima, lançou-se com encarniçada fúria atrás do camarada, o qual, tendo já ganho grande distância, e sentindo que era perseguido tenazmente, se lembrou de trepar no primeiro coqueiro que descobriu com os olhos pávidos, crendo escapar por este modo ao terrível assassino. Reconheceu, porém, que se havia enganado, quando deu com as vistas em José que do chão diligenciava feri-lo com o facão.
— Acuda, mamãe, que o homem me quer matar — gritou o menino das alturas aonde havia subido.
— Ah, tu pões a boca no mundo, caiporinha? observou José. Pois vou tirar-te a fala em um instante.
Um tiro covarde, cruel, assassino atroou os ares. Sangue copioso e quente gotejou como granizo sobre a areia e no mesmo instante o corpo do inocentinho, crivado de bala e chumbo, caindo aos pés de Cabeleira, veio dar-lhe novo testemunho de sua perícia na arte de atirar contra seu semelhante.[1]
Quem estivesse com os olhos em Teodósio no momento em que Cabeleira correra atrás dos meninos, tê-lo-ia visto atirar dentro em uma moita de muçumbés e manjeriobas, que ficava perto da ribanceira, um pesado pacote que tirara do bolso. Neste pacote achava-se o dinheiro roubado ao lojista pelo astucioso ladrão que agora o furtava novamente aos próprios companheiros de rapinas, depois de haver concorrido, por sua trapaça, para a morte das inocentes criaturas.
Quando se soube que Cabeleira estava na terra e tinha sido o autor do latrocínio, a povoação horrorizada tratou unicamente de escapar à sua ferocidade.
Grande parte dos moradores fugiu para os matos e praias circunvizinhas. Outros, dos mais corajosos, fortificaram-se nas próprias habitações, contando que seriam assaltados pelos matadores.
Felizmente estes demoraram-se no lugar unicamente o tempo que lhes foi preciso para porem em boa espécie os objetos roubados segundo usavam depois de suas depredações.