Kitabı oku: «Romancistas Essenciais - Franklin Távora», sayfa 5

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VI

Não se pode descrever o abalo que experimentou Cabeleira ao reconhecer Luísa, menina até àquele momento em sua imaginação, moça de então por diante aos seus olhos deslumbrados do esplendor daquela beleza correta, natural, irritada e crente.

Pela primeira vez depois de tantos anos, o músculo endurecido que ele trazia no peito dobrou-se a uma impressão profunda, a uma força irresistível e fatal, como a cera se dobra ao calor do lume.

À medida que se internava na espessura ia caindo em si, e mais difícil de transpor se lhe ia tornando a via dolorosa por onde nesse momento arrastava os pés menos pesados que sua cabeça cheia de encontrados pensamentos.

Pouco a pouco o passado se lhe foi desenhando na tela, ao princípio escura, depois diáfana e resplandecente da imaginação vivamente excitada pela violenta comoção. Por último todas as cenas infantis tão afastadas, que poderiam considerar-se senão de todo desvanecidas, ao menos vagas, confusas e de impossível ressurreição, reapareceram aos seus olhos com o vigor de outrora senão mais vivas e animadas que dantes.

Luísa representou-se-lhe sorrindo e brincando nas campinas, por junto dos açudes, à sombra dos juazeiros. Era a mesma menina meiga e amável, com quem ele folgara à beira dos poços e valados, e para quem tantas vezes apanhara camarões nas enxurradas.

O bandido lembrou-se de que uma quadra tinha havido em sua vida, na qual ele só cuidava em armar arapucas por entre os leirões do roçado para pegar juritis, em abrir fojos debaixo das moitas, ou armar quixós e mundéus na capoeira com o fim de apanhar preás para a menina.

A conhecida cena do coelho pendurado na forca de ramos, obra de Joaquim, se lhe estampou novamente, por natural associação de idéias, na tela do pensamento, e veio acrescentar-lhe o vexame que lhe oprimia o coração.

Viu depois Luísa encostada na cerca do quintal, ao pé de uma goiabeira, os cabelos soltos, os pezinhos descalços.

Esta última visão recordava-lhe a cena da despedida que o leitor conhece. José estava tão vivamente excitado, que lhe pareceu ouvir as vozes, as queixas, as rogativas, os prantos de Joana, e as recusas, os remoques, as asperezas, o desprezo que para ela tivera Joaquim na manhã fatal, em que o pequeno fora arrancado dos braços de sua mãe quase alucinada pela dor da separação. Pareceu-lhe ouvir as palavras de Luísa: "Quero-lhe muito bem, mas não gosto quando você judia com os passarinhos, e tenho medo de sua faca". Pareceu-lhe escutar distintamente o som das suas próprias expressões: Quando eu chegar de volta, não maltratarei mais os animais.

E a menina a quem tanto amara, a quem nunca esquecera, e cuja imagem indecisa e vaporosa os olhos do seu pensamento tinham por mais de uma vez surpreendido junto de si testemunhando a perpetração de algum crime, essa menina crescera, pusera-se moça, chegara à idade em que todos têm no critério natural um corpo de leis e na consciência um juiz para julgar as suas e as alheias ações.

— Que juízo ficaria fazendo de mim Luisinha? perguntou de si para si o Cabeleira, insensivelmente arrastado por esta ordem de idéias. Ah! que pode ela pensar de mim senão que sou um assassino?!

Luísa tinha-o, de feito, nomeado por esta palavra, havia poucos instantes, entre as lágrimas que lhe arrancara o desespero. Era pois certo, e o bandido bem o compreendia, que o abismo que já na meninice de ambos os separava, longe de se ter arrasado, se tornara mais fundo com o correr dos anos. Agora ele não judiava só com os animais como em outro tempo; ele saqueava povoações e matava gente; e desta verdade era irrecusável prova o que acabara de praticar com Florinda. Se até aquele momento Luisinha lhe votara afeição ou se condoera da sua pouca sorte, era natural supor que estes sentimentos se tivessem modificado, se não de todo extinguido, depois do último acontecimento. À afeição deveria ter sucedido o desprezo, à pena o ódio.

Não eram outras as idéias que tumultuavam na cabeça de Cabeleira. Estas idéias produziram no seu ânimo tão profunda impressão que ele sentiu lágrimas nos olhos, ele o grande assassino que sempre se mostrara insensível ao longo pranto que por toda a parte fazia correr.

Sem se poder governar, achou-se de repente voltado para o rio. Seus pés, primeiro que sua vontade, o queriam guiar de novo ao lugar onde tinha achado motivos para tamanha transformação. Eis que novo assobio, precedido da detonação de alguns tiros, rompeu os ares e veio diverti-lo destas preocupações. O esconderijo, não havia que duvidar, precisava de seu socorro. Então uma nuvem de sangue envolveu a vista do infeliz mancebo. O passado caiu-lhe novamente em pedaços aos pés. O espírito de vingança fustigou-o com veemência no coração, teatro de encontradas e profundas paixões. Cabeleira volveu a. ser outra vez fera, e rápido deslizou-se como uma cobra por entre as árvores e por debaixo da folhagem.

Com a mata que dava asilo aos malfeitores confinavam as terras onde Liberato, irmão de Gabriel, tinha uma engenhoca.

A princípio Liberato viveu muito satisfeito em suas terras. Tendo-se, porém, anos depois formado o couto ali junto, foi-se ele desgostando a ponto, que só por não ter outro remédio continuou a morar nelas.

As terras eram muito férteis, e a sua situação não podia ser melhor do que era; mas, pela péssima vizinhança, estavam, como nenhumas, expostas em todos os sentidos a serem usufruídas, como eram constantemente pelos malfeitores, o que as havia inteiramente depreciado.

Na realidade quem menos se gozava das suas plantações era Liberato, dono delas. A macaxeira mais enxuta, a melancia mais madura, o melhor milho verde, o feijão de melhor qualidade eram para a boca ou antes, ao dizer popular, para o papo dos pesados vizinhos. A galinha gorda anoitecia no poleiro mas não amanhecia no terreiro, não porque a raposa a tivesse pegado, mas porque os raposos a tinham tirado para a sua panela, que estava quase sempre fervendo dentro da mata virgem.

A vaca leiteira, o quartau carnudo desaparecia do pasto quando menos pensava o crioulo, que os ia recomprar em segunda mão, se, como quase sempre acontecia, os animais furtados eram da sua particular estimação; não escapavam da rapacidade dos malfeitores as próprias bestas do serviço da engenhoca. Dentro dos canaviais apareciam vastas camarinhas, obra dos ladrões; as canas passavam para a mata aos feixes. Enfim era uma calamidade aquela gente, era uma desgraça para o Liberato, mais do que para nenhum outro, aquela vizinhança.

Liberato propôs a venda das terras a mais de um morador do lugar, mas todos se escusaram a comprá-las. De que valiam elas em realidade, com serem tão boas, estando sujeitas, como estavam, àquela onímoda servidão? Não tendo para onde ir, nem outro algum recurso, resignou-se Liberato à sua sorte, e botou para Deus, juiz supremo, que dá provimento a todos os recursos interpostos com justo fundamento. Era de índole pacífica, tinha mulher e filhos, não queria rixas com ninguém, e muito menos as queria com matadores de profissão.

Quando lhe aconselhavam em família, a mulher, ou os filhos, para que reagisse contra os ladrões, ele respondia sempre com estas palavras, ou com outras equivalentes:

— Deus me livre. Se os brancos e o rei não podem com eles, eu que sou negro, é que hei de poder? Vamos passando assim mesmo conforme Deus nos ajudar. Pode-se dizer que vivo trabalhando para eles. Paciência! Um dia isto há de ter fim, ou com a vida, ou com a morte. Será, quando Deus quiser.

Liberato não procedia deste modo por fraqueza, mas por boníssinio discernimento. Ele era até valente por origem. Vinha a ser neto ou bisneto de Henrique Dias, com cuja fama se gloriava. Do ilustre guerreiro lhe vinham por sucessão as terras que possuía nas proximidades do Monte das Tabocas, onde o negro herói conquistara brilho inescurecível para seu nome que ficou sendo urna das primeiras glórias da pátria. Mas bem estava vendo que não podia avantajar-se a quadrilhas de ladrões e assassinos afeitos à prática de toda a sorte de depredações.

Havia já muitos anos que ele vivia sem ter neste assunto outras idéias. Pouco a pouco se habituara a repartir o seu pelos ladrões. Era partilha ele a considerava tão forçada, tão fatal que, sempre que abria um novo roçado ou encoivarava terras para algum novo partido de canas, dizia entre gracejo e resignação:

— É preciso fazer mais acrescentado para que os meus vizinhos não levem tudo, e eu não venha a ficar sem ter com que remir as minhas necessidades.

Estava Liberato um dia consertando uns covos para os meter em um poço onde os camarões saltavam em cardumes quando, banhada em pranto, carpindo a sua desgraça lhe entrou pela porta a mulher de Gabriel.

— Mataram meu marido, Liberato. Estou viúva, e você já não tem seu irmão.

— Quem lhe contou isso, Aninha? perguntou o negro quase esmagado da dor que lhe trouxe a repentina e fúnebre nova. Não é possível. Há de ser mentira. Quem havia de matar Gabriel, que nunca se importou com os outros?

— Desgraçadamente não é mentira, não. Eu soube de tudo. Foi o Cabeleira quem o matou. E o malvado aí vem com o pai, roubando e esfaqueando a quem encontram. Previna-se, Liberato, que eles já devem estar na mata. Ai de mim! Que desgraça, meu Deus! Que será de mim sem Gabriel que era tão bom marido?!

— E onde estou eu, Aninha? Não chore. Eu ainda não creio neste conto. Mas se suceder a desgraça que você diz, nem por isso deverá desesperar, que os homens ainda não se acabaram na Terra.

Seguiu-se um longo pranto na casa do crioulo. Ao carpir de Aninha vieram juntar-se as lamentações de Rosalina, mulher de Liberato e irmã da viúva.

Liberato passou três noites sem pregar os olhos, pensando consigo só. A dor acerba a que ele, sem dar mostras, talvez por prudência, mal tinha podido resistir com sobre-humano esforço, veio despertar os longos ressentimentos e antigos desgostos que jaziam como arrefecidos no fundo do seu coração. Aqueles que quotidianamente o despojavam dos produtos do seu trabalho e da economia tinham-lhe roubado uma vida preciosa. Quem lhe podia assegurar que eles não viessem mais tarde a tomar-lhe a mulher, a tirar-lhe a filha, a arrancar-lhe a própria vida se ele se opusesse à sua vontade criminosa?

Liberato refletiu maduramente sobre este grande assunto, e ao cabo de três dias tomou a resolução que lhe pareceu melhor. Não se contava na distância de três ou quatro, ou dez, vinte léguas da povoação um só proprietário, lavrador, foreiro, almocreve ou morador que não tivesse queixas dos malfeitores, especialmente do Cabeleira que a todos excedia na petulância e fereza. Aqueles a quem faltavam motivos de ofensa pessoal, tinham razão de sobra para quererem a dissolução do couto nas ofensas feitas pelos facinorosos aos parentes e amigos. Só uma população cansada de lutas sanguinolentas, e um governo que cuidava menos de proteger eficazmente a propriedade e a vida na colônia do que de adquirir grossas rendas para a metrópole, e riquezas para si próprio, poderiam sofrer bandos de sicários que, assim fortificados ao pé das famílias, roubavam impunemente bens, honra e vida.

Liberato entendeu-se com três ou quatro dos vizinhos mais próximos, e depois de lhes haver dado parte do golpe de que fora vitima na pessoa de seu irmão, propôs-lhes coligarem todas suas forças para tentarem a expulsão dos malfeitores. Não obstante haver por essa ocasião recordado os danos irreparáveis que a cada um desses vizinhos tinham eles ocasionado, não houve um só que estivesse pela proposta do negro, tal era o terror de que todos se achavam penetrados.

Nenhum queria arriscar-se pagar com a vida semelhante ousadia aconselhada aliás pelo instinto da própria conservação.

Liberato voltou a casa triste e desanimado, mas não dissuadido de tentar o assalto, único meio que se lhe oferecia de vingar-se dos assassinos de Gabriel, e libertar-se do violento imposto que sobre sua fraca fortuna, já muito depauperada, os malvados faziam pesar sem tréguas nem piedade.

Concertou seu plano consigo mesmo debaixo de rigoroso sigilo. Na tarde seguinte com o pretexto de tirar uma abelha e encovar tatus, encaminhou-se para a mata, acompanhado de seus dois filhos Ricardo e Sebastião, e de seu genro Vicente, todos apercebidos com espingardas, facões e chuços.

Conhecia algumas das veredas que levavam ao covil. Acostumados a verem nele uma vítima paciente de que mais tinham que tirar do que temer, não cuidaram os malfeitores em ocultar-lhe essas veredas. Liberato e os seus embocaram por uma delas sem hesitações nem temores, perfeitamente senhores de si e conhecedores do terreno onde pisavam.

Antes de chegarem ao rancho foram pressentidos. A vereda, antes picada aberta a machado, era estreita, e passava por um embastido de árvores colossais, que formavam natural estacada, impossível de romper.

Liberato sabia o perigo a que se expunha com este passo. Estava, porém, disposto a dar aos malvados uma lição de mestre, ainda que lhe custasse a própria vida, desmoralizando, quando outro sucesso não pudesse obter, o fatal valhacouto.

Ainda bem não tinham chegado ao ponto em que a picada se bifurcava, quando ouviram um assobio que repercutiu com estranho som na profunda selva.

— Ah! disse Liberato aos seus — perdemos a diligência. Estão prevenidos e esperam por nós.

Ele não se enganava. Um dos moradores a quem convidara para o assalto, pondo-se em secreta inteligência com um dos criminosos, delatara por medo a intenção de Liberato. Dupla covardia, tanto mais digna de ser execrada quanto foi parte para que viessem a dar-se lamentáveis cenas!

Posto que logo conhecesse que não havia salvação possível para nenhum deles, Liberato, não querendo dar o braço a torcer, prosseguiu com firmeza em sua marcha como se nada houvesse.

Pouco diante, a vereda estava completamente tomada por grossos troncos ligados às árvores paralelas por fortíssimos cipós.

— Estamos encurralados — disse ele com serenidade. Melhor um pouco; havemos de bater-nos a faca e a chuço. Voltemos, já que não podemos por aqui avançar. Cada qual trate de matar para não morrer.

— Não podemos abrir caminho através destes paus? perguntou Sebastião.

— De que modo? Ë impossível — respondeu Liberato.

— Só se nós trepássemos, e fôssemos saltando de galho em galho até deixarmos atrás de nós a estacada — lembrou Ricardo.

— Eles nos deixariam fazer isto? observou Vicente.

Mal tinha acabado estas palavras quando uma descarga da trincheira, deitando por terra o genro de Liberato, veio anunciar-lhes que para eles tudo estava acabado.

Afastarem-se da trincheira para ficarem ao abrigo de seus traiçoeiros tiros foi a primeira coisa em que todos entenderam.

— Covardes! exclamou Liberato com raiva concentrada. Têm gente como farinha, e encurralam quatro homens que eles não se animam a bater em campo aberto. Onde está a valentia destes ladrões que, não satisfeitos com o que me furtam, mataram meu irmão para lhe roubarem seu único bem?

Depois de se haverem alongado alguns passos mais da trincheira onde reinou logo profundo silêncio perceberam que os inimigos vinham a seu encontro para lhes embargar a saída. Achavam-se deste modo os assaltantes entre a espada e a parede.

Era medonha a escuridão dentro da mata.

— Facas em punho, e avancemos — gritou, não obstante Liberato aos filhos, certíssimo de que poucos instantes de vida restavam a todos eles.

Para dar o exemplo precipitou-se como um raio contra a mó de malfeitores que dificilmente lobrigou a pouca distância diante de si. Sebastião e Ricardo praticaram o mesmo, e dentro em pouco as armas inimigas cruzaram-se com fúria tal de parte a parte que delas saltavam chispas, e o som dos seus embates ia perder-se ao longe no seio da vasta selva.

Depois de alguns minutos que decorreram em incessante lutar, terceiro assobio sibilou por entre a folhagem. A este sinal caiu de cima de uma das árvores mais próximas a luz sinistra de dois fachos cujo clarão encheu o estreito passo.

Metia horror o teatro da luta. Dos assaltantes só restava o Liberato que se batia, como um bravo que era, com o próprio Cabeleira; dos salteadores muitos faziam companhia com seus cadáveres aos de Ricardo, de Sebastião e de Vicente.

— Eu logo vi que tinha pela frente o ingrato Cabeleira — disse Liberato, que só a seu grande ânimo devia estar ainda de pé. Já que mataste meu irmão, miserável, podes também tirar-me a vida agora; mas fica sabendo que não lograrias o teu intento se não fosse o adjutório de teus covardes companheiros.

À palavra ingrato José sentiu surgir-lhe espontâneo remorso na consciência, e instintivamente recolheu o ímpeto com que ia dar em Liberato o golpe de honra.

— Não fui eu que matei Gabriel — disse sem se sentir, sem o querer o malfeitor.

— Fui eu, fui eu — trovejou Joaquim com fúria aterradora. E que tem isso? Pois ainda estás dando satisfações a este negro, Zé Gomes?

Ouviu-se então o estalo de galho e cipós que se romperam com violência inesperada para deixarem passar um corpo ágil, que foi cair de um salto à frente de Liberato. Esse corpo, ou antes essa onça petulante, irritada e cruel, não era senão o pai de Cabeleira.

— Rende-te, negro — gritou Joaquim ao infeliz, descarregando-lhe sobre a cabeça, já em diferentes partes mutilada, o facão que trazia na mão esquerda, enquanto com a faca presa na direita, aparava o golpe que vibrava como último arranco a sua vítima.

Liberato, de feito, não pôde mais resistir. Tinha o corpo crivado de facadas. Cambaleou e caiu.

Joaquim atirando-se ao desgraçado, embebeu-lhe no peito, sem hesitar, antes com a firmeza de cínico sicário, a folha de sua faca, que lhe atravessou o coração.

— Por este guariba fico eu — disse. Não há de vir mais perturbar o nosso sossego.

Os cadáveres dos assaltantes foram examinados entre risos, insultos e galhofas ímpias, à luz dos fachos sinistros. Completou-se por este modo a tragédia.

VII

A vitória, não obstante o lugar e o número que deram superioridade aos fortificados, custou-lhes consideráveis danos. Com outra investida da mesma força que a primeira, ou ainda menor, o couto arriscava-se a ser dissolvido. Os malfeitores não eram muito numerosos e qualquer perda, por pequena que fosse, os expunha a desastres certos e quiçá fatais. Além disso, achavam-se divididos por diferentes pontos donde protegiam as correrias empreendidas pelos mais destemidos. A organização protetiva era tal, que o mameluco e o filho, dentre todos os mais temerários e valorosos, percorriam, não já somente a província donde eram naturais, mas Paraíba e Rio Grande do Norte em todas as direções sem maior perigo, porque, quando as justiças os perseguiam, eles achavam sempre perto de si um refúgio amigo onde se acolhiam, e se aí eram buscados, como muitas vezes aconteceu, resistiam, ajudados por seus iguais, com tanta energia e denodo que sempre a vitória ficava de seu lado.

Desta vez porém não lhes fora muito favorável o lance.

O Cabeleira, cuja bravura estava acima de todo o encarecimento, e seu .pai que a nenhum cedia o lugar na crueldade, tinham ficado cobertos de golpes, alguns deles mortais. Maracajá, cabra de más entranhas e por isso de créditos colossais entre eles, ficara com uma mão horrivelmente destruída, e o ombro esquerdo mutilado. Ventania, outro matador de fama, apresentava no rosto e peito feridas extensas e profundas. Jurema, Jacarandá, Gavião e dois negros fugidos tinham morrido nas pontas das facas dos assaltantes.

À vista de tudo isso, tanto que considerou restabelecida a ordem na lôbrega estância, Joaquim reuniu o restante das suas forças, e lhes falou nestes termos:

— A luta foi feia, camaradas, e devemos dar um exemplo de estrondo para que ela não venha a repetir-se tão cedo. É certo que dos cabras que se atreveram a vir bater-nos, não voltou um só que fosse contar a sua derrota, mas o abalo que padecemos foi grande e, se a justiça vier por aí nestes dias, correremos grande perigo, só não se nos ausentarmos. Entendo que devemos obrar um feito que a todos dê que falar, que aterre a população e o capitão-mor, que faça crer que nunca estivemos tão fortes nem mais dispostos a sustentar o nosso posto.

— Estou pronto para ir pôr fogo agora mesmo na povoação — disse Manuel Corisco, calceta evadido da cadeia do Recife por ocasião do segundo arrombamento praticado nos últimos tempos da administração do governador Henrique Luís.

Esse sentenciado tinha tomado parte, aos dezesseis anos, no levante dos soldados que se verificou quando governava Pernambuco D. Manuel Rolim de Moura. Do dito levante existe ainda viva lembrança na província, pelo grande saque a que procederam, não só na vila do Recife, mas também na rica e populosa cidade de Olinda, a pérola de Coelho. Os sessenta e seis anos, que contava, ainda lhe permitiam forças e ânimo para atentar contra os bens e a vida com tanto maior firmeza quanto era fragueiro no crime por uma prática de longos anos.

— Em vez do incêndio, o saque — acudiu Miguel Mulatinho.

— Para tanto não temos forças, mas se o querem, encontram-me pronto, como sempre — observou Manuel Corisco.

— A minha opinião é que apanhemos os cavalos e gados que ainda existem por estas beiradas. Eles devem render na feira dinheiro fresco para irmos resistindo à seca. Feito isto, levantemos o acampamento por algum tempo — tornou Miguel.

— Que é que resta por aqui? perguntou Corisco. Na fazenda de Liberato poucas reses se contam. Antes de morrer, o ladrão do negro já estava limpo; só tinha em casa os cachorros, os gatos, a mulher e a filha.

— Boa idéia, boa idéia — gritou Joaquim, cujos olhos nadavam em ferocidade. Terão vocês coragem para darem conta da empresa?

— Diga lá, Joaquim. Você não está com patativas choronas, você está com carcarás que têm boa vista, boas asas e melhores unhas — acudiu Miguel Mulatinho, equilibrando-se nos pés para imitar o pássaro que quer voar.

— Vamos lá ver o que propõe você — acrescentou Manuel Corisco.

— Proponho o roubo das melhores raparigas da povoação. Isto sim, há de dar a todos a medida da nossa audácia, e por todos será considerado uma prova de que estamos fortes como nunca estivemos.

— Sim senhor, muito bem lembrado — disse o Mulatinho, melhor não podia ser, mas a coisa é séria, Joaquim.

— Ora! Tens medo?

— Medo! O medo comi eu com as papas que minha mãe me deu quando era pequenino — retrucou o malfeitor como por demais.

— Dito e feito, Joaquim. Quando será isso? Hoje? Amanhã? perguntou José Trovão, negro hediondo, cuja cara apresentava profundas cicatrizes e cujos olhos, vermelhos como tomates, padeciam de estrabismo divergente.

— Hoje não. Amanhã, ou depois, conforme entender melhor Zé Gomes — respondeu Joaquim.

E logo acrescentou:

— Mas onde se meteu Zé Gomes que o não vejo aqui?

O lugar onde se achavam reunidos os bandidos era um dos pontos mais centrais da mata.

Tinham eles assentado o seu arraial ao pé de um olho-d'água que não secava ainda no rigor do verão. Este arraial compunha-se de meia dúzia de ranchos abertos por todos os lados e unicamente cobertos de palhas de pindoba. Dos caibros pendiam surrões véstias e chapéus de couro. Algumas redes estavam armadas dentro das palhoças. À noite alumiavam-se ordinariamente com fogueiras; tinham porém sempre em quantidade fachos de que se serviam nas suas idas e voltas por dentro da mata, quando fazia escuro. Tudo anunciava que o ponto era sempre provisório, e podia ser deixado de um momento para outro sem prejuízo nem saudades.

O Cabeleira estava longe deles naquele instante.

Apenas viu passada a borrasca, reapareceu-lhe a imagem de Luísa em quem ele via dois tipos cada qual mais sedutor — em um a menina de oito anos com o rosto banhado da expressão da meninice, que agradável até aos olhos dos que têm o coração mais endurecido do mundo; no outro a moça ingênua, corajosa, banhada em pranto, de rojo a seus pés, pedindo-lhe misericórdia, insultando-o, amaldiçoando-o, bela, tanto mais bela quanto mais aumentavam sua dor e sua indignação, ambas tão profundas como era o afeto que ela votava ao bandido.

Este não tinha tido até àquele momento predileção amorosa para alguma outra mulher.

Sua vida nômada, arriscada, cheia de sobressaltos, ensopada em sangue só lhe tinha permitido querer bem à imagem da menina que ainda na véspera se debuxava em seu espírito com um vago e pálido reflexo do passado. Inesperadamente porém, este reflexo se ilumina com todos os brilhos do mais primoroso íris. A reminiscência desmaiada, quase desaparecida, tomou corpo, forma, cor, contornos suaves, olhos matadores, cabelos escuros, voz harmoniosa, enérgico sentimento, e com soluços o comove, e com exprobrações o faz conhecer e sentir a dor, nunca talvez experimentada, de um remorso cruel. Seu coração, que se havia convertido em foco de paixões sanguinárias, era agora ninho de doce e indefinível sentimento.

O bandido estava experimentando, não a lascívia bruta que proporciona rápidos prazeres, dele conhecidos como a aguardente que bebia nos dias quentes e nas noites frias, mas uma fatalidade benévola, branda e terna que o impelia para a moça, primeiro pelo espírito, e só depois pela beleza da forma que o atraía; e essa fatalidade era tão poderosa que ele não achava forças em si para lhe resistir apesar do seu querer.

Chegando à beira do rio para onde se dirigira correndo em busca da visão que aí deixara, achou em seu lugar a solidão infinita, a solidão só.

Era em maio. Frouxo estava o luar. Elevava-se das margens, com os ruídos do deserto, fresca e grata emanação que teve para o seu peito abrasado o efeito do bálsamo fragrante.

Pareceu-lhe que debaixo da folhagem do juazeiro onde, segundo o seu pedido, esperava encontrar a moça, um corpo indeciso e vago se agitava brandamente.

— Luisinha? Luisinha? chamou ele.

Ilusão! Estava ali o vácuo mais cruel do que um raio que o houvesse fulminado. A sombra da árvore movida pela brisa noturna representava a forma graciosa que o bandido acreditou ser Luísa.

— Foi-se embora! disse o Cabeleira esmagado.

Então com olhar de gavião abrangeu a vasta planície que se estendia diante de si. Ninguém! Nem sequer um vulto que por um instante ao menos lhe desse o prazer de uma nova esperança, falaz embora como a que se despedaçara a seus pés naquele momento. Só o deserto lhe apareceu, menos vago, mais real com sua taciturna imensidade, só o deserto lhe respondeu com a mudez do descampado, das selvas profundas, e das águas mortas.

Assim desmascarada em plena natureza, a realidade o fez voltar a si. Sentiu as dores dos golpes recebidos, pouco havia, dentro na mata. Lembrou-se de banhar as feridas como costumava depois de idênticos desastres. Mas a água fresca que tantas vezes lhe havia servido de bálsamo refrigerante, produziu-lhe agora diferente efeito. A vista do bandido foi pouco a pouco escurecendo, a cabeça pesou-lhe mais do que o corpo, e ele caiu sem sentidos à beira do poço.

Deste modo passou horas. Quando tornou em si de seu delíquio, a aurora vinha rompendo as nuvens do horizonte, com sua luz extensa e vasta que se confunde no infinito. A viração matutina transmitiu-lhe aos ouvidos uns sons cadenciados que vinham de longe. Era o eco das loas cantadas pelas meninas e raparigas da povoação que vinham encher os potes nos poços como de costume.

Levantou-se ainda aturdido. Seus olhos foram logo cair sobre o lugar onde na tarde anterior ele havia deitado Florinda em terra com o coice do bacamarte. Não se achava, porém, ali o cadáver da curiboca. O bandido deu então o andar para a estância, com o pensamento concentrado em Luísa que, tendo-se visto livre de suas mãos, correra em socorro de Florinda.

— Minha mãe? minha mãe? chamara ela, abraçando o corpo da vítima, e chorando como criança.

No seu prantear e no seu carpir, Luísa tivera todavia espírito para lembrar-se das últimas palavras do Cabeleira. «Com pouco ele estará aqui outra vez, pensou ela. Deus me livre de que ele venha ainda encontrar-me neste ermo. Que seria de mim se tal acontecesse? Mas posso eu deixar aqui o corpo de minha mãe só e desamparado?! Não, não; não o deixarei ainda que me matem. Ficarei até que amanheça. Há de aparecer alguém que me ajude a levá-lo para casa».

E aflita, e consternada, Luísa olhara ao longo da margem a ver se descobria quem a socorresse. Por mais de uma vez uns vultos escuros moveram-se sobre a areia, à beira dos poços. Ela sentira então voltar-lhe o ânimo, falara, perguntara quem estava ali, pedira que a fossem amparar em tamanha aflição, mas ninguém a ouvira, ninguém acudira ao seu chamamento. Tudo fora ilusão. Esses vultos foram as sombras das árvores movidas pelo vento, as quais enganaram depois o bandido como vimos.

A noite, porém, corria com rapidez. A Lua que descia a ocultar-se por detrás da floresta, dentro em breve deixaria em trevas toda a natureza, O Silêncio tornava-se mais profundo, tornava-se absoluto. O sítio, de si ermo, estava agora lúgubre por se haver convertido em mansão de morte e luto.

Luísa lembrara-se de ir chamar alguém, visto que ninguém lhe aparecia para a tirar daquele aflitivo transe. Mas a casa que ficava mais próxima era a de Liberato, a qual distava, entretanto, pouco menos de meio quarto de légua do lugar. Além disso, ela não queria deixar o corpo de Florinda desacompanhado ainda que fosse por momentos quanto mais por horas.

De uma vez correra ao longo da margem a ver se o céu lhe tinha enviado algum protetor. Mas logo voltara, lembrando-se de que o cadáver podia, de um instante para o outro, ser ofendido por algum animal.

— Não, não, minha mãe! exclamara ela. Não te deixarei, haja o que houver.

Então ela vira que o cadáver erguera os braços para conchegá-la, ao que parecia, ao seu seio. A moça fizera conta que estava sonhando e delirando, e que o movimento de Florinda fora como ilusão dos olhos dela.

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