Kitabı oku: «Romancistas Essenciais - Monteiro Lobato»
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O Autor
O Presidente Negro
O Saci
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O Autor
José Bento Renato Monteiro Lobato (Taubaté, São Paulo, 1882 - São Paulo, São Paulo, 1948). Contista, editor, romancista, jornalista e crítico literário. Filho do fazendeiro José Bento Marcondes Lobato e Olímpia Monteiro Lobato, filha do visconde de Tremembé. Em 1889, frequenta colégios em Taubaté e escreve os primeiros contos para jornais escolares. Aos 11 anos muda seu nome para José Bento por causa das iniciais gravadas na bengala do pai, J.B.M.L.. Em 1896, é aprovado nos exames para o Instituto Ciências e Letras e muda-se sozinho para São Paulo, passando três anos como interno. No instituto, participa das sessões do Grêmio Literário Álvares de Azevedo.
Em 1900, pressionado pelo avô, ingressa na Faculdade de Direito de São Francisco. Ali, funda com colegas a Arcádia Acadêmica, da qual torna-se presidente em 1902. Colabora com artigos sobre teatro no jornal Onze de Agosto, também publicado por estudantes da faculdade. Formado em 1904, retorna a Taubaté onde trabalha na promotoria pública. No mesmo ano, vence um concurso literário com o conto Gens Ennuyex.
Em 1911, com a morte do avô, Monteiro Lobato herda a fazenda Buquira e dedica-se à modernização da lavoura e da criação. No entanto, insatisfeito com a vida na fazenda, planeja em 1913 explorar comercialmente o Viaduto do Chá em parceria com o poeta Ricardo Gonçalves (1893-1916), amigo dos tempos da faculdade. No ano seguinte passa a escrever artigos para o jornal O Estado de S. Paulo e, em 1916, colabora com a recém-fundada Revista do Brasil. Transfere-se com a família para São Paulo em 1917 e escreve um artigo desfavorável sobre a exposição da pintora Anita Malfatti. Em 1918, compra a Revista do Brasil e publica seu primeiro livro, Urupês. Um dos contos do livro, Os Faroleiros, serve de argumento para o filme homônimo dos cineastas Antônio Leite e Miguel Milani, em 1920.
Funda a editora Monteiro Lobato & Cia. e lança o primeiro livro infantil, A Menina do Narizinho Arrebitado, em 1920. Em 1925, sua editora vai à falência, mas, em sociedade com o editor Octalles Marcondes, cria a Companhia Editora Nacional. Candidata-se a uma vaga na Academia Brasileira de Letras em 1926, mas não é eleito.
Em 1927, torna-se adido comercial nos Estados Unidos e transfere-se para Nova York. Com a quebra da bolsa de 1929 é obrigado a vender sua participação na Companhia Editora Nacional. Retorna ao país em 1931 e funda a Companhia de Petróleo do Brasil, dedicando-se durante essa década à campanha pelo petróleo. Em 1940, recusa o convite do presidente Getúlio Vargas para dirigir o Ministério de Propaganda e, no ano seguinte, é preso durante três meses por suas críticas ao governo. Desmotivado, recusa a indicação para a ABL em 1944 e, no ano seguinte, o convite para ingressar no Partido Comunista Brasileiro .
Em 1946, a convite de Caio Prado Júnior, torna-se sócio da editora Brasiliense. Como capital para sociedade, Lobato leva o direito de publicação de sua obra completa, que tem seus 30 títulos lançados pela editora. No mesmo ano muda-se para a Argentina para tratar-se de um cisto no pulmão. Regressa a São Paulo em 1947.
Em abril de 1948 sofreu um primeiro espasmo vascular que afetou a sua motricidade. Mesmo assim, afiliou-se à revista Fundamentos e publicou os folhetos De Quem É o Petróleo na Bahia e Georgismo e Comunismo. Dois dias após conceder a Murilo Antunes Alves, da Rádio Record, a sua última entrevista, na qual defendeu a Campanha de O Petróleo é Nosso, Monteiro Lobato sofreu um segundo espasmo cerebral e morreu às 4 horas da madrugada, ao lado de sua esposa e filha, no dia 4 de julho de 1948, aos 66 anos de idade.
Sob forte comoção nacional, seu corpo foi velado na Biblioteca Municipal de São Paulo e o sepultamento realizado no Cemitério da Consolação.
A questão do racismo na obra de Monteiro Lobato
Em 2014, foi levado ao Supremo Tribunal Federal um mandado de segurança no qual se discutia a retirada do livro Caçadas de Pedrinho da lista de leitura obrigatória em escolas públicas. Publicada em 1933, a obra faz parte do Programa Nacional Biblioteca da Escola, do Ministério da Educação, e foi distribuída em escolas de todo o país. O ministro Luiz Fux, do STF, julgou improcedente o pedido.
Monteiro Lobato era descendente do Visconde de Tremembé e filho de fazendeiros, e acompanhou as mudanças no Brasil depois da abolição da escravatura. É sabido, por meio de documentos, correspondências e artigos do autor, que ele foi partidário da eugenia - a ideia de que a mistura de raças era um fator prejudicial na formação do povo brasileiro.
Lobato foi comprovadamente membro da Sociedade Eugênica de São Paulo (grupo que pregava a superioridade da raça branca). Em correspondência ao amigo Arthur Neiva, em 1928, não escondeu que defendia para o Brasil algo nos moldes da organização racista estadunidense Ku Klux Kla. Segue trecho da carta:
“País de mestiços, onde branco não tem força para organizar uma Kux-Klan, é país perdido para altos destinos [...] Um dia se fará justiça ao Ku-Klux-Klan; tivéssemos aí uma defesa desta ordem, que mantém o negro em seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca — mulatinho fazendo jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva”.
Nós da Tacet Books entendemos que a obra do escritor deve ser consumida com critério, levando em consideração sua biografia e tendo em vista o poder influenciador de uma obra literária. Como disse Liev Tólstoi, "eu escrevo livros, por isso sei todo o mal que eles fazem".
O Presidente Negro
CAPITULO I
O Desastre
Achava-me um dia diante dos guichês do London Bank á espera de que o pagador gritasse a minha chapa, quando vi a cochilar num banco ao fundo certo corretor de negócios meu conhecido. Fui-me a ele, alegre da oportunidade de iludir o fastio da espera com uns dedos de prosa amiga.
— Esperando sua horinha, hein? disse-lhe com um tapa amigável no ombro, enquanto me sentava ao seu lado.
— É verdade. Espero pacientemente que me cantem o numero, e enquanto espero filosofo sobre os males que traz á vida a deshonestidade dos homens.
— ?
— Sim, porque se não fosse a deshonestidade dos homens tudo se simplificaria grandemente. Esta demora no pagamento do mais simples cheque, donde provém? Da necessidade de controle em vista dos artifícios da deshonestidade. Fossem todos os homens sérios, não houvesse hipotese de falsificações ou abusos, e o recebimento de um dinheiro far-se-ia instantaneo. Ponho-me ás vezes a imaginar como seriam as coisas cá na terra se um sabio eugenismo désse combate á deshonestidade por meio da completa eliminação dos deshonestos. Que paraíso!
— Tem razão, concordei eu, com os olhos parados de quem pela primeira vez reflete uma ideia. A vida é complicada, existem leis, polícia, embaraços de toda especie, burocracia e mil peia?, tudo porque a deshonestidade nas relações humanas constitue, como dizes, um elemento constante. Mas é mal sem remedio...
E por aí fomos, no filosofar vadio de quem não possue coisa melhor a fazer e apenas procura matar o tempo. Passamos depois a analisar varios tipos ali presentes, ou que entravam e saíam, na
azafama peculiar aos negocios bancarios. O meu amigo, frequentador que era dos bancos, conhecia muitos deles e foi-me enumerando particularidades curiosas relativas a cada qual. Nisto entrou um velho de aparencia distinta, já um tanto dobrado pelos anos.
— E aquele velho que ali vem? perguntei.
— Oh! Aquele é um caso sério. O professor Benson, nunca ouviu falar?
— Benson... Esse nome me é desconhecido.
— Pois o professor Benson é um homem misterioso que passa a vida no fundo dos laboratorios, talvez á procura da pedra filosofal. Sabio em ciencias naturais e sabio ainda em finanças, coisa ao meu ver muito mais importante. E tão sabio que jamais perde. Dou-me com esses rapazes todos que trabalham nas seções de cambio e por eles sei deste homem coisas impressionantes. Benson joga no cambio, mas com tal segurança que não perde.
— Sorte!
— Não é bem sorte. A sorte caracteriza-se por um afluxo de paradas felizes, por uma media mais alta de lucro do que de perda. Mas Benson não perde nunca.
— Será possível?
— É mais que possível, é fato. Deve possuir hoje enorme fortuna. Mora em um complicado castelo lá dos lados de Friburgo, mas não cultiva relações sociais. Não tem amigos, ninguem ainda viu o interior do casarão onde vive em companhia de uma filha, servido por criados mudos, ao que dizem. Você sabe que depois da guerra o mundo inteiro jogou no marco alemão.
— Sei, sim, e fui uma das vitimas...
— Pois o mundo inteiro perdeu, menos ele.
— Absurdo! Só se fabricava marcos para vender.
— Ao contrario, comprava e revendia marcos já feitos. O marco, talvez você se lembre, teve em certo periodo uma oscilação de alta. Renasceram as esperanças dos jogadores e o movimento de compras foi enorme. Benson vendeu nessa ocasião. Logo em seguida começou o marco desandar até zero e para nunca mais se erguer.
— Vendeu no momento exato, como quem sabe qual o momento exato de vender...
— Isso mesmo. Com o franco fez coisa identica. Comprou exatamente nos dias de maior baixa e vendeu exatamente nos dias de maior alta. Tem ganho o que quer ganhar, o raio do homenzinho...
— E para que necessita de tanto dinheiro?
— Ignoro. Não leva a vida comum dos nossos ricaços, não dá festas, não consta que seja explorado por mulheres. É positivamente misterioso o professor Benson — um verdadeiro magico que vê através do futuro.
Ri-me da expressão do meu amigo e qual filosofo barato murmurei com superioridade:
— Como pode ver através do que não existe? O futuro não existe...
O corretor respondeu-me com uma frase que naquele momento não compreendi:
— Não existe, sim, mas vai existir necessariamente.
— Dois mais dois — é o presente. A soma quatro é o futuro. Um futuro previsível...
— "Vinte e dois!" gritou uma voz da pagadoria.
— Dois mais dois tambem podem ser vinte e dois, gracejei eu, despedindo-me do filosofo. Adeus, meu caro. Na proxima oportunidade você continuará com a demonstração.
Recebi o dinheiro e saí para o torvelinho das ruas, onde breve se me apagou do cerebro a impressão do professor Benson e das palavras do meu amigo.
Mas dá a vida misteriosas voltas e um belo dia, ao despertar de um sono letargico, quem vi eu diante dos meus olhos, qual um espetro? O professor Benson!...
Não antecipemos, porém; e antes de mais nada permitam-me que fale um bocado da minha pessoa.
Era eu um pobre diabo para toda gente, exceto para mim mesmo. Para mim tinha-me na conta de centro do universo. Penso e sou, dizia comigo, repetindo certo filosofo francês. Tudo gira em redor do meu ser. No dia em que eu deixar de pensar, o mundo acaba-se. Mas isto parece que não tinha grande originalidade, pois todos os meus conhecidos se julgavam da mesma forma.
Eu vivia do meu trabalho, recebendo dele, não o produto, mas uma pequena quota, o necessario para pagar o quarto onde morava, a pensão onde comia e a roupa que vestia. Quem propriamente se gozava do meu trabalho era a dupla Sá, Pato & Cia., gordos e solidos negociantes que me enterneciam a alma nas epocas de balanço ao concederem-me a pequena gratificação constituidora do meu lucro. Com eles trabalhei varios anos, conseguindo reunir o modesto peculio que transformei em marcos e, com grande dor d'alma, vi se reduzirem a zero absoluto, apesar da teoria de que tudo é relativo.
Continuei no trabalho por mais quatro anos, daí por diante já curado de jogatinas e megalomanias.
Mas todos nós possuímos um ideal na vida. Meu amigo corretor sonha dirigir a carteira cambial de um banco. Aquele pobre que ali passa, tocando o realejo que herdou do pai e ao qual faltam tres notas, sonha com um realejo novo em que não falte nota nenhuma. Eu sonhava... com um automovel. Meu Deus! As noites que passei pensando nisso, vendo-me no volante, de olhar firme para a frente, fazendo, a berros de klaxon, disparar do meu caminho os pobres e assustadiços pedestres! Como tal sonho me enchia a imaginação!
Meu serviço na casa era todo de rua, recebimentos, pagamentos, comissões de toda especie. De modo que posso dizer que morava na rua, e o mundo para mim não passava de uma rua a dar uma porção de voltas em torno da terra. Ora, na rua eu via a humanidade dividida em duas castas, pedestres e rodantes, como os batizei aos homens comuns e aos que circulavam sobre quatro pneus. O pedestre, casta em que nasci e em que vivi até aos 26 anos, era um ser inquieto, de pouco rendimento, forçado a gastar a sola das botinas, a suar em bicas
nos dias quentes, a molhar-se nos dias de chuva e a operar prodígios para não ser amarrotado pelo orgulhoso e impassível rodante, o homem superior que não anda, mas desliza veloz. Quantas vezes não parei nas calçadas para gozar o espetaculo do formigamento dos meus irmãos pedestres, a abrirem alas inquietas á Cadillac arrogante que por eles se metia, a reluzir esmaltes e metais! O ronco de porco do klaxon parecia-me dizer — "Arreda canalha!"
Sonhei, portanto, mudar de casta e por minha vez levar os pedestres a abrirem-me alas, sob pena de esmagamento. E o novo peculio, com tanto esforço acumulado depois do desastre germanico, não visava outra coisa. Foi, pois, com o maior enlevo d'alma que entrei certa manhã numa agencia e comprei a maquina que me mudaria a situação social. Um Ford.
Os efeitos dessa compra foram decisivos na minha vida. Ao verem-me chegar ao escritorio fonfonando, os patrões abriram as maiores bocas que ainda lhes vi e vacilaram entre porem-me no olho da rua ou dobrarem—me o ordenado. Por fim dobraram-me o ordenado, quando demonstrei o quanto lhes aumentaria o renome da firma o terem um auxiliar possuidor de automovel proprio. E tudo correria pelo melhor, no melhor dos mundos possíveis, se eu me não excedesse na furia de fordizar a todo o transe com o fito de embasbacar pedestres. A paixão da carreira grelara em mim e, depois de um mês, já não contente com a velocidade desenvolvida por aquele carro, pus-me a sonhar a aquisição de outro, que chispasse cem quilometros por hora. O aumento de ordenado permitiu-me varias excursões de maluco, nas quais me embriagava aos domingos da delicia de devorar quilometros. Paguei diversas multas, matei meia duzia de cães e cheguei a atropelar um pobre surdo que não atendera ao meu insolente "Arreda!"
Tornou-se-me o pedestre uma criatura odiosa, embaraçadora do meu direito á rapidez e á linha reta. Pensei até em representar ao governo, sugerindo uma lei que proibisse a semelhantes trambolhos semoventes o transito pelas vias asfaltadas. Adquiri, em suma, a mentalidade dos rodantes, passando a desprezar o pedestre como coisa vil e de somenos importancia na vida.
Por essa epoca um dos meus patrões encarregou-me de liquidar pessoalmente certo negocio com um freguês morador perto de Friburgo. Muito facil me seria lá ir de trem, mas um rodante da minha marca sorria dos trens. Fui no meu auto, apesar das ruins informações que me deram do caminho. Meti boa reserva de gasolina e atirei-me qual um doido por estradas de tropa em que, suponho, nenhum automovel ainda se arriscara a passar. Numerosos contra-tempos sofri nessa minha "viagem a Damasco", mas mesmo assim tudo acabaria sem novidade se a estrada infame não desembocasse de improviso numa otima, recem-feita e tão bem conservada como a melhor das pistas de corrida. Mal me vi naquele setimo céu de macadame, dei toda a força á maquina e desforrei-me da lentidão de até ali com uma chispada a 60 por hora, o maximo que o meu fordinho permitia.
A região que eu atravessava era de maravilhosa beleza. Serras azues ao longe, quais muralhas de safira a sopesarem um céu de cobalto. Dia de limpidez absoluta. Paisagem das que vibram de nitidez. Desafeito aos formosos quadros da natureza, distrai-me com a novidade do espetaculo e... cataprus!
Dormi um longo sono. Quando acordei achava-me num quarto desconhecido, tendo na minha frente... o velho jogador de cambio que eu vira no banco — o professor Benson!
Grande foi a minha surpresa, e ainda maior seria se uma forte dor no meu braço direito me permitisse pensar em alguma coisa além da lesão sofrida nesse apendice do eixo central do universo.
— Onde estou? murmurei, olhando muito espantado para o professor Benson.
— Em minha casa, respondeu ele. Um dos meus homens o encontrou sem sentidos no fundo de um despenhadeiro, ao lado de um Ford em pandarecos.
— O meu Ford em pandarecos! Desgraçado que sou... gemi.
A dor do braço ofendido era grande, mas a minha dor moral muito maior. Creio até que entre perder o carro e perder um braço eu não vacilaria na escolha. Custara-me tanto consegui-lo... E, além do mais, dada a psicologia dos meus patrões, o certo era reduzirem-me o ordenado, já que eu voltaria a servi-los a pé como outrora...
Tão negra noticia me sombreou de crepes a alma. Não podia conformar-me com o desastre. Delirei. Soube mais tarde, pelo professor, que nesse delírio uma obsessão unica transparecia: o desespero ante o meu retorno á miseravel casta dos pedestres...
Mas tudo passa. A dor do braço foi atenuando e a dor moral acompanhou-a nesse amortecimento, de modo que pude erguer-me da cama ao cabo de quinze ou vinte dias.
Vi então desenhar-se na minha frente um problema terrível. Davam-me alta em breve e, não havendo mais razão para permanecer naquela casa estranha, forçoso me seria regressar á cidade. E teria de me apresentar diante dos senhores Sá, Pato & Cia. a pé, murcho, resig-nado ás suas pilherias e á logica redução de salario. Revoltado, deliberei mudar de vida. Quando na manhã seguinte o professor Benson me apareceu no quarto, abri-me com ele.
— Professor, não sei como agradecer o bem que me fez!...
— Fiz o meu dever apenas, declarou com simplicidade o velho.
— Salvou-me a vida, professor. Não fosse a sua preciosa assistencia e o provavel era estar eu agora esvoaçando pelo outro mundo, como froco de paina psíquica. Minha gratidão é imensa. Mas seria infinita se o professor me ajudasse a resolver o problema muito serio que vejo armar-se diante de mim.
— Diga qual é. Já resolvi diversos, tidos como insoluveis, e ser-me-ia grato resolver mais um...
Animado pela bonomia do velho, abri meu coração. Contei-lhe a mediocridade da minha vida, os meus esforços para juntar o pecúlio empatado no automovel, a transformação que as quatro rodas me operaram na mentalidade e o horror com que via agora o forçado regresso ao pedestrianismo.
— O professor é opulento e pelo que vejo possue uma grande e linda propriedade. Precisará, portanto, de homens que trabalhem nela. Eu não queria sair daqui. Arranje-me uma ocupação qualquer, seja lá qual for. Tenho algumas aptidões e, como a boa vontade é grande, para isto ou aquilo sempre hei de servir. O que não desejo é voltar á cidade e ter de apresentar-me, assim decaído, ante os meus truculentos patrões...
O professor Benson pareceu meditar. Tirou do nariz os oculos de ouro, limpou-lhes os vidros num lenço de linho e depois disse:
— Não necessito aqui de ninguem. Possuo o numero de criados estritamente precisos para conservação desta propriedade e nela não vejo função que o amigo possa desempenhar. E não o admitiria em hipotese alguma, se de dias a esta parte não sentisse cá no coração prenuncios de que minha vida está no fim. Isto me faz sair da política que tenho levado até hoje e aceita-lo em minha companhia como... confidente.
— Confidente?... repeti, sem compreender o alcance da expressão.
— Sim, confidente. Aproveito-me do acaso te-lo trazido ao meu encontro para confiar-lhe a historia da minha vida. Mas desde já dou um conselho: guarde segredo de tudo, depois que eu morrer. Não que seja caso de segredo, mas vai o amigo ouvir e ver coisas tão extraordinarias que, se o for contar lá fora, o agarram e o metem no hospício como doido varrido. Digo que guarde segredo para seu bem apenas. Agora saia. Dê pelos campos o seu primeiro passeio de con-valescente e antes do almoço procure-me no gabinete.
Findo o discurso o professor premiu o botão duma campainha. Sem demora vi surgir um criado.
— Acompanhe este moço num passeio pelos arredores e Se volta conduza-mo ao gabinete.
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