Sadece LitRes`te okuyun

Kitap dosya olarak indirilemez ancak uygulamamız üzerinden veya online olarak web sitemizden okunabilir.

Kitabı oku: «Contos Phantasticos», sayfa 2

Yazı tipi:

O véo

Tive apenas um amigo na infancia.

Sinto abrir este conto com a minha personalidade; e, sem pretenções a humorismo, nem a estylo digressivo, conheço que a pessoa de um auctor inculcando-se na sua obra produz o effeito desagradavel, que o senso esthetico original de João Paulo nota no quadro em que o pintor agrupasse tambem a palheta, o cavallete e os pinceis. O valor da personalidade pouco é; os antigos comprehenderam-n'a perfeitamente, quando deram o nome de persona á mascara que o actor trazia para reforçar a voz. A personalidade que se toca, serve para o trato da rua; a individualidade, o caracter, revelado na vontade, são immanentes no livro, são o livro. Antes porém de fechar o parenthesis ahi vão algumas linhas sobre a pessoa do meu unico e primeiro amigo, um alter ego, ou fidus Achates, como diriam dois estudantes de selecta. Não nos démos de repente. Tinhamos o mesmo nome de baptismo, faziamos annos no mesmo dia, começámos a versejar ao mesmo tempo; a affinidade electiva entre nós não provinha d'estas coincidencias, nunca reparámos n'ellas; era uma amizade de terror, respeitavamo-nos. Na eschola fômos sempre antagonistas; quando passámos a estudar latim, ficámos surprehendidos ao vermo-nos algemados ao hora, horæ. Ainda os mesmos desforços, o mesmo orgulho. Então já nos consultavamos sobre alguma duvida de syntaxe, como de potencia a potencia. Mais tarde encontrámo-nos sobre o mesmo banco a ouvir as prelecções estupidas de logica, a logica que nos havia de tornar máos, capciosos, ergotistas. Já não nos temiamos, eramos amigos, tinhamos necessidade um do outro. Depois vieram as confidencias estreitar mais esta affeição. Foi elle o primeiro a fazel-as. Não sei se era amor, compaixão ou cynismo a primeira aventura que me contou. Era assim:

«Eu tive uma prima, não sei em que gráo, culpa das subtilezas canonicas. A pobre criança possuia uma morbidez voluptuosa no olhar, não os tirava de mim. A côr morena dizia tão bem com as linhas nitidas da physionomia arabe, que ella sabia animar com um ár doloroso de uma melancholia expressiva, que se lhe reflectia na face! Eu ficara orphão de mãe e costumara-me a brincar sósinho; ella procurava-me na minha solídão, sentava-se junto de mim; o seu olhar incommodava-me. Mas tinha medo de fugir-lhe, doía-me esta indifferença e para disfarçal-a trepava acima das arvores carregadas de fructos do pomar onde passavamos o verão, e de lá deixava cahir aquelles que mais se douravam com os raios do sol de agosto, os que me expunham a maiores perigos. Ella aparava-os no regaço com a affabilidade com que se queria associar aos meus folguedos.

«Afinal teve vergonha de mim; córava, escondia a face entre as mãos, ficava pensativa e depois fugia-me. N'este tempo contava eu algumas lições de desenho; os meus arabescos tinham uma frescura de innocencia, uma rudeza que parecia uma creação pura arte medieval. Eu tinha a monomania de esboçar cabeças. Não sei quem na familia, me pediu que fizesse o retrato d'ella. Fil-o. O caso deu-lhe uns longes de similhança, tive vergonha da verdade; quando ella me agradeceu com um sorriso timido, eu rasgava o papel com a crueldade de uma criança que brinca. Não a tornei a ver n'aquelle dia, escondera-se a chorar. Não tinha culpa d'esta frieza brutal; a falta de carinhos perdidos logo no berço, a verdade d'esse verso eterno de Virgilio:

 
Est mihi pater domi et injusta noverca
 

tornaram-me taciturno, incredulo antes de tempo. Ás vezes obrigavam-me a brincar com ella. Uma vez fômos todos banhar-nos no Atlantico. A pobre criança tambem foi. As marés eram gigantescas; era dia para mim de um orgulho immenso, gostava que me vissem nadar; mostrava uma superioridade minha. O acaso seguia-me o desejo. Uma onda envolveu no seu marulho a infeliz Branca; no refluxo levou-a comsigo. Desfalleceu de susto e foi levada pela vaga, como Ophelia na corrente. Quem sabe se ella no seu coração tecia alguma corôa para mim.

«Abracei-a pela primeira vez, impellido por uma força interior; sustive-a nos braços, estava fria, pallida. Quando abriu os olhos teve vergonha de mim; era já o pudor de senhora. Trouxe-a sem custo para a praia, e continuei em carreiras no dorso da vaga, que se encapellava. Fôra o meu primeiro passo para homem.

«N'esse mesmo dia brincámos, jogando o anel, um divertimento infantil, de que ainda guardo saudades. N'este folguedo de crianças o que tem o anel é sentenciado pelos demais a levar beijos e abraços, ou a dal-os, segundo o capricho. Tinha o anel a filha do feitor que brincava comnosco, Annita, uma rapariga de uma candura estreme. Branca pediu-lhe em segredo que ao percorrer a roda deixasse cair o anel entre as minhas mãos. Assim se deu. Um perguntava o que promettiam a quem tivesse o anel. Cada qual se lembrou de uma prenda innocente e insignificativa; Branca prometteu um beijo e um abraço muito apertado.

«Eu não devia contar-te mais, porque me sinto infame! Este beijo perdeu-a para sempre, como o beijo de Paulo e Francesca di Rimini. Branca foi crescendo, tornou-se formosa á luz de uma esperança fugitiva, como a flôr de um vaso, quando recebe, ao estiolar-se, o calor ephemero do ultimo raio do sol da tarde. Quando ella me sorriu com amargura, e córou de sua queda, sorri tambem por compaixão, illudi-a. Que fazer, se eu era tão novo, inconsciente, e queria divertir-me, gosar o mundo?

«Uma vez tinha eu voltado pela ante-manhã de uma festa louca. Dormia a somno solto, prostrado pela fadiga, esgotado da orgia desenfreada. Senti uma mão fria passar-me de leve nas faces, acordei.

«Era ella! Appareceu desmaiada, como a vi uma vez ao luar silencioso, com uma côr que lhe realçava a candidez, e disse-me:

– «Vim vêr-te na despedida do tumulo. Desde que adoeci nunca mais me appareceste. O esquecimento é frio e pesado como a lagem sepulchral. Eu não queria dizer-te isto, não quero magoar-te; perdôa. Olha, hoje acordei de um sonho tão lindo! deu-me forças para levantar-me do leito e vestir-me de branco para vir contal-o a ti só. Como não choraria minha mãe que me vela se o soubesse! Não sei se velava, se dormia; minha alma parecia voar, suspensa n'uma como cadencia, vaga, quasi imperceptivel, confundia-se com ella até perder-se no céo. Acordei de subito; restava-me só a illusão. Olhei em roda; a alampadasinha tornava a solidão pungente, augusta; pavoroso o silencio do meu quarto. Comecei a lembrar-me de ti, dos passados tempos; estava já na terra. Foi quando descobri a meu lado uma apparencia angelical, a falar-me de mansinho uma linguagem que eu mal entendia: que o Senhor o enviara para chamar-me. Eu não pude voar, voar com elle, e sinto agora que a alma me foge; venho dizer-te adeus.

– E o que lhe respondeste?

– Elle continuou:

«Disse-lhe que os sonhos mentiam sempre, que elles a matavam. – «Não são os sonhos que me matam, gemeu a desgraçada, é a realidade, a realidade. Bem o sabes, e esse que tudo vê. As recordações são para mim como um remorso. Que noites, que vigilias inteiras a pensar em ti! cada palavra tua, que eu decorava, era um poema de amor e esperança; ao repetil-as na mente diziam-me quanto a alma anceava, e mais ainda, mas enganaram-me sempre. Lembras-te d'aquella noite? Oh! meu Deus, meu Deus. Não sabes quanto me fizeste soffrer! Não conheceste a profundidade do golpe quando o descarregaste! Disseste-me essas palavras só para perder-me. É impossivel que isto te não dôa? Quando me appareceste n'aquella noite era o luar tão sereno, tudo confidenciava comnosco. Estava adormecida quando chegaste. Depois de me estreitares nos braços e beijares as faces geladas pelo rociar da noite, porque sorriste de um modo incomprehensivel? Descobriste-me que não casavas commigo, que outro havia polluido a minha candura! Era uma blasphemia brutal. Deixei-me cair em teus braços, sacrificando-te a virgindade para que a reconhecesses. Desde essa noite não me tornaste mais a amar. Illudi-te? Porque assim me fugiste? Uma lagrima só rehabilitava-te diante de Deus. É tarde, muito tarde. Vim só para despedir-me e perdoar-te. Adeus.»

– E tu que lhe respondeste?

«Voltei-me sobre o outro lado, e continuei a dormir.

– Prosegue.

«Foi um pezadello atroz aquelle somno. Julgava-me em uma orgia immensa, na hora ominosa do sabbat nocturno. Um bando de mulheres volteava reunido em uma corêa desenvolta, n'um tripudio infernal, ao redor de um carvalho lascado pelos raios que se cruzavam a espaços na solidão e escuridade absoluta da noite. Dançavam como possuidas do mesmo furor que inspirava a corneta de Oberon. Quando eu ia mais arrebatado pelos requebros voluptuosos, enlaçado a um par ligeiro e flexivel, senti um leve suspiro a meu lado, que se perdeu nos áres. Era como o segredo de uma magoa que eu bem conhecia. Parei. Adormecera a ler uma ballada dos peregrinos do Rheno contada por Bulwer. Junto a mim descobri uma figura de mulher linda, etherea; o semblante tinha a serenidade de uma grande agonia que cauterisa, uma tristeza mais vaga do que a impressão de saudade que a lua desperta quando se reflecte n'uma lagoa quiéta. Era como um seraphim quando chora. Não pude olhal-a; a candura do seu antigo amor exprobrava-me o cynismo. A viração que ciciava não repetiria tão brandamente o que ella disse:

– «Não sabes como te amo ainda além da campa! o gelo do sepulchro não pôde apagar o fogo em que os teus olhos me abrazaram. Esqueci o teu desprezo para perdoar-te. Para que havia ter mais esse flagicio na eternidade? Que destino, que felicidade a nossa, que regosijo no céo, se não houvesses ludibriado este amor! Nossas almas absorver-se-hiam na essencia de um anjo, enlevadas n'um sonho de harmonia, até despertarmos no empyreo. Assim precipitaste-me na mansão das penas e soffrimentos, onde o meu espirito se apura. O amor terreno tenho-o expiado no fogo. Vês este cendal de alvura transparente? estava quasi a tornar-se brilhante de gloria! Pedi a Deus este momento tão breve para poder agora ver-te; o goso fugitivo de contemplar-te, a esperança de te achar triste, scismando em mim com pezar e saudade, a troco de mais cem annos de novos soffrimentos! Cem annos mais, depois de te encontrar nos braços de outras descuidado, rindo desvairado n'uma orgia dissoluta. Oh, mas eu não sei senão perdoar-lhe.» – E desappareceu-me, continuou elle, como um meteoro fugaz, quando passa nos céos, e deixa após si um rasto luminoso. Acordei.

«Em casa ouviam-se gritos, alaridos, como de um successo repentino e funesto. Fui a vêr. Disseram-me que Branca desapparecêra. Cheguei a convencer-me da realidade do sonho, que um anjo a levára comsigo. Perguntei debalde. Passou-me pela mente um presentimento horrivel. Branca costumava ir sentar-se sobre uma rocha que se debruça sobre o mar, e em cujas furnas as vagas restrugem com um stridor surdo, como o anceio do ultimo esforço n'uma lucta desegual. Protegida pelo nevoeiro da madrugada, mais veloz que a ondina da mythologia slava, a pobre fôra saciar os pulmões ralados da febre lenta que a devorava. Houve quem a visse dependurada na aresta dos fraguedos, o véo branco que levava fluctuar ao vento, como n'um adeus de despedida. Ella sentira n'esse instante a attracção do abysmo, lembrou-se d'aquella tarde de agosto, em que eu a salvara, trazendo-a com um abraço á vida; quiz morrer com a recordação mais doce que levava do mundo. Precipitou-se. E o mar murmurava sereno e manso, como a embalar-lhe o seu ultimo somno.

«Comecei então a sentir uma paixão por ella, depois de morta; se a terra a tivesse escondido, eu a iria arrancar ao repouso sagrado da sepultura, beijal-a, animal-a com o fogo do meu delirio, despedaçal-a n'estes braços convulsos, e cair tambem inanime. Queria sentir bem junto do peito o contacto gélido de um corpo que eu tantas vezes apertei, das faces que eu devorava, quando ella se dava aos caprichos da minha vertigem. Havia n'este amor um pensamento de halucinado, um tanto de selvagem, de monstruoso; impellia-me uma inquietação continua, sentia em mim um como ranger de puas do remorso, a voz que interroga Caim. Fugia, não queria consolações. Eu ia sentar-me tambem na rocha escarpada, a vêr o mar, procurando a serenidade que me inspirava a contemplação do sepulchro da minha amada. Vinha visital-o, á busca d'esse allivio de que fala o poeta do Oriente.

«Eram decorridos já tres dias, não se vira mais o corpo de Branca; o mar queria-o para si, mas eu tinha uma vontade fervente, absoluta, o desespero de tornal-a a vêr linda, roxa, núa, desfigurada. Era o mais que podia soffrer. Ia a maré na vasante, no fim da tarde, as ondas gemiam brandamente no areal deserto, as virações da noite sopravam frias, humidas das bandas do poente. Quando desci da rocha escarpada, encontrei inesperadamente o corpo de Branca estendido na area. Era uma criança descuidada, adormecida; a onda que a tinha despido para namorar-lhe a alvura do corpo, viera deposital-a na praia. Ia a precipitar-me para ella, unil-a a mim no frenesim d'essa loucura. Tive medo! recuei sem encaral-a. Temi profanal-a com a vista; estava quasi núa, de costas, com os olhos no céo, como pedindo á noite que viesse recatal-a no seu manto de trévas. Quando tornei junto d'ella com o lençol para a envolver, senti uma ancia de passamento, a lucidez de quem entrevê a eternidade: conheci que o cadaver de Branca se voltara de bruços, furtando á vista profanadora o verticello pudibundo da flor que eu fizera pender sobre o caule e cahir emmurchecida. O inexplicavel deixou-me um terror que ainda me dura…»

Não tive animo para lhe pedir que continuasse.

A estrella d'alva

(CONTO MARITIMO DO SECULO XVI)

N'isto andava tudo, que se não poderiam pôr os olhos em parte onde se não vissem rostos cobertos de tristes lagrimas, e de uma amarelidão, e trespassamento de manifesta dôr, e sobejo receio que a chegada da morte causava, ouvindo-se tambem de quando em algumas palavras lastimosas, signal certo da lembrança, que ainda n'aquelle derradeiro ponto não faltava dos orphãos e pequenos filhos, das amadas e pobres mulheres, dos velhos e saudosos paes que cá deixavam, etc.

Hist. tragico-maritima, t. I, p. 55.

O sol esmaltava as côres limpidas do horisonte com uns cambiantes de purpura e de azul, cujo cariz incompleto e vago reflecte a melancolia suave em que a alma se concentra n'essa hora fugitiva da tarde. O horisonte fechava-se lentamente, como o véo de um templo que se cerra. As virações travéssas da noite volitavam encrespando a face trémula das aguas, que lhes respondiam ás caricias inquietas, confidenciando com um murmurio sonoroso e confuso. O galeão soberbo da India singrava ufano, buscando em prôa a terra querida da patria; levado nas azas das monções propicias, a vela branca desfraldada aos ventos, tinha o garbo da garça altaneira que se libra vaidosa por sobre as ondas, que ella vae roçando de leve. A flamula ondulante, hasteada no tope do mastro de mezena, serpeava nos áres como em adeus silencioso ás ribas odoriferas do Oriente, a despedida ao paiz dos sonhos e das maravilhas. A natureza como que se absorvera nos encantos d'esta hora; havia um segredo intimo em cada toada perdida d'este concerto do declinar do dia.

Longo tempo um mancebo encostado á amurada do navio, com os olhos fitos na corrente das vagas, permanecêra absorto n'um scismar incessante, como quem atava na mente as apparencias de um sonho mentido, como quem procurava alentar a ultima esperança que prende á vida, e que é como a hera das ruinas. Conhecia-se-lhe na respiração comprimida no peito, que offegava de cansaço, o esforço acintoso com que procurava afastar da lembrança um sentimento funesto.

A pallidez retincta nas faces cavadas pelas insomnias longas e afflictivas, era a expressão dos pensamentos tenebrosos, confusos, incoherentes, que vinham povoar-lhe a anciedade das vigilias. Quem o visse sentiria uma dôr egual áquella, uma vontade irresistivel de entornar-lhe em sua alma o balsamo das consolações, com a prodigalidade do affecto com que a moça desenvolta de Magdala vinha derramar aos pés do divino Mestre os perfumes inebriantes da sua urna de alabastro.

Quem o visse na mudez expressiva d'aquelle desalento, no desamparo e soledade de todas as alegrias da vida, sentia-se levado para elle, como por um condão fascinador, que ás vezes possuem certos olhares que ninguem póde fitar e de que se tem medo. A brisa fresca da noite, que soprava do poente, como trazendo-lhe o presagio do ocaso de suas esperanças, vinha volatilisar a lagrima timida e ingenua que tremeluzia viva na pupilla scintilante.

A este tempo appareceu sobre o convés do galeão alteroso um outro vulto, todo armado contra a rajada asperrima da noite, que se ia cerrando:

– Ainda aqui, Fernão Ximenez? embebido n'esse longo scismar em que o passado se te affigura doloroso e feio? Para que foges de teu irmão? Bem vês que eu procuro distrair-te d'essa agonia lenta que te vae minando a essencia debil da vida, d'esse espasmo da atonia que produz em ti a mudez do sepulchro. O que tens tu em uma vida de criança, innocente, sempre desprevenida, para que o occultes a teu irmão, ao amigo que soffre com o teu soffrimento, e que exulta com as tuas alegrias? Uma ave, quando é levada para um paiz distante, longe do ninho que lhe ouviu balbuciar os primeiros trillos de amor, quando lhe falta a bafagem tepida das auras em que se espanejava contente, desfallece á mingua, prisioneira, ralada pela saudade pungitiva que lhe amofina o sêr. Tu, pelo contrario, á medida que os aromas quasi imperceptiveis da terra abençoada da patria nos vêm dar força para affrontar as tormentas escuras, as cerrações e os cabos perigosos, perdes o animo ante uma dôr imaginaria, e deixas-te apossar de uma ancia, que um instante só de reflexão tranquilisaria. Vamos, serena o teu espirito; seja-te o meu coração o porto almejado onde encontres abrigo. Que receias pois? temes encontral-a na volta desposada, nos braços de outro? Conta-me a verdade toda; amas?

– Se com vinte annos apenas haverá quem não tenha sentido ainda esse desvario divino, que acorda de subito em nós todas as potencias da alma, que rasga brilhante a manhã de um eden terreal, dando realidade á vida, e que a um tempo vibra o estertor e o cicio horrivel dos que se confrangem no barathro do desespero que elle gera! Eu amo, sim. É um amor que tem purpureado de risos todas as horas que me absorvo a pensar n'ella. Para mim é o resumo de todas as bellezas do mundo. Onde a vista depára uma apparição grandiosa, deslumbrante, ahi sinto uma reminiscencia d'ella; ás vezes procuro em vão formar na mente o composto do semblante engraçado, quero tel-a presente pela imaginação á minha idolatria; mas a phantasia não póde reunir em uma mesma auréola de encantos tudo quanto ha de mais puro no céo e na terra. Eu estou doido. É o frenesim d'este amor que me enlouquece. Eu não a vejo, nem sei mesmo já se existe, mas sinto-a como a essencia de um licor suavissimo e volatil, que inebria a distancia os sentidos. Ella fluctua-me pairando ante a vista, como um nevoeiro da madrugada que se esvaece nos áres ao romper da claridade, e de que o sol faz realçar a alvura esplendente. Ella nunca me disse que me amava. Quando só em pensamentos a escuto, a dizer-me segredos intraduziveis, parece-me a bayadera indiana requebrando-se flascida, com uma morbidez encantadora, a voltear brandamente ás vibrações remotas das gandharvas, instrumentistas do paraizo. Eu vôo na mesma ondulação de harmonia, e sonho um goso indefinivel, que me exacerba mais as angustias cruciantes, quando desperto á realidade. Eu não sei mesmo se me ama. Costumado a brincar desde criança, unindo as nossas orações infantis em noites de tormenta, quando seu pae andava sobre as aguas, esta confiança torna impossivel o mysterio, que alimenta todo o amor.

– «Aldonça! repetiu desapercebidamente Gaspar Ximenez; – a mesma, a que me torna aguerrido, audaz para affrontar estas regiões nos términos do mundo; a que jurou um dia ser minha e me prometteu a mão de esposa, que eu beijei e apertei tremulo, convulsivo!

Fernão Ximenez comprehendeu estas palavras. Foram como um clarão subito, que lampeja e cega. Os olhos arrasaram-se-lhe de agua, sem as lagrimas poderem rebentar. Era incrivel o que se passava em sua alma. A colera, a alegria, a contrariedade das aspirações mais ardentes da vida, o desinteresse sublime de um coração generoso debatendo-se tudo n'aquella alma deserta de esperança! Gaspar Ximenez continuou, como delirando:

– Amas tambem Aldonça? Como ella é meiga e docil! É a rola innocente do sacrificio. Ella ha de querer a tua felicidade. O que eu disse era uma loucura. Amo-a como irmã apenas; ama-a tambem, mais do que eu, e será tua.

Ao ouvir estas palavras, proferidas com uma accentuação dolorosa, por uma abnegação quasi impossivel, Fernão Ximenez não poude represar mais tempo as lagrimas, que lhe rebentavam ferventes dos olhos. Os soluços entercortaram-lhe a voz. Elle jurára dar-lhe tambem um dia a maior prova de dedicação.

A este tempo, ouviu-se um berro do gageiro gritando da gávea:

– Mestre Fernão Mendonça, um negrume espesso se alcança no horisonte, que levamos, pois que a não ser a cerração do cabo, mais me parece presagio de tormenta.

O mar começava já a cavar-se. O piloto mandou logo ferrar o traquete, cassar a escota á bijarrona, e que o homem de quarto amurasse mais para sotavento, antes que a borrasca rebentasse de chofre. Instantes depois a marinhagem tripulava afanosa sobre o convés; a noite estendera pela amplidão dos mares o seu manto gélido de sombras, como um sudario de morte. O vento frigido sibilava na enxarcia; parecia uma serpente escamosa quando assovia na floresta intrincavel. A orchestra da procella rompia sonorosa e esplendida, como a retrata Virgilio n'um incomparavel hemistichio.

– Por San-Thiago, disse Fernão Ximenez, saindo da mudez do espanto em que o deixára a longanimidade do irmão; – adivinhava-o o diabo do gageiro, pois já as ondas guidam os castellos de prôa, e lambem a ponta do gorupés. Diabo! que se tivesse mando no timão amurava mais para sota-vento, e talvez que escapassemos á furia da tormenta.

Continuava o ennovellar das vagas como grandes cordilheiras sacudidas por um vulcão subterreo. Instantes depois, o moço descia para o porão, e as marés gigantes em vagalhões, salvavam o baixel. Soltos, desencontrados dos quatro pontos, os ventos cáem de estouro sobre o galeão.

– Que San-Thiago, o bom apostolo das Hespanhas, seja comnosco, murmurou o homem do leme, ao apagar-lhe uma maré a luzinha da bitácula. Que o bom Jesus dos mareantes nos ampare n'esta tribulação, Ave Maria!

A tempestade recrudescia surda á voz do pobre homem de quarto, que não sabia já o rumo que levava. Pouco depois, as ondas envolveram-n'o no seu marulho, e o sorveram no pelago insondavel.

Sem governo, o galeão altivo, cruzando-se sobre duas ondas que rebentaram sobre elle, estremeceu como aluido pelo cavername e costado; o mastro grande, gemendo sobre si, estalou, e sumiu-se na corrente das aguas. Por instantes ninguem respirou. Só o capitão Fernão de Mendonça, conhecendo que o temporal amainara, gritou com intrepidez:

– Salta arriba!

A tempestade amançara consideravelmente; via-se espelhado em todos os semblantes um sorriso de esperança, illuminado ao clarão diaphano do santelmo, que reluzia no tope dos mastros.

– Salvé! salvé, oh Corpo Santo! – gritaram todos possuidos de um regosijo expansivo.

– Podemos agora contar com a bonança, – disse a voz animadora do padre capellão, – que o sacro fogo de Santelmo se nos mostra risonho e mensageiro de paz. Oxalá que sem mais desgraças possamos dizer como o malaventurado soldado das Indias, o bom Luiz de Camões:

 
Vi nos ceus claramente o lume vivo,
Que a maritima gente tem por santo,
Em tempo de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste pranto.
 

– Mestre Fernão de Mendonça! – interrompeu o gageiro, – o galeão tem um enorme rombo na prôa, e d'aqui a meia hora estaremos todos no fundo, se vos não apraz lançar esta lancha ao mar. – E foi-se cantarolando aquellas trovas do Auto da barca do Inferno, do popular Gil Vicente:

 
Á barca, á barca, boa gente,
Que que queremos dar a vela;
Chegar a ella, chegar a ella.
 

O tom frio com que dissera a ruim nova fazia julgal-o filho da rajada, como se cria nas incarnações da mythologia grega. Ouvida a falla do capitão, foram saltando todos para o batel. Pouco depois a náo soberba da India começara a afundar-se. Ao vêl-a sumir-se, o padre capellão lançou-lhe a benção, e proferiu uns versiculos da oração dos mortos. A mudez tornava mais sublimes estes instantes. Era como na morte de um heroe, que baqueia ferido no auge da luta. As lagrimas borbotavam dos olhos dos velhos mareantes ao perderem para sempre aquelle companheiro das refregas. O batel não podia com a tripulação toda; o mar estava brazeiro e a cada momento entrava-lhe pela borda.

Assim foram andando á mercê das correntes, sem que transluzisse no horisonte escuro um clarão de esperança. O ranger dos remos fazia lembrar de hora em hora o estertor de uma vehemente agonia. O mar e a fome infundiam n'alma o tedio da vida.

O mar continuava roleiro. A este tempo uma onda encapellada rebentou quase de choque sobre o batel. Era preciso alijar para alivial-o. O capitão deitou sortes, para vêr os que iriam ao mar. Caiu a sorte sobre o intrepido gageiro. Pero Gutterrez, um velho marinheiro, atirou-se de livre vontade. Fernão Ximenez parecia de tal modo embebido na dor funda que alentava n'alma, que não sabia o que se passava em volta de si. A sorte fatidica caira tambem sobre o irmão. Despertou da abstracção dolorosa, ao abraço fraterno extremo. Repentinamente comprehendeu tudo com a lucidez de que o espirito se apossa nos momentos solemnes da vida. Deteve-o um instante:

– Uma vez sacrificaste ao meu amor todas as tuas esperanças! É bem que o reconheça; agora estimo a vida só para dal-a por ti. – E desprendeu-se dos braços do irmão, com a resolução do desespero, e arrojou-se á voragem.

Gaspar Ximenez permaneceu attonito, interdito ante o estranho heroismo. O sol ia já alto, o céo tornava-se limpido e sereno, o horisonte abria-se immenso, como a expansão de um pensamento de alegria. Depois de haverem remado bastante ainda, descobriram-n'o a distancia seguindo extenuado o batel. A energia sublime do seu heroismo e dedicação commovera todos os corações. Quizeram unanimes recebel-o, estava já sem forças, quasi immovel. O amor fraternal resplandecera com espanto. Os membros regelados começaram de novo a sentir vida com a reacção do calor.

O mar ia amansando progressivamente, e antes do cair da noite viram com pasmo e alegria doida alvejar uma vela. Saudaram-na com a celeuma do regosijo. Quando passados dias chegaram a beijar a terra de seus paes, Fernão Ximenez foi professar, cumprir o voto n'um mosteiro, para não tornar o amor do irmão impossivel.