Kitabı oku: «Viriatho: Narrativa epo-historica», sayfa 9
XXXI
A Guerra viriathina, como em Roma já se dizia da campanha desgraçada na Lusitania, levou o Senado a encarar os acontecimentos com a justeza que lhe competia, preparando uma solução pratica. Usando de um direito de negociar e concluir allianças com os povos estrangeiros, entendeu o Senado que era tempo de propôr a Viriatho um tratado de mutuas garantias, da cathegoria d'aquelles em que ha egualdade de obrigações, e designados sob o titulo de Foedus aequum. A lucta desesperada das populações da Hispania Ulterior resultava de um sentimento de independencia local e pessoal, que Roma não podia apagar pela força das suas legiões; pelo direito era possivel ligar esses povos aos interesses romanos, por que as terras ficariam governando-se pelos seus costumes e os individuos adquiriam o Jus peregrinum, gosando de uma protecção legal em Roma sem dependencia de patronos.
Cada derrota de um Pretor ou Consul na Lusitania manifestava ao Senado a difficuldade de poder submetter esta região hispanica ao regimen do Foedus iniquum, titulo com que Roma cobria a subserviencia dos povos submettidos ao seu protectorado. A Lusitania não era um inimigo vencido, nem tampouco seria um amigo fraco; reconhecendo-o no meio de tanto desastre, o Senado viu claro o caminho para exercer a sua acção na Hispania Ulterior indicando a opportunidade do Foedus aequum. Approveitava-se a occasião da partida de Quinto Fabio para a Lusitania: elle seria o portador do tratado de alliança, ficando-lhe reservado o arbitrio de poder firmar o tratado com Viriatho, ou de o occultar, caso o successo das armas romanas mantenha o seu imperio. A convenção diplomatica não comprehendia sómente a segurança das pessoas e das transacções entre os dois paizes; continha-se ahi um facto capitalissimo, e que poderia exercer uma influencia decisiva no futuro da Hispania Ulterior: o Senado reconheceria Viriatho como princepe ou rei da Lusitania, assignando e responsabilisando-se pela execução do tratado como soberano.
Quando entre alguns membros do Senado se aventou a importancia de um tal acto, de consequencias imprevistas, um dos Senadores mais experimentados no governo sorriu-se com superioridade:
– Todas essas garantias estão apenas na letra; por que vós todos sabeis, que embora pertença ao Senado a direcção das negociações com os estrangeiros, nenhuma alliança poderá concluir-se sem que os Comicios lhe prestem o seu assentimento ou ratificação.
A ideia diplomatica foi promptamente comprehendida. Na partida de Quinto Fabio entregou-se-lhe o tratado, cujo conteudo ignorava, e impondo-lhe a clausula, que só o abrisse e cumprisse, quando e até aonde a marcha dos acontecimentos o determinasse. Era ainda um habil modo do Senado eximir-se a responsabilidades.
As forças que Lellio commandava em Hespanha estavam cansadas e apavoradas; o Consul Quinto Fabio comprehendeu que era condição impreterivel partir com algumas novas Legiões, para com ellas metter em disciplina as que se consideravam exhaustas. Os exercitos romanos estavam divididos pelas campanhas gloriosas da Grecia, da Macedonia, de Carthago, achavam-se diminuidos e tambem debilitados por esforços ininterruptos; os veteranos que regressavam á patria vinham semi-mortos, e para nada se poderia contar com elles. De Pydna haviam chegado a Roma as Legiões triumphantes; da destruição de Carthago regressava Scipião com os seus bravos; mas nenhum legionario se quiz inscrever para acompanhar Quinto Fabio para a guerra da Lusitania, justificando-se com desdem que não desciam das altas façanhas contra nações grandes e civilisadas, contra umas obscuras tribus miseraveis dos confins do occidente e demais commandadas por um chefe de ladrões, (Dux latronum). Por estes imprevistos embaraços, e pela situação apathica em que se via Caio Lellio, a guerra lusitana afroixára; Viriatho, para não cansar as suas Companhias e Terços aproveitou-se d'esta tregua forçada, contando que nova epoca de lucta seria iniciada, cada vez mais desesperada e cruenta da parte dos Romanos.
XXXII
Para que a inactividade passageira em que se via não prejudicasse o perstigio que exercia sobre os seus homens de armas, resolveu Viriatho ir consultar o velho Idevor á ilha sagrada de Achale, junto do promontorio Cepressico, aonde se conservavam as tradições cultuaes trazidas de Hierna; partiu acompanhado dos seus Mil Soldurios, e transpondo a margem direita do Tagus, dirigindo-se para Cetobriga, aonde o Sado desemboca no Oceano, deu ordem aos companheiros que alli o esperassem durante tres dias.
D'alli, d'aquella bahia do Sado, partiu Viriatho em uma barca de couro, com os trez Cavalleiros que sempre o custodiavam, em direcção ao promontorio Cepressico de traz do qual parecia occultar-se a ilha de Achale. Um d'esses companheiros, Ditálcon, dizia:
– Foi n'essa ilha que se refugiaram as familias lusitanas assombradas pelo morticinio de Galba; junto do templo do Deus innominato, encontraram alento para resistirem á calamidade que os aniquilava.
Minouro, ancioso por pisar aquella ilha mysteriosa de Achale, avivava tambem as suas reminiscencias:
– Conta-se que outr'ora um Collegio sacerdotal de Druidas estava na ilha Pelagia, situada ao norte, fronteira á costa de Ophiusa, chamada d'antes Oestrymnis. Da ilha sagrada de Hierna vieram para aqui os Bardos, que doutrinaram as tribus de Lez, cujos navegadores cruzavam o mar Tenebroso indo buscar o estanho ás ilhas Cassitérides, e voltavam confiados no afamado pharol da torre de Brigantia. Mas, quem sabe onde está hoje essa ilha Pelagia?
Andaca observou:
– Desappareceu, ou por mysterio ou força da natureza. O mar desfez essa ilha, e aonde ella existiu é hoje um vastuo estuario coberto de moliço e algas. Parece que os acontecimentos nos levam a prevêr que a Lusonia tem tambem de desapparecer como a sua Ilha encantada. Aqui a nossa raça foi invadida pelos Celtas loiros turbulentos; aqui nos tem explorado os Phenicios e Jonios, destruindo a nossa navegação no Oceano, mettendo a pique as nossas barcas; aqui nos roubaram pelo seu commercio os Carthaginezes, que attrahiram sobre nós a pilhagem dos Romanos, que hoje temos vencido, mas que não largam a prêza.
Emquanto a barca de couro seguia para a ilha de Achale, ia Viriatho reconcentrado e silencioso, como absorto na alta missão da sua vida; ao ouvir aquellas palavras de Andaca, obedecendo a um impulso intimo da sua intuição quasi prophetica, exclamou para os trez companheiros:
– Não serão sómente os Romanos que hão de pensar em submetter ao jugo as tribus da Lusonia; outros povos ou outras raças virão do norte e do sul, e se espalharão sobre este territorio julgando possuil-o pela força da conquista. A Lusonia póde ser temporariamente vencida, mas nunca d'outrem subjugada; não se extingue, porque a sua liberdade subsistirá nas almas, e cedo ou tarde manifesta-se em espirito e renasce em restauração gloriosa.
As suas palavras foram interrompidas porque a barca de couro dobrara o promontorio Cepressico, e appareceu repentinamente á vista a Ilha sagrada de Achale.
– É alli, é alli que se guardam os thesouros salvos ás devastações e rapinas dos Romanos; outros povos lançam os seus thezouros aos lagos escuros, como melhor meio de defeza. Mas quem saberá da existencia d'esta ilha mysteriosa? Ninguem; ninguem.
Minouro fitou a ilha, contemplando-a com espanto, na preoccupação que desde aquella hora sabia aonde se guardava o chamado Thesouro do Luso. A mesma ideia tornou-se uma obsessão para Ditálcon. A barca chegava já ás rochas escarpadas da ilha de Achale, sobre a qual se erguia uma Torre redonda de trez andares, como sentinella do Oceano tenebroso.
Erecta sobre o pequeno promontorio, a Torre redonda de uma surprehendente elegancia, era construida de fortes blocos apparelhados de pedra sêcca, tendo no cocuruto um tecto tambem de pedra em fórma conica. Dos seus tres andares ou quadras sobe-se por escadas em caracol formadas em pequenas torres lateraes que terminam em ameias.
O interior é alumiado por seteiras geminadas, e a porta unica da entrada está a uma altura do chão para a qual se sobe por uma escada movel que se faz baixar quando é necessario. Como logar de refugio alli estão depositadas as folhas plumbeas que têm impressos os titulos das familias, e relações dos successos memoraveis, Crescentes e Virias de ouro, Fibulas mamilares, Tiaras e Bastões de prata, insignias do commando dos patriarchas. Alli na Torre redonda se conserva o Fogo perpetuo consagrado a Samham, o Julgador dos mortos, cujos ritos se celebram no primeiro dia de Novembro. Consagradas a esse culto dos Antepassados ahi residem as Gemmades (de Genmaidh, puro e casto) mulheres formando uma como classe de Vestalato ou Lucae dominicae; e alli comparecem os tocadores das Harpas triplices ou de tres cordas, chamadas Telyne, que com sons fortes e vibrantes enchem o ambiente acompanhando os canticos de uma inspiração divina expressa pela palavra Awen.
E torneando a ilha, para fazer o desembarque, perguntava Andaca:
– Não tem porto Achale?
N'isto roçou a barca em uma lingueta de areia, que se ia alli formando em cabedello, e que com o andar dos seculos encheu esse ponto de communicação do rio Sado com o Oceano tornando-se com as turfeiras uma extensa peninsula, sobre a qual se accumularam apparatosos monumentos, que por seu turno foram tambem devastados pelo tempo.
Viriatho e os seus trez companheiros desembarcaram alegres; Idevor com um longo séquito de Endres, ou cantores e educadores do povo, veiu ao seu encontro, e entre musicas ruidosas e hymnos festivaes foram conduzidos para a vasta quadra que formava o andar terreo da Torre redonda. Era ahi a sala do banquete, em que se fazia a Symposia dos Chefes das Contrebias lusonias, quando se manifestavam sobre os destinos nacionaes. Era a primeira vez que Viriatho se assentava á cabeceira da meza, como se fosse um Brenn ou Hegmon das tribus.
E apenas Idevor o conduzira ao seu logar, entraram na quadra nove donzellas encantadoras, das mais bellas do typo da raça, cingidos os cabellos castanhos com litas douradas que desciam com as madeixas soltas ao longo das costas; e dansando em volteios com sentido hieratico, e cantando em unisono um côro que repetiam, foi o seu canto interrompido por uma voz argentina que parecia partir do alto da sonora quadra. Viriatho ergueu os olhos para descobrir d'onde vinha aquella voz que o penetrou com uma vibração seductora e dominativa, e viu lentamente descendo do primeiro andar da Torre redonda uma Donzella de uma graça e frescura sobrehumana.
Era Lisia, a filha do velho endre, e como elle conhecedora dos mythos da raça, e guarda das tradições mais augustas das tribus lusonias. Estava vestida com uma tunica branca guarnecida de purpura de Elisa, que os Tyrios tinham tornado celebre no mundo, cingida por um cinto de malha de ouro; uma lunula de ouro chato com finos ornamentos abarcava-lhe todo o alto da cabeça e vinha ás pontas das orelhas. Era uma Semnothêa, cercada por um grupo de nove Virgens, com quem no alto da Torre redonda celebrava os mysterios cultuaes. Lisia acabou de descer o longo escadorio, e atravessando por entre o Côro das donzellas, que a foram seguindo, tomou de uma ára a taça de ouro destinada ás symposias, e chegando em frente de Viriatho, estendeu o braço desnudado, alvissimo e de um contorno esculptural, appresentando-lhe a taça de ouro:
– Bem vindo! Viriatho. Só para ti, e com a minha felicidade.
Sob uma emoção repentina e como que subjugado pela belleza extrema que alli lhe apparecia, Viriatho tomou a taça da branca mão de Lisia e extactico, paralysado no seu movimento, não a levou logo aos labios. No rosto de Lisia transpareceu uma melancholia instantanea; seria desattendida a sua escolha? não a amaria o guerreiro de que tanto lhe fallavam, cujo nome se repetia nos cantos do povo e em hymnos de victoria?
Tudo o amor adivinha; lê nas almas, e o silencio é a linguagem mais expressiva da emoção ineffavel. Viriatho comprehendeu o vislumbre de tristeza que obumbrou o semblante de Lisia, e accudindo á hesitação involuntaria de que não se apercebera, levou a taça de ouro aos labios:
– Á tua saude! e para sempre.
Entrega em seguida a taça a Lisia, que com um rubor fascinante a levou aos labios, como completando a cerimonia tradicional esponsalicia, murmurando com suavidade:
– Para sempre!
E emquanto se entreolhavam em um invencivel enlêvo, Idevor ergueu ambas as mãos abençoando-os, lembrando-se de que aquella criança bella perdera toda a sua familia na mortandade de Galba, e de que aquelle homem forte surgira como o vingador e o libertador da Lusitania. Essas duas almas fugiam uma para a outra. As nove donzellas que acompanhavam Lisia como uma fórma não organisada do Vestalato, mas que poderiam ser comparadas ás Senae ou Barrigenes gaulezas, cantaram um hymno de amor, ao som de tetracordes, sobre a phrase que Viriatho e Lisia tinham trocado:
Para sempre – no espaço
A estrella
Erma, bella,
Fulgor vivo derrama:
De paixão nunca lasso,
O que fará quem ama?
Para sempre – o sol flavo
Solta a flux
Vida, luz,
Que o seu calor inflamma;
Da attracção pura escravo
O que fará quem ama?
Para sempre – o Oceano
Tudo alaga
Com a vaga
Que plangente rebrama;
Da alma no doce engano,
O que fará quem ama?
Para sempre – sereno
O luar
Faz scismar,
E mil saudades chama;
No enlêvo mais ameno,
O que fará quem ama?
Para sempre, – e sem calma
A paixão
Na attracção
Do enlêvo augmenta a chamma;
E embala o engano da alma
Para sempre em quem ama!
O hymno de amor desdobrava-se em um coral unisono no retornello – O que fará quem ama? – deixando uma impressão mais que humana. Emquanto os eccos do festival se repetiam por todas as quadras da Torre redonda, Lisia, de mãos dadas com Viriatho, foi percorrendo a sala á volta, cumprimentando os assistentes, que se inclinavam com sympathia. D'alli subiram os dois para o terceiro e ultimo andar da Torre d'onde se alcançava a extensão immensa do mar azulado, que reflectia o cariz de um céo sereno e sem nuvens.
– Como as nossas almas! – disse-lhe Lisia, apontando todo aquelle ambiente.
Alli, n'aquelle retiro ignorado do mundo e até aonde sómente Lisia tinha accesso pela sua qualidade de Semnothêa, alli, de pé, junto de Viriatho, e contemplando o Oceano profundamente placido n'aquelle dia, confessou-lhe a noiva ingenua:
– Nunca te tinha visto, mas representava-te na mente assim como és. Como Semnothêa e para que te entregue completamente a minha vontade, só me falta uma prova de ti. Tens de responder a um Enigma.
– O coração que ama tudo adivinha.
Então Lisia proferiu com incerteza este Enigma de caracter religioso:
Vive sem ter corpo,
No valle ou em gruta;
Falla sem ter bocca,
Sem ouvido escuta?
– Esse Enigma, devolveu Viriatho, foi-me revelado pela tua voz, quando pela abobada d'esta Torre, lhe escutei o suavissimo Ecco.
– Bem se vê que tens entrado em grutas e cavernas sagradas. Eu bem sei que foi um Ecco em mysteriosa resonancia, que te proclamou invencivel.
E tirando uma armilha de ouro do braço, fechou-a no pulso de Viriatho, e atirou a chave ao mar, proferindo como em vaticinio:
– Para sempre!
E Viriatho, tomando-lhe as mãos ambas:
– Eu ouvia fallar de ti como uma apparição celeste, mas não tinha esperança de chegar a vêr-te. N'esta vida de combates que levo, para a independencia da nossa Patria ser firmada, esperando a morte como consequencia da lucta, e então… morreria sem vêr-te.
– Foi o teu amor pela Patria lusitana que me fez pensar em ti e levou a amar-te como a alma d'ella. As tuas victorias venceram-me tambem; e Virgem Semnothêa do Collegio sacerdotal, que através de todas as perseguições e ruinas ainda aqui se conserva occulto n'esta ilha sagrada de Achale, fiquei pertencendo-te desde que identificaste a tua vida com a independencia da Lusitania.
– É para mim muito mais do que a corôa de rei a escolha que de mim fizeste para teu esposo. – Disse Viriatho, tomando as mãos de Lisia e beijando-as trémulo.
Lisia approximou a face immaculada da bocca do guerreiro, que a osculou com emoção e pureza, na ingenuidade de heroe, que fazia d'esse beijo não um prazer mas um sacramento. Viriatho ficou mudo por algum tempo, fitando o mar como esquecido de si.
Lisia, com ternura e graça, perguntou-lhe:
– Quando te entreguei a taça de ouro, por que hesitaste em leval-a aos labios?
– Dominou-me o espasmo de uma impressão divina.
– Comprehendeste a minha tristeza n'esse momento rapido. Ah, n'esse momento decidiu-se na minha alma uma determinação mais forte do que o meu desejo, e que se tornou um voto religioso. Levaste a taça de ouro aos labios acceitando a minha escôlha; mas… só virei a ser a tua Esposa, cobrir-nos-ha o mesmo cortinado quando um General romano te pedir a Paz.
– Lisia, escolheste-me para teu esposo! Entrego-me á tua vontade, – para sempre. A condição que revelas é um impossivel, por ventura para não te destituires da hierarchia de Semnothêa? Virgem dos mysterios cultuaes, nunca deixarei de amar-te, elevando-me a uma adoração pura, e tirando d'este santo amor o impulso para vencer os Romanos, e para… que digo eu? deixa-me delirar um instante, para forçar um Pretor, um Consul a pedir-me a Paz. Eu tambem jurei sobre a Pedra focal não ter familia em quanto não expulsar os Romanos da Lusitania.
Nas palavras de Viriatho accentuara-se uma vibração de confiança em si, para, servindo a causa santa da liberdade da patria lusa, cumprir a condição quasi ultrahumana que Lisia lhe impozera. Lisia tambem teve a presciencia de que isso aconteceria, e tirando o annel de esmeralda que trazia, metteu-o no dedo da mão esquerda de Viriatho, n'aquelle em que se diz passar a vena-percordial.
E desceram ambos da Torre redonda, mais unificados nas almas do que se tivessem cohabitado em uma concordia de annos de ventura. Viriatho d'aquelle dia em diante tinha mais do que a Espada invencivel, que o não deixaria ser derrotado na guerra, nem morrer em combate; era o Annel de Lisia, que lhe infundia na alma uma confiança no futuro da inextinguivel raça lusitana através de todos os desastres em que a envolvessem as vicissitudes dos tempos vindouros. Viriatho via no Terçado e no Annel os Talismans que pelo poder da tradição formariam o Thezouro do Luso.
XXXIII
No segundo dia em que Viriatho passou na ilha sagrada de Achale, o velho endre Idevor levou-o ao primeiro andar da Torre redonda, e ahi ambos a sós, fitando o mar, demoraram-se longo tempo em um recolhimento mysterioso; fallava Idevor:
– «Tens a força material, n'essa Espada Gaizus, que te torna invencivel: a força moral é a que não se extingue e mais se communica. Já que o teu braço serve com lealdade a causa da Lusitania, é preciso que o teu espirito seja apoiado pela Tradição da nossa raça; que a conheças, por que a tua memoria sobreviverá n'ella, e que com ella ligues em um vinculo affectivo todos os companheiros de armas que seguem o teu commando. A tradição do passado é dolorosa, mas sublime; nós os Lusos sômos um ramo d'essa grande raça navegadora que desceu do Norte pela borda occidental da Europa, occupou as ilhas Britanicas, a orla atlantica das Gallias, da Aquitania, e espalhando-se na Hispania, chegou ás ilhas Mediterraneas e á alta Italia.
«Esse povo navegador, que explorava os mares e os rios, como os amphibios, tirou d'esta qualidade os nomes de muitas das suas tribus, que fórmam Ligas hanseaticas para protegerem a sua actividade mercantil, vendendo os blocos de Ambar amarello que iam buscar aos mares do Norte. Esse grande Povo, d'onde proviemos, encetou as audaciosas navegações do Oceano atlantico, descobrindo ahi as Ilhas Afortunadas, tocando em um ignorado continente que fica lá para as bandas do Oéste ou a terra dos Aymaras, a quem communicou a sua civilisação e conhecimentos de astronomia. E desembarcando na costa africana, chegou ao Golfo persico, e depois de estacionar na ilha de Dilmun, occupou a baixa Chaldêa, dirigido por Oannes ou Huan, que na velha lingua designava o Sol, que era o guia certo d'esses navegadores primeiros.
«Perdeu-se a noticia d'estas largas navegações; a raça foi atacada por outras raças fortes melhor armadas ou mais astutas. Em terra os Celtas, armados com espadas de ferro, bateram e dominaram os que só conheciam espadas de bronze; e essa raça corpulenta e loura, irrequieta e inculta, bateu os Ligures, escravisou-os ou misturou-se com elles desnaturando-os da sua pureza primitiva. Por mar os Phenicios e os Jonios do Mediterraneo lançaram-se no esteiro das suas navegações e mettiam a pique todos os baixeis liguricos que encontravam. N'esta longa lucta é que os Ligures foram succumbindo; sobretudo na Hespanha, quando os Iberos, vindos do norte da Africa, aqui entraram e monopolisaram o commercio do estanho que iam buscar ás Ilhas Cassitérides.
«Outras raças vieram successivamente á occupação da Hespanha, e aqui foram comprimindo a raça de Lez, o generoso povo da Lusonia, empurrando-o para a faixa occidental, e como que procurando arrojal-o ao mar Oceano. É no conflicto d'estas raças invasoras que a Lusitania tem diminuido de territorio, e as suas tribus vão sendo desmembradas. Os Romanos acharam-os já enfraquecidos, mas tenazes, tendo resistido na faixa que hoje occupâmos, á antiga invasão dos Celtas, e até agora nunca confundidos nem incorporados pelos Iberos. É com esta força de resistencia immanente na possa raça que deves contar; ella vale mais do que muitos exercitos disciplinados, estes morrem mas esse sentimento é inextinguivel. A Lusitania não é somente um territorio maior ou menor, que nos aggrega; é uma alma, o seio que nos une a todos! Os Jonios roubaram-nos as nossas tradições poeticas, transportando para as cabotagens do mar Mediterraneo as nossas aventuras temerosas passadas no Atlantico, que se tornou para os seus geographos o Mar Tenebroso. Os Phenicios afundaram os nossos baixeis e apoderaram-se dos nossos Periplos e do nosso commercio. E depois de tanta devastação do estrangeiro, vem ainda um outro invasor estrangeiro, a grande e generosa Roma votar-nos ao exterminio para assim firmar a sua posse pacifica da Hespanha, segura de que o Ibero se considera honrado com a expoliação do seu dominio. Hoje, Roma conta com a antipathia do Ibero para subjugar a Lusitania: com o odio do Ibero contará mais tarde qualquer outra potencia estrangeira para submetter a Lusitania, dando-se como protectora da sua autonomia! Mas, para que levantar o véo do futuro?..»
Idevor explicára longamente este quadro do passado da raça dos Ligures, e a situação sempre combatida das tribus da Lusonia, quando ella tocava quasi os Pyrenneos, e mesmo as margens do Mediterraneo. Mostrára a Viriatho as moedas autonomas das antigas cidades peninsulares, as armas dos seus heroes, os collares do commando, por onde o Chefe ficou conhecendo todos aquelles povos agora desmembrados entre os Celtiberos, que pertenciam á unidade da Patria lusitana. Por este conhecimento precioso Viriatho adquiriu um poder moral enorme para ligar a todos elles na defeza contra o Romano.
No terceiro e ultimo dia em que Viriatho se conservou na Ilha sagrada de Achale, o velho endre subiu com elle ao terceiro andar da Torre redonda, para aventar rapidamente alguns traços do futuro:
– «Vês esse Mar immenso! esse Atlantico, que os baixeis liguricos sulcaram destemidos outr'ora, e hoje o Phenicio monopolisa? Quando o Luso se vir comprimido entre as raças que avançam de léste e o mar, que hoje lhe serve de barreira defensiva, elle terá consciencia da sua missão no mundo, sentirá em si renascer a antiga energia da raça, e restabelecendo as grandes Navegações antigas fundará novos Imperios em vastos continentes agora ignorados. É este o destino da Lusitania: será a primeira das Nações, emquanto ella servir esta tradição, emquanto um fiel alliado estrangeiro a não espoliar das suas descobertas…»
O endre não era bem comprehendido; o praso chegára, e a barca de couro já fluctuava junto da lingueta de areia no porto de Achale. Viriatho desceu da Torre redonda, acompanhado pelo endre e pelo côro das Virgens á frente das quaes vinha Lisia; embarcou, chegando em breve á costa de Cetobriga onde o esperavam com anciedade.
Lisia dissera-lhe á despedida:
– Agora tens o teu espirito iniciado para ires á Pedra Virgem, e lá tomares conhecimento do antigo Poema de seis mil versos, gravados nos Bastões dos Poetas. Não basta dar unidade ás tribus lusitanas pelo poder da Espada: a Tradição conservada na Arvore d'Ogham, de que o ramo inicial e mais caracteristico se denomina Luis, bem revela que os destinos da Lusonia se eternisarão pelo perstigio do seu Canto nacional. Eu pedirei a Idevor, que te guie á Caverna das Inscripções oghmicas, junto á margem do Durius, e lá te descubra o grande Poema da raça, esse Pregão eterno do genio luso.