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Kitabı oku: «Memórias»

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PREFACIO

Janeiro de 1918.

Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda n'este sonho poído. Não me habituo: não posso vêr uma arvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplendido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra. Não sei – nem me importo – se creio na imortalidade da alma, mas do fundo do meu sêr agradeço a Deus ter-me deixado assistir um momento a este espectaculo desabalado da vida. Isso me basta. Isso me enche: levo-o para a cova, para remoer durante seculos e seculos, até ao juizo final. Nunca fui homem de acção e ainda bem para mim: tive mais horas perdidas… Fugi sempre dos phantasmas agitados, que me metem medo. Os homens que mais me interessaram na existencia foram outros: foram, por exemplo, D. João da Camara, poeta e santo, Correia d'Oliveira, um chapeu alto e nervos, nascido para cantar, Columbano e a sua arte exclusiva, e alguns desgraçados que mal sabiam exprimir-se. Conheci muitos ignorados e felizes. Meio doidos e atonitos. O Napoles ainda hoje dorme sobre a mesma rima de jornaes?.. Outro andava roto e dava tudo aos pobres. O homem é tanto melhor quanto maior quinhão de sonho lhe coube em sorte. De dôr tambem.

A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada… De tudo o que se passou comigo só conservo a memoria intacta de dois ou tres rapidos minutos. Esses sim! Teimam, reluzem lá no fundo e enebriam-me, como um pouco d'agua fria embacia o copo. Só de pequeno retenho impressões tão nitidas como na primeira hora: ouço hoje como hontem os passos de meu pae quando chegava a casa; vejo sempre diante dos meus olhos a mancha azul ferrete das hydranjas que enchiam o canteiro da parede. O resto esvae-se como fumo. Até as figuras dos mortos, por mais esforços que eu faça, cada vez se afastam mais de mim… Algumas sensações, ternura, côr, e pouco mais. Tinta. Pequenas coisas frivolas, o calor do ninho, e sempre dois traços na retina, o cabedelo d'oiro, a outra banda verde… Passou depois por mim o tropel da vida e da morte, assisti a muitos factos historicos, e essas impressões vão-se desvanecidas. Ao contrario este facto trivial ainda hoje o recordo com a mesma vibração: a morte daquella laranjeira que, de velha e tonta, deu flôr no inverno em que seccou. O resto usa-se hora a hora e todos os dias se apaga. Todos os dias morre.

Lá está a velha casa abandonada, e as arvores que minha mãe, por sua mão, dispoz: a bica deita a mesma agua indiferente, o mesmo barco archaico sobe o rio, guiado á espadela pelo mesmo homem do Douro, de pé sobre a gaiola de pinheiro. Só os mortos não voltam. Dava tudo no mundo para os tornar a vêr, e não ha lagrimas no mundo que os façam resuscitar.

Esta Foz de ha cincoenta annos, adormecida e doirada, a Cantareira, no alto o Monte, depois o farol e sempre ao largo o mar diaphano ou colerico, foi o quadro da minha vida. Aqui ao lado morreu a minha avó; no armario, metido na parede como um beliche, dormiu em pequeno o meu avô, que desapareceu um dia no mar com toda a tripulação do seu brigue, e nunca mais houve noticias d'elle. Lembro-me da avó e da tia Iria, de saia de riscas azues, sentadas no estrado da sala da frente, e possuo ainda o volume desirmanado do Judeu que ellas liam, com o Feliz Independente do mundo e da fortuna e as Recreações philosophicas do padre Theodoro d'Almeida. Ouço, desde que me conheço, sahir do negrume, alta noite, a voz do moço chamando os homens da companha: – Ó sê Manuel cá p'ra baixo p'r'o mar! – Vi envelhecer todos estes pescadores, o Bilé, o Mandum, o Manuel Arraes, que me levou pela primeira vez, na nossa lancha, ao largo. Ha que tempos! – e foi hontem… A quarenta braças lança-se o ancorote. Na noite cerrada uma luzinha á prôa; do mar profundo – chape que chape – só me separa o cavername. Deito-me com os homens sob a vela estendida. Primeiro livor da manhã, e não distingo a luz do dia do pó verde do mar. Nasce da agua, mistura-se na agua, com reflexos baços, a claridade salgada que palpita, o ar vivo que respiro, o oceano immenso que me envolve. – Iça! iça! – e as redes sobem pela polé, cheias de algas e de peixe, que se debate no fundo da catraia. Voltamos. Já avisto, á vela panda, o farolim, depois Carreiros; um ponto branco, alem no areal, é o Senhor da Pedra, e a terra toda, roxa e diaphana, emerge emfim, como uma aparição, do fundo do mar. A onda quebra. Eis a barra. Agora o leme firme!.. As mulheres, de perna nua, acodem á praia para lavar as rêdes, e o velho piloto mór, de barba branca, sentado á porta da Pensão, fuma inalteravel o seu cachimbo de barro. O azul do mar, desfeito em poalha, mistura-se ao oiro que o céo derrete. Mais barcos vão aparecendo, vela a vela: o Vae com Deus, a Senhora da Ajuda, o Deus te guarde, e os homens, de pé, com o barrete na mão, cantam o bemdito, tanta foi a pesca. – Quantas duzias? – Um cento! dois centos! – Nas linguetas de pedra salta a pescada de lista preta no lombo, a raia viscosa, o ruivo de dorso vermelho, ou, no inverno, a sardinha que os bateis carreiam do mar inexgotavel, estivando de prata todo o caes. Ás vezes o peixe miudo e vivo é tanto, que não bastam os almocreves com os seus burros canastreiros, as varinas com os seus gigos, nem as mulheres de saia ensacada e perna á mostra, para o levarem, apregoando-o, por essa terra dentro. Dá-se a quem o quer, faz-se o quinhão dos pobres. Em setembro são as marés vivas. Mais tarde cresce do mar um negrume. Acastelam-se as nuvens no poente, e forma-se para o sul uma parede compacta que tem legoas de espessura. A voz é outra, clamorosa, e, á primeira lufada, bandos de gaivotas grasnam pela costa fóra, anunciando o inverno que vem proximo. O quadro muda, e os homens morrem á bocca da barra, na Pedra do Cão, agarrados aos remos, sacudidos no torvelinho da resaca, o velho arraes de pé, as duas mãos crispadas no leme, cuspindo injurias, para lhes dar animo, e todo o mulherio da Povoa, de Matosinhos, da Afurada – vento sul, camaroeiro içado – com as saias pela cabeça, salpicadas de espuma e molhadas de lagrimas: – Ai o meu rico homem! o meu filho que o não torno a ver! – E chamam por Deus, ou insultam o mar, que, inverno a inverno, lh'os leva todos para o fundo.

O que sei de bello, de grande ou de util, aprendi-o n'esse tempo: o que sei das arvores, da ternura, da dôr e do assombro, tudo me vem desse tempo… Depois não aprendi coisa que valha. Confusão, balburdia e mais nada. Vacuidade e mais nada. Figuras equivocas, ou, com raras excepções, sentimentos baços. Amargor e mais nada. Nunca mais. Nunca Londres ou a floresta americana me incutiram misterio que valesse o dos quatro palmos do meu quintal. Nunca caça ás feras no canavial indiano foi mais fertil em emoção e aventura, que a armadilha aos passaros na poça do Monte, com o Manuel Barbeiro. Uma nora, dois choupos, a agua empapada, e, entre as hervas gordas como bichos, pégadas de bois cheias de tinta azul, reflectindo o céo implacavel de agosto. Os passaros com as azas abertas desconfiam e hesitam: a sêde aperta-os, o sol escalda-os. Mal pousam na armadilha agarramol-os com ferocidade. Chiu!.. Uma andorinha descreve lá no alto um circulo perfeito, e vem, no vôo desferido, arripiar com o bico a agua estagnada. Toca n'uma palheira de visco – é nossa! Já tiveste nas mãos uma andorinha? É pennas e vida phrenetica. E essa vida pertence-te!.. Só ao fim da tarde regressava a casa com os bolsos cheios de rans e os olhos deslumbrados. Nenhuma figura tôrva, nem o Anti-Christo, me communicou terror semelhante ao do inofensivo Manco da esquina, que escondia de manhã a barba que lhe chegava ao umbigo, entre o peito e a camisa, para a sacar de noite, quando sahia á estrada… Sou capaz de te dizer qual o tom verde de certos dias, quando o pecegueiro bravo encostado ao muro floresce. O murmurio da minha bica não me sae dos ouvidos até á hora da morte. Quasi todos os meus amigos – o Nel, que não tornei a ver… – são d'essa epocha. D'outras impressões mais tardias não restarão vestigios, mas tenho sempre presentes os mesmos pinheiros mansos – que já não existem – acenando para a barra, e alta noite acordo ouvindo o rebramir do mar longinquo. Nos dias de desgraça é sempre a mesma voz que chama por mim… Olha, olha ainda e extasia-te: o rio parece um lago, e um bando de gaivotas desfolhadas alastra sobre a tinta azul, com laivos esquecidos do poente. Boia espuma na agua viva que a maré traz da barra… E não ha cheiro a flores que se compare a este cheiro do mar.

Agosto de 1910.

Aos 23 do mez passado morreu meu pae amachucado, exhausto e pobre. Encontrão de um, repelão de outro, assim foi até á cova. Tinha 67 annos incompletos. Não podia mais. Encontraram-lhe alguns cobres no bolso. Ha muitos annos que se arrastava, e só tinha de seu uma alegria e um repouso: os domingos. Aos domingos metia-se no quarto, calçava uns chinelos, e toda a tarde chorava lagrimas sem fim sobre um velho romance de Camillo. Minha mãe pouco mais durou, com um olhar de pasmo. Lá ficou a velha casa abandonada…

Sobe a lua no céo, e a sombra no monte. Seis arvores, quatro paredes – tudo aqui me enche de saudades. A bica continua a correr, mas outras sêdes se apagarão n'aquella agua. Outros virão tambem sentar-se no banco de pedra… Só me resta a tua mão querida, que a meu lado segura a minha mão. Os mortos chamam por nós cada vez mais alto… Olho para ti e os teus primeiros cabellos brancos fazem-me chorar.

Setembro de 1910.

Hoje acordei com este grito: eu não soube fazer uso da vida!

O que me pesa é a inutilidade da vida. Agarro-me a um sonho; desfaz-se-me nas mãos; agarro-me a uma mentira e sempre a mesma voz me repete: – É inutil! é inutil!

A aquiescencia, o sorriso: – pois sim… pois sim… – a necessidade de transigir, o preceito, a lei, fizeram de mim este sêr inutil, que não sabe viver e que já agora não pode viver. Não grito de desespero porque nem de desespero sou capaz.

A vida antiga tinha raizes, talvez a vida futura as venha a ter. A nossa epocha é horrivel porque já não cremos – e não cremos ainda. O passado desapareceu, de futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós, sem tecto, entre ruinas, á espera…

Não entendo nada da vida. Cada dia que avança entendo menos da vida. Contudo ha horas, as horas perdidas – e só essas – que queria tornar a viver e a perder.

Deus, a vida, os grandes problemas, não são os philosophos que os resolvem, são os pobres vivendo. O resto é engenho e mais nada. As coisas bellas reduzem-se a meia duzia: o tecto que me cobre, o lume que me aquece, o pão que como, a estôpa e a luz.

Detesto a acção. A acção mete-me medo. De dia pódo as minhas arvores, á noite sonho. Sinto Deus – toco-o. Deus é muito mais simples do que imaginas. Rodeia-me – não o sei explicar. Terra, mortos, uma poeira de mortos que se ergue em tempestades, e esta mão que me prende e sustenta e que tanta força tem…

Como em ti, ha em mim varias camadas de mortos não sei até que profundidade. Ás vezes convoco-os, outras são elles, com a voz tão sumida que mal a distingo, que desatam a falar. Preciso da noite eterna: só num silencio mais profundo ainda, conto ouvil-os a todos.

Nunca os meus me chamaram tão alto. Sentam-se a meu lado. Rodeiam-me, e pouco a pouco o circulo da minha vida restringe-se a um ponto – a cova.

Teimo: ha uma acção interior, a dos mortos, ha uma acção exterior, a da alma. A inteligencia é exterior e universal e faz-nos vibrar a todos d'uma maneira diferente. Destas duas acções resulta o conflicto tragico da vida. O homem agita-se, debate-se, declama, imaginando que constroe e se impõe – mas é impelido pela alma universal, na meia duzia de coisas essenciaes á Vida, ou obedece apenas ao impulso incessante dos mortos.

A minha alegria em velho consistiria em ter aqui meu pae para falar com elle. Não é só saudade que sinto: é uma impressão physica. Agora é que acharia encanto até ás lagrimas em termos a mesma idade, conversarmos ao pé do lume e morrermos ao mesmo tempo…

Fevereiro de 1918.

Isso que ahi fica não são memorias alinhadas. Não teem essa pretensão. São notas, conversas colhidas a esmo, dois traços sobre um acontecimento – e mais nada. Diante da fita que a meus olhos absortos se desenrolou, interessou-me a côr, um aspecto, uma linha, um quadro, uma figura, e fixei-os logo no canhenho que sempre me acompanha. Sou um mero espectador da vida, que não tenta explical-a. Não afirmo nem nego. Ha muito que fujo de julgar os homens, e, a cada hora que passa, a vida me parece ou muito complicada e misteriosa ou muito simples e profunda. Não aprendo até morrer – desaprendo até morrer. Não sei nada, não sei nada, e saio d'este mundo com a convicção de que não é a razão nem a verdade que nos guiam: só a paixão e a chimera nos levam a resoluções definitivas. O papel dos doidos é de primeira importancia neste triste planeta, embora depois os outros tentem corrigil-o e canalisal-o… Tambem entendo que é tão dificil asseverar a exactidão de um facto como julgar um homem com justiça. Todos os dias mudamos de opinião, todos os dias somos empurrados para leguas de distancia por uma coisa phrenetica, que nos leva não sei para onde. Succede sempre que, passados mezes sobre o que escrevo – eu proprio duvido e hesito. Sinto que não me pertenço… É por isso que não condemno nem explico nada, e fujo até de descer dentro de mim proprio, para não reconhecer com espanto que sou absurdo – para não ter de discriminar até que ponto creio ou não creio, e de verificar o que me pertence e o que pertence aos mortos. De resto isto de ter opiniões não é facil. Sempre que me dei a esse luxo, fui forçado a reconhecer que eram falsas ou erroneas. Sou talvez uma arvore que cresce á sua vontade, pernada para aqui, pernada para acolá, á chuva e ao vento. Não admitto poda. Perco horas com inutilidades, e passo alheado e frio diante do que os outros contemplam extasiados. Admiro, por exemplo, muito mais, perdoem-me, a vida ignorada do meu visinho, o senhor Crasto, que morreu de oitenta annos, curvado, a lavrar a terra, do que a do senhor Hintze Ribeiro, que considero inutil e destituida de toda a belleza.

Por isso, repito, muitas folhas destes canhenhos serão mal interpretadas, talvez alguns tipos falsos. Só vemos mascaras, só lidamos com phantasmas, e ninguem, por mais que queira, se livra de paixões. No que o leitor deve acreditar é na sinceridade com que na ocasião as escrevi. Poderão objectar-me: – Então com que destino publico tantas paginas desalinhadas, de que eu proprio sou o primeiro a duvidar? É que ellas ajudam a reconstituir a atmosphera d'uma epocha; são, como dizia um grande espirito, o lixo da historia. Ensinam e elucidam. Foi sempre com a legenda que se construiu a vida. Sei perfeitamente que a historia viva tanto se faz com a verdade como com a mentira – se não se faz mais com a mentira do que com a verdade. Para gerar um acontecimento é preciso crear-lhe primeiro a atmosphera propicia. «Algumas palavras sob caricaturas grosseiras dispersas pelos campos, formaram uma lenda na imaginação popular, concernente ao rei, á rainha, ao conde de Artois, a madame Lamballe, ao pacto da fome, aos vampiros que sugam o sangue do povo, etc. Dessa lenda, que elle acha util, sahiu a grande revolução» – diz um historiador. A gente nunca sabe ao certo se da infamia poderão nascer coisas bellas… A mentira, o boato, o que se diz ao ouvido, o que se deturpa, e que tanta força tem, a meada de odio, de ambição e de interesses, que não cabe na historia com H grande, tem o seu logar n'um livro como este de memorias despretenciosas. Eis uma razão. Tenho outra ainda: torno a vêr e a ouvir alguns mortos. Recordo, o que é necessario a quem cada vez mais se isola com o seu sonho e as suas arvores. Isto aquece quasi tanto os primeiros annos da minha velhice, como o lume que arde até junho na lareira d'esta casa1.

Cantareira, Foz do Douro – 1918.

ALGUMAS FIGURAS

Janeiro – 1900.

Urbano de Castro, com um olho tôrto e um chapelinho afadistado, na aparencia reservado e sardonico, sae-se encantador na intimidade. Os seus amigos adoram-no, o Camara, o Schwalbach, a antiga roda do Correio da Manhã. Trouxe para o jornalismo uma grande leitura de classicos – conhece muito a lingua – e uma forma ironica e precisa: em meia duzia de linhas incisivas deixa o adversario a sangrar. Os politicos temem-no tanto, que uma das condições impostas pelo José Luciano, quando do pacto com o Hintze, foi que o Urbano terminasse na Tarde com o Espirito de S. Ex.a.

Eis algumas maximas de Urbano de Castro:

– A paciencia é uma virtude de capote e lenço.

– Quanto mais leve é a cabeça da mulher, mais pesada é a do marido.

– Os homens publicos são como os papeis de credito – o que hoje tem uma alta cotação, amanhã não vale, e inversamente.

– Quando tiveres muitos argumentos, não empregues senão os melhores. Quando não tiveres nenhum, emprega todos.

– A paternidade é, muitas vezes, um rotulo. A garrafa é a mesma, mas o vinho é outro.

– Viuva rica, com um olho dobra, com outro repica.

– No coração mora-me Deus, no figado o diabo.

– Mortal é o contrario de imortal. Imortal é o que é sempre. Logo, mortal – é o que não é nunca.

– Theologia – a arte de fazer comprehender aos outros aquillo que nós não entendemos.

– De todas as armas, a mais dificil de manejar é o pau… de dois bicos.

– Jornalista – fabricante da opinião publica. Cada um afirma que a unica genuina é a da sua lavra.

– Se os homens de mais juizo pensarem a serio em muitos dos seus actos hão de reconhecer que não teem juizo nenhum.

– O suicida tem para mim um lado sympathico – não se julga insubstituivel.

Junho – 1903.

Deparo hoje com o Garrido, redondinho, baixo, de bigode grisalho e um ventre de proprietario. Nunca se altera nem perde a paciencia. Jovial? Não, triste e falando sempre baixinho. Tem ganho fortunas, tem dissipado fortunas com o mesmo ar inalteravel. Houve ocasiões em que todos os theatros do Rio representaram peças com o seu nome. Está cheio de dividas. E o seu ideal, o ideal d'esta existencia de acaso, com aflições de morte, ou dispersa pelo Brazil entre dois numeros de opereta – pan! pan! pan! – e dinheiro atirado a rodos, é um casebre no campo, duas arvores n'um retalho de horta viçosa e uma nora pingue que pingue no fundo do quintal. Paz. E não escrever uma linha.

Um agiota não o larga. É este velhinho paternal, de cabellos brancos, que faz recados, deita as cartas ao correio e leva coiro e cabelo. Parece inofensivo. Começou a vida por creado de servir e esfolou os patrões. Afirma que o Garrido é capaz de arrancar dinheiro a um morto:

– Este senhor Garrido dá-me cada aflição! Até me faz crear caspa!

Fevereiro – 1900.

A paixão d'este homem é não ter um livro de geito. G… só escreveu trez folhetos, e por ahi ficou o seu talento. Espremido não deu mais nada. É no entanto uma figura epigramatica e nitida de conversador e um typo curioso de bohemio lisboeta. Dormiu nas escadas dos predios, pertenceu ao grupo que o Fialho arrastava pelas ruas até ante manhã, dispersando com elle o oiro da sua esplendida phantasia. Para essa meia duzia de bohemios improvisou o grande escriptor as suas melhores satyras. Uma noite, no café, G… aludiu á sua obra, e logo do lado o Fialho acudiu:

– A tua obra, bem sei… Vinte e cinco cartas a vinte e cinco amigos pedindo vinte e cinco tostões emprestados.

G… embezerrou. Mas passados minutos aproveitou uma pausa no dialogo, para perguntar com indiferença ao Fialho, que tinha ha pouco casado rico com uma prima, que gastou a vida a esperal-o no fundo da provincia:

– O Fialho fazes favor de me dizer que horas são… no relogio do teu sogro?

Fevereiro – 1903.

Vejo sempre diante de mim o D. João da Camara, já cansado e e asmathico, olhando por cima das lunetas, e falando baixinho com receio, uma modestia no dizer, e um medo de magoar… A barba espessa, a grenha espessa e um chapelinho pôsto ao lado, completam a figura um pouco molle. É quasi um santo. Joga e jejua. Dá tudo o que tem. Exploram-no.

– O que me perdeu na vida foi não ter energia. Nunca me decido. – E mais baixo: – Isto vem talvez dos jesuitas que me educaram. Tive alguns condiscipulos que são homens notaveis e ninguem dá por elles.

Vive de noite, com uns e outros, ao acaso, nos bastidores dos theatros, ou encantado com uma ceiasinha na taberna, que descobriu no Arco da Bandeira. Se encontra o Pinturas está perdido: não se largam mais. Vae sempre para casa de manhã, e a sua vida é tão aflictiva que desejaria, como o Schwalbach, que o metessem algum tempo no Limoeiro, para não pensar no dia seguinte.

Hontem contou-me isto que é encantador:

– Não me importava nada de ter quatorze filhos em vez de sete. São muito meus amigos. O Vicente nunca sae de casa sem me dar um beijo. Eu estou sempre a dormir… Esta manhã – estava acordado, mas fingi que dormia, quando aquelle rapagão me entrou no quarto, pé ante pé, para não me acordar, e beijou-me…

E fica extatico.

Ás vezes fala-me das peças que ha-de fazer, do Sermão da Montanha e de outra com tipos de sonhadores, que se alimentam de mentira e de um passado que nunca existiu, forjado ponto por ponto. Assobia-se, por exemplo, um trecho d'opera, e logo este atalha: – Bem sei é da Dinorah!… Tempos que já lá vão! O que eu vivi com Fulano e Sicrano, e as ceias que demos juntos! – Tudo ilusão! tudo sonho! Vae-se a ver nem sequer conheceram as pessoas de quem falam… Outras vezes conta-me a sua vida:

– O que eu tenho sofrido! Tive muitos dias d'angustia… N'essa noite O Pantano cahira. Toda a gente dizia mal de mim. Nos bastidores a intriga fervia com a Lucinda á frente. Sahi do theatro a pensar no que havia de empenhar no dia seguinte. Fui para casa muito tarde. – Não haveria que pôr no prégo? – Por fim descobri uma casaca, e, ainda muito cedo, sahi com o embrulho debaixo do braço, n'um papel de jornal. O papel amolecia, a casaca rompia para fóra, e eu batia de prégo em prégo. Sete horas da manhã… Estavam todos fechados. N'um disseram-me com seccura: – Não emprestamos sobre casacas. – Fui a outro e esperei no portal que abrisse. Lembro-me como se fosse hoje. Chovia a potes. Defronte, estava uma carroça, com um cavallo branco. Era um burro pelle e osso, a cabeça metida n'uma linhagem, a comer. E eu no portal, com o embrulho já todo roto debaixo do braço, invejei aquelle cavalo!..

Já não joga. Mas antigamente ia todos os dias para casa ás cinco horas, tendo perdido tudo: – Foi n'essas noites que imaginei as minhas melhores peças… – Cuidadosamente punha sempre de lado um tostão para o americano – e quasi sempre succedia tambem que um velho fidalgo, das suas relações, lhe pedia o tostão emprestado para um calice de vinho do Porto, que se habituara a beber ahi pelas tres da madrugada. O D. João dava-lh'o, e lá ia a pé para a Junqueira, a sonhar nas peças, sob a lufada, molhado até aos ossos, de casaco de alpaca.

Junho – 1903.

Passei a noite em casa do Columbano, com o Raphael Bordalo Pinheiro. Durante o jantar falou sempre. Todo elle mexe, todo elle é caricatura e imprevisto: os olhos, o nariz, as mãos e até o bigode que se encrespa, desenham e imitam. – Era um homem com um ôlho assim… – E logo o ôlho se lhe envieza. Em rapaz o seu sonho era o theatro. Chegou a ter lições do Rosa pae. Está um pouco cansado. Queixa-se muito. Amua. – Ninguem faz caso de mim… – Estranha quando o não vão esperar á estação – e está sempre a chegar das Caldas e partir para as Caldas. Depois esquece-se e põe-se a rir. Depois torna: – Eu não jogo, mas lá em casa todas as noites jogam e pedem-me dinheiro emprestado. – Agora arremeda este e aquelle de quem fala. Conta que em Paris ouviu o rei dizer: – Isto aqui é uma terra, lá é uma piolheira. – E que o infante, quando lhe perguntaram: – Então em Londres que tal, com aquelles principes todos? – Mal, mal… eu sou um principe aza de mosca…

E acaba – é nas vesperas do jantar que lhe vão oferecer no theatro D. Maria – por dizer: – Veja o senhor que desgraça a minha! Daqui a pouco não posso fazer a caricatura de ninguem!

Efectivamente lá estavam no banquete todos os homens imponentes, os conselheiros, os politicos decorativos, a serie completa das figuras do Antonio Maria. Não faltou ninguem á chamada. E nos camarotes aplaudiram-no com delirio as lisboetas palidas de que troçou em tantas paginas de genio. Confundiram-no e arrazaram-no. Creio que foi a primeira vez que perdeu a linha.

Gostou sempre de fazer partidas. É o Schwalbach que conta:

– O imperador do Brazil logo que chegava ao theatro metia-se no camarote, descalçava as botas e calçava com regalo uns chinelos. Uma noite o Raphael, que estava então no Rio, foi pé ante pé, meteu a mão pela cortina e roubou-lhe as botas. O pobre homem não se desconcertou: sahiu em chinelos, atravessou em chinelos a multidão, saudando para a direita e para a esquerda, desceu ao pateo, e meteu-se em chinelos na carruagem.

Dezembro – 1900.

Latino Coelho, contado por Maximiliano d'Azevedo:

Tinha coisas absurdas: estava sentado a conversar e levantava-se sem mais nem menos, compunha a trumpha, e ia espreitar á janella. Era todo de enguiços. Nunca sahia de dia. E que memoria! Dizia-se-lhe qualquer banalidade, e elle, d'ahi a mezes, repetia-a palavra por palavra. Discursos que revelam o conhecimento inteiro d'uma epocha, como o de Camões, que leu na Academia, e que foi escripto das sete ás onze da manhã, e lido ao meio dia, compunha-os com extrema facilidade.

D'uma vez estava elle em casa politicando com alguns amigos reformistas, o Mariano, o Lopo Vaz e não sei quem mais. Discutia-se a revolução de onze de maio. O Latino, dando um geito á trumpha, chegou á janella e viu o carro, puxado a mulinhas, do Saldanha:

– Ahi vem o duque… E aposto que vem para cá.

Efectivamente o carro parou á porta. Era o Saldanha. O Latino foi recebel-o n'outra sala, e, depois dos cumprimentos habituaes, o Saldanha perguntou-lhe:

– Sabe a que venho? Venho saber a sua opinião sobre o dia de hontem.

– Mas não tenho opinião nenhuma…

– Não se recuse, Latino. Peço-lho como amigo.

– Então, marechal, deixe-me dizer-lhe que quem como V. Ex.a conquistou um nome glorioso com a espada, não deve servir-se da canalha para fazer o que fez. A sua situação é deploravel.

– Não me diga isso! E se eu aproveitasse a situação para firmar de vez a liberdade em Portugal e salvar o paiz?

– Se V. Ex.a quizesse…

– Mas é que quero, e para isso venho ter comsigo.

Combinaram que o Latino redigiria os decretos ampliando as liberdades publicas, tornando-as efectivas, e convocando constituintes com poderes amplissimos.

– O maior segredo… – recomendou o Latino.

N'essa noite não dormiu. Acompanhado d'um amanuense do ministerio, redigiu os decretos, que no dia seguinte o proprio Saldanha foi buscar, metendo-os dentro da pasta. Mas fosse que os amigos que lá estavam em casa tivessem desconfiado; fosse que o Saldanha désse á lingua, o que é certo é que o rei foi prevenido a tempo por alguem que lhe disse:

– O Saldanha vae trazer-lhe uns decretos. V. Magestade não os assigne ou está perdido.

Quando o Saldanha chegou ao Paço o rei abraçou-o:

– Pois o duque ajudou a conquistar-me o throno e não quer que meus filhos reinem? Nem talvez eu chegue até ao fim da vida no poder…

Saldanha que era um fraco recuou. D'ahi a dias encontrou-se com o Latino que lhe disse:

– V. Ex.a não podia deixar-me dormir a minha noite socegado?

Por trez vezes, conclue Maximiliano, o Latino me contou isto. Já tenho querido descobrir os decretos. Devem estar em casa do irmão, n'um quarto interior, onde a traça vai roendo os papeis do grande escriptor…

*

Um dia o Saraiva de Carvalho foi propor a revolução ao Latino:

– Mas ha-de ser tudo assassinado – toda a familia real.

– Isso não! – protestou logo o Latino.

*

Morreu virgem, como Newton. No dia de sua morte, estava o cadaver na cama, apenas coberto com um lençol. Alguem disse para o Maximiliano:

– Bastaria arrancar aquelle lençol para descobrirmos o segredo de toda a sua existencia.

*

Junqueiro dizia de Latino:

– Sim, é um homem admiravel, que em logar de c… tem duas castanhas piladas!

Maio – 1903.

Um jornal publica hoje esta noticia:

POVOA DE LANHOSO, 29 – Faleceu, sepultando-se hoje, o sr. dr. Joaquim da Boa Morte Alves de Moura, da freguezia de Santo Emilião, bacharel formado em philosophia e mathematica pela Universidade de Coimbra.

O povo apelidava-o de santo, pelas suas sublimes virtudes christãs. Tinha 92 annos de edade; o falecido fôra frade agostinho.

O homem, a quem estas seccas linhas se referem, era na verdade um santo. Deixou tudo para viver pobre, perto de S. Martinho do Campo, entre cavadores e a gente humilde da terra que o adorava. Vi-o muitas vezes passar na estrada, todo branco, minguado, com o burel, que nunca quiz largar, no fio, e os sapatos rotos. Era efectivamente formado em philosophia e direito, e até por vezes fôra convidado para lente da Universidade de Coimbra. Recusou sempre, recusou tudo, preferindo a convivencia com a gente do povo e com a natureza que o rodeava. Ha entre as duas povoações, S. Bento e S. Martinho, que ficam á beira da estrada da Povoa de Lanhoso, uma fonte que brota da raiz de uma arvore. Perto fica a ermida. Alli se costumava o santo homem sentar, horas e horas embebido nas suas meditações. Em que scismava? Decerto no passado longinquo…

Lembram-se d'uma narrativa de Alexandre Herculano, que se chama, creio eu, «O ultimo dia de convento?» Um frade chora ao deixar para sempre a cella caiada, onde passou a vida inteira. É só isto, afóra a ternura, as lagrimas, a prosa do grande escriptor. Assim D. Joaquim da Boa Morte contava tambem as ultimas horas de convento. Velhinho, tremulo, vivendo de esmolas, recolhido por caridade em casa de duas mulheres, que o cuidavam, nunca esqueceu o convento, a cella, o dia de separação. E, ao pé da arvore, junto ao fio limpido d'agua, lhe ouvi mais d'uma vez contar o que sofrera.

– E dos seus companheiros lembra-se? Teve mais tarde noticias?

E elle, com os olhos razos de lagrimas:

1.Estas Memorias devem formar quatro volumes: – 2.º vol. – Os bastidores da monarchia. Vida literaria. Theatro por dentro; 3.º vol. – A Republica. O comercio e a finança. Jornaes e jornalistas; 4.º vol. – A Republica e os seus homens. Vida militar.