Kitabı oku: «Pero da Covilhan: Episodio Romantico do Seculo XV», sayfa 3
III
NOVO ESCUDEIRO
Após o passamento de Henrique IV, todas as esperanças dos partidarios de D. Joanna firmavam-se no heróe de Arzilla; e as de D. Isabel no apoio de Aragão principalmente. Estava préstes a travar-se a lucta, em que devia afinal decidir-se da sorte das duas contendoras, collocadas em circumstancias mui diversas.
Isabel, ainda em vida de seu irmão, soube preparar-se a tempo; Joanna era uma creança inexperiente, filha de uma senhora sem prestigio, e sem a necessaria energia para collocar-se á frente do movimento, que se operava a favor da justa causa da princeza de Castella.
Tambem a morte veiu surprehender a infeliz viuva no inicio das hostilidades, de sorte que sua filha, orphã prematura de páe e mãe, ficou inteiramente á mercê da versatilidade caracteristica de seus parciaes. Estes, mais por acudir á vingança de seus odios particulares, e ao accrescentamento de seus patrimonios, do que por zelo do bem publico, ou amor de justiça, trataram de comprometter D. Affonso V, para lhes saciar a cobiça.
Estava o rei de Portugal em Extremoz, quando lhe chegou ás mãos o testamento, em que seu cunhado Henrique IV declarava ser a princeza D. Joanna sua filha, e a nomeava herdeira dos reinos de Castella e Leão, pedindo outrosim a D. Affonso V, que acceitasse a governança d'elles e casasse com a sobrinha.
Ouviu D. Affonso sobre o assumpto o parecer de seu filho, bem como o dos grandes e principaes do reino, a quem consultou mais talvez pelo respeito ás praxes estabelecidas, do que resolvido a seguir qualquer conselho, que contrariasse o seu reservado intento. A fim de saber não só quantos e quaes eram os magnates castelhanos legitimistas, como de certificar-se da valia d'elles, enviou a Castella Lopo de Albuquerque, seu camareiro-mór, depois conde de Penamacor.
A esse tempo chegava D. Juan de Guzman a Extremoz, onde foi recebido pelo monarcha.
Não podia ser mais a proposito esta visita, e D. Affonso folgou muito com ella, dando ao seu hospede cordialissimo agasalho, como naturalmente pediam a lhaneza e affabilidade do rei, que captivava com o seu trato grandes e pequenos.
Entregou-lhe o recem-vindo uma carta, em que o duque de Medina Sidonia o apresentava a D. Affonso, garantindo a approvação antecipada a quanto entre ambos ficasse assentado.
Terminada a leitura do escripto, começou Guzman por dizer:
– Não ignora voss'alteza, quanto é lastimoso o estado de Castella. O reino sem direcção, nem governo, combatido por todos os principios de dissolução, caminha rapidamente para uma ruina tremenda, e nas mãos de voss'alteza está o poder evita-la.
– São esses os meus desejos; – replicou D. Affonso – mas, como sabeis, a empresa não é facil, por isso careço de inteirar-me da lealdade dos que se propõem pugnar pela justiça e direitos da princeza, minha sobrinha.
– Da parte de meu irmão – tornou Guzman – venho eu prestar homenagem a voss'alteza, a quem elle jura servir em tudo, obrigando-se a auxiliar, tomar e reconhecer por seu legitimo rei e Senhor, se voss'alteza se desposar com a senhora D. Joanna, e fôr sem demora tomar posse do governo de Castella.
– O duque é digno dos meus louvores, e mais ainda pela fórma, como procede, offerecendo-me occasião de conhecer-vos, para muito vos estimar.
– Mercê a voss'alteza, meu Senhor. Em breve poderei talvez provar-vos a gratidão do meu animo, onde tambem o seu esforço mais se manifeste.
– Praz-me ouvir-vos, e ver-vos tão deliberado!
D. Juan de Guzman cortejou D. Affonso, e disse-lhe com aprimorados ademanes de cavalleiro:
– Espéro, que meu irmão me confie o comando de dois mil cavallos, que desde já põe ao serviço de voss'alteza.
– É contingente valioso esse – observou D. Affonso.
A respeito das forças, com que poderemos contar devo em breve ser definitivamente informado pelo marquez de Vilhena.
– Assim o creio. Talvez a demora dos seus esclarecimentos dependesse da resposta de meu irmão.
– Porquê?
– Á hora da minha partida para Portugal recebeu o duque uma carta de D. Diogo, na qual lhe perguntava com quantos cavallos concorria, pois desejava enviar a voss'alteza uma nota das tropas castelhanas, com que poderiamos entrar em campanha, e a Luiz XI a da totalidade do exercito.
– E o marquez communicava tambem ao duque o computo dos já inscriptos?
– Sim, meu Senhor. Anda por dezoito mil cavallos; devendo, porém, este numero elevar-se, quando constar a entrada de voss'alteza em Castella, pois muitos dos cavalleiros, que até agora não adheriram, o farão immediatamente.
D. Affonso V não poude occultar o jubilo, que lhe causou esta nova de ter já por si em Castella tão importantes forças; e com a sua habitual familiaridade affirmou a D. Juan de Guzman:
– Eu tenho muita confiança nos cavalleiros castelhanos. Não os ha mais briosos certamente.
– Mercê por elles, meu Senhor.
– Agora aqui vos deixo para serdes recebido pelo principe, que muito gostará de conversar comvosco.
É fácil de presumir, sobre que versaria principalmente a palestra, sabendo-se do interesse, que mostrava o principe D. João em seu páe acceitar o papel, que Henrique IV lhe distribuira no testamento.
D. Juan de Guzman poucos dias se demorou em Portugal; foi, porém, o tempo sufficiente para D. Affonso e seu filho conhecerem e apreciarem o pagem, que viera na comitiva. D'elle fizeram grandes gabos ao fidalgo sevilhano, o qual, mais talvez por alardear philaucias de familia, do que por enaltecer as qualidades do môço, ou por ambas as razões, referiu em resumo: que da Covilhan costumava ir a Sevilha o páe do pagem commerciar e conquistára grandes creditos. Tendo afinal estabelecido a sua residencia n'aquella cidade, onde era geralmente estimado, accedeu ao pedido, que lhe fez o duque de Medina Sidonia, de deixar-lhe educar o filho, então muito creança ainda, mas dotado já de singular viveza. Como fallecesse o mercador, pouco depois, e já viuvo, ficára o pagem inteiramente confiado ao amparo do duque. Possuia prendas muito estimaveis, poderia em breve ser um excellente cavalleiro, e chamava-se Pero da Covilhan, por causa da sua procedencia.
Esta narrativa ainda mais aguçou a D. Affonso e ao principe o appetite de terem o pagem ao seu serviço; e D. Juan de Guzman já havia reconhecido isso na maneira como lhe fallavam d'elle.
Na vespera do seu regresso a Sevilha, perguntou Guzman a Pero da Covilhan:
– Quereis ser pagem do rei de Portugal?
– Tudo quanto sou – respondeu Pero – devo ao senhor duque, por isso não tenho animo de separar-me d'elle.
– Esperava essa resposta; – volveu Guzman – mas se eu vos pedir, que fiqueis?
– Obedeço, porque de vossa mercê sómente recebo ordens e não pedidos.
– Meu bom Perico! – exclamou affectuosamente Guzman. – Muito me custa deixar-vos cá; mas o senhor D. Affonso, que, dentro em pouco será rei de Castella, mostra desejos de ser vosso amo, e eu tenho-os de o bem servir; por isso entregar-vos-ei a elle, certo de que meu irmão assentirá ao meu proposito.
No dia seguinte saiu D. Juan de Guzman para Sevilha. D. Affonso V dirigiu-se a Evora, levando no seu sequito a Pero da Covilhan, já escudeiro, servido de armas e cavallo, sem embargo de não ter completado ainda vinte annos.
O rei antes da partida despachou o seu Arauto Lisboa com cartas para Luiz XI, a quem communicava a resolução que tomára, de receber por esposa a princesa D. Joanna, e de entrar em Castella com um grande exercito, pois a isso o estava convidando a maior parte da grandeza castelhana. E sob o pretexto de recear, que na jornada sobreviesse ao seu Arauto algum accidente ou enfermidade, que o retardasse, escreveu de novo ao rei de França, insistindo agora principalmente em demonstrar os legitimos e inauferiveis direitos da rainha D. Joanna. Ponderava habilmente, que o não ser d'elles esbulhada, era conveniencia de ambos os monarchas, por quanto, se Fernando se apoderasse de Castella, viria a ser um vizinho formidavel e perigoso, tanto para Portugal, como para França.
Procurava assim conciliar com acertada politica as boas graças de Luiz XI, que mui interessado era, em que no throno de Castella estivesse um principe capaz de manter e conservar as antigas confederações e allianças d'esse reino com a França; mas contra todos em geral e sem excepção.
N'este ponto offerecia-se a difficuldade de ser Portugal alliado da Inglaterra, antiga inimiga da França, e querer Luiz XI, que Portugal ficasse comprehendido no tractado a celebrar com Castella.
De certo modo veiu o nosso monarcha a prestar-se ás vistas politicas de Luiz XI; o que determinou este a promulgar uma carta patente sobre o soccorro, que dava a D. Affonso V, nomeando sire d'Albret commandante de um exercito destinado a invadir Guipuzcoa e Biscaia.
Com quanto o duque de Bragança tivesse já dado lealmente por escripto o seu parecer – que foi archivado a seu pedido, para constar no futuro – ácerca da entrada do exercito portuguez em Castella, D. Affonso, antes d'este se pôr em marcha, conversou ainda particularmente com o duque a respeito do assumpto.
– Insistis na vossa opinião? – perguntou o monarcha ao duque de Bragança.
– Certamente, meu Senhor – respondeu o duque.
– Ora dizei-me: não deverei eu confiar nas declarações categoricas, que por Lopo de Albuquerque me enviaram os grandes de Castella?
– Mais acertado fôra, Senhor, desconfiar d'ellas. Reparai bem, que esses mesmos, que vos chamam agora para sustentar os direitos de vossa sobrinha, são os que atraiçoaram a D. Henrique, seu rei natural, depondo-o do governo do reino.
– Assim é. Mas não acreditais, que elles reconhecendo a justiça que assiste a minha sobrinha, queiram resgatar com uma nobre acção seus anteriores desatinos, sem embargo de esperarem tambem receber de mim grandes mercês?
– O que me parece é, que a obediencia por elles jurada depende unicamente da sua ambição, e vem acompanhada de mais interesse, do que de fidelidade e constancia; por isso, se a sorte das armas começar a ser desfavoravel a voss'alteza, depressa abandonarão a vossa bandeira.
– Sei, que como amigo me fallais; mas a vossa prudencia é agora descabida. Pois os nobres de Castella arriscar-se-iam por ventura a grandes perigos, offerecendo-me espontaneamente seus serviços, se duvidassem do seu e meu triumpho?!
– De tudo são elles capazes, meu Senhor, que os não ha mais voluveis. Mas superiores em poder e em numero são-lhes os mais avisados e prudentes, tendo ao seu lado o povo, que unanimemente acclamou D. Isabel por sua rainha. E uma acclamação, como esta, é vantagem muito grande no começo dos reinados, servindo até de justificar as pretensões mais duvidosas.
– Não ignoro quanto o poder de Castella excede o de Portugal; mas conto não só com os homens do meu reino, que são muito valentes, senão com outros tantos castelhanos, como de mais nações, que de boa vontade engrossarão o meu exercito.
– E a D. Isabel não virão soccorros da Secilia, tanto em dinheiro, como em armas, navios de guerra, cavallos e provisões? Aragão dar-lhos-ha decerto; e até a Italia, pois são senhores d'ella, e primos dos reis da Secilia, o rei de Napoles D. Fernando, e o duque da Calabria, seu filho.
– Sim, estão os meus adversarios bem aparentados; mas não os temo apesar d'isso, e eu tambem não nasci das pedras.3 Conto igualmente com amigos e parentes; tambem me não falta dinheiro, que é mais fiel que todos os parentes e amigos, e tenho sobretudo a Deus em meu auxilio.
– Não pretendo demover voss'alteza do proposito, em que está; permitti, porem, que vos lembre ainda a reciproca aversão de Castella e Portugal, filha de um odio inveterado entre os dois povos; e o perigo de expôr a felicidade e a paz do vosso reino á inconstancia e capricho dos grandes de Castella. Não olvide tambem voss'alteza, que, durante a vida de seu cunhado, não queria ouvir fallar do casamento de voss'alteza com sua sobrinha, e que, acceitando-o agora, obriga o mundo, sempre prompto a desacreditar as acções dos principes, a murmurar e attribuir esta guerra a algum odio reservado…
– Sem embargo d'isso, estou resolvido a entrar em Castella.
– Acato a deliberação de voss'alteza, e peço-lhe me conceda licença, para ter em alguns lugares d'esse reino póstas prestes a salvar a real pessoa de voss'alteza e a minha, se necessario for.
A vigorosa argumentação do duque de Bragança, para combater o designio de Affonso V, fez suspeitar o principe D. João, de que fôra inspirada por D. Isabel, proxima parenta do duque; suspeita essa, que dominou sempre o animo do principe, e foi mais tarde tão fatal á casa de Bragança.
D. João oppôz-se apaixonadamente áquelle parecer, por estar convencido de que o senhor de Villa Viçosa pretendia atalhar, a que D. Affonso V aproveitasse o ensejo propicio, que se lhe offerecia, de dilatar os dominios da corôa, e unificar os reinos da peninsula. Era vivamente applaudido por alguns fidalgos portuguezes, que observavam o invariavel preceito, de não soffrerem os principes contrariedade a seus gostos. Preferiam por isso ser aduladores, especie de péste endemica das côrtes, para a qual se não descobriu ainda remedio.
O duque de Bragança havia previsto, quanto ia passar-se em Castella; e os successos, como veremos, bem mostraram ser mais difficil illudir a prudencia, do que lisonjear um principe.
Falleceu o duque, antes de se pôr em marcha o nosso exercito, e seu filho primogenito D. Fernando, duque de Guimarães, que lhe succedeu em suas grandezas, tomou parte na expedição com seus irmãos, vassallos e dinheiro, sem que lhe entibiasse o zelo e a generosidade, com que servia o seu legitimo rei, consideração alguma pelo parentesco, que tão estreitamente o ligava aos principes do partido contrario.
Até aqui havia D. Affonso V reinado com muita gloria e auctoridade, sendo alvo da estima e veneração dos principes seus contemporaneos, alguns dos quaes consumiam seus patrimonios e forças em guerras civis e domesticas, em quanto elle as expendia em activar o influxo civilisador da religião catholica, e ampliar a soberania de Portugal, havendo passado tres vezes a Africa, onde seus cavalleiros mais acendraram a fama luzitana, e elle mostrou sempre a alteza de animo, de que era singularmente dotado.
A inclinação e gosto, com que se occupava na conquista da Africa pela Barberia, faziam-n'o olvidar a grandeza dos descobrimentos do Oceano, iniciados pelo infante D. Henrique seu tio. Quem sabe, porém, se elle continuaria a obra do solitario de Sagres, uma vez que não fosse impellido pela generosa idéa de reparar uma affronta, feita a sua irmã, e de soccorrer uma orphã innocente e desamparada?
E seria sómente esse o pensamento, que o levou a Castella?
Se o leitor, em alguma hora de seu desenfadamento, compulsasse os codices da preciosa collecção pombalina, que possue a Bibliotheca Nacional de Lisboa, em um d'elles encontraria a seguinte lembrança muito instructiva:
«Sendo antes destas tres escreturas atras contheudas trautado casamento delRei Dom Affonso o quinto, padre delRei nosso Senhor e sobre elle com a Rainha Dona Isabel, que na era presente reinava, foi com embaixada a Castella o Arcebispo de Lisboa Dom Jorge grandemente, que hoje he Cardeal de titolo de Sam Pedro Marceleni, e está em corte de Roma privado e amado do Papa Innocencio, que foi Cardeal malfetano, e asi outros embaixadores, e vindos outros de Castella ao dito Rei sobre o mesmo caso, esta senhora Rainha Dona Isabel se casou com elRei de Cecilia e Principe d'Araguam, filho delRei Dom João d'Araguam, que primeiro foi Rei de Navarra, o qual casamento fez por mão do Arcebispo de Tolledo dom Affonso Carillo, e do Almirante avoo do dito Rei da parte de sua mãi, e fique em memoria que o fez porque o dito Senhor Rei Dom Affonso a não quiz, querendo ella muito, e depois elle a quisera e ella como as molheres naturalmente sam vingativas o não quiz quando elle quisera, e folgou de lhe dar competidor e de o anojar, como na verdade foi, ca desta mesma causa naceo sua entrada em Castella com o titolo de sua sobrinha, filha delRei Dom Amrique per dar trabalho á Rainha Dona Isabel, e se vingar della, e como as cousas de sua entrada sobcederão fique do Coronista ao carguo.»
Com effeito Henrique IV, annos antes do seu passamento, offerecera, como vimos, a mão de D. Isabel a D. Affonso V; e desejou igualmente, que o principe D. João casasse com a princeza de Castella, D. Joanna. D. Affonso dilatou a sua resolução, e sómente quando muito instado por seu cunhado, pelo principe seu filho, e pelas diligencias do marquez de Vilhena, mandou uma embaixada pedir a infanta. Os embaixadores esperavam pela resposta na aldeia de Cientpozuelos, e afinal foram despedidos, dizendo-se-lhes, que se trataria por meios brandos de reduzir a infanta a obedecer a seu irmão. O arcebispo de Toledo cuidou immediatamente de dissuadir D. Isabel d'este enlace, pondo em relêvo a dilação descortêz de D. Affonso, aconselhou-a, a que preferisse Fernando de Aragão, e entendeu, que, para frustrar as idéas dos adversarios, devia fazer secretamente os preparativos, precipitar os tramites do negocio, e de um modo ou outro verificar o matrimonio, para que, realizado e consumado, não désse lugar ao arrependimento da princeza. E maior préssa se deu ainda, quando soube, que de Roma havia sido enviada a Bulla de Paulo II, com data de 23 de junho de 1469, concedendo a dispensa a D. Affonso e D. Isabel. Fabricou então um breve apostolico, datado de 28 de maio de 1464 e com assignatura falsa de Pio II, pois se oppunha á execução do desposorio com Fernando o impedimento da consanguinidade dos nubentes, e não havia outro meio de velar o sigillo e realizar o negocio com promptidão.
O atribiliario prelado toledano comprazia-se em forjar caballas e commetter torpezas.
IV
JORNADA INFELIZ
Resolveu D. Affonso V entrar em Castella pela villa de Arronches, onde mandou reunir o exercito. Antes da marcha, e conforme prescrevia o Regimento de Guerra, não só o rei, mas todos os fidalgos, que tinham de acompanha-lo, receberam a Sagrada Eucharistia, indo depois toda a hoste assistir a uma missa solemne, e sendo pelo celebrante benzida a bandeira real mettida na funda.
Terminados estes actos, ao alvorecer de um formoso dia de maio de 1475, D. Affonso V
......«tocado de ambição
E gloria de mandar amara e bella,
Sai cometter Fernando de Aragão,
Sobre o potente reino de Castella.»4
Lá foram ajuntar-se com elle o duque de Guimarães, o conde de Marialva, Ruy Pereira e outros fidalgos, os quaes, atalhando pela Beira, chegaram a Piedra Buena, onde acampou todo o exercito, composto de cinco mil e seiscentos cavallos, e quatorze mil infantes. Alli mandou D. Affonso V, que tomou então o supremo commando, chamar á sua tenda o condestavel, o marechal, o ouvidor da hoste e o meirinho, bem como todos os fidalgos, cavalleiros e capitães, a quem recommendou obediencia em tudo aos quatro primeiros; verificou o numero da gente que havia, e deu as necessarias providencias no tocante á ordenança, que as tropas deviam conservar durante a marcha.
Na frente saíu o adail-mór com um troço de ginetes, formando a guarda avançada; após elle o marechal, que era o aposentador e assentador do arraial; immediatamente o capitão de ginetes, seguido pelo capitão da vanguarda real, e logo a carriagem; na rectaguarda o rei, e, cobrindo-a, o condestavel, cujo cargo exercia em parte o duque de Guimarães. Formava as alas a fina flor da cavallaria portugueza, e entre a vanguarda e a rectaguarda não mediava mais de um tiro de bésta, a fim de poderem mutuamente soccorrer-se.
Ao condestavel, que era o general da milicia, pertencia marchar na vanguarda. Na presente formatura as attribuições e preeminencias d'essa dignidade estavam repartidas por D. João, marquez de Montemór, filho do duque de Bragança D. Fernando I, e por seu irmão o duque de Guimarães.
A cavallaria compunha-se de cavalleiros e escudeiros de geração nobre; de lanças, que os senhores de terras tinham obrigação de dar, acompanhando cada uma dois arqueiros, um pagem e um escudeiro; e de cavalleiros da ordenança dos povos do reino, sendo apurados conforme a contia, que devia possuir cada morador para ter cavallo e armas. Estes sómente eram reputados tropa regular e effectiva, e entravam na conta ou rezenha das praças, que constituiam os corpos chamados bésteria, denominando-se bésteiros do conto tanto os de cavallo, como os de pé.
Dividia-se a cavallaria em pesada e ligeira ou á gineta. Na primeira, o homem era arnezado, e o cavallo bardado e encapacetado. Na segunda, os cavalleiros pelejavam armados de lança e adarga, usando de estribos curtos no apparelho do cavallo.
A infanteria constava de bésteiros, espingardeiros e piqueiros de pé.
Na bésteria differençavam-se os chamados de polé, por trazerem bésta, que se armava com uma roldana d'aquelle nome; os bésteiros da camara, que eram acontiados e fornecidos pelas camaras do reino; bésteiros de garrucha, mais abastados e considerados, que os de polé, armados com bacinete de camal ou de baveira, e tendo bésta com garrucha e solhas para arremessar virotões; bésteiros de fraldilha, por levarem uma fralda de couro, que lhes servia como de escudo contra as settas do inimigo; e bésteiros do monte ou caçadores.
Notaremos que o numero das armas de arremesso se reduzia cada vez mais, á medida que as de fogo triumphavam da repugnancia, com que foi acolhida, durante muito tempo, a sua invenção, mórmente pela cavallaria, que considerava cobardes similhantes armas, com especialidade as portateis. No reinado de D. João II apparece já o cargo de anadél-mór dos espingardeiros, concedido a Payo de Freitas, cavalleiro da casa real, cabendo mais tarde ao rei D. Manoel a sua vez de extinguir em 1498 os acontiados e bésteiros, tanto de conto, como da camara, todos os cargos de officiaes móres e pequenos da bésteria, deixando unicamente os bésteiros do monte em alguns lugares da Beira Alta, Alemtejo e Algarve, com um anadél-mór, que era Pedr'alves, cavalleiro da sua casa, como consta da carta de 29 de maio de 1499.
A segunda dignidade do exercito de D. Affonso V era a de marechal, a quem pertencia, além de outras obrigações e prerogativas: repartir os alojamentos; executar e fazer cumprir as ordens, que recebia do condestavel; e julgar as causas civeis e crimes das gentes de guerra, levando um ouvidor comsigo para esse fim.
O alféres-mór levava a signa ou bandeira, a qual não estendia ou desenrolava sem especial determinação do rei, quando estivessem á vista do inimigo, e costumava ter um alferes pequeno, que o substituia. As bandeiras dos fidalgos não podiam tirar-se das fundas e estender-se, sem que o fosse a bandeira real; podiam, porém, ir sempre estendidos os balsões ou insignias. No guião do rei via-se a divisa que Affonso V tomára por sua mulher D. Isabel, e consistia em um rodizio de moinho com gottas de agua esparzida ao redor, e na legenda Jámais. Com oito ou dez pendões pequenos era balizado e divisado o lugar escolhido para acampar.
Havia um aposentador-mór, que de ante-mão preparava os quarteis das tropas, quando estas se mobilisavam. O capitão de ginetes era o general de cavallaria; o adail-mór, o capitão dos bésteiros; e o coudel-mór commandava escudeiros e homens de armas, que não pertenciam a capitania alguma, e eram repartidos em tróços de vinte por coudeis.
Desempenhavam o serviço e a guarda do rei vinte cavalleiros ou escudeiros, commandados por um guarda-mór. Eram escolhidos, e andavam armados de cotas, barretas, braçaes, lanças e espadas; e no tempo de paz assistiam no paço junto da real camara. Algumas vezes o soberano encarregava tambem da sua guarda o capitão de ginetes, sendo então de duzentos o numero de cavalleiros, que ficavam em tudo considerados como os da camara real.
Segundo prescrevia o Regimento, os soldados ou gente de guerra deviam trazer em batalha uma divisa, ou sinal d'armas de S. Jorge, larga, e tanto no peito como nas costas, para se distinguirem do inimigo. As trombetas eram os instrumentos empregados nos diversos toques ou chamadas; mas affirma Ruy de Pina, que n'esta marcha a Castella já o nosso exercito usou tambem dos atabales.
O trem de artilheria com suas bombardas e colubrinas era morósamente conduzido. Estava a cargo de um védor-mór, aprompta-lo e pô-lo em marcha.
Para este fim tinha atribuições amplas, estabelecidas em um regimento proprio, de que se lhe passou carta em 20 de abril de 1450. Requisitava ás auctoridades locaes as bestas, bois, carros e barcos, que julgassse indispensaveis á conducção do trem, sendo depois pago o aluguer; bem como os bombardeiros, ferreiros, carpinteiros e pedreiros, de que houvesse necessidade o serviço de artilheria, e aos quaes pagava conforme os seus merecimentos. Annexa ao trem ia uma brigada de gastadores, para abrir caminho.
O principe D. João acompanhou seu páe até Piedra Buena, e d'aqui regressou a Portugal na mesma occasião, em que o exercito marchou para o norte, indo fazer alto em Plasencia.
D'esta cidade mandou D. Affonso V a Luiz XI uma embaixada, composta de D. Alvaro de Ataide e do licenciado João d'Elvas, a fim de negociar o seu reconhecimento como rei de Castella, e, conforme os desejos do rei de França, renovar os antigos tractados, que existiam entre as duas monarchias. Ao mesmo tempo escreveu á cidade de Salamanca uma carta sobre os direitos de sua sobrinha aos reinos de Castella e Leão, e mandou publicar um manifesto, no qual se demonstrava a justiça bem fundada, com que eram combatidas as pretensões de Isabel e Fernando de Aragão.
Celebrou esponsaes com a princeza D. Joanna, que já o esperava acompanhada dos duques de Arévalo, marquez de Vilhena e outros magnates, e foi publica e solemnemente proclamado rei, pelo que logo começou de intitular-se rei de Castella, Leão e Portugal.
Isabel e Fernando accrescentaram igualmente aos seus titulos os de reis de Portugal; de modo que não parecia luctarem uns pela união iberica e outros contra, senão méramente para dar a presidencia d'essa união áquelle que mais afortunado fosse.
D. Affonso V ia passando os dias em ruidosas festas, como se com ellas se formasse o prestigio dos noivos, e nem por sombras suspeitava das diligencias de D. Isabel, em comprar com o ouro e prata das egrejas o favor de muitas povoações, visto serem mui versateis e caros os magnates. Em quanto o seu antagonista se divertia, conquistava ella as sympathias da classe burgueza. Percorria os seus estados. Procurava e enviava soccorros ao exercito, que seu marido commandava, para conter o progresso da invasão. Assegurava a fidelidade vacillante de Leão. Entabolava as intelligencias, que lhe fizeram recobrar a importante cidade da Zamora. Reduzia o numero de inimigos, que tinha na depravada e cupida aristocracia. Lançava finalmente mão do thezouro de Castella, confiado á guarda do célebre Andrés de Contrera, a quem mais tarde brindou com o Marquezado de Moya.
Na marcha pela provincia da Extremadura, por contemplação com o duque de Arévalo, senhor de Plasencia, commetteu D. Affonso V um erro estrategico; pois, segundo Zurita, «foi de grande remedio para a conservação do estado do rei da Secilia, e seria de grande prejuizo, se a entrada se effectuasse pela Andaluzia, direito a Sevilha». Seguindo este caminho, penetrava logo no interior do reino, e fazia-se fórte em Madrid, como lhe aconselhou o marquez de Vilhena, que se mostrou descontente por não ser attendido, e tomou este pretexto para se retirar do serviço do rei. Era de esperar, todavia, que esse magnate assim procedesse mais cedo ou mais tarde, por quanto, havendo-se declarado a maior parte de seus vassallos contra elle, e a favor de Isabel, que os corrompeu a peso de ouro, intimidou-o essa arteira tactica, e determinou-o a propalar, que já estava de accordo com D. Fernando e sua mulher.
Por grande parte da fronteira portugueza succediam-se a miude as incursões de nossos visinhos. Até o primogenito do duque de Medina Sidonia, o duque D. Henrique, môço mais audacioso do que prudente, fez uma entrada em Portugal, como se fosse em terras de mouros.
Este rebentão dos Medina Sidonia era um isabelista sedicioso. Pouco depois da jornada de seu tio a Portugal, rendeu-se ás astucias de D. Isabel, que lhe prometteu intervir pacificamente na eterna contenda com o marquez de Cadiz.
E sabe o leitor, quem levou á rainha da Secilia a noticia d'aquella jornada de D. Juan de Guzman?
– O velho mendigo, que nós vimos em Sevilha a tocar samphona. Era um espião.
Para desaffrontar-nos dos repetidos insultos, que soffriamos, mandou o principe D. João descobrir a campanha por homens praticos no paiz, escoltados de alguma cavallaria; collocar sentinellas occultas nos lugares suspeitos, para avisarem das partidas do inimigo; cortar as estradas das serras com patrulhas, a fim de embaraçarem os castelhanos, que de ordinario se emboscavam por entre os arvoredos e quebradas do terreno; e proveu finalmente de remedio a tantos males, cuidando ao mesmo tempo da conservação e defesa do reino.
Terminados os festejos em Plasencia, onde Lopo de Albuquerque, para premio de seus serviços, foi agraciado com o titulo de conde de Penamacor, saiu emfim D. Affonso V d'aquella cidade com a rainha, a quem o nosso exercito agora principalmente resguardava. Marchou por Arévalo em direcção a Toro, não sem o inimigo estar bem informado ácerca do movimento do exercito; o que certamente não convinha, a quem era chamado e levado para soccorrer.
O nosso monarcha portou-se sempre com mais bondade, do que prudencia, n'esta empresa de Castella. E dizemos simplesmente empresa, porque não podemos denominar campanha, ao que não passou de correrias mais ou menos afortunadas, de uma e outra parte, sem que se ferisse uma batalha campal, digna d'esse nome, e em que ficasse lavrada a sentença do pleito.
Quasi todos os grandes abandonaram D. Affonso V, deixando-o só no perigo, em que o metteram. Quando elle, porém, foi estabelecer os seus quarteis de inverno em Zamora, apresentou-se-lhe n'esta cidade o arcebispo de Toledo, o qual sempre inconsequente e inconstante, sendo convidado por Isabel a auxilia-la com os seus homens de armas, respondeu com a soberba peculiar do seu estado e do seu paiz: que a tinha livrado de fiar, mas havia de manda-la outra vez pegar na roca.