Antre Sintra, a mui prezada, e serra de Ribatejo que Arrábeda é chamada, perto donde o rio Tejo se mete n’água salgada, houve um pastor e pastora, que com tanto amor se amarom como males lhe causarom este bem, que nunca fora, pois foi o que não cuidarom.
II
A ela chamavam Maria e ao pastor Crisfal, ao qual, de dia em dia, o bem se tornou em mal, que ele tam mal merecia. Sendo de pouca idade, não se ver tanto sentiam, que o dia que não se viam, se viam na saudade o que ambos se queriam.
III
Alg.as horas falavam, andando o gado pascendo, e então se apascentavam os olhos, que, em se vendo, mais famintos lhe ficavam. E com quanto era Maria piquena, tinha cuidado de guardar milhor o gado o que lhe Crisfal dezia; mas, em fim, foi mal guardado;
IV
Que, depois de assi viver nesta vida e neste amor, depois de alcançado ter maior bem pera mor dor, em fim se houve de saber por Joana, outra pastora, que a Crisfal queria bem; (mas o bem que de tal vem não ser bem maior bem fora, por não ser mal a ninguém).
V
A qual, logo aquele dia que soube de seus amores, aos parentes de Maria fez certos e sabedores de tudo quanto sabia. Crisfal não era então dos bens do mundo abastado tanto como do cuidado; que, por curar da paixão, não curava do seu gado.
VI
E como em a baixeza do sangue q e pensamento é certa esta certeza — cuidar que o mericimento está só em ter riqueza — enquerirom que teria[m] e do amor não curarom; em que bem se descontarom riquezas, se faleciam, por males que sobejarom.
VII
Então, descontentes disto, levarom-na a longes terras, esconderom-na entre .as serras, onde o sol não era visto, e a Crisfal deixarom guerras. Além da dor principal, pera mor pena lhe dar, puserom-na em lugar mau para dizer seu mal, mas bom pera o chorar.
VIII
Ali os dias passava em mágoas, da alma saídas, dizer a quem longe estava, e chorava por perdidas as horas que não chorava. Em vale mui solitário e sombrio e saudoso, send’o monte temeroso, pera o choro necessário, pera a vida mui danoso,
IX
Dizer o que ele sentia, em que queira, não me atrevo, nem o chorar que fazia; mas as palavras que escrevo são as que ele dezia. Ali sobre .a ribeira de mui alta penedia, donde a água d’alto caía, dizendo desta maneira estava a noite e o dia:
X
“Os tempos mudam ventura bem o sei, pelo passar; mas, por minha gram tristura, nenhuns puderam mudar a minha desaventura. Não mudam tempos nem anos ao triste a tristeza; antes tenho por certeza que o longo uso dos danos se converte em natureza.
XI
Coitado de mim, cuitado, pois meu mal não se amansa com choro nem com cuidado! Quem diz que o chorar descansa é de ter pouco chorado; que, quando as lágrimas são por igual da causa delas, virá descanso por elas; mas como descansar hão, pois que são mais as querelas?
XII
Com tudo, olhos de quem não vive fazendo al, chorai mais que os de ninguém, que o que é para maior mal tenho já para maior bem. Lágrimas, manso e manso, prossigam em seu ofício: que não façam benefício: não servindo de descanso, servirão de sacrefício.
XIII
Minhas lágrimas cansadas, sem descanso nem folgança, a minha triste lembrança vos tem tam aviventadas como morta a esperança. Correi de toda vontade, que esta vos não faltará. Mas isto como será? Pedi-la-ei à saudade, e a saudade ma dará.
XIV
Todos os contentamentos da minha vida passarom, e em fim não me ficarom senão descontentamentos que de mim se contentarom. Destes, polo meu pecado, (inda que nunca pequei a e quem amo e amarei), nunca desacompanhado me vejo nem me verei.