Kitabı oku: «A Morgadinha dos Cannaviaes», sayfa 23
D. Victoria, tendo a final comprehendido, exclamou:
– Pois seria elle! Era d'elle que o primo ha pouco falava? Por esta não esperava eu! Ora fie-se uma pessoa n'estes santos! Uma coisa assim! Ora deixa estar que eu vou… Ahi está o pago que se tira de bem fazer! Ahi está! Veremos a cara com que elle me responde. Ora deixa…
– Eu retiro-me – disse Henrique, pegando no chapéo para sair.
– Fique, primo, fique… Até é bom que ouça…
– Perdão, minha senhora. É melhor que eu não fique. Ha razões para isso… Tudo deve passar-se entre v. ex.a e elle, e, se me é licito um conselho, bom será que não seja demasiado violenta.
Apesar dos pedidos de D. Victoria, Henrique retirou-se.
Não ia satisfeito comsigo o hospede de Alvapenha. E por quê? Não tinha feito o seu dever? Por acaso não era flagrante o delicto de Augusto e irrecusaveis as provas que o acaso contra elle ministrára?
Mas em nós todos se deve ter já passado um phenomeno moral, comparavel ao que se estava dando com Henrique. Occasiões ha em que, apesar de todos os argumentos da razão, apesar da conspiração de todas as provas a justificar-nos, persiste em nós uma voz instinctiva a avisar-nos de que commettemos um mal, formulando uma accusação.
Isto sómente não succede a quem tenha adormecidos os mais generosos escrupulos da consciencia; e este caso não se dava com Henrique.
D. Victoria ficou só na sala, meditando na maneira de confundir e castigar o criminoso. Passeiava agitada, elaborando comsigo o dialogo que se ia seguir, encarregando-se ella propria de responder por Augusto.
Não se passou muito tempo que Augusto não viesse procurar a pasta que lhe esquecêra na sala.
– Que procura? – disse D. Victoria, que, ao vêl-o, parou junto da mesa.
– Uma pasta que deixei aqui!
– Será esta? – disse D. Victoria, mostrando-a.
– É essa mesma – respondeu Augusto, indo para buscal-a.
– Como vão na leitura do manuscripto os meus pequenos, sr. Augusto? – perguntou D. Victoria, retendo a pasta.
– Muito bem, minha senhora.
– Já entenderam esta carta?
Augusto pegou na carta, que examinou, superficialmente.
– É provavel que já, minha senhora; ainda que não me lembro de haver escolhido esta entre as que v. ex.a me deu.
– Pois escolheu por certo, visto que a tinha na pasta; mas como lhe pareceu difficil de mais para os pequenos, teve o cuidado de mandal-a imprimir para elles lerem melhor. Não posso consentir que entre n'esses gastos por causa de meus filhos; por isso queira dizer a despeza que fez, para se mandar pagar.
D. Victoria tirava da raiva, que se apossára d'ella, uma ironia superior aos seus habituaes expedientes de espirito.
Augusto ergueu para ella os olhos, admirado, porque não podia comprehender aquellas singulares palavras.
– Diz v. ex.a que…
Em vez de lhe responder logo, D. Victoria pegou no periodico que Henrique deixára sobre a mesa, e mais exaltada já, accrescentou:
– Veja se saiu exacta. Compare. Talvez precise de fazer alguma emenda.
Augusto olhou para o periodico e para a carta, sem bem saber o que fazia nem o que queria dizer tudo aquillo.
– Mas, por amor de Deus, minha senhora, – disse elle, já sobresaltado – que quer dizer tudo isto?
– Quer dizer, sr. Augusto, que, quando para outra vez se lembrar de atraiçoar mais alguem que o tenha favorecido, seja mais cuidadoso em esconder as provas da sua villeza.
– Minha senhora! – exclamou Augusto, fazendo-se pallido.
– Fez mal em não nos ter prevenido antes do que tinha descoberto; nós ainda tinhamos bastante dinheiro para cobrir o lanço e ficarmos com a carta.
– Oh, meu Deus! pois suspeita-se…
E Augusto, quasi como louco, arrancou das mãos de D. Victoria a folha, e começava a lel-a; mas as nuvens que lhe passavam pelos olhos, a vertigem que lhe turbava a cabeça não o deixavam comprehender o que lia.
Emquanto Augusto assim luctava comsigo mesmo, D. Victoria dizia:
– Agora é que eu entendo o que queria dizer o primo Henrique. Sempre é um homem que sabe o que é o mundo…
Ao ouvir estas palavras, Augusto arrojou de si o periodico, e scintillou-lhe o olhar de cólera:
– Ah! Foi elle? Sim… Havia de ser. Devia suspeital-o. Era de esperar que o fizesse. É o pretexto. Minha senhora, ha aqui uma traição infame, uma traição que eu não ousaria suspeitar de ninguem! Mas juro-lhe que…
– Ha de dar-me licença de ir accommodar meus filhos – disse D. Victoria, interrompendo-o friamente. E encaminhou-se para a porta.
Augusto viu-a afastar-se, e disse-lhe em tom sereno, mas commovido:
– Vá, minha senhora, vá; mas se tem a essas creanças amor de mãe, não lhes ensine por ora a suspeitar de um homem que ellas se tinham habituado a amar e a venerar. Peço-lhe por ellas, mais do que por mim. É uma triste e prematura experiencia que lhes vae dar; vae-lhes envenenar para toda a vida o coração e talvez que contra si mesma veja voltar-se a desconfiança que lhes semeia tão cêdo.
D. Victoria saiu da sala sem lhe responder; é certo, porém, que não ousou dizer aos filhos coisa alguma em desfavor do mestre. Sob as singularidades do genio d'aquella senhora havia um fundo de bom senso, onde perfeitamente calaram as reflexões de Augusto.
É singular; ao entrar na sala immediata, ia a limpar os olhos, commovida.
Augusto permaneceu abatido e desalentado, como se n'aquelle momento tivesse visto dissiparem-se todas as esperanças da sua vida. Lagrimas inflammadas e amargas assomaram-lhe aos olhos ao vêr-se humilhado no seio de uma familia que elle respeitava, da familia d'aquella a cujos olhos mais desejaria nobilitar-se, engrandecer-se, revestir-se de todos os prestigios.
Era uma dor para enlouquecer, a sua! Ao desalento succedeu, porém, a reacção; n'aquelle caracter havia latente uma energia de homem.
– Agora, mais do que nunca, preciso de alento para não succumbir; – exclamou elle, erguendo a cabeça e vindo-lhe ás faces o rubor da exaltação – obriga-me a isso o nome honrado de meu pae, a santa memoria de minha mãe. A consciencia me dará forças para luctar com a intriga e com a calumnia, onde quer que ella esteja. Ir-lhe-hei ao encontro, a descoberto, sem disfarce, nem artificios, como luctador leal. E se ha justiça no Céo, hei de vencer! Não voltarei mais a esta casa, sem ser com a cabeça erguida; não pensarei mais em ti, Magdalena, unica, suave imagem que ainda me offerecia vida, emquanto não saiba que no teu pensamento o meu nome não é o de um infame.
Ao voltar-se para sair descobriu Magdalena, que o observava da porta.
Augusto estremeceu, mas, fazendo por dominar a turbação, curvou-se respeitosamente perante a morgadinha, e ia a retirar-se.
– Espere, – disse-lhe ella, estendendo-lhe a mão, e com profunda melancolia – não saia sem se despedir de uma amiga que, apesar de tudo, o reputou sempre innocente.
Augusto parou, como se aquellas palavras o ferissem no coração.
Magdalena, com as faces pallidas e as lagrimas nos olhos, continuava a estender-lhe a mão.
Augusto apoderou-se d'ella e cobriu-a de beijos e de lagrimas.
– Oh! obrigado, minha senhora, obrigado! – exclamou elle – precisava d'essas palavras para não enlouquecer.
– Vá, Augusto, vá. Dentro em pouco tempo todos lhe pedirão perdão. Creio-o firmemente.
– E eu não procurarei tornar a vêl-a, senão quando pudér justificar essa generosa confiança. Juro-lh'o.
As lagrimas de Magdalena não podiam mais tempo conter-se-lhe nos olhos; iam soltar-se e já ella, para as occultar, desviava o rosto, quando Christina entrou na sala.
Christina, a quem a mãe acabára de contar o acontecido, parou a ver a scena e a commoção dos dois.
Augusto não se demorou, saiu sem pronunciar uma palavra.
Magdalena deu largas á tristeza, que lhe pesava no coração, deixando correr livremente o pranto.
Christina correu a abraçal-a.
– Meu Deus! meu Deus! Lena, isto que quer dizer? – exclamou Christina.
E, approximando os labios do ouvido da prima, murmurou, com adoravel ingenuidade:
– Pois tu… amaval-o?
Por unica resposta Magdalena apertou-a apaixonadamente ao seio.
E ambas por algum tempo confundiram as suas lagrimas.
XXIII
Dominado por os mais energicos e encontrados sentimentos Augusto saiu do Mosteiro, ainda sem plano formado, sem tenção definida, mas comprehendendo vagamente a necessidade de abraçar uma resolução qualquer.
As palavras que D. Victoria inconsideradamente soltára, tinham-lhe feito conceber a suspeita de que Henrique não fôra alheio á calumnia que pesava sobre elle. D'ahi a attribuir-lhe todo o plano da intriga não ia longe, e justo é confessar que não era destituida de plausibilidade a ideia.
A especie de aversão reciproca que, desde o primeiro encontro, os dividira, a maior vehemencia da entrevista na noite de Natal, em que ficára pendente entre elles uma provocação, só á espera de pretexto, concorriam para dar vigor a esta supposição.
Por isso, depois de por muito tempo percorrer á tôa os caminhos dos campos, sem consciencia nem destino, Augusto encaminhou-se resolutamente para Alvapenha.
Estava ainda pouco senhor de si para meditar nas circumstancias que occasionaram a sua accusação. Mal poderia até dizer de que era accusado. Percebeu que se tratava de um abuso de confiança, de uma infamia, mas a impressão recebida fôra tal que não o deixára investigar os pormenores do facto. Previa em tudo isto uma traição, e, para a esclarecer, dirigiu-se á unica pessoa de quem lhe parecia provavel que ella partisse.
Quando chegou a Alvapenha já tinha alli passado a hora de jantar.
Henrique retirára-se para o quarto, D. Dorothéa e Maria de Jesus, aquella dobando, esta fiando, aproveitavam o tempo a rezar parte das suas longas orações quotidianas.
Quando Augusto bateu á porta, estavam ellas de volta com a ladainha, que D. Dorothéa dizia em latim, a seu modo, e a que Maria de Jesus respondia no mesmo idioma.
– Turris e burris, fedilisarca, espeque da justiça, Joannes asellis– dizia D. Dorothéa.
– Orá pér nós– respondia invariavelmente a criada.
A reza interrompeu-se ao entrar Augusto na sala.
Poucas situações se podem conceber mais exasperadoras de animo do que a de Augusto n'aquelle momento.
Vir com o espirito dominado por as mais violentas paixões, trazer no coração uma verdadeira tempestade affectiva, e de subito achar-se na presença de duas indoles essencialmente pacificas, de dois corações a que a paixão nunca alterou o rithmo, de duas consciencias de que nunca a dúvida, o remorso, ou o odio turbaram a celeste serenidade, é um martyrio cruel.
Augusto teve desejos de recuar, porque previu a tortura que o esperava.
– Ditosos olhos que o vêem! – disse D. Dorothéa, arredando deante de si a dobadoura, para mais á vontade contemplar o recem-chegado. – Não sei, que mal lhe fizeram n'esta casa!
– As minhas occupações… – balbuciou Augusto, sem saber o que dizia.
Maria de Jesus veio de reforço á ama.
– Isso! fale-nos nas suas occupações, nem que se não soubesse cá que todos os dias dá o seu passeio ao fim da tarde; sem falar nas quintas-feiras e domingos…
Augusto não respondeu.
– Pois olhe que todos aqui lhe querem bem – disse D. Dorothéa.
– Assim o creio, minha senhora.
– Eu fui muito amiga de sua mãe, que era uma santa creatura. Inda me parece que a estou a vêr ahi sentada, com aquella capa rôxa que trazia. A alegria d'ella, quando o Augustito veio de Lisboa! Vi-a chorar e agradecer a Deus o filho que lhe tinha dado… Todo o seu desejo era não morrer antes de o vêr padre; queria pelo menos uma vez commungar das suas mãos… Coitada!.. Não lhe concedeu isso o Senhor, que bem cêdo a chamou a si.
E continuou para Augusto:
– Quando morreu a morgada, a madrinha da Lenita, e que me contaram aqui do legado que ella deixára, eu disse logo: «Ora a alma tem ella no Céo por isto, quando por mais não seja». Porque, emfim… só quem não conheceu sua mãe é que não diria outro tanto. Verdade é que elle não chegou a aproveitar… mas… Emfim cada um sabe o que lhe convem e o que lhe não convem. E eu digo, a vida de sacerdote é muito bonita, isso é, mas… não havendo inclinação…
Augusto estava impaciente com a loquacidade da senhora de Alvapenha.
– O sr. Henrique de Souzellas está em casa? – perguntou elle, logo que pôde. – Desejava muito falar-lhe.
– Ai, sim? quer falar com elle? Eu acho que… Parece-me… Sim, elle deve estar no quarto… Ha de estar a ler. Não tem outra vida aquelle rapaz! Uma coisa assim! Por mais que eu lhe diga: «Henriquinho, olha que isso faz-te mal…» É o mesmo que nada. Só ler, ler, ler, que é uma coisa por maior. Ao principio ainda por ahi dava alguns passeios… Agora, tirando lá as suas visitas ao Mosteiro, elle para ahi fica. Lá ao Mosteiro sim, para ahi ainda elle vae.
– É que os ares são por alli muito saudaveis – disse maliciosamênte Maria de Jesus.
– Adeus! ahi vem vossê com as suas coisas. E então que tem? Pois está claro que um rapaz, como elle, dá-se com a gente nova.
– Pois sim, senhora, eu não digo…
– E as raparigas de lá já não estão bem sem elle… Ora eu confesso, quando elle está de maré, é um gôsto ouvil-o. Sempre ás vezes tem coisas que fazem rir as pedras.
– E pondo-se a contar historias? Ih! isso então é que é! Eu não sei onde elle as vae buscar! – accrescentou a criada.
– Com esta – continuou D. Dorothéa, apontando para Maria de Jesus – é ás vezes um passo. Eu ainda queria que o Augustito os ouvisse a ambos. É perdido em pouca gente. Elle põe-se lá a inventar patranhas, e ella a tôla, que sabe já como elle é, ouve tudo muito séria e fiada, e no fim então é que são os escarcéos. Emfim, uma coisa é dizer, outra é vêr!
E D. Dorothéa ria, com aquelle rir meio tossido de velha, em que ha não sei que indicios de uma existencia placida, que consola ouvir.
Augusto forçava-se a sorrir áquellas narrações das duas velhas, a que elle mal attendia.
– Eu digo – continuou D. Dorothéa – que já nos havia de fazer falta se saisse d'aqui; quando cá não está parece-me a casa morta.
– Deixe lá, senhora, que este já d'aqui não sae.
– Ora bem sabe vossê d'isso.
– Pois a senhora verá. Ora! Os passeios ao Mosteiro são muito bonitos.
Augusto ergueu-se, devéras resolvido a cortar a conversa por uma vez.
– Se me dá licença, eu vou procural-o ao quarto. Desejava falar-lhe, quanto antes, para um negocio de urgencia.
Depois de mais algumas reflexões, resignaram-se a deixal-o partir.
Augusto transpoz rapidamente os corredores, que o separavam do quarto de Henrique, e bateu á porta d'este.
– Entre quem é – disse de dentro Henrique.
Augusto entrou.
O sobrinho de D. Dorothéa estava sentado junto da janella, lendo uma folha e fumando.
Ao vêr Augusto levantou-se.
A lembrança das scenas d'aquella manhã no Mosteiro, e a expressão de physionomia de Augusto, fizeram-lhe prevêr a indole da entrevista que se ia seguir.
Evitando porém o menor indicio, que pudesse revelar a prevenção em que estava, disse naturalmente, estendendo a mão a Augusto:
– Oh! por aqui! A que devo o prazer d'esta visita?
Em vez de lhe corresponder ao cumprimento, Augusto disse-lhe friamente:
– Assim estende a mão a um miseravel? Ou é tibieza de pundonor, ou excesso de magnanimidade!
Henrique retirou logo a mão e respondeu com orgulhoso desdem:
– Nem uma coisa, nem outra; simplesmente o juizo bastante para não me arvorar em superintendente de negocios que me não dizem respeito; é um sentido especial, que se chama delicadeza.
– É um pouco sujeito a adormecer em si esse precioso sentido – replicou Augusto no mesmo tom. – Nem sempre são tão observadas pelo senhor, essas delicadas abstenções, como agora. Sei-o por experiencia.
– Não o são desde que os interessados me ordenam que intervenha, e desde que a minha intervenção pode ser util a amigos.
– Pois bem; como, por qualquer d'essas causas, se deu o facto em relação ao objecto que me traz aqui, espero que me explique a natureza da sua intervenção.
– Mas com que direito me vem o senhor pedir aqui explicações?
– Com o direito que me dá a consciencia, senhor! – respondeu energicamente Augusto, despojando-se de toda a apparencia de ironia. – Com o direito que tem todo o homem, calumniado cobarde e infamemente, como eu fui, de provocar uma accusação aberta e leal. Direito? É mais ainda do que direito, é dever. É um dever para com a moral, é um dever para com a consciencia, é um dever para com a memoria d'aquelles que nos transmittiram um nome honrado.
– Muito bem; mas, admittindo que seja esse direito ou esse dever, e não lh'o contestarei, por que singularidade acontece que seja eu a pessoa que tem de responder por tudo isso? Por acaso será este o pretexto, para depois do qual tinhamos adiado uma entrevista que suppuzemos necesssaria?
– Se houve pretexto para ella, foi da sua parte, e escolheu-o bem infame e vil. Não lh'o invejo. Da minha não é pretexto; é uma interrogação bem positiva e terminante. Todos os motivos anteriores, que podiam auctorisar-me a procural-o, cessaram ante a impreterivel exigencia d'este. Preciso de justificar-me, e por isso preciso de conhecer e de ouvir os meus accusadores.
– E imagina que sou eu quem deve auxilial'o na tarefa? Pelo menos devia escolher uma hora mais cómmoda. Sabe que na Alvapenha se janta patriarchalmente ao meio dia.
– Não julgue que com essas ironias de mau gôsto, se esquivará a responder-me. Juro-lhe que hei de obrigal-o a falar com seriedade.
– E tem meios para isso?
– Faço-lhe a justiça de acreditar que sim; creio que ainda não estará tão envilecido que receba com um sorriso cynico o insulto que lhe infligir…
– É provavel que não risse, no caso que diz; mas tambem não falava, acredite. Ha, para interrogações d'essas, respostas mais adequadas e discretas. Não tente; aconselho-o… Mas, valha-me Deus, quem lhe disse que eu não queria dar-lhe todas as explicações que souber? Sente-se, conversemos placidamente, que é a melhor maneira de vêr claro nas coisas. Não fuma?
Augusto, indignado com este frio sarcasmo, respondeu com vehemencia:
– Está-me causando tedio e compaixão ao mesmo tempo, senhor. Deve ter já uma alma bem corrompida para me receber assim. Ainda quando eu fôsse um criminoso, se no seu caracter houvesse brio, dignidade e sentimento moral, devia a minha presença ser-lhe um espectaculo demasiado abjecto, para o não deixar sorrir, ainda que de sarcasmo; mas na incerteza em que está, em que deve estar por fôrça, a só ideia de que pode calumniar um homem innocente, devia bastar para lhe fazer sentir toda a gravidade d'esta entrevista e obrigal-o a attender-me como eu exijo ser attendido. Para não comprehender isto, para não respeitar esse sagrado direito, que tem todo o accusado de se defender, é necessario estar corrompido até o fundo da alma. O scepticismo e a irreverencia para com os outros, só se dá em quem duvída de si proprio, e a si proprio se não respeita, porque se conhece. O senhor soube insinuar a calumnia no seio de uma familia, cujos amigos generosos não a receberam sem dor; e quando o calumniado lhe vem pedir explicações, porque se trata da sua unica riqueza, porque, sem familia e pobre, e ámanhã talvez na miseria, precisa de defender o unico bem que lhe resta, o senhor recebe-o com um sorriso ultrajante, para occultar talvez a cobardia, que não ousa repetir na face do accusado as insinuações que contra elle fez na ausencia. Se a consciencia lhe não exprobra esta infamia, teve razão ao dizer-me que me enganei procurando-o. A caracteres d'esses não se pede a explicação da calumnia; é a sua manifestação natural.
E terminando estas palavras, que a mais violenta paixão lhe dictára, Augusto caminhou para a porta do quarto.
Henrique deteve-o.
No espirito do leviano hospede de Alvapenha passára-se n'este curto intervallo de tempo uma profunda revolução moral.
Na voz, no gesto e na indignação de Augusto pareceu-lhe perceber vestigios de sinceridade, em que até alli não acreditára, e desde esse momento, além dos remorsos pelos desdens com que o recebêra, sentia viva a necessidade de uma reparação.
Magdalena tinha razão.
No meio de todos os seus defeitos, havia n'este rapaz um não exgotado fundo de pundonor e de moralidade.
– Não saia – disse elle para Augusto, já sem a menor sombra de ironia. – Se para isso fôr necessario pedir-lhe perdão, pedir-lh'o-hei. Que mais quer?.. Reconheço-lhe o direito que tem de ser escutado. Fique. E creia que, apesar das apparencias lhe serem desfavoraveis, eu, que em bem pouco concorri para ellas, sinto-me já movido a não lhes dar fé. É já um convencimento tão intimo como o que até agora tinha da sua culpa, confesso-o. Se na minha mão estiver esclarecer o mysterio, conte commigo. Fale.
Augusto fitava-o ainda com desconfiança.
Henrique percebeu-o e continuou:
– É justa a dúvida que lhe leio no olhar, mas, como sómente o meu procedimento futuro a pode desvanecer, peço-lhe que não deixe por isso de falar.
– Antes de mais nada: de que me accusam? – perguntou Augusto.
– Pois não sabe?! – exclamou Henrique, admirado.
– Vagamente apenas. Sei que ha uma carta extraviada, mas a conclusão em que fiquei, mal me deixou comprehender…
Henrique contou então tudo o que se passára no Mosteiro, e terminou dizendo:
– Já vê que eu não fiz mais do que faria outro qualquer em meu logar. Pesava sobre todos quantos frequentavam aquella casa uma desconfiança odiosa: esclarecer o mysterio, dissipar as suspeitas, lançar aos hombros do culpado toda a responsabilidade da traição, era o natural empenho de todos. A descoberta da carta na sua pasta accusava-o. Essa descoberta foi occasionalmente feita por D. Victoria. Eu não o conhecia bastante para que o seu passado me obrigasse a recusar o testemunho das apparencias. Os motivos de despeito, que as suas mesmas palavras por aquella occasião confirmaram, explicavam muito bem certas tentações de vingança… Nada mais natural do que suppôr…
Augusto cobriu o rosto com as mãos, murmurando:
– Accusado!.. accusado de uma infamia, e deante de…
Aqui reteve-se, como se a tempo comprehendesse a indiscreção da sua dor.
Henrique cada vez se sentia mais modificado nas suas disposições para com Augusto; por isso, quando este cortou assim em meio a expressão do pensamento, elle, que lh'o percebeu, disse-lhe, sorrindo:
– D'ella? Socegue. Tem junto d'esse tribunal, de que se receia tanto, advogados eloquentes.
Augusto levantou para Henrique um olhar interrogador.
– Diz que…
– Que não deve temer da impressão produzida, por todas as provas d'este mundo, no animo de quem, através de tudo, acreditará sempre na sua innocencia.
– Refere-se a…
– Ao seu segredo, que ha muito o não é para mim. Veja como eu estou virado! Acho-me quasi disposto a sympathisar com elle, quando ha pouco tempo ainda, sinceramente o confesso, era esta a causa occulta de tal ou qual antipathia, que sentia pelo senhor… que sentiamos um pelo outro, digamos assim.
– Mas…
– Vamos, vamos… eu sei que é discreto; nem esta era occasião para entrar em confidencias. Tratemos do que mais importa… Não sei como é que iria jurar agora a sua innocencia em toda esta desastrada intriga, e com o tempo… porque francamente lhe declaro que me é necessario algum tempo para desvanecer em mim todos os restos de despeito e de… paixão… porém, com o tempo, talvez venha a ser seu verdadeiro amigo… sem a menor prevenção.
E depois de um momento de silencio, proseguiu, mudando de tom:
– Mas, com os diabos, sendo o senhor innocente, deve ter grandes inimigos aqui na terra para o enredarem assim! É preciso esclarecer isto.
– Inimigos?!.. Não os conheço, nem vejo motivos… – disse Augusto, pensativo. Mas de repente, como se lhe acudisse um pensamento luminoso, fez um gesto que Henrique percebeu.
– Que é? – perguntou este logo. – Descobriu?.. Diga… Uma suspeita é já um rasto precioso… guia os primeiros passos… Diga… E eu o ajudarei a seguil-o.
– Lembro-me agora de uma notavel visita, que ha dias recebi. É isso…
E Augusto contou toda a entrevista que tivera com o brazileiro.
– E ainda agora se lembra d'elle? – exclamou Henrique, ao ouvil-o – e inda hesita?! O senhor é de uma boa fé!.. Temos o fio!
– Mas como pôde elle…?
– Isso depois; o mais virá a seu tempo. Agora trata-se de vigiar esse senhor… E agora me lembra; elle é um dos oradores do club do Canada… Sondarei esse antro tenebroso… Eu já devia suppor que andava aqui miseria politica… Estou a achar razão áquella adoravel Magdalena… Perdão… inda não perdi o habito de a adorar… Tambem, desde que o consiga, serei seu amigo sem restricções. Até lá, porém, não será isso motivo para de corpo e alma me não dedicar á sua causa… Eu posso ter todos os defeitos, menos o de collaborar de boamente n'uma velhacaria; e, fôsse o meu maior inimigo que eu visse victima d'ella, creia que procuraria desfazel-a.
– Agradeço-lhe essas palavras, que acredito são sinceras; não posso, porém, acceitar a intervenção que me offerece. Eu sou que devo justificar-me. Está empenhada n'isso a minha dignidade.
– Como queira. Em todo o caso espero que uma má prevenção o não constranja a não recorrer lealmente a mim, se o meu auxilio lhe puder servir. Agora peço-lhe perdão, se alguma vez o offendi de mais; mas vamos lá, o senhor tambem não está de todo isento de culpa… E quanto ao pretexto… adiado mais uma vez, não lhe parece?
Augusto não podia fechar-se áquelle caracter, que se lhe estava mostrando agora sob uma face nova e sympathica; por isso respondeu, sorrindo:
– Adiado para sempre.
E estenderam as mãos um ao outro, apertando-as já sem o menor resentimento.
Eram duas almas generosas, que acabavam de se comprehender.
– É notavel; – pensava comsigo Henrique – estou sympathisando á ultima hora com este rapaz! Mas como se combina isto com a minha paixão por Magdalena, a quem elle ama igualmente? Dar-se-ha que ella acertasse, e que não fôsse paixão o que eu senti! Isto de mulheres teem uma vista tão apurada para estas discriminações!