Kitabı oku: «A Morgadinha dos Cannaviaes», sayfa 28
XXIX
No dia seguinte, pela manhã, recebeu-se na Alvapenha noticia da chegada do conselheiro e de Angelo. A impressão profunda que a este ultimo causára a morte de Ermelinda, tinha resolvido o pae a trazel-o comsigo para a aldeia a distrahir e robustecer com ares livres do campo. D. Dorothéa apressou-se, segundo o costume, a visitar o conselheiro; Henrique acompanhou-a e de caminho pôl-a ao facto do estado do seu coração, e encarregou-a de communicar isto mesmo a D. Victoria e de fazer-lhe, em seu nome, um formal pedido da mão de Christina.
D. Dorothéa ficou a principio admirada. Ainda se não desacostumára de considerar Christina como uma creanca. Havia tão pouco tempo que usava ainda vestidos curtos!
Reflectindo porém, acabou por achar a coisa natural, vantajosa e agradavel, e felicitou o sobrinho pela boa escolha que fizera.
Henrique, com o prazer pueril de um verdadeiro namorado, não se fartou de fazer falar a tia nas qualidades de Christina, e d'esta vez as habituaes prolixidades da boa senhora não conseguiram enfastial-o. Estava devéras apaixonado!
Chegaram ao Mosteiro.
O conselheiro recebeu-os com ar de satisfação e apparente tranquillidade de espirito; mas um exame attento conseguiria descobrir-lhe no sorriso o que quer que era forçado a revelar certa preoccupação interior.
É que, desde que chegára, tinha sondado melhor o animo do publico da terra, ou dos influentes que o representavam, e reconhecera que estava muito arriscada d'esta vez a sua candidatura.
Não lhe sobrava muito tempo para trabalhos; porque d'ahi a dois dias realisavam-se as eleições. Tudo estava por fazer, emquanto que os seus adversarios havia muito que tinham tudo feito. Algumas das personagens politicas, com que contava, falharam-lhe, e até nem o visitaram. As auctoridades locaes eram-lhe manifestamente hostis, desde o administrador até o cabo de policia.
Henrique percebeu a violencia que sobre si estava fazendo o conselheiro para conversar em assumptos alheios á questão que o interessava, para sorrir e prestar attenção ao que se dizia.
De quando em quando lia ou relia uma carta, tomava um apontamento, escrevia um bilhete, retirava-se por momentos para receber algum agente eleitoral que o procurava, despachava um emissario; finalmente não podia socegar.
Foi na occasião em que elle consultava mais uma vez a lista dos recenseados d'aquelle circulo eleitoral, emquanto Henrique e Magdalena faziam por distrahir Angelo, conversando em varios assumptos, que entrou D. Victoria, a quem acabava de ser formulado por D. Dorothéa, e em nome de Henrique, o pedido da mão de Christina. D. Victoria trazia bem visivel na physionomia todo o jubilo que a nova lhe causára. Era muito amiga de Magdalena, mas desculpem-lhe esta vaidade maternal, o que mais que tudo a lisonjeára, fôra a preferencia dada por Henrique a sua filha sobre a morgadinha.
– Tenho muito que lhe ralhar, sr. Henrique – dizia ella. – Estou mesmo muito arrenegada comsigo.
– Por quê, minha senhora? – perguntou Henrique, sorrindo.
– Pois então isso é coisa que se faça? Já precisa de embaixadores para se dirigir a mim?
– Perdão, minha senhora! Era meu dever deixar completa liberdade a v. ex.a para fazer todas as reflexões que a proposta lhe suggerisse e discutil-a á vontade, e, por delicadeza, podia v. ex.a ás vezes, sendo eu mesmo quem a fizesse, cohibir-se…
– Ai, eu havia de pôr muitas dúvidas! Na verdade um rapaz de tão má nota! Ora sempre tem coisas!
– Visto isso, posso esperar?
– Da minha parte uma guerra de morte – disse D. Victoria, não resistindo a dar um abraço a Henrique, já com familiaridade de mãe; abraço que Henrique retribuiu com affecto.
O conselheiro não dava attenção á scena.
– Então, mano! – bradou-lhe D. Victoria. – Deixe lá essas politicas que temos negocios sérios em casa.
– Sim? – disse o conselheiro, dobrando os papeis que lia, e simulando um ar de interesse, que realmente estava muito longe de sentir. – Então de que se trata?
– De um negocio importante, em que é preciso que seja ouvido.
– Ah! Então é um caso de consciencia?
– E não o diga a rir, que é. Aqui o sr. Henrique de Souzellas acaba de me fazer um pedido… Isto é, a prima Dorothéa foi que m'o fez.
– Mas por ordem d'elle – acudiu esta.
– Pois sim, o que era escusado.
– Mas então que pede de nós este caro sr. Henrique?
– Nem mais nem menos do que uma das nossas pequenas.
O conselheiro relanceou um olhar para Magdalena. Já, por mais de uma vez, a hypothese do casamento da filha com Henrique lhe tinha passado pela ideia, e de modo algum lhe era antipathica. Henrique tinha um bom nome, rendimentos sufficientes, e, se quizesse, um futuro na sociedade, e o conselheiro tudo isto invejava para seus filhos.
Magdalena, que percebeu no gesto do pae a ideia que elle tivera, quiz tiral-o quanto antes da illusão e disse:
– Quem mais razão tinha para protestar era eu. Ha de fazer-me falta a amizade de Christina.
– Ah! – disse o conselheiro, com um sorriso um tanto contrafeito. – Então quer-nos roubar a nossa Christina, sr. Henrique?
– É apenas uma restituição que peço, sr. conselheiro, porque não me posso resignar a viver sem coração.
– Faz madrigal? Está então apaixonado devéras, já vejo – disse o conselheiro. – Pela minha parte folgo de o vêr assim associado á minha familia, por tão bom caminho. Mas onde está a thaumaturga, que fez o milagre de converter este celibatario emerito, que eu conheci em Lisboa a rir-se do casamento?
– Por piedade, não me recorde esses peccados deante da prima Magdalena, que é tão rigorosa nos castigos!
– Diga antes, que sou tão excessiva nas recompensas.
– Mas o mano tem razão – disse D. Victoria. – Onde está a Christe? Admira-me não a vêr aqui!
– Admirar, não me admiro eu – tornou o conselheiro. – É provavel que soubesse do que se tratava, e eclipsou-se discretamente. Porque isto foi decerto discutido por as partes interessadas, antes de subir ao nosso tribunal.
Henrique e Magdalena sorriram.
– Ora se foi! E parece-me que tu, Lena, fizeste d'esta vez de S. Gonçalo. Deus queira que te não queimes ainda no fogo ao ateares d'estes fachos.
– Eu vou buscar a Christe – disse a morgadinha, rindo das palavras do pae; e saiu da sala como para evitar que a conversa seguisse a direcção que elle lhe deu.
O conselheiro voltou n'este intervallo a consultar papeis e cartas, emquanto D. Victoria falava com Henrique, e D. Dorothéa tentava distrahir Angelo, contando-lhe várias historias de creanças, que elle mal escutava, e que ella tinha a candura de julgar alimento accommodado á intelligencia d'elle.
Passados momentos voltava Magdalena, trazendo Christina comsigo, a qual já vinha com o rubor nas faces e com os olhos no chão.
– Aqui está a accusada – disse a morgadinha ao entrar.
O conselheiro tornou a guardar os papeis e disse jovialmente para a sobrinha:
– Ora venha cá, venha cá, que temos muito que falar.
E passando-lhe a mão por baixo do queixo, para a obrigar a fital-o, continuou:
– Então assim se trama uma conspiração ás caladas? Surprehender a gente com uma noticia de tal ordem! Ainda ha pouco demittido um ministerio de bonecas, e já um golpe d'estado d'esta natureza! Sim, senhora, é energia. Nunca o esperei. Ora dê cá um beijo, emquanto não tenho quem me peça explicações por os que lhe roubar.
E o conselheiro, com perfeita galanteria e affecto, beijou-a nas faces tingidas pelo pejo e pela alegria.
Depois, voltando-se para Henrique, accrescentou, sorrindo:
– São os penultimos.
– Os penultimos? – disse D. Victoria, rindo. – Ora essa! Então para quando ficam os ultimos?
– Para quando a vir com a grinalda de noiva.
– O que eu nunca esperei é que fôsse a nossa Christe que désse o exemplo á prima. Não tens vergonha, Lena – disse D. Dorothéa para a morgadinha, em quem esta reflexão fez nascer um gesto de contrariedade, que trouxe aos labios d'Angelo o primeiro sorriso d'aquella manhã.
O conselheiro e Henrique sorriram tambem.
– Eu prometto casar-lhe a prima Magdalena, dentro em pouco, tia – disse Henrique com intenção.
– Não prometta. Esses negocios deixe-os ao meu cuidado. Bem sabe que sou teimosa e tenho a ingenuidade de acreditar que ainda ha coisas no mundo que se devem decidir pelo coração sómente.
– E Deus me livre de o não consultar. Seria abjurar os meus proprios actos.
– O sómente é que veio de mais, filha – disse o conselheiro. – Attende-se ao coração, embora. Mas só ao coração? Isso era bom se vivessemos em um mundo de corações.
A chegada de novas personagens desviou a direcção da conversa e modificou a scena.
Eram influentes politicos, que obrigaram as senhoras a retirarem-se. Henrique ficou, a pedido do conselheiro. O mestre Bento Pertunhas entrava no numero dos recemchegados. O papel que alli desempenhava o latinista era de suspeitosa natureza.
Vinha tambem a alma politica do partido do conselheiro, o Tapadas, que n'estas épocas não comia, não dormia, não respirava, por assim dizer, senão eleições, e desenvolvia uma miraculosa actividade, correndo a todos os pontos perigosos, conquistando votos, um a um, e lidando por desenredar as meadas politicas dos adversarios e enredar as suas.
– Então que novas temos da campanha, meus senhores? – perguntou o conselheiro, puxando cadeiras para os seus constituintes, e affectando um tom de confiança que não sentia.
– Más, sr. conselheiro, – respondeu o Tapadas – muito más. Vejo isto muito feio.
– Ora a coisa ainda não ha de ser tão má como diz.
– Nada, nada; não me agrada. V. ex.a descuidou-se. Tenha paciencia, mas eu bem lh'o disse. Eu sei como estas coisas são. É preciso não as desacompanhar. V. ex.a devia vir ha mais tempo.
O Pertunhas acudiu:
– Deixe lá, sr. Tapadas, o sr. conselheiro tem amigos decididos, e os serviços que fez á terra…
– Ora com o que vmc.ê vem! – replicou o Tapadas, com modo azedo. – Então não sabe como é esta gente? Então não os ouve ahi berrar já contra as estradas, quando até agora berravam por não as terem?
– Meia duzia de garotos – tornou o Pertunhas.
– Não, senhor, não é assim; não estejamos a enganar-nos. Os que não dizem mal das estradas, sabem muito bem dizer que ao ministerio as devem, e estamos na mesma. A coisa vae mal.
– Então decididamente o Seabra?.. – perguntou o conselheiro.
– Esse é o chefe de todos elles – disse um merceeiro. – Á porta da minha loja o ouvi eu estar a dizer ao cunhado do administrador que o traçado da estrada era o peor que podia ser, que se gastava alli um dinheiro louco, sem utilidade para o povo.
O conselheiro olhou para Henrique, dizendo:
– Lembra-se do que eu lhe disse na noite do Natal, a respeito d'este traçado e dos pedidos do brazileiro para elle se adoptar? Admire agora o velhaco.
Henrique sorriu, encolhendo os hombros.
– Arremedos do que se faz em terras maiores – disse elle. – Não extranho.
– E tem razão – respondeu o conselheiro.
– Mas, a final – continuou o conselheiro – o homem não tinha na freguezia grande influencia. Como é que…?
– Tem-se popularisado ultimamente um pouco mais. Deu em franquear vinho por ahi a toda a gente, e depois os padres estão bem com elle e de mal com v. ex.a.
– Mas como se lhe desenfreou tão de repente esse odio contra mim? Deixámo-nos em janeiro nas melhores disposições um para com outro…
– Pelos modos que ahi se falou de uma carta do ministro ou ao ministro… – disse o Tapadas, com maneiras de quem não dera grande importancia ao objecto a que se referia.
O conselheiro mudou logo de assumpto.
– E os padres? os padres? Que heresia disse eu, que peccado grande commetti, para me terem esse odio?
– Dizem que v. ex.a é mação – respondeu um lavrador.
– O diacho da questão do cemiterio… – acudiu o Tapadas.
– Isso acalmou já.
– Não acalmou, não senhor. O povo não está contente. É certo que lhe passou a furia do principio, depois d'aquella historia com o Cancella, mas…
– Quando me lembro de que aquella canalha se atreveu a insultar minha filha!
– É melhor não falar n'isso – aconselhou prudentemente o Tapadas. – O que lá vae, lá vae. Os homens estão meio arrependidos, e até o missionario perdeu um pouco entre o povo, porque o Herodes tem por ahi berrado que foi elle quem lhe matou a filha, e o pobre homem mette pena. Até me dizem que por causa d'isso o padre já se retirou da aldeia. O que era bom era vêr até se se falava ao Herodes; porque talvez elle possa agora ainda arranjar alguns votos – accrescentou o Tapadas, disposto a servir-se da dôr de um pae como arma eleitoral.
E continuou-se fervorosamente na edificante obra de combinar tramas politicos. Discutiram-se os diversos processos de angariar as potencias eleitoraes do circulo. Estudaram-se as ambições de cada uma; ponderaram-se as exigencias feitas por uns, os desejos adivinhados em outros, para este o emprego de um afilhado, áquelle o bom exito de uma demanda, a outro o pagamento de uma divida, ou o resgate de uma hypotheca, e a alguns até nua e descaradamente o dinheiro. N'esta empresa de subornar consciencias e sophismar a urna entreteve-se o conciliabulo, sem que nenhum dos membros d'elle sentisse remorsos por o que estava fazendo alli.
Entre os discutidos foi o sr. Joãozinho das Perdizes um dos principaes.
– Então sempre é certo que me roeu a corda esse basbaque? – perguntou, ao falar-se n'elle, o conselheiro.
– É dos mais assanhados – responderam-lhe.
– Mas quem diabo lhe virou a cabeça? Um velhaco a quem tantas vezes tenho tirado de apuros!
– Tanto lhe atordoaram os ouvidos com a historia dos cemiterios… – disse o Pertunhas.
– Deixe lá, alli andou tambem um presente que lhe fez o brazileiro. O morgado está muitas vezes com a corda na garganta – explicou malignamente o Tapadas, cujo scepticismo, robustecido no uso das demandas e da politica, não achava explicações tão plausiveis como a corrupção.
– E depois o homem tomou as dores pelo Vicente herbanario – insistiu o tendeiro.
– Ora adeus! – disse o Tapadas. – Bem me fio eu n'essas compaixões. Quem não os conhecer…
– E que tem o tôlo com os negocios do herbanario? – insistiu o conselheiro, de mau humor.
– Então? Deu-lhe para alli.
– Qual historia! Para mim é que vem com isso?! – teimava o sceptico Tapadas.
– Tambem uma coisa que buliu com elle foi aquillo no outro dia na taberna com este senhor – disse o Pertunhas, designando Henrique.
– Sinto, sr. conselheiro – disse este – se de alguma maneira concorri…
– De modo nenhum. Aquelle selvagem vae para onde o empurram. Á ultima hora é capaz de mudar de tenção. E por causa d'elle é que ficou despachado professor um pateta em vez de Augusto.
Depois de dizer estas palavras, o conselheiro accrescentou, com despeito:
– Mas até certo ponto foi bom para me desenganar a respeito do caracter de certos homens. Ha vinganças tão torpes e mesquinhas, que nenhum aggravo as justifica.
Henrique procurou defender Augusto; achou porém o conselheiro obstinado na sua crença.
Henrique alludiu ao brazileiro Seabra, como o mais plausivel promotor da intriga.
– Embora o fôsse – respondeu o conselheiro – mas que tem isso? O Seabra não veio a minha casa, não suspeitava da existencia de tal carta. Alguem houve que a leu primeiro e que lh'a foi entregar depois, e já é ser muito indulgente suppôr que fôram só cegueiras de vingança e não a sordidez da cubiça quem o moveu a essa infamia.
Henrique viu que perdia o seu tempo em defender Augusto; comtudo jurou pela innocencia d'elle.
O conselheiro ia a responder-lhe, quando o distrahiu uma altercação travada entre Pertunhas e o Tapadas.
Aquelle estava sendo fertilissimo em alvitres para vencer resistencias eleitoraes. O Tapadas, que desconfiou d'elle, disse-lhe subitamente:
– Olá, ó sr. Pertunhas, é melhor parolar menos e fazer coisa que se veja; ou deixa só as obras para o seu amigo Seabra?
D'aqui protestos energicos do Pertunhas, e a altercação virulenta, que o conselheiro teve de apaziguar.
A conferencia durou até ás horas do jantar.
XXX
Chegára o prazo e dia assignalado de se dar perante a urna a batalha eleitoral.
A azáfama politica activára-se n'estes ultimos dias consideravelmente. De parte a parte tinham-se posto em campo todos os influentes e em exercicio todas as armas. Promessas, alliciações, pressão de auctoridades, exigencias a dependentes, subornos, ameaças mais ou menos declaradas; de tudo se lançava mão.
Ás vezes até o calor das discussões degenerava em pugnas menos pacificas; os argumentos physicos, que figuram no catalogo das razões mais convincentes, haviam já sido invocados a pleitear ambas as causas, berrando-se depois, de um lado contr Ás vezes até o calor das discussões degenerava em pugnas menos pacificas; os argumentos physicos, que figuram no catalogo das razões mais convincentes, haviam já sido invocados a pleitear ambas as causas, berrando-se depois, de um lado contra a violencia e o despotismo do governo, do outro, contra os manejos sediciosos e anarchicos da opposição.
Em algumas freguezias que entravam n'este circulo eleitoral, eram os padres que arvorando a cruz e o estandarte, prégavam a cruzada contra o conselheiro e instavam com o povo para que não elegesse para representante um atheu e um pedreiro-livre; em outras eram os agentes do brazileiro e os da auctoridade, fazendo promessas aos caudilhos populares, resgatando penhores, levantando hypothecas, remindo dividas, empregando afilhados, e conquistando assim para o seu partido.
O conselheiro e os seus parciaes não desprezavam tambem nenhum d'estes mesmos meios, e grossas quantias circulavam a combater as do brazileiro Seabra.
Os periodicos do Porto e de Lisboa recebiam os echos d'esta batalha. Havia muito que em longas e diffusas correspondencias os gladiadores dos dois campos se mimoseavam com as mais descabelladas verrinas, assignando-se: o Amigo da verdade; o Epaminondas; o Vígilante; a Sentinella; o Alerta, etc., e pondo ao soalheiro as máculas da vida privada uns dos outros, e todas as bisbilhotices da terra, correspondencias que, felizmente para crédito da humanidade, por ninguem mais, além dos interessados e dos que já os conheciam, eram lidas.
O brazileiro era um dos mais activos e fecundos collaboradores d'esta secção periodistica. Os seus communicados eram estirados, compactos, obscuros e enrevezados tanto ou mais do que os seus discursos. Perdia-se em minuciosos incidentes; em labyrinthos de orações secundarias, d'onde a grammatica da principal saía frequentemente maltratada, deixando ficar por lá o sujeito, o verbo ou qualquer complemento necessario. Mas o brazileiro imaginava que o paiz inteiro aguardava com ancia os seus escriptos. Era frequente abrir uma resposta a alguma zargunchada de um seu adversario, por estas palavras: «Os leitores hão de ter notado o meu silencio, depois das calumniosas asserções…» Os leitores não tinham notado nada.
Finalmente a aldeia achava-se em plena fermentação politica.
Eu tenho a fraqueza de a não amar debaixo d'aquelle aspecto.
A vida politica tem isso comsigo. Quanto mais estreito e mais apertado é o circulo social onde se manifesta, quanto mais vizinhos e conhecidos são os que vivem d'ella, tanto mais acanhada, mexeriqueira e antipathica se torna. Se a politica do nosso paiz é já pequena, como elle, e degenera em desavença de senhoras vizinhas, que fará das terras pequenas d'este paiz, em que muito acima dos principios e dos partidos estão os mexericos e as vaidadesinhas que brotam como tortulhos á sombra das arvores do campanario?!
Que desconsoladora distancia da realidade ao ideal da vida dos povos!
Henrique de Souzellas não ficára indifferente ao movimento politico da aldeia. Pegára-se-lhe a febre eleitoral. Impedido de votar, auxiliava, porém, os parciaes do conselheiro com os avisos da sua experiencia. Um dia lembrou um meeting. O conselheiro poz-se a rir.
– Que utopia! Com que especie de eleitores imagina que está tratando? Um meeting, para quê? Não se esqueça de ir domingo á igreja e lá se desenganará por os seus olhos. O espectaculo não é muito para alegrar, porque mostra como em geral o nosso paiz está ainda pouco educado no regimen constitucional. Mas em todo o caso é instructivo.
Os manejos dos amigos do conselheiro e principalmente do infatigavel Tapadas, conseguiram ainda resultados importantes em relação ao tempo em que principiaram a operar com mais energia. Algumas freguezias havia com que já se podia contar.
A eleição, porém, estava muito arriscada ainda. O sr. Joãozinho das Perdizes devia decidir a contenda. Para onde se inclinasse o morgado, com todo o peso dos seus comparochianos, desceria o prato da balança.
Contra elle assestou, pois, o conselheiro toda a artilharia; mas sem o menor resultado. O homem evitava subtilmente encontrar-se com elle, e aos seus emissarios respondia com insolencia. O Seabra pela sua parte nunca o largava, vigiava-o como um precioso thesouro, não se descuidava de o manter nas disposições hostis contra o conselheiro. A todo o momento fazia-lhe sentir o insulto que recebera na taberna, e a necessidade que tinha, para se desaffrontar, de infligir uma lição ao conselheiro, com quem Henrique estava ligado. Depois disse-lhe que o conselheiro se gabava de ter dinheiro para comprar o morgado e toda a freguezia.
O morgado, sob estas e analogas instigações, praguejava e jurava despejar na urna ministerial o suffragio da sua freguezia.
Assim, pois, todas as probabilidades eram a favor do candidato do governo, homem desconhecido d'este povo, o qual tambem era desconhecido para elle, um empregado de secretaria, que nunca saira de Lisboa e que era o primeiro a rir-se do campanario obscuro de que se propunha a ser representante; creatura dos ministros, que o desejavam eleger a todo o custo, por terem n'elle um voto complacente e um parlamentar de boa feição.
Logo pela manhã do domingo, marcado para a grande solemnidade civil, o adro da igreja parochial apresentava uma animação fóra do costume. Grupos formados aqui e alli conferenciavam, entreolhando-se com desconfiança, ou correspondendo-se por signaes de intelligencia, conforme pertenciam á mesma ou a opposta parcialidade. Os agentes eleitoraes, os influentes dos dois campos acercavam-se d'este, apertavam a mão áquelle, segredavam com um, batiam no hombro a outro, discutiam com um terceiro, e, sempre que era possivel, distribuiam listas ao maior numero.
O brazileiro era a alma do partido governamental. O Tapadas capitaneava a phalange do conselheiro. Pertunhas falava com todos, esfregando as mãos e sorrindo. O regedor passeiava com importancia por entre os grupos, recommendava ordem e respeito ás auctoridades, e dava de olho aos cabos, seus subordinados, para que se não esquecessem de cumprir as instrucções recebidas, votando no candidato ministerial.
Approximava-se a hora, e principiavam os trabalhos para a constituição da mesa. O parocho, o administrador e o regedor foram occupar o seu logar. Ficou presidente o brazileiro, e o resto da mesa formou-se d'entre as duas parcialidades.
Emquanto se organisavam assim os trabalhos, eram discutidas no adro as probabilidades da victoria.
N'um dos grupos formados, junto da porta da igreja, por os partidarios do brazileiro, dizia-se:
– Vencemos por uma maioria de mais de duzentos votos; verão!
– Só a freguezia de Pinchões enche-nos ahi a urna.
– E estará bem seguro o morgado?
– O sr. Joãozinho!? Ora! Está de ferro e fogo contra o conselheiro.
– Pois se te parece! Depois d'aquelles mimos que lhe fizeram na taberna, e do que d'elle se tem dicto no Mosteiro!..
– Não é só por isso. Elle já estava do nosso lado, desde que soube tinham deitado abaixo a casa do herbanario, e que o pobre homem estava succumbido de todo.
– É verdade! ahi temos mais um a votar contra o conselheiro d'esta vez.
– Quem? O Vicente? Esse sim. Então não sabes que o pobre velho já se não levanta da cama?
– Ai, não?
– Andava já muito fraco e doente; mas ha tres dias, sobretudo, tem ido de peor a peor, e com uma pressa, que, segundo ouvi dizer, aquillo está por pouco tempo: nem deita a semana fóra.
– Coitado!
– Ahi vem quem ainda hoje o viu. Não é verdade, sr. Pertunhas?
– O quê, meus amigos, o quê? o que é que é verdade? o que é que dizem? – perguntou o mestre de latim, esfregando sempre as mãos.
– Não é verdade que o Vicente herbanario está a ajustar contas?
– Oh! pobre de Christo! Aquillo corta o coração! Sempre eu digo que uma crueldade assim, como a do conselheiro!
– Muitos do povo d'aqui veem votar contra o conselheiro, só por causa do mal que fez áquelle santo velho.
– E com razão.
– E então para quê? senhores, para quê? – continuava Pertunhas. – Para fazer uma estrada em que se gastam rios de dinheiro, e que a final não presta! Pois eu passei por a casa do herbanario ha pouco, quero dizer, por a casa do Augusto, que é onde vive agora o Vicente. O rapaz estava á porta. Então, sr. Augusto, disse-lhe eu, á urna! vamos á urna! Elle encolheu os hombros como quem diz: «bem me importa a mim com isso.»
– Ahi está outro, que tambem não é pelo conselheiro.
– Por que não? Pois não é elle todo do Mosteiro?
– Foi, foi – replicou o Pertunhas. – Então vmc.ê não sabe que o conselheiro, depois de lhe fazer a fineza de lhe arranjar a demissão, inda por cima o poz fóra de casa, porque pelos modos o rapaz… fez publicar umas certas cartas… que compromettiam o homem? A falar verdade, tambem não foi bonito.
– Fez elle muito bem.
– Mas, como eu dizia, puzemo-nos a falar, e eu estava-lhe dizendo que o povo o vingaria da affronta que lhe fizera o conselheiro, porque ia dar a este um cheque de que elle se havia de lembrar toda a vida; quando o Vicente, que me ouvia de dentro, chamou-me e mandou-me entrar. Foi então que eu o vi… Parecia-me outro!.. Imaginem vossês, outro tanto de magro e outro tanto de velho… Mettia dó! Poz-se a perguntar-me muitas coisas, o que havia, o que não havia, por quem estava este, por quem estava aquelle… Eu disse-lhe tudo; que o conselheiro, por mais que fizesse, já não podia vencer; que não arranjaria os votos precisos para cobrir a freguezia de Pinchões. O velho ficou admirado quando eu lhe disse que o sr. Joãozinho era dos nossos. E lá o deixei a remoer a noticia. Ao menos resta-me a consolação de lhe ter adoçado com ella os ultimos momentos.
N'este ponto da conversa viram passar por elles Henrique, que ia ter com um agente eleitoral, a suggerir-lhe uma ideia para vencer não sei que eleitor recalcitrante.
– Ahi anda este – disse um dos do grupo, seguindo-o com a vista. – Era bem feito que lhe dessem outra lição, como a da taberna do Canada.
– Ordem, ordem e prudencia! – disse o Pertunhas. – É preciso manter a liberdade da urna, senhores, e as garantias constitucionaes!
– Mas que tem este senhor com as nossas eleições?
– Quem o manda metter-se cá n'estas coisas?
– Ora é boa! Então não sabem que elle casa no Mosteiro? – disse o Pertunhas, que andava sempre informado das vidas alheias.
– Sim?!
– É verdade. Ha pouco, quando eu estava falando com o Augusto, veio a nós o José Barbeiro, que nos deu essa novidade, que lh'a dissera o Manoel da Quinta, que a ouvira á Gertrudes, criada do Mosteiro.
– Casa com a morgadinha, já se sabe?
– Pois vêdes! não que a bolada convida! A mim logo me farejou isso, quando vi chegar esse figurão cá á terra. Mas querem vossês saber uma coisa engraçada?.. Pareceu-me que o Augustito do doutor não gostou da novidade.
– Não? Então por quê?!
– Vi-o fazer-se de mil côres quando a ouviu… Pois ter-se-lhe-ha mettido na cabeça… Hein?!
– Tinha graça. Mas olha o milagre!..
– Ah! ah!.. Este mundo é muito divertido!
N'isto saiu a correr da igreja um influente politico, e principiou a olhar para todos os lados, como procurando alguem.
– Que temos nós lá, ó sr. Luiz? – perguntou-lhe o Pertunhas.
– Onde diabo estão os de Pinchões? – perguntou o interpellado.
–Inda não vieram.
– Diabos os levem! Vae-se principiar a chamada, e elles não apparecem. O morgado é homem para se esquecer a catar os cães.
– Mas vamos nós principiando, e no emtanto elles virão – disse o Pertunhas, que fôra nomeado para revezador do secretario da mesa.
– Mas a primeira freguezia que vota é justamente a d'elle. O sr. Seabra está como uma bicha!
E, dizendo isto, o homem voltou para dentro.
A mesa eleitoral, instituida no meio da igreja, com grande escandalo do beaterio, que pela voz dos padres chamava áquillo artes do demonio, ia principiar a funccionar. O conselheiro, que viera mais tarde, de proposito para não formar parte da mesa, requereu, com o relogio na mão, que se abrisse a urna aos eleitores, visto ser a hora marcada no edital.
Este requerimento, simples e justo como era, suscitou discussão.
O brazileiro allegou que, sendo os de Pinchões os primeiros a votar, em virtude do artigo 62.º do decreto eleitoral, que manda votar primeiro a freguezia mais distante, e não estando na assembléa ninguem d'aquella freguezia, convinha esperar.
O conselheiro insistiu, dizendo que a lei não mandava esperar por os eleitores, mas apenas indicava a ordem da chamada, e que portanto votassem os presentes, e que na segunda chamada, ou nas duas horas de espera, votariam os ausentes que depois viessem.
Esta questão não se resolveu de prompto. Trocados alguns alvitres, lida a lei, discutidos os artigos d'ella, consultados os recenseamentos e mappas, pedidos esclarecimentos ao regedor, ao administrador, e ao parocho, é que se approvou a proposta do conselheiro e principiou a chamada.
A freguezia de Pinchões faltou em pêso.
O brazileiro estava perturbado; olhava para a porta, olhava para a lista dos recenseados, olhava para os amigos, olhava para os adversarios, e sobretudo para o conselheiro, em cuja insistencia em principiar a votação julgou descobrir cavillação. Na urna não tinha entrado uma só lista. Pregoou-se o ultimo nome dos eleitores de Pinchões. Ninguem ainda!
Passou-se a outra freguezia.
O brazileiro já não estava em si.
Os primeiros votos recolhidos mal os pôde introduzir na urna, de trémulo e sobresaltado que estava.
O homem suppunha que lhe tinha sido roubada á ultima hora uma freguezia inteira. Não estava muito longe de acreditar que os agentes do conselheiro a haviam arrasado completamente.
A freguezia que se seguia na votação era uma das que se conservavam fieis ao conselheiro, circumstancia que augmentava a indisposição do Seabra.