Kitabı oku: «Fanny: estudo», sayfa 3
XXI
Em troca d'estas dôres, que por serem silenciosas, não eram menos crueis, nenhuma consolação eu recebia. Os meus prazeres eram extinctos. A duvida resequira as novas flôres d'elles com seu impuro sopro.
Apenas meus sentidos se atrophiavam, vinha logo a mão adunca da mysantropia cravar-se-me no hombro. A lembrança d'aquelle que, na logica da minha paixão, eu nomeava meu vival, como spectro de suplicio infindo, vinha interpor-se entre mim e ella, com uma atroz ironia, para empeçonhar nossas caricias.
Eu via os traços d'elle nas palavras, nos gestos e modos e costumes da mulher que eu adorava. N'aquelles braços que me apertavam ao coração, estavam os seus moldes. No sangue que ondeava desordenado nas arterias de Fanny, se infiltrára elle. Via-o na fronte pallida, no rosto contemplativo, nos olhos amortecidos, todo n'ella, abraçando-me, com ella, e suspirando nos seus suspiros… Como eu invejava amigos meus abandonados, que se aturdiam juntos, nas bachanaes, ao tilintar do oiro sobre os panos verdes das mesas do jogo, ás francas gargalhadas das mulheres perdidas! E todos os amantes desdenhados, que, de braços abertos e olhar internecedor, perseguem, sonhando, uma sombra altiva! E ainda todos os amantes separados! Nenhum d'elles – dizia eu lastimosamente – soffreu jámais por seu amor infertil, tanto quanto eu soffro por meu amor partilhado. Zombaria atroz da possessão! quando nos não fatigas, deshonras-nos.
XXII
Em fim contristava-me o desapreço que, a meu pesar, soffrêra o idolo em minha alma. Até ahi, era um verdadeiro culto o que eu sentia: a realisação de quanto eu sonhara puro e angelico, era ella: affizera-me a vêr em Fanny alguma coisa sacratissima, impossivel de deperecimento ou macula. Agora, via-a voluntariamente cahida do altar em que a minha piedade a erguêra para manchar seus pés no contacto da terra, e confundir-se no vulgo. Era isso o primeiro e mais cruente effeito do ciume, que principia sempre por nos incutir uma horrivel mescla de adoração, odio, furor, e desprezo.
XXIII
Comprehendi logo que estava travado para sempre, entre mim e Fanny, um duelo de morte. Todos os meus pensamentos me vinham do fundo do coração inficionados d'uma certa grosseria. Morrêra o respeito em mim. Dominavam-me ideas brutaes de lucta. Esporeava-me o desejo acerbo de castigar rudemente aquelle ente inoffensivo e graciozo que eu amava pela vida! Eu queria invilecêl-o diante de mim ainda mais do que a sua imagem se invilecêra na minha memoria.
Como pôde ella resolver-se a isto! – exclamava eu inraivecido! – Oh! que execravel zombaria é isso de pureza de mulheres! Parece que os beijos são coizas fugitivas, dos quaes nada lhe fica nos labios logo que os enchugam.
Não podia mais. Fanny entrou na partilha das torturas que até então eu guardava comigo só. Os homens não sabem soffrer longo tempo, sem descarregar covardemente o pezo de suas penas, sobre quem elles mais amam.
XXIV
Tu sabias que eu era cazada!
Foi a suprema razão que ella unicamente oppoz, com ar timido, aos meus primeiros queixumes, ainda moderados.
Eu respondi:
«Não sabias tambem tu que eu podia ter uma alma dedicada, e não podias prever, sendo minha, que tormentos me deviam cauzar o teu amor?
E depois, perguntei-lhe, sem preambulo, e violentado:
«Como viveis juntos?
Ella corou: estava offendida.
Não devemos fallar d'isso, Roger – respondeu com frieza.
Mas tão desgraçado me viu, que, por commiseração, fallou, violentando os seus mais castos sentimentos. Era redobrar-me o supplicio.
Ella, porém, não me disse tudo. Aguilhoado pela cruel necessidade de conhecer a extensão da minha desgraça, querendo saber, á custa de tudo, onde ella acabava, instei, ferindo-lhe o pudor. Eu estava enfiado e sem ar. Poz-me a mão na bocca. Ficamos silenciosos. Fanny contemplou-me longo tempo. Chorava, e ella tambem. E, por fim, tragando o calix até á derradeira gota, disse-me que ia responder-me.
Eu, chegado a este extremo, com embaraço imprevisto, com uma hesitação que obscurecia as minhas palavras e abafava na copia d'ellas a froixa luz da intenção que eu tinha; com uma turvação doloroza, que augmentava a angustia do coração animozo; illaqueando o pensamento na rede das divagações e periphrases, como se eu quizesse demorar o momento de conhecer o que eu temia saber – interroguei-a ácerca de mil coisas tendentes a velar de mim a existencia intima d'ella. Respondeu-me com simplicidade, tão embaraçada como eu, vencendo, porém, intrepidamente a vergonha deste estranho interrogatorio, com o fim de mitigar-me as dôres, e dar-me um exemplo de desgostos que póde vencer a mulher que ama, quando é desgraçado quem ella ama.
E deu-se então em mim uma successão monstruoza de caricias e golpes; mistura sem nome de balsamos e venenos; associação horrivel de martyrios e glorificações. O facto execravel, cujo desmentido era impraticavel, permanecia em toda a sua plenitude; porém, quantas consolações podiam modificar-lhe o corrosivo e humilhante, todas ellas carinhosamente me prodigalisou, espiando com sobresalto em meu rosto o effeito das palavras confusas mas comprehensiveis, que pronunciava. A uma derradeira pergunta, mais brutal que as outras, que eu de golpe lhe fiz, deu-se n'ella uma soberba explosão de revolta, que me fez cahir a seus pés, pedindo perdão. Eu devia crêl-a. Muito ávante tinha eu ido nas conjecturas do meu ciume. Fanny repartia-se; mas não pensava sem horror n'essa repartição.
Se eu a amasse menos, decerto me sentiria exaltado pela dolorosa confusão que ella acompanhava de tantas consolações, pelas lagrimas que lhe derivavam na face, quando me descobria a chaga sangrenta da sua vida; eu poderia ficar altivo e grato, ou compungido ao menos d'aquella tamanha dôr e humildade; mas, em meu espirito, havia uma só preocupação, que me alheava de mim mesmo. Fóra d'ella nada comprehendia, não pensava em nada.
Não tive pois palavra boa que lhe dissesse; satisfiz-me mostrando-lhe receios pela sua tranquilidade.
«Teu marido deve suspeitar, vendo-te mudadada; por que tu amaste-o n'outro tempo.
A esta monstruosidade, encolheu os hombros, e não enchugou as lagrimas. Roger! Roger – disse ella – é pena que tu sejas sempre creança. Ouves, e não comprehendes. Pois por ventura os nossos maridos pensam em nós? Que mulher tomaria um amante, se o marido lhe desse o que um amante lhe dá? Já não digo os cuidados, as attenções, os bons modos, a amizade; mas um pouco desse balsamo que é a essencia da nossa vida toda – um pouco d'amor!
XXV
Esta penosa discussão avantajou Fanny na minha estima, mas não me consolou. Que me importa a mim para o essencial o modo imperceptivel da intenção! O facto brutal era o mesmo. Não obstante, reprehendi-me da curiosidade do meu ciume, que até me roubava a sombra da duvida que eu, por momentos, affagava ainda.
Não podia, pois, atenuar a minha dôr o effeito das ultimas palavras de Fanny. O que eu queria era vencer o invencivel, por que era oppressiva a mesma angustia.
Eu espiava o olhar de Fanny como querendo calcular-lhe as forças, antes de aggredil-a de novo. Mas os nossos olhos tinham-se encontrado, e não podemos mais tempo resistir a nós mesmos. Fugiu de minha alma a menor idea de lucta; do coração d'ella fugiu o menor desejo de resistencia; e o abraço que nos apertou era tão forte, que, mais uma vez, gostamos um minuto de verdadeira felicidade.
XXVI
A confissão, que eu arrancara a Fanny, devia fazel-a soffrer tanto como a mim. Ella, porém, tão pouco se individualisava na offensa, que, desde esse dia, em que eu lhe patenteei as minhas dôres, todas as suas escondeu de mim, e risos me trouxe sempre, como a convidar-me graciosamente a dominar os impetos do meu carater. Pobre mulher, que vinha visitar-me por tempo horrivel, e a sua mais instante preoccupação devia ser o urdir mentiras que legitimassem a sua ausencia de duas horas em cada semana. Apesar d'isso, resistia aos aguaceiros da primavera, como ás nevadas do inverno. Nem mesmo fallava dos incommodos que precisamente devia soffrer para arrancar algumas horas de liberdade ás estreitesas da escravidão da familia. Ria gentilmente dos seus vestidos molhados, despindo a muito custo as luvas, ageitando os cabellos desanelados, e chegando ao fogo a biqueira das botinhas fumegantes. Tinha como brio de se vêr em minha casa depois de haver-se exposto a perigos tamanhos, feliz por a não terem encontrado, contente porque me via menos triste. O vencer obstaculos, a conservação do segredo, manter a estima da sociedade, o cuidar do meu repouso, tudo isso não a deixava sentir o cansaço. Não ha felicidade perfeita – dizia-me ella enternecidamente com um suspiro – ambos pagamos á tristeza o tributo do nosso amor; mas este amor é tão bom que o tributo que a tristeza recebe não me parece uzurario.
Nunca suggeria discussões; nunca foi a primeira a fallar-me dos seus deveres, que muito apreciava, e dos quaes me sacrificara a melhor parte. Com seu maravilhoso instincto de mulher, adivinhava que não podia fallar-me de seus deveres sem me irritar o orgulho, e ella respeitava o meu orgulho, como cauza de soffrimento, quando mesmo o feria. Nunca pude surprehender-lhe sombra de remorsos. Mas têl-os-ia ella?..
Quando eu estava sósinho, pensava assim: – Que cautellas terá ella tomado para dissimular este amor? que invenções! que calculos! que ardis! para se furtar a discussões sobre as suas sahidas! Quantas concessões para não ser descoberta! E tanto que arrisca! Pobre mulher! Tanto tem que perder! E eu tão pouco! Ah! que mau homem sou em atormental-a!
Tratava-me ella por creança, e, com franqueza, eu o merecia bem. Quantas coisas eu sabia do seu viver que ella me occultava, com medo de penalisar-me!
Eu não queria comprehender nunca que havia dias em que lhe era completamente impossivel sahir, e a mais banal visita era bastante a retêl-a em casa. Desconfiava então de abominaveis calculos. Affirmava que ella me mentira. Cuidava que procedia a falta de excitações e fadigas na partilha que ella devia detestar. Odiava-a.
«Fases-me piedade! dizia ella quando eu lhe deixava vêr os horrores do meu infermo espirito.
Todavia, algumas vezes, meio esquecido de minhas magoas pessoaes, para entrar ás profundezas da consciencia, dizia em mim: «Quando a tenho torturado bastante, quando ella d'aqui sae chorando, attribulada, golpeada no coração, perguntando-se se me tornará a vêr em sua vida, que fará ella na rua para disfarçar o tormento que a aperta, e mascarar o rosto com o gesto de habitual tranquilidade, para volver á mulher risonha que eu conheço? Será á custa de carinhos que ella affasta as suspeitas de um marido difficil de enganar? Ah! que lagrimas ella deve chorar com seus filhos! São tantos os esforços dolorosos que elles lhe custam!
E como sei bem que elles adivinham o segredo das lagrimas d'ella! E quão certo é que, semelhantes á mãe, tão bons, tão discretos, com suas mãosinhas lhe enchugam os prantos, sem lh'os trahirem.
Fanny soffria horrivelmente. Via-se-lhe o amarellecer da tristeza.
Eu, sem lh'o dizer, observava o circulo negro que marmoreava a circumferencia de seus olhos elanguecidos, e lhe dava ao olhar estranha expressão de piedade.
Via-lhe contrahidos os labios; e as rugas que subiam da fronte perderem-se sob os cabellos sedosos como symbolos visiveis de dolorosos pensamentos. Consternava-me este ar de desleixo que a definhava.
Diante de mim sómente ella affrouxava a rigidez do seu porte, e eu da melhor vontade lh'o perdoava: devia estar cansadissima de representar de senhora feliz!
Quem lhe dera a ella poder tudo confessar, e viver francamente commigo, sem ignominia!
«Não me deixes – dizia-me ella por vezes – Tu es-me necessario como a luz!»
E outras vezes accrescentava:
«O que me prova que eu te amo, é que eu amo tudo que é teu, o teu dôce egoismo até, até a tua colera, mesmo as tuas sublimes injustiças!
Depois, ficava subitamente callada, como se algum funebre pensamento, que não ousava confessar, a angustiasse sem desabafo.
Eu observava-a, e ella sacudia a cabeça. Depois, retorcendo os dedos, exclamava:
«Trahir! trahir sempre! Eis aqui o horror que tudo me invenena, mesmo a idea da minha felicidade. Eu sou a mais miseravel das creaturas. Deus negou-me força, e, por toda a vida, cumprirei a sentença da minha fraqueza. Tenho vivido sempre diversamente da vida que quizera ter; tenho visto sempre ao pé de mim o que eu quizera fazer. Trahir! meu Deus! como eu me detesto!
Tomava-a então nos meus braços para applacal-a; mas não achava que responder-lhe – De que quer ella fallar? – Perguntava-me eu estupidamente.
Devia de ser do facto da perfidia; mas eu conhecia-a ainda mal, e attribuindo-me as palavras fugidas á consciencia d'ella, sentia-me feliz e orgulhoso.
Isto ás vezes fazia-me chorar, e tomar corajosas resoluções – Guardarei para mim os males todos, e as consolações para ella – propunha eu comigo.
Por compaixão, pois, esquecia eu momentaneamente os meus desgostos; sacudia o cansaço do meu pesado scismar, por me deixar levar dos transportes ardentissimos da paixão. Refazia-me em meiguice e ternura e sujeição, mais affectuoso que o molosso fiel que, apoz longa auzencia, encontra o olhar do dono querido.
Vertia a fluxo nectar dulcissimo da lisonja á mulher estremecida; tornei-me frivolo, fallador, volitando por sobre vinte assumptos a um tempo, rindo desentoadamente, evitando sobre tudo proferir palavra que dissesse respeito directo ao assumpto uzual dos meus tormentos.
Mas esta missão heroica, de que dei má sahida, não a enganava. Olhava-me ella com spasmo. Escutava-me meneando a cabeça. Cuidaria ella, em consciencia, que, extincto o ciume, seria o mesmo extinguir-se o amor?
Estes accessos de heroicidade não podiam durar em mim longo tempo. Suspirando, como pessoa aliviada d'um peso grande, viu ella que eu recobrava o meu aspecto triste.
XXVII
Acabei, para grande vergonha minha, por acceitar tacitamente aquella situação. Mas, d'ahi em diante, havia entre nós alguma coisa, que não podia já mais obliterar-se: um pensamento constante e unico, que, mutuamente, nos atormentava os corações. Embora cerrassemos os labios para o não deixar sahir em palavras, no intimo o sentiamos sempre como dôr aguda que, a revezes, nos desentranhava imprecações. Um só grito bastava então para incendiar uma explosão subita, e eu, principalmente, esquecia os protestos de meu orgulho por dar livre curso á tristeza que me devorava. Não queria fallar do meu rival, e fallava d'elle sempre. Era um nome que me alanceava a memoria, e se me estorcia entre os labios, como um aspide. Proferido apenas, mil perguntas incendiarias se embaralhavam tumultuosamente em minha boca. Eu queria conhecel-o melhor ainda. Queria saber tudo o que elle era, tudo que fazia, tudo que dizia. Fanny formalisava-se então; meditava largo tempo antes de responder-me, para não se desmentir, depois dava indicios de impaciencia e carregava o sobr'olho.
Os homens são insaciaveis – dizia ella, com grande espanto meu – Não podes contentar-te com ser amado? Por que te occupas incansavel no que se passa em minha caza?
Apoz estas contendas, separavamo-nos tristes, e, passados oito dias, esperava-a furioso, exasperado pela raiva, com a boca cheia de sarcasmos, decidido a romper brutalmente com ella. Mas só de vêl-a, toda a minha cholera se exhalava como fumo, ajoelhava-me aos pés d'ella, e comprimia-a convulsivamente ao meu coração.
O que muito me espantava e irritava acremente era a docilidade com que ella, sem murmurar, a tudo se submettia. A ausencia, os obstaculos, as difficuldades, não podiam nada com ella. Vêr-me, não me vêr, era tudo o mesmo. Sempre serena aquella phisionomia. Dava-se ares de victima, e não dizia palavra.
«E se eu me matasse?» exclamei eu, um dia.
Fanny encolheu os hombros.
«E se algum incidente imprevisto nos separasse?»
– Que queres que eu te faça!.. – disse ella, e em seguida entrou a chorar.
Não podendo viver com ella, eu queria ao menos governar-lhe a vida, de modo que as suas menores inspirações lh'as désse eu. De sobra comprehendia ella a minha intenção, e mostrava-se; mas não me cedia nunca em pontos de delicadeza que ella converteu em pontos de honra. E dizia-me:
«Eu sou obrigada a soffrer a posição que me deu a sorte. Devassar-lhe os segredos, de que monta? Affliges-te se fallo, affliges-te se me callo… Tracta de esquecer as causas dessa tristeza, meu Roger.
Eu de mim esqueço-as sempre que venho aqui.
Outras vezes dizia meio risonha e meio motejadora:
«És muito egoista! Pelos modos eu não devo amar senão a ti!»
Impellido, porém, pela minha idea fixa, e sem admittir que ella anteposesse a sua vontade á minha, astuciava com ella, impetrando-lhe exclusivamente a piedade, e descia, por derradeiro, a tal degrau de baixeza, que, irritado por ser eu só a penar, empregava toda a minha influencia para exigir d'esta desgraçada mulher que seguisse uma norma de proceder deametralmente opposta á que seu marido lhe traçára. Bem sabia, eu, com isto, que a sua casa, até ahi pacifica, ia tornar-se um inferno, e isso queria eu: Durante alguns dias, por cansaço, seguiu ella docilmente os meus conselhos, e assim se viu intallada entre seus dois senhores, como o ferro amollentado pelo fogo entre a incude e o malho. Ambos nós, sem treguas, lhe flagellavamos o coração.
Espicaçada, emfim, pela tortura, e tambem por uma especie de espirito de inteiresa, disse-me:
«Roger, tu aconselhas-me muito mal, por que me obrigas a perturbar-lhe o repouso.»
Fiquei consternado, e cessei de empregar aquelle novo genero de martyrio, por que era para mim cruelissima mortificação vêl-a erigir-se em defensora de seu marido. Fanny, além disso, parecia fatigada d'essas disputas aviltantes e penosas. – Tenho medo de infastial-a – disse-me eu um dia.
XXVIII
Porém, nos mais violentos accessos de meu ciume, inraivecia-me vêr-lhe no semblante aquelle seu ar pudico, que ella conservava sempre, mesmo na mais avida vertigem do goso. Ora isto, com o correr do tempo, deu para me irritar. Tomei a peito depraval-a, buscando abafar este amor nas cinzas do fastio: Fanny ficava sempre a mesma! Estavam alli duas almas diversas a exhalarem-se-lhe dos labios e dos olhares. Uma era a de Phrynea absorvida, e séria, nutrida dos mais finos primores como das especiarias mais corrosivas da paixão, o que, alternadamente, se assignalava por um sorrir estranho e vago. A segunda era a de um anjo immaculado. Ai! aquelle olhar d'ella! Aquella expressão de spasmo que reluzia perpetuamente em seus olhos azues, tão rasgados, sob as placidas e destacadas palpebras! Ainda agora me seguem e arrebatam! Sinto-os sempre, fitos nos meus! Interrogam-me, e fascinam-me! Não poderei jámais esquecer os olhos d'ella?..
Fanny, no garbo de suas attitudes, no meneio da cabeça, no andar, tinha algumas vezes um não sei que que denunciava appetites de um sensualismo profundo e vehemente, e mesmo alguma coisa dessa monstruosa concessão duplicada, que tanto a meus olhos a invilecia. De subito, com uma palavra só, transfigurava-se, e julgal-a-ieis uma outra mulher.
«Que mulher és tu, pois?» lhe disse eu, em seguida a uma discussão em que me havia manifestado sentimentos os mais contraditorios. Levantou ella a face, e encarou-me com os seus olhos tranquillos e lympidos; porém, commoção interna lhe dilatava as azas nazaes e avermelhava de leve as faces.
– Não posso viver sem amar – respondeu ella pausadamente – Não posso viver sem ser amada. Minhas qualidades boas, e meus defeitos, são cousas secundarias: todas as mulheres tem d'umas, e d'outros. Mas o que é exclusivo meu, é a minha paixão. – E com leal exaltação, ajuntou: «comprehendes-me?»
XXIX
Chegou o estio, ao cabo d'estas muitas e penosas discussões. Todos os annos, Fanny ia passar aquella estação ao campo, nos arrabaldes de Pariz. Um dia, veio ella afflicta annunciar-me a triste nova da partida; eu, porém, recusei explicitamente conformar-me com a ausencia «Escrever-nos-hemos» disse ella. Semelhante resignação exasperou-me. Não sei que lhe respondi, esqueci-o; lembra-me só que combati aquella resolução com energia de desesperado. Eu chorava tanto, estava tão alvoroçado, tão infeliz, que ella houve piedade de mim. Apertando-me nos braços, mil vezes me repetiu que consentia em adoptar os expedientes que eu lhe indicasse. – Sê prudente! sobre tudo, não te arrisques – disse-me ella, entre dois beijos, retirando.
Passados oito dias, encaminhei-me na direcção de Chaville. Á beira da estrada real de Versaille é que estava a casa d'ella.
Quando ouvi dar a meia noite nos relogios longinquos, escalei o muro, e fui ter a um pavilhão, cujo local me havia indicado Fanny. A vinte passos, d'um ponto em que me occultavam as copas do arvoredo, vi um vulto pardacento, immovel. Era Fanny. Corri para ella. Levou-me comsigo. Fechei a porta. Estávamos ás escuras – Não falles – segredou-me ella, com extraordinaria agitação – elle está desconfiado ha tres dias; anda triste; deve ter suspeitas.
Aqui está uma variante nova na amargura da minha vida, com a qual eu não contava. – Ouve – murmurou ella, com a voz tremula de mêdo – é preciso que elle não desconfie; não quero que elle o saiba; não quero. Tu és homem, a ti pertence dirigir o meu comportamento. Falla; e, se é de sacrificios que vaes fallar-me não temas, que eu sou forte. – E sentindo-se desfallecer, vendo-me perdido de dôr, disse-me com amargura: – Eu tinha esquecido que tu não passas d'uma creança. Perdoa-me por haver-te fallado como a um homem.
«Fanny, – disse-lhe eu solemnemente aconchegando-a de mim para fazel-a sentar ao meu lado – serei talvez creança, mas tenho coragem de homem. Surprehendido imprevistamente por esta cruel noticia, não sei que inventar; mas, já que és forte, decide tu o que devemos fazer: submetto-me. É preciso abandonar-te? Dize-o. Pela memoria de tua mãe, se assim o queres, não me verás jámais, ainda que me procures por toda a terra.
Não quero que morras – disse ella com voz soturna, erguendo-se, e batendo no chão com o pé. Depois tomou-me a cabeça entre ambas as mãos e abraçou-me convulsivamente sobre os labios. Mas o ruido de passos que rangiam na areia impoz-nos silencio. Abraçados pela cintura, curvamo-nos sobre a vidraça para vêr quem assim passeava no jardim a hora tal.
Era elle! Reconheci-o na largura dos hombros, nos cabellos arrussados que volteavam ao vento sobre a cabeça nua. Caminhou parallelamente ao pavilhão, pela rua larga e descoberta, alagada dos fulgores da lua que cahiam sobre ella a prumo. Marchava lentamente, com as mãos enlaçadas no dorso, cabisbaixo, as feições alteradas, como homem que leva de poz si pensamento oppressivo. Passou ante nós, e imbrenhou-se no cerrado arvoredo.
Tive de sustentar em meus braços a desgraçada mulher, por que os joelhos não podiam sustel-a. «Socega, minha querida, disse-lhe eu – teu marido nada suspeita. Está preoccupado; mas não se vê alli a inquietação febril dos ciumosos. Eu sei bem o que é, de sobra me tenho observado a mim.
– Crês? exclamou ella n'um impeto de esperança que a vibrava.
«Tenho a certeza. Entretanto, separemo-nos. Passados oito dias, tornarei. D'aqui até lá observa-o bem. Não sei o que é que o inquieta; mas eu a quem tu hoje chamas creança, digo-te isto: teu marido não tem ciumes.