Kitabı oku: «Contos»
AS MÃES
O sol despedia os raios mais vividos. O suão aquecido nas cinzas das queimadas soprava abrazador. Via-se tudo em volta como atravez de vidros amarellos.
O caminho era ruim, apenas indicado por velhos muros afogados em silvas e cheios de musgo como ferrugem, que lindavam as tapadas. No meio da estrada erguiam-se de espaço a espaço enormes panedos, que ainda conservavam os furos das brocas, mostrando um trabalho abandonado de um dia para outro, falta de dinheiro, alguma eleição perdida. Massas enormes de granito esbranquiçado erguiam-se de uma e outra banda, umas por cima das outras, acastelladas. Por entre as pedras cresciam as giestas sequinhosas, cujo fructo crepitava abrindo-se aos beijos do sol e deixava caír a semente na terra. Nos pontos mais elevados resahiam do tremulo azul celeste uns carvalhos rachiticos e tortos, que não davam sombra.
Elle caminhava alegre, estrada fóra, parando de vez em quando para escolher nos cachos das amoras, que relusiam ao sol, as menos maduras, avermelhadas, rijas, cujo acido lhe mitigava a sede.
Ainda vinha com o seu bigode, com as calças de linho e as botas pretas de soldado, em que brilhavam como lentejoulas os pedacinhos de mica do granito desfeito.
O gosto com que elle diria lá na terra ao Antonio: – «Deite-me isto abaixo, ó mestre, e talhe-me n'esta cara uma suissa como a que eu tinha d'antes e a tinha meu pae, que Deus haja.»
E passava a unha pela cara, satisfeito, marcando a suissa que havia de usar.
O gosto com que atiraria para o lado aquellas botas engraxadas, a mortificarem-lhe os pés e que, apesar do bom tamanho, lhe pareciam botas de senhora, boas, quando muito, para o domingo, quando fosse á missa. As botas altas, brancas, de bom salto de prateleira muito commodo e tão bom para andar, lá tinham ficado penduradas n'um prego, defronte da lareira, muito bem ensebadas e recommendadas. Tinham umas tombas, é verdade, mas eram botas amigas. Como havia de calçal-as, contente, para sair com ellas para o trabalho, quando vem rompendo a aurora, quando o céu é cheio de luz e ainda não ha sombras na terra!
Ia morto por voltar aos habitos velhos, á santa vida do campo.
Lembrava-se, cheio de saudades, das boas historias, que se contam pela estrada fóra, na volta do trabalho, caminhando lentamente atraz dos burros, que, de orelhas muito cahidas, projectam na alvura da poeira sombras de gigantes.
O que hão de rir os ganhões com as historias novas que elle traz do quartel!
Quasi ao chegar á villa, ao pé da volta da estrada, um nadinha para baixo, á direita, é a fonte. Quando ali se chega, grita-se chó! aos burros, pára-se um bocado a conversar e contende-se com as raparigas que passam de bilhas á cabeça, bem aprumadas, de ancas fortes e caras sadias, com uns fios de dentes, que o pão de centeio torna muito brancos, como folhinhas de malmequeres, e que ellas gostam muito de mostrar, abrindo em grandes risos, por qualquer dichote amavel, as boccas muito vermelhas, mais frescas e perfumadas que uma ginja.
Aquelle bocado de tempo era sempre o melhor do dia.
E, ao pensar na fonte, alargou o passo.
É coisa aborrecida estar de sentinella duas horas, uma noite de inverno. E a agua pela valeta a correr, barrenta, cheia de espuma, precipitando-se na sargeta, com uma bulha muito triste, muito monotona, tão differente do estrepito das ribeiras quebrando as aguas nos rochedos das voltas!
Elle pensava na fonte e nos taes labios vermelhos. E o tempo assim lá passava mais depressa.
Um outro, ás vezes, tão triste como elle talvez, gritava-lhe de uma guarita perdida na treva:
– Sentinella, álérta!
E elle respondia, engrossando a voz:
– Álérta está!.. Sentinella álérta!
E, emquanto os gritos repetidos se iam perdendo ao longe, recahia no mesmo pensar constante, a fonte, sempre a fonte, e triste, sempre triste.
Mas afinal estava livre! N'aquella mesma tarde, á hora em que as chaminés começam fumegando e debaixo das parreiras, emquanto a ceia aquece, se toca alegremente nas businas, estaria batendo á porta de casa, disfarçando a voz, fingindo ser um pobresinho a pedir esmola e agasalho.
E ria feliz com aquella idéa divertida.
A alegria da mãe! Era capaz de morrer de gosto a pobre velha, coitadinha!
Sabe Deus, quantas vezes, quando elle pelas madrugadas frias tremia enregelado na guarita, não molhava ella com lagrimas o travesseiro, a chorar a sua pobreza.
Recebera duas cartas d'ella muito ternas, cheias de noticias e de conselhos. Pedia a todos que lh'as lessem e por fim sabias-as de cór; trazia-as sempre comsigo entre a fardeta e a camisa, mettidas n'um saquinho de coiro, para se não estragarem.
E, ao lembrar-se de que afinal o tempo, de que tantas saudades tivera, ia novamente voltar, enchia-se-lhe a alma de alegria, e caminhava ligeiro, cantando em voz de falsete uma cantiga do S. João.
***
Ainda lhe faltavam tres leguas para chegar a casa.
Aquelles sitios já eram d'elle muito conhecidos. Lembrava-se perfeitamente de que, por detraz d'aquellas pedras, que lhe ficavam á esquerda, crescia basta a herva, regada pela agua de uma fontesita, onde, por mais de uma vez, de madrugada, quando ali andava guardando as cabras da viuva, viera armar aos passarinhos.
Não havia sitio melhor para descançar um bocado.
No fardel trazia um pedaço de pão e o conducto, meia duzia de azeitonas e um queijinho pequeno.
É comer! E, se nos der o somno, dorme-se uma sésta até que abrande o calor!
Saiu da estrada galgando a parede e encaminhou-se para a fonte, pondo em fuga as cotovias, muito mansas, muito alegres, que saltitavam nas pedras, emquanto muito alto, parecendo pontos negros no azul do ceu, umas poucas de aguias descreviam curvas enormes, com a mira n'um burro morto, que apodrecia entre os rochedos.
***
Quando accordou, já o sol descera muito; o vento tinha virado para o norte e algum tanto abrandára o calor.
Do outro lado do cabeço ouvia-se um som de chocalhinhos. Eram as cabras da viuva, que andavam pastando. No alto, d'onde a propriedade se descobria quasi toda, um pastorito de dez annos, deitado sobre as pedras, com o chapéo de abas largas, todo roto, a servir-lhe de travesseiro, fazia dançar um bogalho na ponta esmagada de uma palha de centeio, por onde soprava.
Sensibilisou-o tal recordação da infancia, que ali passára como aquelle pequeno.
– Adeus, ó cachopinho! gritou.
– Saude! respondeu o pequeno.
Teria dormido duas horas e achava-se completamente descançado. Ergueu-se, espreguiçou-se, coçou desesperadamente a cabeça, bateu com os pés no chão para desentorpecer as pernas e porfim, agarrando no chapéo e no bordão, poz-se alegremente a caminho.
Como por ali não havia vinhas, e isto era no mez das vindimas, não encontrára ninguem por aquelles sitios, abandonados até ao tempo das sementeiras.
Caminhava depressa, batendo com o bordão nas pedras, querendo chegar a casa antes do anoitecer.
Faltava-lhe ainda quasi uma legua, quando o sol se escondeu.
As calhandras tinham erguido o vôo e trinavam doidamente, muito alto, constantes no mesmo logar, batendo muito as azas.
Chegou a uma encruzilhada e parou. Parecia estar em duvida sobre o caminho que havia de tomar. Passava a mão pela cara, devagarinho, sem se resolver. O caminho da esquerda parecia tental-o muito, sorria-se para elle, mas como quem tem medo de ceder á tentação.
E que tentação não era!.. Se nunca mais vira uns olhos d'aquelle azul!
A pobre mãe, áquellas horas, sentada á porta de casa, cruzadas sobre os joelhos as mãos, onde umas veias em relevo resaem sobre uma rede confusa de rugas pequeninas, pensava n'elle talvez, cheia de amor e de quantas tristezas! Quem passava por defronte da porta tirava o chapéo áquelles cabellos brancos, muito bem alisados por debaixo do lenço negro da viuva. N'aquelles olhos meio apagados brilhavam talvez as lagrimas d'uma saudade… E elle parado ali… cheio de duvidas!
Seguindo sempre em frente, mal chegasse ao alto, veria na encosta fronteira a casa onde nascera, muito caiada, com a cimalha pintada de azul, a porta vermelha, a nogueira a que se encosta a vide cheia de cachos tentadores, e uma volutazinha de fumo azulado a subir, a subir até desvanecer-se, signal da recompensa depois do dia de trabalho, a boa ceia quente, o lume que desenregela. Seguindo sempre em frente, passado um quarto d'hora, estaria nos braços da mãe, seccando-lhe as lagrimas, trazendo-lhe o coração que levára.
E continuava em duvidas! Pois a quem mais do que á mãe queria elle?
E por fim quando se resolveu… tomou para a esquerda.
Pobre mãe!
O BAILE DOS VELHOS
Houve esta noite festa rija em casa dos padeiros.
Casados ha cincoenta annos, festejaram com estrondo o anniversario do casamento. E não pensem que por não haver lá gente moça a festa desmereceu. Isso sim! Das oito á meia noite, nem o Bento das mãos largou a guitarra, nem faltaram pares no meio da casa.
Ficou logo combinado, mal o Antonio Pataco falou n'aquillo: – quem não foi convidado para a boda, tambem não dançou n'aquella noite, nem comeu os leitões assados. Então é que se viu como as mulheres se atiram pela velhice fóra com alma e coragem; eram doze nem mais nem menos, e os homens apenas seis, todos muito atrapalhados, (tanto mais que o Prior não contava) tendo que attender a tanta senhora, não querendo escandalisar nenhuma.
A casa, segundo contam, estava um brinco. Começava logo pela illuminação. Das vigas do tecto pendiam sete candeias e, como reforço, ardiam quatro vellas sobre as mezas dos cantos. Á roda da casa, no friso caiado, tinham disposto a loiça branca e na chaminé um grande tronco de asinho ardia, rodeado de piorno, fazendo passar clarões vermelhos na bateria de cobre, disposta, como um tropheu, do outro lado da casa.
Quando um homem pensa que, além d'aquella riqueza, o Antonio Pataco tinha mais do que outro tanto em serviço na cosinha, e que tudo aquillo não é nada em comparação com o muito que nós sabemos que elle tem, haverá rapaz na aldeia que mereça a linda neta tão branquinha e tão rica, fechada provisoriamente n'aquella noite n'um dos quartos do sotam da casa?
O prior velho foi quem presidiu á festa como é de ver. Está cego de todo, coitado; mas, apezar d'isso e de andar algum tanto acabrunhado desde que não póde ler no missal, attendendo a ter sido quem os casára, lá se arrastou conforme pôde, e não foi talvez dos que menos se divertiram. Abordoado á grossa bengala de castãosinho de prata, amarellada pelo uso, tremendo na mão d'elle, assistiu a toda a festa, até de madrugada, sacudindo em ar de approvação a cabeça muito calva, onde apenas meia duzia de cabellos brancos muito compridos, esvoaçavam, tenuissimos, no ar agitado.
Até á meia noite não se fez outra coisa senão dançar e mais dançar.
O Bento não se cançou de tocar na guitarra, apresentando, como pretexto para não se mexer o tamanho do ventre, que vae tomando com a edade proporções medonhas. Alguns quizeram insinuar que eram as pernas que lhe começavam a enfraquecer, mas logo desarmou a intriga, atirando um pontapé, que acertou, como por acaso, nas canellas do mestre-escola.
A pobre guitarra, velha tambem, rachada e fanhosa, não se lembrou senão de fandangos antigos, e era de vêr como aquelles bons velhos, talvez enganados pelo som d'aquellas cordas que os transportava cincoenta annos para traz, ouvindo aquella musica alegre, que lhes trazia recordações risonhas da mocidade, crearam novas forças e, cheios de animação, dançaram, no meio dos bravos, ligeiros como arveloas, sorrindo-se como se ainda se namorassem, como, havia meio seculo, se sorriam e namoravam.
Quem abriu o baile foi o padeiro, dançando com a mulher.
– Ahi, rapaz! gritou-lhe o Bento.
Mas era lá preciso que o animassem! Com o seu bello calção de briche fino, o collete verde de botões de vidro, as boas polainas hespanholas, parecia ter voltado aos trinta annos, bem aprumado, de cabeça erguida, arqueando o peito, baloiçando os braços, fazendo estalar os dedos.
A mulher custou-lhe mais por causa do rheumatismo; mas, apezar de muito dobrada, lá se animou. Levando aquillo muito a serio, dançou perto d'um quarto de hora, diante do marido, que sapateava, tentando recordar as habilidades, que n'outros tempos o tornaram falado por todas aquellas aldeias.
E só a idéa d'aquella saiasinha amarella, remexendo-se, tremula, por toda a casa, perseguida por aquelle velho cheio de cabellos brancos e de rugas, fazia rir ás gargalhadas estrondosas o Prior, que não via nada e lançava o olhar incerto, ora para um lado, ora para o outro, n'um menear constante de cabeça.
– Está seculo e meio dançando, disse o mestre escola com a gravidade do officio.
– E muitos pósinhos, e muitos pósinhos! accrescentou o Prior, continuando a rir.
Todos applaudiam. O Bento na guitarra apressava o andamento.
– Não posso, não posso mais! declarou a velhinha deixando-se caír esfalfada num tropeço, ao pé da lareira.
– Quem vem então? perguntou o Antonio, limpando o suor.
E ficou parado no meio da casa, de mãos na cintura, olhar altivo, esticando a perna, com um sorriso orgulhoso.
Muito se dançou n'aquella noite, em casa dos padeiros!
***
Mas o melhor foi a ceia.
O Bento esteve famoso. De mais a mais o Antonio, muito naturalmente de proposito, sentou-o logo entre a Marianna Coxa e a Maria do Rosario. Imaginem!
Todos se lembravam ainda de quando ellas, á volta da fonte, se arranharam, por detraz do moinho, no meio dos cacos das bilhas partidas.
Agora, muito tremulas, muito engelhadas, de um lado e outro d'aquelle coração de bronze, mastigavam lentamente, enchendo as bochechas, de beiços muito recolhidos, tocando quasi com as barbas para cima nos narizes para baixo.
Emquanto se tomou a canja, houve um silencio quasi geral, apenas interrompido pelos recados do padeiro á velha criada Mathilde ou pelos convites aos assistentes.
– O cangirão. Vai já deitando. Começa aqui pelo sr. Prior. Mais uma colherinha de canja, tia Ignez?
E os velhos, todos em volta, sopravam longamente com as colheres ao pé da bocca e sorviam depois o caldo, com uns apitosinhos gulosos, fechando os olhos; alguns amolleciam na canja as codeas de pão, e o padeiro, de pé, observando, com a concha mettida na enorme terrina, lançava em redor um olhar attento de bom dono de casa, prompto para dar mais a quem pedisse.
– Senta-te e come, disse-lhe a mulher. Que afflicção!
– Sente-se e coma; isso mesmo! Entre rapazes não ha cerimonias. Quem quizer mais peça por bocca, gritou o Bento, estendendo o prato.
Mas já então a Mathilde vinha trazendo os assados.
Os convidados limpavam os beiços á toalha e os homens despejavam os copos para abrir o appetite.
Então começou tudo a falar. Só o professor é que não tomou parte nas discussões, por não perder a gravidade. Chamando a si uma travessa, onde um magnifico perum ostentava a opulencia das carnes aloiradas, espetou-lhes o garfo e, pondo as lunetas redondas na ponta do nariz afiladissimo, depois de attentamente ter examinado o fio da faca, principiou, cheio de sua pericia, a trinchar, seguindo com olhares gulosos os bocados, que iam cahindo.
O cangirão já voltára por tres vezes á cosinha, quando a padeira começou a servir o pato bravo. E da pinha enorme de arroz, que tremia na colher, iam caindo os baguinhos na toalha.
O Bento repetia todos os pratos e desabotoava os botões do collete.
Foi então que, depois d'um segredo, que o Antonio Pataco lhe disse ao ouvido com ar de muito misterio, a Mathilde sahiu, entrando pouco depois com os leitões e trazendo debaixo dos braços umas poucas de garrafas, que poz sobre a meza defronte do padeiro.
– Sabem, meus senhores?.. Garrafas lacradas por mim no dia do meu casamento. Os seus copos, façam favor… Ora adeus! O que é isso, sr. professor? O copo maior… Então? O vinho é o sangue dos velhos.
O sangue não sei, a lingua é com certeza. Instantes depois, a algazarra subira de tom a tal ponto, que o professor, de pé, examinando á luz a transparencia da amethista enorme que lhe refulgia no copo, teve de pedir auxilio ao dono da casa para impôr silencio á velhada.
– Meus senhores… começou.
Mas as velhas não se continham; haviam de palrar por força. Mal o mestre-escola, com ar choroso, começou falando de tantos que faltavam áquella festa, puzeram-se ellas a gritar:
– Basta! Basta! Não queremos tristezas!
Deus me perdõe, mas está me parecendo que o vinho lhes subira ás cabecinhas brancas.
Não sei se o professor tambem desconfiou da coisa. Muito offendido, todo vermelho, sem poder dominar com a sua fanhosa voz de falsete a immensa berraria, pousou o copo sobre a meza e começou a atacar o queijo, resmungando.
O Bento é que teve as honras da noite, contando historias da sua mocidade.
Rapaz perfeito, dono de tres moinhos, era mais a mim, mais a mim, todas o queriam.
– E mal sabes tu, Antonio, uma coisa. A tua Josepha tambem me esperava á porta, quando eu passava, atirando-me cada olhadella!
– Que é lá isso? perguntou o Antonio, erguendo-se, entornando o copo sobre a meza e deixando correr em dois fios pelas rugas do queixo o bochecho que tinha na bocca.
Como o Antonio tem mau genio, a questão esteve por um triz a azedar-se.
– Ainda tu acreditas n'aquelle traste! disse a Josepha levantando a mão e como que ameaçando o Bento d'uma tremenda bofetada.
– É verdade, sim senhores, é verdade! teimava o Bento, estirado por cima da meza, de collete já todo desabotoado.
Os outros velhos protestavam, rindo muito. O Prior serenava o Antonio. Elle bem devia ver que tudo aquillo era troça e que o Bento estava a brincar.
– E quem sabe? continuou este. Talvez que você não festejasse hoje o anniversario do seu casamento, se eu n'esse tempo não andasse meio parvo por causa ali da tia Domingas.
– Anh? perguntou a tia Domingas, approximando da orelha o concavo da mão.
– Que andou meio parvo por vocemecê, explicou o Prior a berrar.
A tia Domingas, um poucochinho tonta, engoliu com muito esforço um grande bocado de leitão, que ruminava havia um bom quarto de hora, e disse toda commovida:
– Não me fale n'esse tempo, sr. Bento, não me fale n'esse tempo!
E durante toda a ceia houve sempre alegria, menos na cara do mestre-escola.
– Que tem, sr. Matheus? perguntou-lhe o Prior. Ha muito que lhe não oiço a voz.
– Vossa Reverencia bem sabe que nunca fui…
– Sei, sei, interrompeu o Prior. Aqui a sr.ª Bernarda que diga o que vocemecê foi.
***
Pela madrugada, quando já as cotovias cantavam pelos campos e as figas das janéllas luziam como fios de cristal, levantaram-se todos para sahir.
O Prior cabeceava, havia um bocado, e o Bento, depois de muito contar e muito mentir, assentara sobre o peitilho bordado a segunda barba rubicunda, olhando por baixo, com olhar acarneirado, cheio de meiguice avinhada e de somno mal combatido.
Havia longos silencios e bocejos profundos.
Então as velhas lembraram-se de, como havia cincoenta annos, acompanhar a Josepha ao quarto.
E pelo corredor a Josepha, com a sua saiasinha amarella, bordada, com largas fitas de velludo preto, muito envergonhada, era seguida pelo Antonio, que, por brincadeira, queria impedir que os amigos viessem, dizendo que não era costume.
Pararam todos á porta.
Pela janella entreaberta a luz fria da manhã entrava no quarto, enchendo-o d'uma serena meia claridade.
O quarto estava na mesma: o oratorio defronte da porta sobre a commoda de pau santo, á direita o bahu encoirado, tapado com uma chita de ramagens, ao fundo o leito antigo, muito alto, coberto com uma colcha escarlate e onde, uma ao lado da outra, muito chegadas, duas almofadas bordadas, pequeninas, alvejavam na penumbra.
Havia cincoenta annos!