Kitabı oku: «Memorias Posthumas de Braz Cubas», sayfa 2

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CAPITULO VIII
Razão contra Sandice

Já o leitor comprehendeu que era a Razão que voltava á casa, e convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de Tartufo:

La maison est à moi, c'est à vous d'en sortir.

Mas é sestro antigo da Sandice criar amor ás casas alheias, de modo que, apenas senhora de uma, difficilmente lh'a farão despejar. É sestro; não se tira dahi; ha muito que lhe callejou a vergonha. Agora, se advertirmos no immenso numero de casas que occupa, umas de vez, outras durante as suas estações calmosas, concluiremos que esta amavel peregrina é o terror dos proprietarios. No nosso caso, houve quasi um disturbio á porta do meu cerebro, porque a adventicia não queria entregar a casa, e a dona não cedia da intenção de tomar o que era seu. Afinal, já a Sandice se contentava com um cantinho no sotão.

–Não, senhora, replicou a Razão, estou cançada de lhe ceder sotãos, cançada e experimentada, o que você quer é passar mansamente do sotão á sala de jantar, dahi á de visitas e ao resto.

–Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um mysterio.

–Que mysterio?

–De dous, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só uns dez minutos.

A Razão poz-se a rir.

–Has de ser sempre a mesma cousa… sempre a mesma cousa… sempre a mesma cousa…

E, dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fóra; depois entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas supplicas; ainda grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a lingua de fóra, em ar de surriada, e foi andando… foi andando… Provavelmente andará até á consummação dos seculos.

CAPITULO IX
Transição

E vejam agora com que destreza, com que fina arte faço eu a maior transição deste livro. Vejam: o meu delirio começou em presença de Virgilia; Virgilia foi o meu grão peccado da juventude; não ha juventude sem meninice; meninice suppõe nascimento; e eis aqui como chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci. Viram? Nenhuma juntura apparente, nada que divirta a attenção pausada do leitor; nada. De modo que o livro fica assim com todas as vantagens do methodo, sem a rigidez do methodo. Na verdade, era tempo. Que isto de methodo, sendo, como é, uma cousa indispensavel, todavia é melhor tel-o sem gravata nem suspensorios, mas um pouco á fresca e á solta, como quem não se lhe dá da visinha fronteira, nem do inspector de quarteirão. É como a eloquencia, que ha uma genuina e vibrante, de uma arte natural e feiticeira, e outra tesa, engommada e chocha. Vamos ao dia 20 de Outubro.

CAPITULO X
Naquelle dia…

Naquelle dia, a arvore dos Cubas brotou uma graciosa flor. Nasci; recebeu-me nos braços a Pascoela, insigne parteira minhota, que se gabava de ter aberto a porta do mundo a uma geração inteira de fidalgos. Não é impossivel que meu pae lhe ouvisse tal declaração; creio, todavia, que o sentimento paterno é que o induziu a gratifical-a com duas meias dobras. Lavado e enfaixado, fui desde logo o heroe da nossa casa. Cada qual prognosticava a meu respeito o que mais lhe quadrava ao sabor. Meu tio João, o antigo official de infantaria, achava-me um certo olhar de Bonaparte, cousa que meu pae não pôde ouvir sem nauseas; meu tio Ildefonso, então simples padre, farejava-me conego.

–Conego é o que elle ha de ser, e não digo mais por não parecer orgulho; mas não me admiraria nada se Deus o destinasse á um bispado… É verdade, um bispado; não é cousa impossivel. Que diz você, mano Bento?

Meu pae respondia a todos que eu seria o que Deus quizesse; e alçava-me ao ar, como se intentasse mostrar-me á cidade e ao mundo; perguntava a todos se eu me parecia com elle, se era intelligente, bonito…

Digo essas cousas por alto, segundo as ouvi narrar annos depois; ignoro a mór parte dos pormenores daquelle famoso dia. Sei que a visinhança veiu ou mandou comprimentar o recem-nascido, e que durante as primeiras semanas muitas foram as visitas em nossa casa. Não houve cadeirinha que não trabalhasse; aventou-se muita casaca e muito calção; e se hão conto os mimos, os beijos, as admirações, as bençãos, é porque, se os contasse, não acabaria mais o capitulo, e é preciso acabal-o.

Item, não posso dizer nada do meu baptizado, porque nada me referiram a tal respeito, a não ser que foi uma das mais galhardas festas do anno seguinte, 1806; baptizei-me na egreja de S. Domingos, uma terça feira de março, dia claro, luminoso e puro, sendo padrinhos o coronel Rodrigues de Mattos e sua senhora. Um e outro descendiam de velhas familias do norte e honravam devéras o sangue que lhes corria nas veias, outr'ora derramado na guerra contra Hollanda. Cuido que os nomes de ambos foram das primeiras cousas que aprendi; e certamente os dizia com muita graça, ou revelava algum talento precoce, porque não havia pessoa extranha diante de quem me não obrigassem a recital-os.

–Nhonhô, diga a estes senhores como é que se chama seu padrinho.

–Meu padrinho? é o coronel Paulo Vaz Lobo Cezar de Andrade e Souza Rodrigues de Mattos; minha madrinha é a Excellentissima Senhora D. Maria Luiza de Macedo Rezende e Souza Rodrigues de Mattos.

–É muito esperto o seu menino, commentavam os ouvintes.

–Muito esperto, concordava meu pae; e os olhos babavam-se-lhe de orgulho, e elle espalmava a mão sobre a minha cabeça, fitava-me longo tempo, namorado, cheio de si.

Item, comecei a andar, não sei bem quando, mas antes do tempo. Talvez por apressar a natureza, obrigavam-me cedo a agarrar ás cadeiras, pegavam-me da fralda, davam-me carrinhos de páu.—Só só, nhonhô, só só, dizia-me a mucama. E eu, attrahido pelo chocalho de lata, que minha mãe agitava diante de mim, lá ia para a frente, cahe aqui, cahe acolá; e andava, provavelmente mal, mas andava, e fiquei andando.

CAPITULO XI
O menino é pai do homen.

Cresci; e nisso é que a familia não interveiu; cresci naturalmente, como crescem as magnolias e os gatos. Talvez os gatos são menos matreiros, e, com certeza, as magnolias são menos inquietas do que eu era na minha infancia. Um poeta dizia que o menino é pae do homem. Se isto é verdade, vejamos alguns lineamentos do menino.

Desde os cinco annos merecera eu a alcunha de «menino diabo»; e verdadeiramente não era outra cousa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negára uma colhér do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o maleficio, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer a minha mãe que a escrava é que estragára o doce «por pirraça»; e eu tinha apenas seis annos. Prudencio, um moleque de casa, era o meu cavallo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, á guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e elle obedecia,—algumas vezes gemendo,—mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um—«ai, nhonhô!»—ao que eu retorquia:—«Cala a boca, besta!»—Esconder os chapéos das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabelleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um genio indocil, mas devo crer que eram tambem expressões de um espirito robusto, porque meu pae tinha-me em grande admiração; e se ás vezes me reprehendia, á vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos.

Não se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida a quebrar a cabeça dos outros nem a esconder-lhes os chapéos; mas opiniatico, egoista e algo contemptor dos homens, isso fui; se não passei o tempo a esconder-lhes os chapéos, alguma vez lhes puxei pelo rabicho das cabelleiras.

Outrosim, affeiçoei-me á contemplação da injustiça humana, inclinei-me a attenual-a, a explical-a, a classifical-a por partes, a entendel-a, não segundo um padrão rigido, mas ao sabor das circumstancias e logares. Minha mãe doutrinava-me a seu modo, fazia-me decorar alguns preceitos e orações; mas eu sentia que, mais do que as orações, me governavam os nervos e o sangue, e a boa regra perdia o espirito, que a faz viver, para se tornar uma vã formula. De manhã, antes do mingáu, e de noite, antes da cama, pedia a Deus que me perdoasse, assim como eu perdoava aos meus devedores; mas entre a manhã e a noite fazia uma grande maldade, e meu pae, passado o alvoroço, dava-me pancadinhas na cara, e exclamava a rir: Ah! bregeiro! ah! bregeiro!

Sim, meu pae adorava-me, tinha-me esse amor sem merito, que é um simples e forte impulso da carne; amor que a razão não contrasta nem rége. Minha mãe era uma senhora fraca, de pouco cerebro e muito coração, assaz credula, sinceramente piedosa,—caseira, apezar de bonita, e modesta, apezar de abastada; temente ás trovoadas e ao marido. O marido era na terra o seu deus. Da collaboração dessas duas creaturas nasceu a minha educação, que, se tinha alguma cousa boa, era no geral viciosa, incompleta, e, em partes, negativa. Meu tio conego fazia ás vezes alguns reparos ao irmão; dizia-lhe que elle me dava mais liberdade do que ensino, e mais affeição do que emenda; mas meu pae respondia que applicava na minha educação um systema inteiramente superior ao systema usado; e por este modo, sem confundir o irmão, illudia-se a si proprio.

Havia em minha mãe uma sombra de melancholia, que eu herdei, como herdei de meu pae a fatuidade. Os aspectos da vida accrescentaram-lhe a natural tendencia. Tinha coração de mais, uma sensibilidade melindrosa, exigente, doentia.

De envolta com a transmissão e a educação, houve ainda o exemplo extranho, o meio domestico. Vimos os paes; vejamos os tios. Um delles, o João, era um homem de lingua solta, vida galante, conversa picaresca. Desde os onze annos entrou a admittir-me ás anecdotas, reaes ou não, eivadas todas de obscenidade ou immundicie. Não me respeitava a adolescencia, como não respeitava a batina do irmão; com a differença que este fugia logo que elle enveredava por assumpto escabroso. Eu não; deixava-me estar, sem entender nada, a principio, depois entendendo, e emfim achando-lhe graça. No fim de certo tempo, quem o procurava era eu; e elle gostava muito de mim, dava-me doces, levava-me a passeio. Em casa, quando lá ia passar alguns dias, não poucas vezes me aconteceu achal-o, no fundo da chacara, no lavadouro, a palestrar com as escravas que batiam roupa; e ahi é que era um desfiar de anecdotas, de ditos, de perguntas, e um estalar de risadas, que ninguem podia ouvir, porque o lavadouro ficava muito longe de casa. As pretas, com uma tanga no ventre, a arregaçar-lhes um palmo dos vestidos, umas dentro do tanque, outras fóra, inclinadas sobre as peças de roupa, a batel-as, a ensaboal-as, a torcel-as, iam ouvindo e redarguindo ás pilherias do tio João, e a commental-as de quando em quando com esta palavra:

–Cruz, diabo!… Este sinhô João é o diabo!

Bem differente era o tio conego. Esse tinha muita austeridade e pureza; taes dotes, comtudo, não realçavam um espirito superior, apenas compensavam um espirito mediocre. Não era homem que visse a parte substancial da egreja; via o lado externo, a hierarchia, as preeminencias, as sobrepelizes, as circumflexões. Vinha antes da sacristia que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que uma infracção dos mandamentos. Agora, a tantos annos de distancia, não estou certo se elle poderia atinar facilmente com um trecho de Tertuliano, ou expor, sem titubear, a historia do symbolo de Nicéa; mas ninguem, nas festas cantadas, sabia melhor o numero e caso das cortezias que se deviam ao officiante. Conego foi a unica ambição de sua vida; e dizia de coração que era a maior dignidade a que podia aspirar. Piedoso, severo nos costumes, minucioso na observancia das regras, frouxo, acanhado, subalterno, possuia algumas virtudes, em que era exemplar, mas carecia absolutamente da força de as incutir, de as impôr aos outros.

Não digo nada de minha tia materna, D. Emerenciana, e aliás era a pessoa que mais autoridade tinha sobre mim; essa differençava-se grandemente dos outros; mas viveu pouco tempo em nossa companhia, uns dous annos. Outros parentes e alguns intimos não merecem a pena de ser citados; não tivemos uma vida commum, mas intermittente, com grandes claros de separação. O que importa é a expressão geral do meio domestico, e essa ahi fica indicada,—vulgaridade de caracteres, amor das apparencias rutilantes, do arruido, frouxidão da vontade, dominio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flôr.

CAPITULO XII
Um episodio de 1814

Mas eu não quero passar adeante, sem contar summariamente um galante episodio de 1814; tinha nove annos.

Napoleão, quando eu nasci, estava já em todo o explendor da gloria e do poder; era imperador e grangeára inteiramente a admiração dos homens. Meu pae, que á força de persuadir os outros da nossa nobreza, acabara persuadindo-se a si proprio, nutria contra elle um odio puramente mental. Era isso motivo de renhidas contendas em nossa casa, porque meu tio João, não sei se por espirito de classe e sympathia de officio, perdoava no despota o que admirava no general, meu tio padre era inflexivel contra o corso, os outros parentes dividiam-se; dahi as controversias e as rusgas.

Chegando ao Rio de Janeiro a noticia da primeira quéda de Napoleão, houve naturalmente grande abalo em nossa casa, mas nenhum chasco ou remoque. Os vencidos, testemunhas do regozijo publico, julgaram mais decoroso o silencio; alguns foram além e bateram palmas. A população, cordialmente alegre, não regateou demonstrações de affecto á real familia; houve illuminações, salvas, Te-Deum, cortejo e acclamações. Figurei nesses dias com um espadim novo, que meu padrinho me dera no dia de Santo Antonio; e, francamente, interessava-me mais o espadim do que a quéda de Bonaparte. Nunca me esqueceu esse phenomeno. Nunca mais deixei de pensar commigo que o nosso espadim é sempre maior do que a espada de Napoleão. E notem que eu ouvi muito discurso, quando era vivo, li muita pagina rumorosa de grandes idéas e maiores palavras, mas não sei porque, no fundo dos applausos que me arrancavam da boca, lá echoava alguma vez este conceito de experimentado:

–Vae-te embora, tu só cuidas do espadim.

Não se contentou a minha familia em ter um quinhão anonymo no regozijo publico; entendeu opportuno e indispensavel celebrar a destituição do imperador com um jantar, e tal jantar que o ruido das acclamações chegasse aos ouvidos de Sua Alteza, ou, quando menos, de seus ministros. Dito e feito. Veiu abaixo toda a velha prataria, herdada do meu avô Luiz Cubas; vieram as toalhas de Flandres, as grandes jarras da India; matou-se um capado; encommendaram-se ás madres da Ajuda as compotas e marmeladas; lavaram-se, arearam-se, poliram-se as salas, escadas, castiçaes, arandellas, as vastas mangas de vidro, todos os apparelhos do luxo classico.

Dada a hora, achou-se reunida uma sociedade selecta, o juiz de fóra, tres ou quatro officiaes militares, alguns commerciantes e lettrados, varios funccionarios da administração, uns com suas mulheres e filhas, outros sem ellas, mas todos commungando no desejo de atolar a memoria de Bonaparte no papo de um perú. Não era um jantar, mas um Te-Deum; foi o que pouco mais ou menos disse um dos lettrados presentes, o Dr. Villaça, glosador insigne, que accrescentou aos pratos de casa o acepipe das musas. Lembra-me, como se fosse hontem, lembra-me de o ver erguer-se, com a sua longa cabelleira de rabicho, casaca de seda, uma esmeralda no dedo, pedir a meu tio padre que lhe repetisse o mote, e, repetido o mote, cravar os olhos na testa de uma senhora, depois tossir, alçar a mão direita, toda fechada, menos o dedo indice, que apontava para o tecto; e, assim posto e composto, devolver o mote glosado. Não fez uma glosa, mas tres; depois jurou aos seus deuses não acabar mais. Pedia um mote, davam-lh'o, elle glosava-o promptamente, e logo pedia outro e mais outro; a tal ponto que uma das senhoras presentes não pôde calar a sua grande admiração.

–A senhora diz isso, retorquia modestamente o Villaça, porque nunca ouviu o Bocage, como eu ouvi, no fim do seculo, em Lisboa. Aquillo sim! que facilidade! e que versos! Tivemos lutas de uma e duas horas, no botequim do Nicola, a glosarmos, no meio de palmas e bravos. Immenso talento o do Bocage! Era o que me dizia, ha dias, a Sra. duqueza de Cadaval…

E estas tres palavras ultimas, expressas com muita emphasis, produziram em toda a assembléa um fremito de admiração e pasmo. Pois esse homem tão dado, tão simples, além de pleitear com poetas, discreteava com duquezas! Um Bocage e uma Cadaval! Ao contacto de tal homem, as damas sentiam-se superfinas; os varões olhavam-n'o com respeito, alguns com inveja, não raros com incredulidade. Elle, entretanto, ia caminho, a accummular adjectivo sobre adjectivo, adverbio sobre adverbio, a desfiar todas as rimas de tyranno e de usurpador. Era á sobremeza; ninguem já pensava em comer. No intervallo das glosas, corria um borborinho alegre, um palavrear de estomagos satisfeitos; os olhos, molles e humidos, ou vivos e calidos, espreguiçavam-se ou saltitavam de uma ponta a outra da meza, atulhada de doces e fructas, aqui o ananaz em fatias, alli o melão em talhadas, as compoteiras de crystal deixando ver o doce de coco, finamente ralado, amarello como uma gemma,—ou então o melado escuro e grosso, não longe do queijo e do cará. De quando em quando um riso jovial, amplo, desabotoado, um riso de familia, vinha quebrar a gravidade politica do banquete. No meio do interesse grande e commum, agitavam-se tambem os pequenos e particulares. As moças fallavam das modinhas que haviam de cantar ao cravo, e do minuete e do solo inglez; nem faltava matrona que promettesse bailar um oitavado de compasso, só para mostrar como folgára nos seus bons tempos de criança. Um sujeito, ao pé de mim, dava a outro noticia recente dos negros novos, que estavam a vir, segundo cartas que recebera de Loanda, uma carta em que o sobrinho lhe dizia ter já negociado cerca de quarenta cabeças, e outra-carta em que… Trazia-as justamente na algibeira, mas não as podia ler naquella occasião. O que afiançava é que podiamos contar, só nessa viagem, uns cento e vinte negros, pelo menos.

–Trás…trás…trás…fazia o Villaça batendo com as mãos uma na outra. O rumor cessava de subito, como um estacado de orchestra, e todos os olhos se voltavam para o glosador. Quem ficava longe aconcheava a mão atraz da orelha para não perder palavra; a mór parte, antes mesmo da glosa, tinha já um meio riso de applauso, trivial e candido.

Quanto a mim, lá estava, solitario e deslembrado, a namorar uma certa compota da minha feição. No fim de cada glosa ficava muito contente, esperando que fosse a ultima; mas não era, e a sobremeza continuava intacta. Ninguem se lembrava de dar a primeira voz. Meu pae, á cabeceira, saboreava a goles extensos, a alegria dos convivas, mirava-se todo nos carões alegres, nos pratos, nas flores, deliciava-se com a familiaridade travada entre os mais distantes espiritos, influxo de um bom jantar. Eu via isso, porque arrastava os olhos da compota para elle e delle para a compota, como a pedir-lhe que m'a servisse; mas fazia-o em vão. Elle não via nada; via-se a si mesmo. E as glosas succediam-se, como bategas d'agua, obrigando-me a recolher o desejo e o pedido. Pacientei quanto pude; e não pude muito. Pedi em voz baixa o doce; emfim, bradei, berrei, bati com os pés. Meu pae, que seria capaz de me dar o sol, se eu lh'o exigisse, chamou um escravo para me servir o doce; mas era tarde. A tia Emerenciana arrancára-me da cadeira e entregára-me a uma escrava, não obstante os meus gritos e repellões.

Não foi outro o delicto do glosador: retardára a compota e dera causa á minha exclusão. Tanto bastou para que eu cogitasse uma vingança, qualquer que fosse, mas grande e exemplar, cousa que de alguma maneira o tornasse ridiculo. Que elle era um homem grave o Dr. Villaça, medido e lento, quarenta e sete annos, casado e pae. Não me contentava o rabo de papel nem o rabicho da cabelleira; havia de ser cousa peor. Entrei a espreital-o, durante o resto da tarde, a seguil-o, na chacara, aonde todos desceram a passear. Vi-o conversar com D. Eusebia, irmã do sargento-mór Domingues, uma robusta donzellona, que se não era bonita, tambem não era feia.

–Estou muito zangada com o senhor, dizia ella.

–Porque?

–Porque … não sei porque … porque é a minha sina … creio ás vezes que é melhor morrer…

Tinham penetrado n'uma pequena moita; era lusco-fusco; eu segui-os. O Villaça levava nos olhos umas chispas de vinho e de volupia.

–Deixe-me, disse ella.

–Ninguem nos vê. Morrer, meu anjo? Que idéas são essas! Você sabe que eu morrerei tambem … que digo?… morro todos os dias, de paixão, de saudades…

D. Eusebia levou o lenço aos olhos. O glosador vasculhava na memoria algum pedaço litterario, e achou este, que mais tarde verifiquei ser de uma das operas do Judeu:

–Não chores, meu bem; não queiras que o dia amanheça com duas auroras.

Disse isto; puxou-a para si; ella resistiu um pouco, mas deixou-se ir; uniram os rostos, e eu ouvi estalar, muito ao de leve, um beijo, o mais medroso dos beijos.

–O Dr. Villaça deu um beijo em D. Eusebia! bradei eu correndo pela chacara.

Foi um estouro esta minha palavra; a estupefacção immobilisou a todos; os olhos espraiavam-se a uma e outra banda; trocavam-se sorrisos, segredos, á socapa, as mães arrastavam as filhas, pretextando o sereno. Meu pae puxou-me as orelhas, disfarçadamente, irritado devéras com a indiscrição; mas no dia seguinte, ao almoço, lembrando o caso, sacudiu-me o nariz, a rir:—Ah! brejeiro! ah! brejeiro!

Yaş sınırı:
0+
Litres'teki yayın tarihi:
15 ocak 2025
Hacim:
231 s. 2 illüstrasyon
ISBN:
4064066412326
Yayıncı:
Telif hakkı:
Bookwire
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