Kitabı oku: «Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial)», sayfa 10
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O vergalho
Taes eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquelle Valongo fóra, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-m’as um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas unicas palavras:
— «Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão! » Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada supplica, respondia com uma vergalhada nova.
— Toma, diabo! dizia elle; toma mais perdão, bebado!
— Meu senhor! gemia o outro.
— Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Parei, olhei... Justos ceus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudencio, — o que meu pae libertára alguns annos antes. Cheguei-me; elle deteve-se logo e pediu-me a benção; perguntei-lhe se aquelle preto era escravo delle.
— E, sim, nhonhô.
— Fez-te alguma cousa?
— É um vadio e um bebado muito grande. Ainda hoje deixei elle na quitanda, em quanto eu ia lá embaixo na cidade, e elle deixou a quitanda para ir na venda beber.
— Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
— Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bebado!
Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjecturas. Segui caminho, a cavar cá dentro uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria materia para um bom capitulo, e talvez alegre. Eu gósto dos capitulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episodio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que metti mais dentro a faca do raciocinio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudencio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, — transmittindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; elle gemia e soffria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia, trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que elle se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as subtilezas do maroto!
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Um grão de sandice
Este caso faz-me lembrar um doudo que conheci. Chamava-se Romualdo e dizia ser Tamerlão. Era a sua grande e unica mania, e tinha uma curiosa maneira de a explicar.
— Eu sou o illustre Tamerlão, dizia elle. Outr’ora fui Romualdo, mas adoeci, e tomei tanto tartaro, tanto tartaro, tanto tartaro, que fiquei Tartaro, e até rei dos Tartaros. O tartaro tem a virtude de fazer Tartaros.
Pobre Romualdo! A gente ria da resposta, mas é provavel que o leitor não se ria, e com razão; eu não lhe acho graça nenhuma. Ouvida, tinha algum chiste; mas assim contada, no papel, e a proposito de um vergalho recebido e transferido, força é confessar que é muito melhor voltar á casinha da Gamboa; deixemos os Romualdos e Prudencios.
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D. Plácida
Voltemos á casinha. Não serias capaz de lá entrar hoje, curioso leitor; envelheceu, ennegreceu, apodreceu, e o proprietario deitou-a abaixo para substituil-a por outra, tres vezes maior, mas juro-te que muito menor que a primeira. O mundo era estreito para Alexandre; um desvão de telhado é o infinito para as andorinhas.
E vejam agora a neutralidade deste globo, que nos leva, atravez dos espaços, como uma lancha de naufragos, que vae dar á costa: dorme hoje um casal de virtudes no mesmo espaço de chão que soffreu um casal de peccados. Amanhã pode lá dormir um ecclesiastico, depois um assassino, depois um ferreiro, depois um poeta, e todos abençoarão esse canto de terra, que lhes deu algumas illusões.
Virgilia fez daquillo um brinco; designou as alfaias mais idoneas, e dispol-as com a intuição esthetica da mulher elegante; eu levei para lá alguns livros; e tudo ficou sob a guarda de D. Placida, supposta, e, a certos respeitos, verdadeira dona da casa.
Custou-lhe muito a aceitar a casa; farejára a intenção, e doia-lhe o officio; mas afinal cedeu. Creio que chorava, a principio: tinha nojo de si mesma. Ao menos, é certo que não levantou os olhos para mim durante os primeiros dous mezes; falava-me com elles baixos, séria, carrancuda, ás vezes triste. Eu queria angarial-a, e não me dava por offendido, tratava-a com carinho e respeito; forcejava por obter-lhe a benevolencia, depois a confiança. Quando obtive a confiança, imaginei uma historia pathetica dos meus amores com Virgilia, um caso anterior ao casamento, a resistencia do pae, a dureza do marido, e não sei que outros toques de novella. D. Placida não rejeitou uma só pagina da novella; aceitou-as todas. Era uma necessidade da consciencia. Ao cabo de seis mezes quem nos visse a todos tres juntos diria que D. Placida era minha sogra.
Não fui ingrato; fiz-lhe um peculio de cinco contos, — os cinco contos achados em Botafogo, — como um pão para a velhice. D. Placida agradeceu-me com lagrimas nos olhos; e nunca mais deixou de rezar por mim, todas as noites, deante de uma imagem da Virgem, que tinha no quarto. Foi assim que lhe acabou o nojo.
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O senão do livro
Começo a arrepender-me deste livro. Não que elle me cance; eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capitulos para esse mundo sempre é tarefa que distráe um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulchro, traz certa contracção cadaverica; vicio grave, e aliás infimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estylo regular e fluente, e este livro e o meu estylo são como os ebrios, guinam á direita e á esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o ceu, escorregam e cáem...
E cáem! — Folhas miserrimas do meu cypreste, heis de cair, como quaesquer outras bellas e vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar-vos-hia uma lagrima de saudade. Esta é a grande vantagem da morte, que se não deixa boca para rir, tambem não deixa olhos para chorar... Heis de cair. Turvo é o ar que respiraes, amadas folhas. O sol que vos allumia, com ser de toda a gente, é um sol opaco e reles, de cemiterio e carnaval.
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O bibliômano
Talvez supprima o capitulo anterior; entre outros motivos, ha ahi, nas ultimas linhas, uma phrase muito parecida com desproposito, e eu não quero dar pasto á critica do futuro.
Olhae: daqui a setenta annos, um sugeito magro, amarello, grisalho, que não ama nenhuma outra cousa além dos livros, inclina-se sobre a pagina anterior, a ver se lhe descobre o desproposito; lê, relê, treslê, desengonça as palavras, sacca uma syllaba, depois outra, mais outra, e as restantes, examina-as por dentro e por fóra, por todos os lados, contra a luz, espaneja-as, esfrega-as no joelho, lava-as, e nada. Fica sempre o mesmo desproposito.
É um bibliomano. Não conhece o autor; este nome de Braz Cubas não vem nos seus diccionarios biographicos. Achou o volume, por acaso, no pardieiro de um alfarrabista. Comprou-o por duzentos réis. Indagou, pesquizou, esgaravatou, e veiu a descobrir que era um exemplar, unico... Unico! Vós, que não só amaes os livros, senão que padeceis a mania delles, vós sabeis mui bem o valor desta palavra, e adivinhaes, portanto, as delicias de meu bibliomano. Elle regeitaria a corôa das Indias, o papado, todos os muzeus da Italia e da Hollanda, se os houvesse de trocar por esse unico exemplar; e não porque seja o das minhas Memorias; faria a mesma cousa com o Almanak de Laemmert, uma vez que fosse unico.
O peor é o desproposito. Lá continúa o homem inclinado sobre a pagina, com uma lente no olho direito, todo entregue á nobre e aspera funcção de decifrar o desproposito. Já prometteu a si mesmo escrever uma breve memoria, na qual relate o achado do livro e a descoberta da sublimidade, se a houver por baixo daquella phrase obscura. Ao cabo, não descobre nada e contenta-se com a posse. Fecha o livro, mira-o, remira-o, chega-se á janella e mostra-o ao sol. Um exemplar unico! Nesse momento passa-lhe por baixo da janella um Cesar ou um Cromwell, a caminho do poder. Elle dá de hombros, fecha a janella, estira-se na rede e folhea o livro devagar, com amor, aos goles... Um exemplar unico!
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O "luncheon"
O desproposito fez-me perder outro capitulo. Que melhor não era dizer as cousas lisamente, sem todos estes solavancos! Já comparei o meu estylo ao andar dos ebrios. Se a idéa vos parece indecorosa, direi que elle é o que eram as minhas refeições com Virgilia, na casinha da Gamboa, onde ás vezes faziamos a nossa patuscada, o nosso lunch. Vinho, fructas, compotas. Comiamos, é verdade, mas era um comer virgulado de palavrinhas doces, de olhares ternos, de criancices, uma infinidade desses apartes do coração, aliás o verdadeiro, o ininterrupto discurso do amor. Ás vezes vinha o arrufo temperar o nimio adocicado da situação. Ella deixava-me, refugiava-se n’um canto do canapé, ou ia para o interior ouvir as denguices de D. Placida. Cinco ou dez minutos depois, reatavamos a palestra, como eu reato a narração, para desatal-a outra vez. Note-se que, longe de termos horror ao methodo, era nosso costume convidal-o, na pessoa de D. Placida, a sentar-se comnosco á meza; mas D. Placida não aceitava nunca.
— Você parece que não gosta mais de mim, disse-lhe um dia Virgilia.
— Virgem Nossa Senhora! exclamou a boa dama alçando as mãos para o tecto. Não gosto de Yayá! Mas então de quem é que eu gostaria neste mundo?
E, pegando-lhe nas mãos, olhou-a fixamente, fixamente, fixamente, até molharem-se-lhe os olhos, de tão fixo que era. Virgilia acariciou-a muito; eu deixei-lhe uma pratinha na algibeira do vestido.
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História de D. Plácida
Não te arrependas de ser generoso; a pratinha rendeu-me uma confidencia de D. Placida, e conseguintemente este capitulo. Dias depois, como eu a achasse só em casa, travámos palestra, e ella contou-me em breves termos a sua historia. Era filha natural de um sacristão da Sé e de uma mulher que fazia doces para fóra. Perdeu o pae aos dez annos. Já então ralava côco e fazia não sei que outros misteres de doceira, compativeis com a edade. Aos quinze ou dezeseis casou com um alfaiate, que morreu tisico algum tempo depois, deixando-lhe uma filha. Viuva, com pouco mais de vinte annos, ficaram a seu cargo a filha, com dous, e a mãe, cançada de trabalhar. Tinha de sustentar a tres pessoas. Fazia doces, que era o seu officio, mas cosia tambem, de dia e de noite, com affinco, para tres ou quatro lojas, e ensinava algumas crianças do bairro, a dez tostões por mez. Com isto iam-se passando os annos, não a belleza, porque não a tivera nunca. Appareceram-lhe alguns namoros, propostas, seducções, a que resistia.
— Se eu pudesse encontrar outro marido, disse-me ella, creia que me teria casado; mas ninguem queria casar commigo.
Um dos pretendentes conseguiu fazer-se aceito; não sendo, porém, mais delicado que os outros, D. Placida despediu-o do mesmo modo, e depois de o despedir chorou muito. Continuou a coser para fóra e a escumar os tachos. A mãe tinha a rabugem do temperamento, dos annos e da necessidade; mortificava a filha para que tomasse um dos maridos de emprestimo e de occasião, que lh’a pediam. E bradava:
— Queres ser melhor do eu? Não sei donde te vem essas fiducias de pessoa rica. Minha camarada, a vida não se arranja á toa; não se come vento. Ora esta! Moços tão bons como o Polycarpo da venda, coitado...Esperas algum fidalgo, não é?
D. Placida jurou-me que não esperava fidalgo nenhum. Era genio. Queria ser casada. Sabia muito bem que a mãe o não fôra, e conhecia algumas que tinham só o seu moço dellas; mas era genio e queria ser casada. Não queria tambem que a filha fosse outra cousa. E trabalhava muito, queimando os dedos ao fogão, e os olhos ao candieiro, para comer e não cair. Emmagreceu, adoeceu, perdeu a mãe, enterrou-a por subscripção, e continuou a trabalhar. A filha estava com quatorze annos; mas era muito fraquinha, e não fazia nada, a não ser namorar os capadocios que lhe rondavam a rotula. D. Placida vivia com immensos cuidados, levando-a comsigo, quando tinha de ir entregar costuras; e a gente das lojas arregalava e piscava os olhos, convencida de que ella a levava para colher marido ou outra cousa. Alguns diziam graçolas, faziam comprimentos; a mãe chegou a receber propostas de dinheiro...
Interrompeu-se um instante, e continuou logo:
— Minha filha fugiu-me; foi com um sujeito, nem quero saber... Deixou-me só, mas tão triste, tão triste, que pensei morrer. Não tinha ninguem mais no mundo e estava quasi velha e doente. Foi por esse tempo que conheci a familia de Yayá; boa gente, que me deu que fazer, e até chegou a me dar casa. Estive lá muitos mezes, um anno, mais de um anno, aggregada, costurando. Saí quando Yayá casou. Depois vivi como Deus foi servido. Olhe os meus dedos, olhe estas mãos... E mostrou-me as mãos grossas e gretadas, as pontas dos dedos picadas da agulha. — Não se cria isto á toa, meu senhor; Deus sabe como é que isto se cria... Felizmente, Yayá me protegeu, e o senhor doutor tambem... Eu tinha um medo de acabar na rua, pedindo esmola...
Ao soltar a ultima phrase, D. Placida teve um calafrio. Depois, como se tornasse a si, pareceu attentar na inconveniencia daquella confissão ao amante de uma mulher casada, e começou a rir, a desdizer-se, a chamar-se tola, «cheia de fiducias», como lhe dizia a mãe; enfim, cançada do meu silencio, retirou-se da sala. Eu fiquei a olhar para a ponta do botim.
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Comigo
Podendo acontecer que algum dos meus leitores tenha pulado o capitulo anterior, observo que é preciso lel-o para entender o que eu disse commigo, logo depois que D. Placida saiu da sala. O que eu disse foi isto:
— Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, ajudando a missa, viu entrar a dama, que devia ser sua collaboradora na vida de D. Placida. Viu-a outros dias, durante semanas inteiras, gostou, disse-lhe alguma graça, pisou-lhe o pé, ao acender os altares, nos dias de festa. Ella gostou delle, acercaram-se, amaram-se. Dessa conjuncção de luxurias vadias brotou D. Placida. É de crer que D. Placida não falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias: — Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã naturalmente lhe respondi riam: — Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, n’um momento de sympathia.
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O estrume
Subito deu-me a consciencia um repellão; accusou-me de ter feito capitular a probidade de D. Placida, obrigando-a a um papel torpe, depois de uma longa vida de trabalho e privações. Medianeira não era, melhor que concubina; e eu tinha-a baixado a esse officio, á custa de obsequios e dinheiros. Foi o que me disse a consciencia; e eu fiquei uns dez minutos sem saber que lhe replicasse. Ella accrescentou que eu me aproveitára da fascinação exercida por Virgilia sobre a ex-costureira, da gratidão desta, emfim da necessidade. Notou a resistencia de D. Placida, as lagrimas dos primeiros dias, as caras feias, os silencios, os olhos baixos, e a minha arte em supportar tudo isso, até vencel-a. E repuxou-me outra vez de um modo irritado e nervoso.
Concordei que assim era, mas alleguei que a velhice de D. Placida estava agora ao abrigo da mendicidade; era uma compensação. E raciocinei então que, se não fossem os meus amores, provavelmente D. Placida acabaria como tantas outras creaturas humanas; donde se poderia deduzir que o vicio é muitas vezes o estrume da virtude. O que não impede que a virtude, seja uma flor cheirosa e sã. A consciência concordou, e eu fui abrir a porta a Virgilia.
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Entrevista
Virgilia entrou risonha e socegada. Os tempos tinham levado os sustos e vexames. Que doce que era vel-a chegar, nos primeiros dias, envergonhada e tremula! Ia de sege, velado o rosto, envolvida n’uma especie de manteu, que lhe disfarçava as ondulações do talhe. Da primeira vez deixou-se cair no canapé, offegante, escarlate, com os olhos no chão; e, palavra! em nenhuma outra occasião a achei tão bella, talvez porque nunca me senti mais lisonjeado.
Agora, porém, como eu dizia, tinham acabado os sustos e vexames; as entrevistas entravam no periodo chronometrico. A intensidade de amor era a mesma; a differença é que a chamma perdera o tresloucado dos primeiros dias para constituir-se um simples feixe de raios, tranquillo e constante, como nos casamentos.
— Estou muito zangada com você, disse ella sentando-se.
— Porque?
— Porque não foi lá hontem, como me tinha dito. O Damião perguntou muitas vezes se você não iria, ao menos, tomar chá. Porque é que não foi?
Com effeito, eu havia faltado á palavra que dera, e a culpa era toda de Virgilia, Questão de ciumes. Essa mulher esplendida sabia que o era, e gostava de o ouvir dizer, fosse em voz alta ou baixa. Na antevespera, em casa da baroneza, valsara duas vezes com o mesmo peralta, depois de lhe escutar as cortezanices, ao canto de uma janella. Estava tão alegre! tão derramada! tão cheia de si! Quando descobriu, entre as minhas sobrancelhas, a ruga interrogativa e ameaçadora, não teve nenhum sobresalto, nem ficou subitamente séria; mas deitou ao mar o peralta e as cortezanices. Veiu depois a mim, tomou-me o braço, e levou-me até outra sala, menos povoada, onde se me queixou de cançaço, e disse muitas outras cousas, com o ar pueril que costumava ter, em certas occasiões, e eu ouvi-a quasi sem responder nada.
Agora mesmo, custava-me responder alguma cousa, mas emfim contei-lhe o motivo da minha ausencia... Não, eternas estrellas, nunca vi olhos mais pasmados. A boca semi-aberta, as sobrancelhas arqueadas, uma estupefacção visivel, tangivel, que senão podia negar, tal foi a primeira replica de Virgilia; abanou a cabeça com um sorriso de piedade e ternura, que inteiramente me confundiu.
— Ora você!
E foi tirar o chapéo, lepida, jovial, como a menina que torna do collegio; depois veiu a mim, que estava sentado, deu-me pancadinhas na testa, com um só dedo, a repetir; — Isto, isto; — e eu não tive remedio senão rir tambem, e tudo acabou em galhofa. Era claro que me enganára.
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A presidência
Certo dia, mezes depois, entrou o Lobo Neves em casa, dizendo que iria talvez occupar uma presidencia de provincia. Olhei para Virgilia, que empallideceu; elle, que a viu empallidecer, perguntou-lhe:
— A modo que não gostaste, Virgilia?
Virgilia abanou a cabeça.
— Não me agrada muito, foi a sua resposta.
Não se disse mais nada; mas de noite o Lobo Neves insistiu no projecto, um pouco mais resolutamente do que de tarde; e dous dias depois declarou á mulher que a presidencia era cousa definitiva. Virgilia não pôde dissimular a repugnancia que isto lhe causava. O marido respondia a tudo com as necessidades politicas. E accrescentava:
— Não posso recusar o que me pedem; é até conveniencia nossa, do nosso futuro, dos teus brazões, meu amor, porque eu prometti que serias marqueza, e nem baroneza estás. Dirás que sou ambicioso? Sou-o devéras, mas é preciso que me não ponhas um peso nas azas da ambição.
Virgilia ficou desorientada. No dia seguinte achei-a triste, na casa da Gamboa, á minha espera; tinha dito tudo a D. Placida, que buscava consolal-a, como podia. Não fiquei menos abatido.
— Você hade ir comnosco, disse-me Virgilia.
— Está douda? Seria uma insensatez.
— Mas então...?
— Então, é preciso desfazer o projecto.
— É impossível.
— Já aceitou?
— Parece que sim.
Levantei-me, atirei o chapeu a uma cadeira, e entrei a passeiar de um lado para outro, sem saber o que faria. Cogitei largamente, e não achei nada. Emfim, cheguei-me a Virgilia, que estava sentada, e travei-lhe da mão; D. Placida foi á janella.
— Nesta pequenina mão está toda a minha existencia, disse eu; voce é responsavel por ella; faça o que lhe parecer.
Virgilia teve um gesto afflictivo; eu fui encostar-me ao consolo fronteiro. Decorreram alguns instantes do silencio; ouviamos sómente o latir de um cão, e não sei se o rumor da agua, que morria na praia. Vendo que não falava, olhei para ella. Virgilia tinha os olhos no chão, parados, sem luz, as mãos deixadas sobre os joelhos, com os dedos cruzados, na attitude da suprema desesperança. N’outra occasião, por differente motivo, é certo que eu me lançaria aos pés della, e a ampararia com a minha razão e a minha ternura; agora, porém, era preciso compellil-a ao esforço de si mesma, ao sacrificio, á responsabilidade da nossa vida commun, e conseguintemente desamparal-a, deixal-a, e saír; foi o que fiz.
— Repito, a minha felicidade está nas tuas mãos, disse eu.
Virgilia quiz agarrar-me, mas eu já estava fóra da porta. Cheguei a ouvir um proromper de lagrimas, e digo-lhes que estive a ponto de voltar, para as enxugar com um beijo; mas subjuguei-me e saí.