Kitabı oku: «Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial)», sayfa 2

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7

O delírio

Que me conste, ainda ninguem relatou o seu proprio delirio; faço-o eu, e a sciencia m’o agradecerá. Se o leitor não é dado á contemplação destes phenomenos mentaes, póde saltar o capitulo; vá direito á narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte a trinta minutos.

Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinez, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões e confeitos: caprichos de mandarim.

Logo depois, senti-me transformado na Summa Theologica de S. Thomaz, impressa n’um volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; idéa esta que me deu ao corpo a mais completa immobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguem as descruzava (Virgilia de certo), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto.

Ultimamente, restituido á fórma humana, vi chegar um hippopotamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei si por medo ou confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogal-o, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino.

— Engana-se, replicou o animal, nós vamos á origem dos seculos.

Insinuei que deveria ser muitissimo longe; mas o hippopotamo não me entendeu ou não me ouviu, se é que não fingiu uma dessas cousas; e, perguntando-lhe, visto que elle fallava, se era descendente do cavallo de Achilles ou da asna de Balaão, retorquiu-me com um gesto peculiar a estes dous quadrupedes: abanou as orelhas. Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir á ventura. Já agora não se me dá de confessar que sentia umas taes ou quaes cocegas de curiosidade, por saber onde ficava a origem dos seculos, se era tão mysteriosa como a origem do Nilo, e sobretudo se valia alguma coisa mais ou menos do que a consummação dos mesmos seculos; reflexões de cerebro enfermo. Como ia de olhos fechados, não via o caminho; lembra-me só que a sensação de frio augmentava com a jornada, e que chegou uma occasião em que me pareceu entrar na região dos gelos eternos. Com effeito, abri os olhos e vi que o meu animal galopava n’uma planicie branca de neve, com uma ou outra montanha de neve, vegatação de neve, e varios animaes grandes e de neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei fallar, mas apenas pude grunhir esta pergunta anciosa:

— Onde estamos?

— Já passamos o Eden.

— Bem; paremos na tenda de Abrahão.

— Mas se nós caminhamos para trás! redarguiu motejando a minha cavalgadura.

Fiquei vexado e aturdido. A jornada entrou e parecer-me enfadonha e extravagante, o frio incommodo, a conducção violenta, e o resultado impalpavel. E depois — cogitações do enfermo — dado que chegassemos ao fim indicado, não era impossivel que os seculos, irritados com lhes devassarem a origem, me esmagassem entre as unhas, que deviam ser tão seculares como elles. Em quanto assim pensava, iamos devorando caminho, e a planicie voava debaixo dos nossos pés, até que o animal estacou, e pude olhar mais tranquillamente em torno de mim. Olhar sómente; nada vi, além da immensa brancura da neve, que desta vez invadira o proprio ceu, até alli azul. Talvez, a espaços, me apparecia uma ou outra planta, enorme, brutesca, meneando ao vento as suas largas folhas. O silencio daquella região era egual ao do sepulchro: dissera-se que a vida das cousas ficára estupida deante do homem.

Cahiu do ar? destacou-se da terra? não sei; sei que um vulto immenso, uma figura de mulher me appareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das fórmas selvaticas, e tudo escapava á comprehensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diaphano. Estupefacto, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delirio.

— Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.

Ao ouvir esta ultima palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o effeito de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das cousas externas.

— Não te assustes, disse ella, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se affirma. Vives; não quero outro flagello.

— Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para certificar-me da existencia.

— Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dôr e o vinho da miseria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua consciencia rehouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres viver.

Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabellos e levantou-me ao ar, como se fôra uma pluma. Só então pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorsão violenta, nenhuma expressão de odio ou ferocidade; a feição unica, geral, completa, era a da impassibilidade egoista, a da eterna surdez, a da vontade immovel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão glacial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço, deante do qual me sentia eu o mais debil e descrepito dos seres.

— Entendeste-me? disse ella, no fim de algum tempo de mutua contemplação.

— Não, respondi; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma fabula. Estou sonhando, decerto, ou, se é verdade, que enlouqueci, tu não passas de uma concepção de alienado, isto é, uma cousa vã, que a razão ausente não póde reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagello, nem, como tu, traz esse rosto indifferente, como o sepulchro. E por que Pandora?

— Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens. Tremes?

— Sim; o teu olhar fascina-me.

— Creio; eu não sou somente a vida; sou tambem a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.

Quando esta palavra echoou, como um trovão, naquelle imenso valle, afigurou-se-me que era o ultimo som que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposição subita de mim mesmo. Então, encarei-a com olhos supplices, e pedi mais alguns annos.

— Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do expectaculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos afflictivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da terra, o somno, emfim, o maior beneficio das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?

— Viver somente, não te peço mais nada. Quem me poz no coração este amor da vida, senão tu? e, se eu amo a vida, por que te has de golpear a ti mesma, matando-me?

— Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jucundo, suppõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoismo, dizes tu? Sim, egoismo, não tenho outra lei. Egoismo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocinio da onça é que ella deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.

Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, atravez de um nevoeiro, uma cousa unica. Imagina tu, leitor, uma reducção dos seculos, e um desfilar de todos elles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos imperios, a guerra dos appetites e dos odios, a destruição reciproca dos seres e das cousas. Tal era o expectaculo, acerbo e curioso expectaculo. A historia do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a sciencia, porque a sciencia é mais lenta e a imaginação mais vaga, emquanto que o que eu alli via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevel-a seria preciso fixar o relampago. Os seculos desfilavam n’um turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delirio são outros, eu via tudo o que passava deante de mim, — flagellos e delicias, — desde essa cousa que se chama gloria até essa outra que se chama miseria, e via o amor multiplicando a miseria, e via a miseria aggravando a debilidade. Ahi vinham a cobiça que devora, a colera que inflamma, a inveja que baba, e a enxada e a penna, humidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancholia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruil-o, como um farrapo. Eram as fórmas varias de um mal, que ora mordia a viscera, ora mordia o pensamento, e passeiava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da especie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia á indifferença, que era um somno sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagellado e rebelde, corria diante da fatalidade das cousas, atraz de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpavel, outro de improvavel, outro de invisivel, cosidos todos a ponto precario, com a agulha da imaginação; e essa figura, — nada menos que a chimera da felicidade, — ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ella ria, como um escarneo, e sumia-se, como uma illusão.

Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angustia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me puz a rir, — de um riso descompassado e idiota.

— Tens razão, disse eu, a cousa é divertida e vale a pena, — talvez monotona — mas vale a pena. Quando Job amaldiçoava o dia em que fôra concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o expectaculo. Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a cousa é divertida, mas digere-me.

A resposta foi compellir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os seculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações que se superpunham ás gerações, umas tristes, como os hebreus do captiveiro, outras alegres, como os devassos de Commodo, e todas ellas pontuaes na sepultura. Quiz fugir, mas uma força mysteriosa me retinha os pés; então disse commigo: — «Bem, os seculos vão passando, chegará o meu, e passará tambem, até o ultimo, que me dará a decifração da eternidade.» E fixei os olhos, e continuei a ver as edades, que vinham chegando e passando, já então tranquillo e resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Cada seculo trazia a sua porção de sombra e de luz, de apathia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de systemas, de idéas novas, de novas illusões; em cada um delles rebentavam as verduras de uma primavera, e amarelleciam depois, para remoçar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma regularidade de calendario, fazia-se a historia e a civilisação, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construia o tugurio e o palacio, a rude aldêa e Thebas de cem portas, creava a sciencia, que prescruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecanico, philosopho, corria a face do globo, descia ao ventre da Terra, subia á esphera das nuvens, collaborando assim na obra mysteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a melancholia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distrahido, viu emfim chegar o seculo presente, e atraz delle os futuros. Aquelle vinha agil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco diffuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miseravel como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros, com a mesma rapidez e egual monotonia. Redobrei de attenção; fitei a vista; ia emfim ver o ultimo, — o último!; mas então já a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a comprehensão; ao pé della o relampago seria um seculo. Talvez por isso entraram os objectos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo, — menos o hippopotamo que alli me trouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de um gato. Era effetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava á porta da alcova, com uma bola de papel...

8

Razão contra sandice

Já o leitor comprehendeu que era a Razão que voltava á casa, e convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de Tartufo:

“La maison est à moi, c'est à vous d'en sortir.”1

Mas é sestro antigo da Sandice criar amor ás casas alheias, de modo que, apenas senhora de uma, difficilmente lh’a farão despejar. E’ sestro; não se tira dahi; ha muito que lhe callejou a vergonha. Agora, se advertirmos no immenso numero de casas que occupa, umas de vez, outras durante as suas estações calmosas, concluiremos que esta amavel peregrina é o terror dos proprietarios. No nosso caso, houve quase um disturbio á porta do meu cerebro, porque a adventicia não queria entregar a casa, e a dona não cedia da intenção de tomar o que era seu. Afinal, já a Sandice se contentava com um cantinho no sotão.

— Não, senhora, replicou a Razão, estou cançada de lhe ceder sotãos, cançada e experimentada, o que você quer é passar mansamente do sotão á sala de jantar, dahi á de visitas e ao resto.

— Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um mysterio.

— Que mysterio?

— De dous, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só uns dez minutos.

A Razão poz-se a rir.

— Has de ser sempre a mesma cousa... sempre a mesma cousa... sempre a mesma cousa...

E dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fóra; depois entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas supplicas; ainda grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a lingua de fóra, em ar de surriada, e foi andando... foi andando... Provavelmente andará até á consumação dos seculos.

1 Em francês: "A casa é minha. Você é que deve sair dela".

9

Transição

E vejam agora com que destreza, com que fina arte faço eu a maior transição deste livro. Vejam: o meu delirio começou em presença de Virgilia; Virgilia foi o meu grão peccado da juventude; não há juventude sem meninice; meninice suppõe nascimento; e eis aqui como chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci. Viram? Nenhuma juntura apparente, nada que divirta a attenção pausada do leitor: nada. De modo que o livro fica assim com todas as vantagens do methodo, sem a rigidez do methodo. Na verdade, era tempo. Que isto de methodo, sendo, como é, uma cousa indispensavel, todavia é melhor tel-o sem gravata nem suspensorios, mas um pouco á fresca e á solta, como quem não se lhe dá da visinha fronteira, nem do inspector de quarteirão. E’ como a eloquencia, que ha uma genuina e vibrante, de uma arte natural e feiticeira, e outra tesa, engommada e chocha. Vamos ao dia 20 de outubro.

10

Naquele dia

Naquelle dia, a arvore dos Cubas brotou uma graciosa flor. Nasci; recebeu-me nos braços a Pascoela, insigne parteira minhota, que se gabava de ter aberto a porta do mundo a uma geração inteira de fidalgos. Não é impossivel que meu pae lhe ouvisse tal declaração; creio, todavia, que o sentimento paterno é que o induziu a gratifical-a com duas meias dobras. Lavado e enfaixado, fui desde logo o heroe da nossa casa. Cada qual prognosticava a meu respeito o que mais lhe quadrava ao sabor. Meu tio João, o antigo official de infantaria, achava-me um certo olhar de Bonaparte, cousa que meu pae não pôde ouvir sem nauseas; meu tio Ildefonso, então simples padre, farejava-me conego.

— Conego é o que elle ha de ser, e não digo mais por não parecer orgulho; mas não me admiraria nada se Deus o destinasse a um bispado... E’ verdade, um bispado; não é cousa impossivel. Que diz você, mano Bento?

Meu pae respondia a todos que eu seria o que Deus quizesse; e alçava-me ao ar, como se intentasse mostrar-me á cidade e ao mundo; perguntava a todos se eu me parecia com elle, se era intelligente, bonito...

Digo essas cousas por alto, segundo as ouvi narrar annos depois; ignoro a mór parte dos pormenores daquelle famoso dia. Sei que a visinhança veiu ou mandou comprimentar o recem-nascido, e que durante as primeiras semanas muitas foram as visitas em nossa casa. Não houve cadeirinha que não trabalhasse; aventou-se muita casaca e muito calção; e se não conto os mimos, os beijos, as admirações, as bençãos, é porque, se os contasse, não acabaria mais o capitulo, e é preciso acabal-o.

Item, não posso dizer nada do meu baptizado, porque nada me referiram a tal respeito, a não ser que foi uma das mais galhardas festas do anno seguinte, 1806; baptizei-me na egreja de S. Domingos, uma terça feira de março, dia claro, luminoso e puro, sendo padrinhos o Coronel Rodrigues de Mattos e sua senhora. Um e outro descendiam de velhas familias do Norte e honravam devéras o sangue que lhes corria nas veias, outr’ora derramado na guerra contra Hollanda. Cuido que os nomes de ambos foram das primeiras cousas que aprendi; e certamente os dizia com muita graça, ou revelava algum talento precoce, porque não havia pessoa extranha diante de quem me não obrigassem a recital-os.

— Nhonhô, diga a estes senhores como é que se chama seu padrinho.

— Meu padrinho? é o Coronel Paulo Vaz Lobo Cezar de Andrade e Souza Rodrigues de Mattos; minha madrinha é a Excellentissima Senhora D. Maria Luiza de Macedo Rezende e Souza Rodrigues de Mattos.

— E’ muito esperto o seu menino, commentavam os ouvintes.

— Muito esperto, concordava meu pae; e os olhos babavam-se-lhe de orgulho, e elle espalmava a mão sobre a minha cabeça, fitava-me longo tempo, namorado, cheio de si.

Item, comecei a andar, não sei bem quando, mas antes do tempo. Talvez por apressar a natureza, obrigavam-me cedo a agarrar ás cadeiras, pegavam-me da fralda, davam-me carrinhos de páu. — Só só, nhonhô, só só, dizia-me a mucama. E eu, attrahido pelo chocalho de lata, que minha mãe agitava diante de mim, lá ia para a frente, cahe aqui, cahe acolá; e andava, provavelmente mal, mas andava, e fiquei andando.

11

O menino é pai do homem

Cresci; e nisso é que a familia não interveiu; cresci naturalmente, como crescem as magnolias e os gatos. Talvez os gatos são menos matreiros, e, com certeza, as magnolias são menos inquietas do que eu era na minha infancia. Um poeta dizia que o menino é pae do homem. Se isto é verdade, vejamos alguns lineamentos do menino.

Desde os cinco annos merecera eu a alcunha de «menino diabo»; e verdadeiramente não era outra cousa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negára uma colhér do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o maleficio, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer a minha mãe que a escrava é que estragára o doce «por pirraça»; e eu tinha apenas seis annos. Prudencio, um moleque de casa, era o meu cavallo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, á guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e elle obedecia, — algumas vezes gemendo, — mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um — «ai, nhonhô!» — ao que eu retorquia: — «Cala a boca, besta!» — Esconder os chapéos das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabelleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um genio indocil, mas devo crer que eram tambem expressões de um espirito robusto, porque meu pae tinha-me em grande admiração; e se ás vezes me reprehendia, á vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos.

Não se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida a quebrar a cabeça dos outros nem a esconder-lhes os chapéos; mas opiniatico, egoista e algo contemptor dos homens, isso fui; se não passei o tempo a esconder-lhes os chapéos, alguma vez lhes puxei pelo rabicho das cabelleiras.

Outrosim, affeiçoei-me á contemplação da injustiça humana, inclinei-me a attenual-a, a explical-a, a classifical-a por partes, a entendel-a, não segundo um padrão rigido, mas ao sabor das circumstancias e logares. Minha mãe doutrinava-me a seu modo, fazia-me decorar alguns preceitos e orações; mas eu sentia que, mais do que as orações, me governavam os nervos e o sangue, e a boa regra perdia o espirito, que a faz viver, para se tornar uma vã formula. De manhã, antes do mingáu, e de noite, antes da cama, pedia a Deus que me perdoasse, assim como eu perdoava aos meus devedores; mas entre a manhã e a noite fazia uma grande maldade, e meu pae, passado o alvoroço, dava-me pancadinhas na cara, e exclamava a rir: Ah! bregeiro! ah! bregeiro!

Sim, meu pae adorava-me, tinha-me esse amor sem merito, que é um simples e forte impulso da carne; amor que a razão não contrasta nem rége. Minha mãe era uma senhora fraca, de pouco cerebro e muito coração, assaz credula, sinceramente piedosa, — caseira, apezar de bonita, e modesta, apezar de abastada; temente ás trovoadas e ao marido. O marido era na terra o seu deus. Da collaboração dessas duas creaturas nasceu a minha educação, que, se tinha alguma cousa boa, era no geral viciosa, incompleta, e, em partes, negativa. Meu tio conego fazia ás vezes alguns reparos ao irmão; dizia-lhe que elle me dava mais liberdade do que ensino, e mais affeição do que emenda; mas meu pae respondia que applicava na minha educação um systema inteiramente superior ao systema usado; e por este modo, sem confundir o irmão, illudia-se a si proprio.

Havia em minha mãe uma sombra de melancholia, que eu herdei, como herdei de meu pae a fatuidade. Os aspectos da vida accrescentaram-lhe a natural tendencia. Tinha coração de mais, uma sensibilidade melindrosa, exigente, doentia.

De envolta com a transmissão e a educação, houve ainda o exemplo extranho, o meio domestico. Vimos os paes; vejamos os tios. Um delles, o João, era um homem de lingua solta, vida galante, conversa picaresca. Desde os onze annos entrou a admittir-me ás anecdotas, reaes ou não, eivadas todas de obscenidade ou immundicie. Não me respeitava a adolescencia, como não respeitava a batina do irmão; com a differença que este fugia logo que elle enveredava por assumpto escabroso. Eu não; deixava-me estar, sem entender nada, a principio, depois entendendo, e emfim achando-lhe graça. No fim de certo tempo, quem o procurava era eu; e elle gostava muito de mim, dava-me doces, levava-me a passeio. Em casa, quando lá ia passar alguns dias, não poucas vezes me aconteceu achal-o, no fundo da chacara, no lavadouro, a palestrar com as escravas que batiam roupa; e ahi é que era um desfiar de anecdotas, de ditos, de perguntas, e um estalar de risadas, que ninguem podia ouvir, porque o lavadouro ficava muito longe de casa. As pretas, com uma tanga no ventre, a arregaçar-lhes um palmo dos vestidos, umas dentro do tanque, outras fóra, inclinadas sobre as peças de roupa, a batel-as, a ensaboal-as, a torcel-as, iam ouvindo e redarguindo ás pilherias do tio João, e a commental-as de quando em quando com esta palavra:

— Cruz, diabo!... Este sinhô João é o diabo!

Bem differente era o tio conego. Esse tinha muita austeridade e pureza; taes dotes, comtudo, não realçavam um espirito superior, apenas compensavam um espirito mediocre. Não era homem que visse a parte substancial da egreja; via o lado externo, a hierarchia, as preeminencias, as sobrepelizes, as circumflexões. Vinha antes da sacristia que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que uma infracção dos mandamentos. Agora, a tantos annos de distancia, não estou certo se elle poderia atinar facilmente com um trecho de Tertuliano, ou expor, sem titubear, a historia do symbolo de Nicéa; mas ninguem, nas festas cantadas, sabia melhor o numero e caso das cortezias que se deviam ao officiante. Conego foi a unica ambição de sua vida; e dizia de coração que era a maior dignidade a que podia aspirar. Piedoso, severo nos costumes, minucioso na observancia das regras, frouxo, acanhado, subalterno, possuia algumas virtudes, em que era exemplar, mas carecia absolutamente da força de as incutir, de as impôr aos outros.

Não digo nada de minha tia materna, D. Emerenciana, e aliás era a pessoa que mais autoridade tinha sobre mim; essa differençava-se grandemente dos outros; mas viveu pouco tempo em nossa companhia, uns dous annos. Outros parentes e alguns intimos não merecem a pena de ser citados; não tivemos uma vida commum, mas intermittente, com grandes claros de separação. O que importa é a expressão geral do meio domestico, e essa ahi fica indicada, — vulgaridade de caracteres, amor das apparencias rutilantes, do arruido, frouxidão da vontade, dominio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flôr.

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