Kitabı oku: «A agua profunda», sayfa 9
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Epilogo
Eram quatro horas da tarde quando o filho dos dois heroes d'este doloroso e mysterioso drama d'amor começou a ler as paginas em que a confissão da morta se achava reproduzida com uma emoção que a escripta e a redacção denunciavam. Ha muito que era já noite e ainda tinha nas mãos aquellas folhas, cujas phrases não podia deixar de repetir, uma por uma. Era como se as palavras pronunciadas nas trevas do leito da agonia, viessem, com effeito, do tumulo, d'ali, do Père Lachaise, onde tinha acompanhado sua mãe poucos dias depois que ella confiou os amargos segredos da sua vida, n'esta confissão suprema.
A marqueza de Chalinhy não quiz que a depositassem no jazigo de familia. Fez construir no ultimo anno da sua vida um tumulo especial, pedindo que na frontaria da pequena capella fosse gravado um unico nome: Armanda. O filho conformou-se com esta disposição testamentaria da mãe e viu n'ella um d'esses caprichos de hypocondria que as pessoas que padecem de doenças do figado, que tão profundamente alteram o caracter, teem muitas vezes. Comprehendia agora o motivo occulto d'um tal desejo. E recordava-se tambem de que ao lado do mausoléo da sua mãe, e quasi igual a elle, existia um outro completamente novo e que não tinha ainda nenhum nome gravado na frontaria. Admirára effectivamente uma tal similhança; mas disseram-lhe que o comprador d'aquelle terreno fizera copiar o monumento visinho por lhe ter admirado a simplicidade elegante. Esse comprador, adivinhava-o: era Reynevilhe. O amigo e a amiga quizeram repousar em mausoléos parecidos já que não podiam reunir-se no mesmo tumulo. Quem reconheceria o antigo homem escravo da elegante moda parisiense, o condemnado por falsificador, debaixo d'este appellido anonymo, este nome quasi impessoal de Dumont? Quando o filho fosse, de futuro, lançar flôres no tumulo da mãe, como fizera ainda no principio do mez de novembro, o tumulo do seu verdadeiro pae elevar-se-hia ali proximo implorando um olhar, um pensamento, um perdão. Recusar-lh'o-ia?.. Não. A transformação que Valentina lhe tinha annunciado estava-se já operando n'elle. Era-lhe impossivel condemnar estes dois seres, dos quaes descendia. A sua falta foi tão tragicamente perseguida pela justiça vingadora, inherente á felicidade criminosa, que, mesmo no coração d'um extranho, a piedade teria sobrelevado a mais severa austeridade. Como não havia, pois, um filho de sentir superabundar nelle essa piedade, jorrando em lagrimas sobre o papel onde se descobriam ainda os vestigios d'outras lagrimas? E esses vestigios recordavam ao marido de Valentina a ternura feminina que acabara de purificar uma aventura culposa no principio, ainda que com muitas attenuantes, – criminosa depois pela allucinação d'um dos seus auctores, – ennobrecida mais tarde, mesmo na propria falta, pela fidelidade e pela dôr. Chegou a mesma aventura ao seu conhecimento absolutamente purificada por sua mulher. Era para junto d'ella, pois, que n'aquelle momento voava a sua alma dolorida, porque só por intermedio d'ella podera reconciliar-se inteiramente com a morta e com o morto, de cujo adulterio o nascimento o havia tornado cumplice, mau grado seu, unicamente pelo nome. Fizeram ainda peor! Transmittiram-lhe no intimo do ser as violentas contradições dos seus actos e das suas sensibilidades.
O que possuia de nobre e altivo, a instinctiva nobreza que o fizera soffrer sempre tanto com a mentira da sua traição a Valentina, devia-o a elles. O extranho romanesco da sua ligação mostrava evidentemente que tinham sido d'aquelles amantes que respeitam pelo menos os seus corações e que procediam movidos pela paixão e não pela intriga e pela galanteria. A fraqueza lamentavel da sua vontade em presença de certas tentações, provinha ainda d'elles. O peccado do seu amor transmittiu-se-lhe no sangue e tambem nas commoções do perigo que tinham corrido para se darem um ao outro. O que tinha de ferozmente timido derivava d'elles, assim como a desconfiança da doentia susceptibilidade, o obstaculo levantado ha alguns annos entre si e a esposa, exactamente como entre elle e sua mãe. Para que a moribunda o não tomasse por confidente, n'aquella hora suprema, era preciso que tivesse deixado augmentar muito entre os dois a profundeza do silencio que só catastrophes como aquella que o feria conseguem despedaçar.
Eis as ideias suggeridas por essas folhas de papel, já um pouco amarellecidas, a esse homem, subitamente collocado em presença da mais inesperada, da mais estonteante das revelações – idéas ainda emmaranhadas e indeterminadas, confusas e incertas. Não se desenhavam na sua reflexão em tão vivos contornos. Mas no emtanto apossavam-se já d'elle, condensavam-se levando-o ao reconhecimento apaixonado por Valentina, a uma necessidade de lhe pagar em ternura, em culto, em veneração, tudo o que ella tinha feito primeiro pela moribunda, em seguida pelo solitario da rua Lacépède, e por ultimo por elle proprio! Os acontecimentos succediam-se depressa, fornecendo-lhe occasião de provar esta gratidão, e, como acontece sempre quando se está collocado em certas situações d'uma ambiguidade insoluvel, a volta ao respeito do seu lar não podia fazer-se senão á custa de quem lh'o tinha feito profanar.
Atravez d'estes pensamentos e absorvido como estava pela evocação de sua mãe, vivendo de novo pelas palavras da sua agonia, esquecia onde estava e que antes do jantar, sua mulher recebia habitualmente no pequeno salão em que se encontrava. Os creados entravam para executar o seu serviço habitual, accender as luzes, correr os reposteiros e preparar o chá. Norberto não reparava, deveria prever que Joanna de Node, depois da fórma porque o tinha deixado essa manhã, viria certamente saber noticias á tarde.
As recepções intimas das 6 horas da tarde, dadas por Valentina, eram um magnifico pretexto. Mas Norberto esqueceu completamente a existencia da amante. Certos accidentes do destino assemelham-se verdadeiramente aos grandes cataclysmos, ao sahir dos quaes – um incendio como o do Bazar de Caridade, um tremor de terra como o da Martinica – o homem que conseguiu escapar se transformou n'algumas horas n'um outro individuo. O abalo ao mesmo tempo nervoso e sentimental foi demasiado forte. Uma testemunha d'um desastre quasi perturbador da razão, não poderá readquirir mais nem as alegrias, nem as dores d'outro tempo, nem esquecer nunca a commoção soffrida.
Se tinha apenas 25 annos esta manhã, no momento actual tem sessenta, tem cem. Mofava de si mesmo e da vida, e ella lacerou-o na fibra mais intima. A sua indifferença acabou da mesma fórma que a sua jovialidade. Uma outra não se conhecia, nem ao seu proprio coração. Ia em procura de emoções obscuras atravez de experiencias nas quaes não chegava a conhecer o verdadeiro gozo.
Todas essas recordações se apagaram d'um golpe. Aniquilaram-se simplesmente ao contacto d'uma impressão tão forte, tão mordente que não ha mais prazer em torno d'ella. Este ultimo caso era o que se dava com Norberto de Chalinhy. A sua intriga com Joanna, na qual os sentidos tiveram a parte principal, não podia interessal-o mais, senão como um remorso, depois das horas que acabava de passar. Não se havia mesmo recordado de tal intriga durante essa tarde, senão para se censurar amargamente de ter desconhecido por tanto tempo Valentina. Foi por isso que com uma estranha surpresa misturada de tortura e de irritação, viu entrar a amante no pequeno gabinete da esposa, pela fórma porque entrou, sem se fazer annunciar e quando tinha ainda na mão as folhas de papel depositarias do terrivel segredo. Joanna de Node ia em demanda de novidades, depois de ter passado toda a tarde em passeio e em visitas, sempre com a mesma idéa fixa: Chalinhy está na casa da rua Lacépède… O que terá acontecido?.. As mais variadas hypotheses tinham umas após outras surgido ao seu espirito desde o homicidio que de novo reapparecia para logo ser repellido, como insupportavel para a sua consciencia, até á, muito mais provavel e em parte conforme com os factos, d'um inquerito junto dos lojistas visinhos. Conhecia sufficientemente Norberto, para não duvidar de que, tendo-lhe promettido nada dizer a Valentina, deixasse de cumprir a sua palavra.
O que arriscava então em ir ao palacio Chalinhy? Dirigiu-se pois, lá. Disseram-lhe os creados que a senhora marqueza ainda não havia regressado, mas que o senhor marquez estava em casa e ella subiu como tantas outras vezes, com o pretexto de esperar pela prima, mas na realidade para ter com Norberto alguns momentos de conversa, a fim de o interrogar.
Viu logo ao primeiro golpe de vista, que continuava a estar muito perturbado. Por outro lado, aquella secretaria com a gaveta meia aberta, o cofre de couro, que sabia muito bem pertencer a sua prima, aberto tambem, a carta cuja lettra não conhecia, porque Norberto a tapou logo com as mãos; o seu proprio gesto e sobresalto de surpresa que nem mesmo dissimulou – estes diversos signaes condiziam perfeitamente com o estado de violencia e de desconfiança em que ella tinha deixado o marido cioso. Acreditou que, tendo abortado a investigação da rua Lacépède, em volta da casa suspeita, tomou o partido de forçar o esconderijo onde Valentina encerrava a correspondencia intima e que estava em via de encontrar ali a prova em presença da qual a duvida cessaria completamente. O seu apaixonado desejo de que a rival feliz ha tantos annos, ficasse emfim perdida para sempre, brilhou na ancia com que a invejosa, apenas entrou no gabinete, interrogou o amante:
– «Não podeste saber nada lá em baixo?.. De quem é essa carta?.. de Valentina…»
– «Não prosigas, Joanna», interrompeu levantando-se e a sua mão continuava pousada sobre a carta, como para a defender. «Não posso consentir que me falles de Valentina… Enganaste-te… continuou com uma firmeza imperativa e que não admittia replicas. «Sim» insistiu ainda «enganaste-te no que me disseste e escreveste a seu respeito… Procedeste de boa fé e não te censuro por isso; mas peço-te que nunca mais entre nós seja feita a mais leve allusão a factos de que nem sequer me devo recordar, para continuar a prezar-me…»
Joanna de Node ouviu esta declaração, para ella tão completamente inexperada, com uma estupefacção que a paralisou durante um minuto. Lia na physionomia d'este homem, que sempre conhecera tão hesitante, tão complexo, uma resolução inabalavel e viva!
Porque processo a visitante do pavilhão da rua Lacépède, havia transformado esta vontade habitualmente tão vacillante e agora tão firme? Joanna não possuia o menor dado que a habilitasse a responder a esta pergunta. Estava, por outro lado firmemente convencida da culpabilidade de sua prima para poder suppôr que estes processos tivessem sido leaes e sinceros.
A uma amiga que lhe pedisse conselho em igual circumstancia, teria sem duvida, indicado como unico caminho a seguir, uma apparente condescendencia á illusão d'um marido, tão complascentemente enganado contra toda a evidencia, mas o odio á esposa triumphante foi n'este momento mais forte no espirito da amante do que o genio da astucia, e, com um tom de maldosa ironia, retrucou:
– «Felicito-me por não duvidares da minha boa fé. Muito obrigada…
O que escrevi e o que disse, para fallar como tu, escrevi-o e disse-o para quem? Para ti…
Não tens em consideração que depois d'isso ficaste n'um tal estado que me fazias medo. Não vim aqui, esta tarde, senão por esse motivo, pois estava muitissimo inquieta, temendo qualquer violencia da tua parte. Se Valentina foi assás habil para conseguir o que eu não consegui, isto é, para te acalmar, tanto melhor para ella… Mas, lembra-te, bem que no dia em que me quizeres tornar a fallar a seu respeito e das pretendidas revelações que a tia ou alguma amiga lhe tivesse feito, não te deixarei proseguir.
Continuarei a ser sempre sacrificada…»
Norberto fitou-a sem lhe responder. Acabava de communicar com uma alma magnifica n'uma dessas crises em que uma dôr violenta como que nos transforma os sentidos, para os quaes toda a sinceridade e toda a mentira são facilmente perceptiveis. Reconhecia agora, com uma espantosa evidencia, o fundo do coração de Joanna: – a paixão d'essa mulher por elle foi sempre alimentada só pelo seu odio por Valentina! A sua longa fraqueza inhibiam-no de fazer exprobrações que, partindo d'elle, tinham tanto de ridiculas como de odiosas. Sabendo, além d'isso, o que agora sabia, nada constituia para elle uma tão grande profanação, contra a qual toda a sua honra protestava, como ouvir a amante proferir o nome d'essa mulher admiravel. Resignou-se a ficar calado, e para mostrar melhor o seu firme proposito de terminar radicalmente uma explicação insustentavel, começou a pôr tudo em ordem na secretaria, mettendo as folhas da «Declaração», no sobrescripto, o sobrescripto no cofre, e como fechasse o cofre com a pequena chave d'ouro, Joanna que vira durante muitos annos esse pequeno broloque no bracelete de Valentina, começou, a rir com aquelle sorriso insolente que já duas vezes empregára, tendo-se d'ambas ellas Norberto revoltado com o ultrage. D'esta vez ainda estremeceu e as mãos tremeram-lhe. Mas nem uma unica palavra escapou dos seus labios á qual Joanna poderia retorquir com alguma nova insinuação.
Teria ella, se esta entrevista se prolongasse, tido a audacia de afrontar a colera reprimida que devorava o amante?
A existencia d'essa chave nas mãos do marido que deixára loucamente desconfiado, e que encontrava tão estranhamente conformado depois dos indicios altamente compromettedores, era a prova, para ella, de que uma scena qualquer se déra entre os esposos, e que, apertada por Norberto, Valentina empregou o derradeiro artificio das mulheres levadas ao ultimo extremo: exigir uma inquirição, reclamar que os seus papeis intimos sejam vistos na sua ausencia. Teem antecipadamente tudo preparado para que a busca dê em resultado a completa cegueira do accusador. Era assim que, julgando a prima por si, Joanna de Node interpretava um reviramento, tão extraordinario no qual não acreditou nos primeiros momentos, e em que, agora mesmo, só com difficuldade acreditava. Iria formular esta nova accusação e provocar da parte d'este homem que, resolvido a romper com ella, se constrangia para a não maltratar, uma explosão de revolta e de desprezo? A subita chegada da rival, da propria Valentina evitou-lhe essa má acção.
Inquieta por causa do marido que sabia achar-se em disposição de ler a confissão da morta, e fatigada por ter cumprido, na rua Lacépède, o funebre dever, a nobre mulher sentiu uma intensa dôr, quando soube que Joanna a esperava. – Recordou-se de que, durante horas, depois das revelações da tia Nerestaing, se havia debatido contra provas indiscutiveis. (O barão de Node tinha communicado á velha fidalga as informações colhidas por uma agencia, precisando o nome de um hotel de provincia onde os dois amantes passaram tres dias e a data. Essa data coincidia exactamente com uma ausencia simultanea feita por Norberto e Joanna.)
Depois o ruido das suas vozes, vindo do pequeno salão e a transformação subita do avisado, dissiparam as ultimas duvidas da confiante Valentina.
Recordava-se tambem ainda de que na sua alma toda generosidade, toda dedicação, a visão do filho tão terrivelmente, tão subitamente esclarecido a respeito da mãe, a havia arrastado á piedade.
A mordedura do ciume fôra tão aguda que hesitou em entrar na casa aonde se achavam os dois cumplices. A sua emoção foi tal que teve de se apoiar durante um momento contra a parede da casa que precedia o pequeno salão.
Foi então que, recordando-se da violencia com que a mão do marido apertou a sua, primeiro ao descer da carruagem quando lhe foi annunciada tão bruscamente a morte de Raynevilhe, depois junto da cadeira em que o velho amigo da senhora de Chalinhy jazia immovel para sempre, sentiu de novo quanto esse homem, fraco e apaixonado, necessitava d'ella. Ao mesmo tempo, porque era mulher, sentiu um certo orgulho em lhe provar a nobreza d'um coração, que elle desconhecia até ahi, mesmo em presença d'aquella por causa da qual a havia esquecido. Disse, para comsigo mesma: «Não devo saber d'essas vilanias; é a minha unica vingança…» E teve energia bastante para transpôr a porta do pequeno salão e cumprimentar Joanna da mesma maneira porque o teria feito oito dias antes, quando de cousa alguma desconfiava ainda.
– «Vim mais tarde, é uma falta imperdoavel, da qual espero me desculparás, Joanna… Devias ter preparado o chá. Fazes o obsequio de o servir emquanto vou tirar o chapeu?»
– «Estou um pouco incommodada», respondeu a outra. «Vim unicamente saber noticias tuas. Vou-me já embora. Esperam por mim na rua Barbet e é já tarde.» E, fitando Norberto com um olhar d'um impudôr e d'uma dureza singulares, accrescentou «Teu marido esperava por ti. Encontrei-o tão impaciente para te ver, que evidentemente estou aqui demais…» Fixou a prima d'uma maneira que deixava transparecer todo o seu antigo odio, exasperado pelo choque inesperado e para ella inexplicavel, que soffreu n'uma lucta em que tanto desejava triumphar.
Tinha ainda no olhar uma peor e mais insultante ironia, a d'uma mulher que, mentalmente, diz para outra: «Podes ludibriar á vontade esse imbecil, mas a mim não me enganas tu, minha menina…» Depois disse alto: «Supponho que terão muitas cousas que dizer um ao outro. Deixo-os, pois, na paz domestica!..»
E sahiu, depois de proferir estas palavras, que tinham, na sua bocca, uma bem insolente significação. Norberto e Valentina sentiram egualmente a crueldade d'uma tal ironia, n'aquella occasião. Ficaram alguns instantes sem proferirem uma unica palavra, depois, ajoelhando-se em frente da esposa e tomando-lhe as mãos entre as suas, o marido infiel disse quasi em segredo:
– «Será bastante a minha vida inteira para tudo te pagar?..»
– «Pagar-me, o quê?» respondeu Valentina. «O ter-te amado sem t'o saber mostrar? Conhecel-o agora. Não estou a lamentar-me.» Proseguiu depois, obrigando Norberto a levantar-se, e appoiando a cabeça fatigada sobre o hombro d'esse homem que sentia, emfim, pertencer-lhe:
– «Quem devemos lamentar são os que são amados sinceramente e que não teem direito a sêl-o, os que não podem ser verdadeiros para comsigo mesmo sem mentir aos outros, aquelles cujas felicidades podiam ter evitado muitos soffrimentos a si e aos outros… Lastimal-os, tu?» perguntou ella.
– «Lastimo-os, sim», respondeu Norberto, e na inexpremivel emoção de tantas maguas e de tantos erros, esses dois entes trocaram o primeiro beijo de amor que um e outro deram e receberam.
Esta historia d'um episodio romanesco, desenrolado no meio menos romanesco que existe, a alta sociedade parisiense, não ficaria completa se o chronista não transcrevesse aqui – sem commentarios, como vulgarmente se diz em estylo de gazeta – o final d'um dialogo que surprehendeu uma noite, no theatro, do fundo d'uma frisa, que habitualmente frequentava, menos para gosar o entrecho das peças que se representavam no palco (levava-se n'aquella noite um drama no qual se fazia a apologia em regra da união livre!) do que para admirar aquella ou aquellas que lhe era licito adivinhar no vasto salão.
Uma das interlocutoras era a senhora de Bonnivet, de que já fallámos e Saveuse, tambem nosso conhecido, ignorando um e outro que fallavam deante d'uma testemunha que conhecia o facto bem melhor do que elles proprios; commentavam:
– «Sabe V. Ex.ª qual é a novidade mais palpitante?» dizia Saveuse, «a ex-baroneza de Node desposou um americano extremamente rico, chamado Harris, de New-York, o irmão do primeiro marido da princeza d'Ardêa.»
– «Era uma amiga» respondeu a senhora de Bonnivet. «Se fôr para os Estados Unidos teremos uma mulher divorciada menos a receber e a sermos recebidos por ella, conforme os dias. E que qualidade de pessoa é esse tal Harris?»
– «Um homem encantador, um bonito rapaz e muito apaixonado por ella», respondeu Saveuse.
– «Ainda bem!» repetiu a senhora de Bonivet, «tinha todo o direito a alguma felicidade desde que Chalinhy a deixou tão indignamente. Vamos tornar a ver este triste personagem. Visto que Joanna vae deixar Paris, Valentina com certeza lhe permitte que volte por cá. Depois de doze mezes passados no campo e d'um filho! Acho tudo isto d'um ridiculo espantoso, repugnante mesmo. Não haveria melhor maneira de fazer saber ao mundo que se era enganada e que tudo se perdoou?»
– «Não sabe então ainda o melhor», insistiu Saveuse, «que não usam já ou vão deixar de usar o appellido Chalinhy. Trabalham para restabelecer o nome de Nerestaing…»
– «É por causa do Castello. Isso é muito ridiculo,» replicou ella rindo.
Ha ainda cousas tão profundas como as aguas tranquillas e como as bellas almas silenciosas. É a ignorancia e a maledicencia das amigas e sobre tudo dos amigos.