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Kitabı oku: «O Inferno», sayfa 12

Callet Auguste
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CAPITULO SEGUNDO
Resposta a uma objecção

Fallei da multidão dos condemnados, e tirei d'esse facto, contra a eternidade das penas, inferencia que me parece valiosa. É certo que a maioria dos homens seja condemnada? Os fieis, que estudaram este assumpto em livros modernamente escriptos, crêem que não, e vos dizem que os philosophos maliciosamente assacaram aquella opinião aos seus adversarios para os tornar odiosos. Não duvidam que ha inferno; não os inquieta a natureza do supplicio, mas sim a quantidade dos suppliciados. Mil, cem mil, um milhão d'almas a padecerem eternamente parece-lhes coisa muito de crêr-se, moralissima, certissima. Não póde suppôr-se que o inferno esteja vasio; aliás melhor seria supprimil-o. Um milhão ou alguns milhões d'almas, se Deus as abandona, tambem ellas abandonam a Deus; é bastante para exemplo, é bastante para justiça; porém metade do genero humano e mais de metade, é excesso, é monstruoso: não se crê. Não é isso, quer-nos parecer, a boa nova que celebraram ha mil e oito centos annos os magos e os pastores nos caminhos de Bethelem. Mas os velhos dogmas de Israel por tal arte andam baralhados com as verdades christãs, e tanto a primitiva Egreja com elles se identificou formando um corpo doutrinal, que um homem instruido não póde hoje, sem risco de heresia, tentar separal-as.

Sem embargo, opera-se no seio do christianismo um singular trabalho, de que o clero não dá tento, bem que a iniciativa de ha muito proceda d'elle mesmo. Este trabalho de que as obras de Sanchez, de Escobar, do padre Annat, do padre Lémoine, e d'outros casuistas, tão agramente invectivados por Pascal, eram apenas indicios, tende a neutralisar cada vez mais a acção n'outro tempo tão vigorosa dos elementos hebraicos do christianimo. Sentimentos, que debalde quereriamos suffocar, rompem á luz; o coração reclama, bem que timidamente, seus direitos; a consciencia, constrangida debaixo do pezo de abafadoras tradições, não repulsa, mas a tremer levanta do peito o fardo, como para respirar. Verdade é que ainda nos pregam os velhos mysterios da synagoga; mas, ao mesmo tempo, cuidam em dissimular-lhes as consesequencias logicas relativas á vida futura, e – notabilissimo caso! – não insistem nas consequencias praticas, no tocante á vida presente. Este ultimo facto, muito significativo, provém dos casuistas. Foram elles quem primeiro quiz achanar aos homens a estrada do céo. Como não soubessem conciliar as necessidades da vida terrestre com as da fé, e não ousassem embarrar pelo inferno, com medo de torriscar os dedos, derruiram audazmente a moral. Graças lhes sejam dadas, que isto de peccados mortaes está por um fio! O assassino, mal lavou as mãos, e o perjuro mal lavou a lingua, são admittidos ao sagrado banquete, O pulpito continua a fuzilar trovoadas minacissimas; é ainda Isaias e S. Paulo a bradarem; mas, no tribunal da penitencia, os coriscos apagam-se; quem confessa é o tolerante padre Lémoine, que perfeitamente percebe que uma duqueza, uma capitalista, uma burgueza opulenta não podem viver de favas, nem trajar de serguilha, nem dormir no taboado, nem imitar sequer de longe a perfeição negativa das santas reclusas, cujas virtudes andam celebradas nos pulpitos. Descobrir, porém, no complexo dos actos dos homens, o limite exacto do dever, isso é desvario: ou prohibir, ou permittir tudo quando se renuncia e dirigir verdadeiramente as peccadoras mundanas para o antigo ideal da abstinencia ascetica. O theatro, o baile, os hombros nús, a maledicencia, as prodigalidades do luxo, a parcimonia das esmolas, a lisonja, a ambição, a cupidez, a ingratidão, as desavenças, tudo passa, tudo é venial, nada impede da desobriga. Nem o juiz nem o penitente conhecem regra. O mais virtuoso e austero padre póde ser integerrimo no pulpito; mas, no confessionario, treme, receia afugentar a alma que o procura; lembra-lhe o Bom Pastor, o céo promettido ao ladrão que se accusa, o perdão da adultera, e involuntariamente contribue a facilitar as quedas, e as reincidencias, facilitando a expiação. Pois os primitivos christãos não tinham ouvido fallar do bom ladrão, e da mulher adultera, e da parabola do Bom Pastor? Comparem com a disciplina de hoje a de então que eu já referi. Se o padre Lémoine lesse nas catacumbas um capitulo da Devoção commoda, o congresso de fieis e martyres surgiria em pezo contra tal innovador, e o bispo excommungal-o-hia. Tenho minhas duvidas que o proprio S. Francisco de Salles o tractasse bem. É que os primitivos christãos nunca perdiam d'olho Satanaz, peccado original, inferno, e conformavam o seu procedimento, não a tal artigo de fé ageitada a dar alentos á esperança, mas ao complexo tremendo da doutrina que aprendiam.

A harmonia que primordialmente se deu entre a disciplina da Egreja e as crenças da Egreja, está por tanto desde muito desacorde. Port-Royal tentou afinal-a. Foi esse o segredo da sua lucta com os casuistas mas os casuistas venceram. A contenda acabou.

Meditemos agora nas consequencias logicas dos nossos dogmas, relativos á outra vida, dos esforços que debalde se envidam para lhes amaciar as asperezas e edulcorar-lhes o travor, com medo de que lhes não atirem fóra copo e remedio.

Em louvor dos theologos modernos, declaro que poucos ha que possam encarar impassiveis a multidão de pagãos e hereges que regorgita do inferno – multidão que sem intercadencia augmenta com muitos milhares d'almas cada dia, muitos milhares cada anno. Elles, pois, escondem as vinganças divinas, em vez de nol-as mostrarem, no seu trilho aterrador á maneira dos antigos. Quando cuidam em nos animar, tambem elles se animam em seus proprios quebrantamentos, sentindo que a piedade desborda e arrasta a fé; e não só a piedade, mas tambem a justiça.

S. Thomaz de Aquino, incapaz de ceder unicamente á piedade, estacou diante d'esse problema de justiça, e diligenciou, a seu modo, resolvêl-o, por feição que podesse, sem offensa da fé, contemporisar com a sua razão.

Imaginou um justo fóra da Egreja, ignorando as verdades salvadoras, e predestinado ao inferno por culpa de sua ignorancia. Ora um anjo celestial, quando este justo agonisava, desceu a revelar-lhe a verdade, dando-lhe assim entrada na Egreja por uma porta falsa, e mantendo por este theor milagrosamente a inteireza dos dogmas. Pouco importava a S. Thomaz, tão grande e inflexivel logico, salvar as regras explicitamente formuladas pelos concilios; e, se taes regras podiam ferir a justiça, lá estavam os anjos para concilial-as. O que elle queria era salvar os gentios.

Mas, hoje em dia, os theologos avantajam-se a S. Thomaz. Já não ha recorrer a milagre. Dizem que, se entre infieis, e até entre os hereticos, ha pessoas honestas, Deus bem as vê: essas pertencem á Egreja, não corporal, mas espiritualmente; creem implicitamente as verdades que ignoram, e basta isso: são catholicos lá do seu feitio. É pois prohibido condemnar a esmo gentios e hereges, cegos innocentes, virtuosos transviados, erros invenciveis7. Já se diz que ninguem é condemnado, tirante os máos, qualquer que seja a religião que professem.

Bella é a linguagem, mas tambem é evidentemente illusoria; por onde vamos vêr que tal piedade, bem que sincera, não póde aproveitar a alguem. Vós não condemnais todos os gentios nem todos os hereges; é verdade. Os dogmas que nos ensinais é que os condemnam. Ora, se, acaso, os cinco dogmas tirados do judaismo fossem falsos, bem sabemos que não estava em vossa alçada condemnar, ainda que o quizesseis, um só idolatra, por peor que houvesse sido; mas, ao invez, se taes dogmas são verdadeiros, tambem sabemos que não cabe em vossa alçada salvar um só gentio nem um só herege, ainda que o quizesseis. Mais: em virtude de taes dogmas, é de fé que o homem nasce máo, e que o crime que lhe mancha o berço, explica, mas não lhe justifica os erros da vida. Irroga-se culpa a quem se liga á religião de sua familia e patria, quando tal religião não é a genuina. Se assim não fosse, vêde bem que melhor seria ter nascido sarraceno que catholico; que um turco salvar-se-hia procurando de boa fé, como os patriarchas, prazeres que a nós nos perdem para sempre; e o maximo das bençãos seria nascer e morrer selvagem, n'alguma ilha incognita, longe dos formidaveis clarões que nos privam de desculpar com a ignorancia os nossos peccados. Fossem embora salvas alguns milhares de creaturas apenas entre os billiões d'ellas que morrem em peccado original, uma duzia só que fosse, seria que farte para argumentar que ha salvação fóra da Egreja, e sem algum dos soccorros extraordinarios de que ella dispõe. Estes theologos tolerantes não reparam que inutilisam a revelação, que despojam a Egreja das chaves do céo, ou, pelo menos, indiciam que ha chaves em duplicado para lá entrar, e que judeu, musulmano, lutherano, philosopho, todo homem honrado tem uma chave. A opinião assim pelo claro não ousariam elles exhibil-a, e, a bem dizer, tudo aquillo não é opinião sua; é, melhor ainda, expansão de alma que aspira á verdade e justiça; é protesto da humanidade christã contra o judaismo, protesto mais revelante por não ser voluntario, nem saber-se a si mesmo comprehender. O raciocinio não é o essencial do protesto, como em S. Thomaz d'Aquino; quasi que não é parte em taes discursos, pois que os discursadores não concluem como deviam, se raciocinam; e não podem fundamentar a sua argumentação sobre ensino authentico da egreja8. É mister, por desgraça, renunciar á orthodoxia ou condemnar despiedosamente mais de tres quartos do genero humano. O justo, estranho á Egreja, a quem nos prohibem de offerecer a mão, não existe aos olhos da fé: é um phantasma que avulta á vossa piedade. Se ha ignorancia involuntaria e invencivel, não é a do idiota? Ora ahi está! o idiota, o cretino, o aborto sem olhos nem ouvidos peccaram no ventre materno, peccaram mortalmente, e só pelo baptismo conseguirão justificar-se. Como é então que ha de subtrahir-se ás tentações e ás sincadilhas de que tanto a custo se escapam os filhos da Egreja, um ente egualmente viciado em sua natureza, mas mais livre, se envelheceu sem revelação e sacramentos? Onde ganhará elle amor ao bem e vigor para pratical-o? Tal hypothese é heresia por atacado; só poderemos aceital-a como excepção milagrosa; e, n'essa qualidade, não vingaria dulcificar o sentir que esperta em nossa alma o perpetuo inferno, onde, ha seis mil annos, se vão acamando as gerações humanas.

CAPITULO TERCEIRO
DA DESCIDA DE CHRISTO AOS INFERNOS

Descendit ad Inferos; tertià die resurrexit à mortuis; ascendit ad c[oe]los, sedet ad dexteram Patris, indè venturus est judicare vivos et mortuos.



Credo in Spiritum sanctum, in sanctam Ecclesiam catholicam et apostolicam, in communionem sanctorum, in remissionem peccatorum, carnis ressurrectionem et vitam æternam. Amen.

(Symb. apostolorum).

I

O Filho do homem, expedindo sobre a cruz sua vida mortal, desceu aos infernos. Não é o Evangelho que o refere; é um documento não menos venerado, o qual, com o Pater e Ave, é parte das orações que a Egreja ensina aos seus filhos: documento, ao que parece, anterior á redacção dos Evangelhos e resumo da fé apostolica: é o Credo.9

Jesus morto vai annunciar aos mortos a boa nova: Satanaz vencido, os peccadores resgatados, o céo aberto aos que oram, aos que choram, aos que soffrem. Para estes exclusivamente é que seu sangue aspergiu o chão do calvario. Jesus não dispensa da penitencia os que morreram culpados; mas dá-lhes a esperança que as antigas crenças deixavam luzir na terra sómente, e apagavam no tumulo.

Sei de sobra que os theologos querem que o inferno, visitado por Christo, não seja o verdadeiro inferno; mas sim o limbo, o purgatorio, os seis primeiros circulos da Géhenna, e não o ultimo. Esta distincção, porém, não está no Credo. O inferno ahi diz-se com todas as letras, e, mais pelo claro, os infernos, como quem indistinctamente diz todos os logares de soffrimento onde podem penar os mortos.

«Desceu aos infernos, diz o Credo, e ao terceiro dia resurgiu dos mortos.»

Quem eram esses mortos com quem Jesus passou trez dias? A interpretação natural é – todos os homens que, desde o principio do mundo, haviam desparecido de sobre a terra; não só patriarchas e prophetas, senão todos os judeus; não só todos os judeus, mas todos os gentios. Eis aqui, entendidas ao natural, o que dizem as palavras: «Desceu aos infernos, e habitou trez dias com os mortos.» Quereis dar áquellas palavras uma accepção espiritual? Temos ainda mais. luz na questão. Os mortos espirituaes são os condemnados, os que eram considerados em perpetua privação dos resplendores eternos. Não são os prophetas, os patriarchas, os eleitos, os santos, nem ainda alguns d'esses que por peccados haviam merecido as penas temporarias, por que não estavam espiritualmente mas só carnalmente mortos, crendo, esperando, amando, vivendo. Seja qual for a interpretação adoptada, leva-nos a concluir o inverso do que os theologos affirmam. Do citado trecho do Credo colhe-se que Jesus desceu, não só ao limbo, mas tambem ao inferno, não só aos patriarchas que esperavam sua vinda, – explicação acanhada e violenta dos hebreus conversos e dos christãos judaisantes – mas aos mortos de todos os tempos e paizes, aos peccadores que a lei antiga e antigas crenças haviam ferido de morte espiritual, eterna, incuravel, da verdadeira morte. O Redemptor, o Crucificado, o Messias visitou-os, mostrou-se-lhes, e elles rejubilaram ao verem-no e choraram lagrimas d'amor d'aquelles olhos aridos. Jesus não destruiu o inferno; converteu-o em purgatorio. Do inferno judaico e gentilico fez o inferno christão, inferno que corrige, inferno onde ha o chorar sem blasphemar, onde ha o soffrer sem desesperança nem rancores.

Outras luzes póde dar o symbolo dos apostolos ás almas piedosas. Mais abaixo, diz: «Creio na vida eterna» mas não diz: «Creio na morte eterna.» Este horrivel dogma não se lê no credo apostolico. Se ahi se falla em infernos é para nos ensinar que Jesus Christo lá foi, e de lá sahiu, mas como devia sahir, vivo, glorioso, triumphante e bemdito.

Diz finalmente o Credo que Christo subiu ao céo, onde está sentado á dextra do Padre, d'onde virá a julgar vivos e mortos.

Quaes vivos? os justos? Quaes mortos? os peccadores, os ultimos povoadores da terra e os antigos habitantes d'aquellas tenebrosas mansões onde a esperança radiou com o Christo quando tudo foi consummado na Cruz? Não é possivel que uma só palavra tenha dois sentidos com tão breve intervallo. Quereis que os mortos d'entre os quaes resurgiu ao fim do terceiro dia sejam os antigos reprobos? Tambem eu quero. Quereis antes inferir de taes palavras que os nossos avós judeus e os pagãos, quantos então eram mortos, viveriam, n'outra parte, jubilosos ou suppliciados? Tambem eu quero. Adoptai um sentido, ou outro, ou ambos juntamente, que a mim não se me dá d'isso. O que ha de sempre forçosamente reconhecer-se é que a phrase representa a mesma idêa significada uma ou duas linhas abaixo. Será, conseguintemente, preciso confessar que os mortos visitados por Christo são os mesmos que elle virá julgar quando julgar os vivos. Direi pois logo que na descida aos infernos, Jesus morou trez dias não entre os justos esperançados, mas entre os condemnados á desesperação para os ungir de seu sangue, consolal-os e salval-os. E, senão, para que os visitou?

Faz-se mister prescindir de entender qualquer palavra divina ou humana, se do Credo se colhe o dogma das penas eternas. Não está lá: o contrario é que está. O veneravel texto é mil vezes mais luminoso que todas as glosas dos doutores.

II

Viveu Origenes quasi coevo dos tempos apostolicos. Toda a gente ouviu fallar da santidade de seu viver, pureza de costumes, alento nas perseguições, vasta sabedoria e raro engenho. Pois ainda assim, aquelle insigne doutor, e illustre confessor de Christo, negava as penas eternas. Acaso receberia elle a verdadeira tradição dos apostolos, ou, á força de reflectir, atinára com a genuina accepção do Evangelho? Não sei. Todavia confesso envergonhadamente que ainda não li as poucas obras restantes que tão assignalado sujeito escreveu sobre tal materia. O que mais sei é que foi condemnado, muito tempo depois que morreu, por um edito do imperador Justiniano, e anathematisado, com a porção da obra relativa ás penas eternas, por o concilio ecumenico de Constantinopla, anno 553.10 Não se deram os bispos á canceira de provar que elle era ruim logico; declararam-o herege, que era mais summario, e por contagem de votos.

É muito para notar que o primeiro concilio ecumenico de Nicea, anno 325, e o segundo de Constantinopla, anno 381, se abstivessem de decidir sobre a doutrina de Origenes, ainda nova e florecentissima, e á conta d'isso mais funesta, se por ventura escondesse perigo. Divergiam sobre o assumpto as opiniões dos padres d'aquelle tempo? Recusariam não se conciliarem? A questão confundil-os-hia? Inclino-me a crer que sim. O mais notavel documento que os dois concilios nos deixaram, denota indecisão de natureza a um tempo estranha e evidentissima: é uma profissão de fé muito particularisada, a mesma que hoje se entôa aos domingos na missa cantada nas egrejas do oriente e occidente.

O concilio de Nicea, ao redigir o symbolo da sua fé, desenvolveu em certos pontos o symbolo dos apostolos; mas, quanto ao mais, abreviou aquelle antigo symbolo, e o que mais espanta é a suppressão completa do descendimento aos infernos.

O concilio de Constantinopla, adoptando o symbolo de Nicea, aperfeiçoou-o, e additou-lhe alguns artigos, mas não lhe repoz a descida aos infernos.

Que quer dizer esta eliminação? Desceu ou não desceu Christo aos infernos? Se desceu, por que o não dizem? Acham que é insignificante o caso? Não merecerá a pena relembral-o?

Felizmente o symbolo dos apostolos subsiste, e os de Nicea e Constantinopla não vingarão desluzil-o.

CAPITULO QUARTO ADVERTENCIA FINAL

I

As idêas que empreguei no discurso d'esta obra andam por tantos livros disseminadas, e prégadas de tantos pulpitos, e tão notorias e populares, que me não temo de que m'as neguem. Diligenciei exprimir claramente os dogmas, preceitos, maximas, opiniões sempre admittidas nas faculdades de theologia, nos seminarios e conventos: era acto de boa fé e tambem de prudencia; que toda minha argumentação claudicaria, se eu attribuisse aos propugnadores do inferno linguagem que não fosse a d'elles.

Fui eu quem inventou a queda de Satan, o poder e maleficios da corte infernal, o peccado do Eden, e a maldição dos homens? Fui eu quem encerrou no claustro o ideal da perfeição christã? Fui o auctor das sentenças desesperadoras fulminadas contra o mundo e contra os affectos e luzes naturaes, contra o bom siso e contra a vida? Inventei eu as devotas reflexões, azadas para mirrar os corações das mães e dos filhos, e uns pensamentos afogueados que calcinam o cerebro como o alcool, embrutecendo uns, e desvairando outros em devaneios melancolicos? É culpa minha se o inferno parece coisa atroz? Não suavisei eu em vez de encarecer as pinturas conhecidas? Se é immoral, estava a meu cargo mudar-lhe a condição? Attribui eu ao padre Bohours palavras alheias, ou a S. Bernardo coisa que elle não dissesse?

É verdade que eu muitas vezes poderia auctorisar-me com textos, e dizer em grego ou latim, ou italiano ou allemão, em nome d'outrem, o que expuz a meu modo. Mas que tinha eu a ganhar com esse systema? Nenhuma das idêas que discuti pertence nominalmente a este ou áquelle theologo; junta ou separadamente todas lhes pertencem: é dominio commum. Seria apoucar e abater a questão conferir a uma crença tradicional visos de opinião particular. Acato a virtude, admiro o engenho, onde quer que os encontro, até nos mesmos que me ameaçam com as penas eternas; não mal-quero por tanto a S. Gregorio, nem a S. Jeronymo, nem ao padre Nicole, nem a algum theologo morto ou vivo. Não me estive a quebrar lanças com personagens mais ou menos eminentes: que são apenas eccos de doutrinas que vogaram muito antes d'elles. Se eu tivesse em cada pagina citado um doutor, julgar-se-hia que os outros doutores, não mencionados, depunham contra mim. Não aconteceu isso a Pascal? Nomeia elle as suas testemunhas, transcreve-lhes litteralmente as proposições, e vos remette ao volume e pagina d'onde as trasladou; pois responderam-lhe que se as proposições que elle combate estão nos livros d'onde as copiou, a culpa é dos auctores, e não da companhia que os instruiu. Claro está que eu tenho por mim auctoridades muito mais embaraçosas que os padres Petau, Penterau, Hurtado, Bille, Sanchez, Suarez, Escobard, Bauny, Molina, Reginaldo, Tannero, Filicitius e Azor. Tenho-as numerosissimas, a ponto de a mim mesmo me embaraçarem. Qual hei de escolher entre tantas? Que mais vale uma do que outra? Um capuchinho canonizado vale ou não vale um papa não canonizado, mas fallando ex-cathedrâ? E de mais um só auctor, por extremo que fosse o gráo de sua respeitabilidade, bastaria a tapar a bôcca aos altercadores? Quantos textos seria preciso adduzir para authenticar certas phrases alcunhadas de perigosas, levianas, absurdas e escandalosas? Quantos padres, papas, bispos e doutores teria eu de dispôr em batalha a meu favor? Confesso que não sei. Fui, pois, sobrio em citações, não por mingua do assumpto, mas antes por excesso. Convençam-se de que não ha linha n'este livro á qual eu não podesse cerzir, se me aprouvesse, paginas inteiras, senão volumes de annotações justificativas, hauridas nas fontes mais puras, mais frequentadas e veneradas.

Similhante lavor, porém, ainda que eu o compendiasse á essencia do debate, cansaria a paciencia dos leitores, que se dispensam de tão barbaro apparato para saberem ao que devem atter-se do que lhe ensinaram desde o berço. Mas as provas de memoria as sabem; sobejam-lhes nas suas livrarias; não carecem de folhear concilios, obras de santos padres, bullarios, constituições de bispados, revelações de Santa Catharina, Santa Thereza, e outras bem-aventuradas; não se lhes faz preciso consultar Bossuet, Bourdaloue, Massillon, nem outros illustrissimos oraculos que nem sempre nos estão á mão. Mais boas de encontrar são as minhas provas: acham-se nos labios e nos ouvidos das creanças que estudam o cathecismo; acham-se em mãos de nossas irmãs, esposas, e mães, na sua Imitação, no Quotidiano christão, no Combate espiritual, na Vida dos Santos, no Livro d'ouro, no Pensai-o-bem, e em milhares de livrinhos d'este jaez, approvados pelos bispos e universalmente manuseados.

Os paladinos do inferno, se os houvesse, não ousariam, talvez, atacar as passagens d'este livro, de antemão atalaiadas d'uma guarnição formidavel de batinas, de chapeos vermelhos e de barretes; mas quem sabe se atacariam como abastardados, alterados, e erroneos os trechos que eu desprecavidamente não defendesse? Em tal caso, nada me valeria amontoar notas. Se m'as pedirem, eu lh'as darei em quantidade que lhes pareça de mais. Convenho, se quizerem, em incommodar com ellas os adversarios; mas tão sómente os adversarios; quanto ao publico, a minha intenção não é adormecêl-o; antes eu quizera acordal-o, esclarecêl-o e agradar-lhe. Mal andaria eu se, a proposito de taes polemicas, sacudia aos olhos dos leitores a poeira dos meus livros traçados!

7.Veja entre outras obras os Estudos a respeito do Christianismo por Nicolas, tom. III, c. 14. Este livro foi approvado, louvado e recommendado pela auctoridade ecclesiastica, e nomeadamente por Mons. Cardeal Donnet, Arceb. de Bordeaux. O padre Lacordaire protegeu-o assignaladamente, considerando-o a mais completa e melhor apologia da fé catholica.
8.Este ensino multiplicou-se com diversos aspectos: peccado original; necessidade do baptismo; ha uma só fé e um só baptismo; fóra da egreja não ha salvação; necessidade dos sacramentos da penitencia, de confirmação, etc., como auxiliares de nossas enfermidades, depois do baptismo, necessidade e conjunctamente insufficiencia da prégação e da leitura; inefficacia das boas obras sem os sacramentos; manhas e poderio de Satan; impossibilidade de viver e morrer em estado de graça fóra da Egreja que é a dispenseira das graças, etc., etc. Encheriam um volume os decretos, promulgados áquelle intento, e os anathemas fulminados contra quem houvesse dito ou viesse a dizer o contrario d'esses decretos.
9.Conta-se que os apostolos, antes de se apartarem para levar aos gentios a boa nova, trez annos pouco mais ou menos depois da morte do divino Mestre, se reuniram e compozeram o Credo, elenco das verdades cujo ensino lhes fôra confiado. O Evangelho ainda não corria escripto. Só depois da separação, é que foi composto o de S. Matheus, que antecede a todos. O symbolo da fé apostolica tambem não andava escripto; mas ensinava-se de cór aos fieis, e por isso longo tempo se conservou na Egreja, bem como a tradição egualmente oral da sua origem.
10.No anno 321, Origenes foi denunciado ao Concilio de Alexandria, e interdicto do sacerdocio. S. Jeronymo attribue esta condemnação a ciumes e invejas que inspirava a eloquencia de Origenes aos Padres reunidos n'aquelle Concilio.