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Kitabı oku: «O Inferno», sayfa 3

Callet Auguste
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II
Explicação natural das tradições pagãs ácerca do inferno

Que monta recorrer a revelações miraculosas? É facilima coisa explicar naturalmente as tradições pagãs ácerca do inferno.

Este social estado que conhecemos, no qual o direito de cada um é definido por lei, e protegido por força publica, não é o primitivo estado do genero humano. No principio, a unica sociedade foi a familia, e, por extensão, a tribu. Cada homem se protegia a si, e sahia em desaffronta propria; parentes e servos bandeavam-se na pendencia, e a menor tentativa contra o direito privado espadanava ondas de sangue. N'esses remotos tempos, vingança e justiça eram uma só cousa.

Ora, é verdade que a vingança procede do sentimento de justiça, mas ultrapassa a justiça sempre, porque é egoista, cega, orgulhosa, colerica, não mede, não se compadece, dá mal por mal, e usurariamente o dá. A mais antiga das leis judaicas, a lei cruel de talião, foi lei misericordiosa; abalisou as retaliações; cabeça por cabeça, olho por olho, dente por dente, e mais nada. A vingança queria mais: arrancava os dois olhos, e não se saciava. Na Thracia, em Grecia e Roma, nas Gallias, na Germania, em toda a terra houve tempo em que os inimigos captivos eram sacrificados aos deoses, e estrangulados pelos sacerdotes do altar. Os que o ferro poupava eram ainda mais dignos de compaixão: condemnavam-os á escravidão com a sua posteridade – ao trabalhar sem proveito, e á miseria infinita. Entre as familias, tribus e raças ardiam odios hereditarios; pagava o innocente pelo culpado, porque era commum dever o assassinal-o.

E tudo isto se figurava justo, e hoje ainda entre as nações christãs, aqui e alli, subsistem vestigios d'estes antigos costumes.

Se insistem em que os pagãos conheciam o peccado original, a maldição do genero humano e as penas eternas, força é confessar que elles, segundo procediam, procuravam incitar a justiça divina. Que melhor modelo lhes sahiria a ponto?

Para lhes condemnar o procedimento é mister conceder que elles de Deus e da sua justiça apenas tinham falsa idêa. Phantasiavam Deus á sua similhança, vingativo, descaroado. D'ahi, a idêa das raças malditas, dos crimes e castigos hereditarios. D'ahi os pavorosos sonhos do inferno sem fim, dos máos abrazados e espedaçados vivos, dos algozes enfurecidos sobre as suas prêas immortaes, o chorar incessante, o suspirar sem echo, e os engenhosos supplicios todos do Naraka, indostamio inferno que ainda flammeja, e do Amenthi, egypcio, e do Tartaro grego, antigos infernos já agora apagados e que ha tantos seculos não mettem medo a ninguem.

III
Como o sacerdocio perpetuou estas tradições

A par e passo que a humanidade se illustra, vemos adoçarem-se por toda a parte as leis e os costumes; as religiões, porém, essas não: antes querem morrer que mudar; conservam como deposito precioso e inviolavel doutrinas antiquadas sem parentesco com as idêas e as necessidades das sociedades novas. Continuam a prégar aos povos policiados deoses ferozes. Faz-se mister um dia arrancar ao cutello sagrado as victimas humanas. Na Gallia foi forçoso derruir as áras e immolar os sacerdotes para acabar com os sacrificios abominaveis. Dá Moysés aos judeus a lei de talião, mas reserva a Jehovah a vingança, como os poetas gregos a reservavam a Jupiter. Querem homens bons e um Deus cruel, homens justos, e um Deus iniquo; e, sendo isto repugnante, fazem da justiça divina um mysterio, com a declaração de que o não podemos perceber. Préga Jesus exclusivamente a caridade, e morre em um madeiro perdoando a seus algozes. Tratam de conciliar a sua doutrina com os rabbinos, e logo nos figuram um Deus de duas faces: a doce face do Christo que contempla a terra, e no inverso d'esta face augusta e ungida de lagrimas, a face irritada de Jehovah, o Deus exterminador, o Deus inexoravel que persegue os filhos pelos crimes dos paes.

IV
Exemplo de um povo que permanece fiel a todas as suas antigas tradições

É a tradição a memoria do genero humano. Cumpre não menosprezal-a á conta das verdades que ella propaga; todavia não devemos escutal-a de joelhos, á feição de oraculo, por causa dos erros que a deturpam atravez de todas as edades e nações.

Que nos faz a nós que os antigos crêssem nas penas eternas? Não será isso que as tornará eternas, se ellas o não são. Mais antiga que todas as opiniões dos homens é a bondade de Deus; e as verdades moraes bem como as physicas dispensam o nosso consentimento para subsistirem.

Pois não girava a terra quando a julgavam immovel? Não era odiosa a escravidão quando a julgavam justa? Ha na profundeza do ceo estrellas que nossos paes não viram e nós vemos; e ha outras cuja luz não alcançamos e nossos netos verão brilhar.

Cumpre ver o ceo com os nossos olhos, e não com a vista dos que já são mortos. Não seria blasphemia crêr n'um Deus vingador, quando em seu proprio coração o homem não tinha discriminado entre justiça e vingança, e por isso a Deus se concediam sentimentos e acções que n'este mundo eram honrosos. Attribuir-lhe, porém, acções que passariam por injustas, se commettidas fossem, seria arrogar-se o homem direitos de fazer-se melhor que Deus; e fôra verdadeira impiedade imaginar um Deus tal que envergonharia quem o imitasse. O passado lá vai. Os antigos deram suas contas; nós temos de dar as nossas. Quando um caminheiro cáe na estrada, quem se levanta côxo é elle e não seu pai. Qualquer crime que perpetreis servos-ha imputado a vós. Desquitar os homens, em nome das tradições, da responsabilidade da sua fé, seria remil-os da responsabilidade das suas obras. Ha quatro mil annos que os hindostanicos são escravos dos mesmos prejuizos, acorrentados nas mesmas castas, vinculados ás mesmas praticas, rojando e palpando no mesmo circulo d'erro e miserias, á similhança dos seus condemnados, no dedalo tenebroso e sem sahida do seu inferno. N'aquellas regiões morre o homem na condição em que nasceu: representa servilmente seu já morto pai, pensando e operando como elle. É, quanto menos póde ser, pessoa distincta e nova; é-lhe quasi inutil a razão; a memoria lhe basta; nem a consciencia vive em 'si; está fóra nas tradições oraes ou escriptas que reverenceia cegamente, porque antes de vir ao mundo já eram veneradas. Se ha verdade é o que essas tradições dizem; bem, é o que ellas ordenam; mal, é o que ellas prohibem.

Investigar para que? Que mais quer elle? Bello reclinatorio para a preguiça! Excellente desculpa para vicios! Valente obstaculo para virtudes!

Uma das glorias de Christo, um dos espinhos da sua corôa santa, foi contrapôr o direito da consciencia individual á tyrannia das opiniões, tradições e escripturas judaicas. Ensinou-nos elle a sobrepôr o juiz intimo sobranceiro a todos os juizes da terra, e responsabilisou perante Deus o homem por seus actos, ao mesmo passo que os responsabilisou por seus pensamentos e sua fé.

V
Effeito d'estas tradições na edade media

As tradições judaicas e pagãs consubstanciavam-se profundamente na edade media, acerbando-lhes as suas leis penaes com supplicios e torturas. As prisões não tinham ar nem luz; o adorno das masmorras era palha podre, pão e agua. Havia prisões subterraneas, tumulos onde o homem entrava vivo e não sahia mais. Até os mosteiros as tinham. O furto era punido com a morte; a morte punia a transgressão da lei sobre a caça. Em cada encruzilhada uma forca. Para os hereges fogueiras. E frequentemente uma familia inteira era castigada pelo crime do chefe, bens confiscados, casa arrazada, o nome proscripto. Nada digo sobre a servidão, degradação hereditaria, especie de mancha original e quasi universal em cada paiz, horrenda reliquia da escravidão antiga, e das superstições do Oriente.

Havia crença na efficacia d'aquelles horrendos castigos. E seriam por isso menos raros os crimes? O terror governava o mundo. E seria o mundo melhor governado? Ia n'isso a antiguidade das tradições. Dava-vos pena que ellas se abolissem? Quem ha ahi saudoso das torturas, masmorras, confiscações, fogueiras, escravidão? E quem ousaria pedir, por interesse da justiça e da moralidade, o restabelecimento das instituições da edade media?

VI
Como a sociedade christã se desvia progressivamente d'aquellas antigas tradições

Não ha muito que nós ainda tinhamos o nosso inferno: eram as galés onde as condições peioravam. Destruiram-nas, e crearam as colonias penitenciarias. Antes de nós, se deram bem com isso os inglezes. D'aquelle antigo inferno terreal, paraizo em comparação do outro, resta-nos como terrivel vestigio a perpetuidade do castigo para certos culpados. Quiz o homem copiar o antigo Deus das vinganças, e infligir aos seus similhantes penas infinitas, tendo elle apenas um dia de seu. Taes penas se acham nos nossos codigos. A sabedoria humana é tão limitada como o seu poder. Mas, apezar de limitadissima, é admiravel! Com que arte a sociedade concilia os mais oppostos deveres – a protecção aos justos, e até a protecção aos culpados que ella extrema dos justos! Não os esquece nas suas prisões, não renunciou ao direito de perdão; não desentranhou de si o sentimento da piedade. Sobre essa paragem de miserias está sempre fixo um olhar de dó, e attento um ouvido que escuta os gritos do arrependimento. E acaso se enfraquece por amor d'isso a lei penal? E se o perdão salva um d'esses prezos que a justiça ferira com perpetua pena, cuidaes que esse acto robusteça o mal, e dê nas prizões ou fóra d'ellas um exemplo funesto?

Ainda mais: a sociedade amnistia algumas vezes propriamente o crime, derroga a sentença do juiz e restitue o criminoso em todos os direitos do innocente. Os crimes que ella amnistia quaes são? Os mais ultrajadores de sua authoridade, das suas leis, do seu repouso e existencia: amnistia os crimes de lesa-magestade, e contenta-se com perdoar os outros.

Este é o espirito das legislações novas em toda a christandade, nas quaes a misericordia se abraça com a justiça.

Inferno que nunca muda é só o theologico. É sempre o inferno da edade media, inferno de judeus e pagãos, os mesmos supplicios, os mesmos gritos, a mesma impiedade crescente, os mesmos horrores. Não querem que Deus tenha o direito de perdoar no outro mundo. Cá em baixo póde fazel-o, se lhe apraz, como qualquer rei da terra. Mas lá no seu reino não ha perdão nem amnistia! Colera infinita! Vingança perpetua! Inexoravel furor! Tal é, consoante o pintam, o Rei dos ceos.

Ditosos os povos cujos principes se não modelam por elle!

Quem quizer encontrar hoje imitadores do Deus terrivel dos antigos, ha de ir procural-os no novo mundo e entre as tribus negras da Africa, e nas hordas barbarescas da Asia. A sociedade christã, com maravilhoso instincto, sequestrou-se d'essas idêas de outra edade; e, com os olhos postos na cruz, prosegue e anhela realisar em suas instituições e leis um ideal menos imperfeito da soberana justiça.

CAPITULO SEGUNDO
A FÉ NOVA

I
Pater noster

Chamamos a Deus nosso pae e nos consideramos seus filhos. Um pae condemnaria seus filhos a supplicios eternos? Que a questão seja de ingratos e desobedientes, de rebeldes e de máos, embora: Deus é Deus, e nós somos homens.

O mais sabio ancião n'este mundo é perante o Pae celestial o que diante d'esse velho mortal, curvado ao pezo dos annos, é uma criancinha no berço. Perante o Pae do ceo somos todos crianças balbuciantes que apenas caminhamos com andadeiras. E a comparação é ainda muitissimo ambiciosa! Ha mais proporção entre o menino que balbucia e os maximos doutores theologos, do que entre os maximos doutores em theologia e o eterno Pai. Cobertos de seus circumspectos barretes, aquelles doutores tartamudêam, gaguejam, balbuciam freneticamente, não se entendem a si proprios, descambam a cada passo, e movem á compaixão, se os compararmos a Deus. Dado que elles ainda durassem e crescessem em saber, ao mesmo passo que envelhecessem, nem por isso deixariam de estar como em perpetua infancia confrontados com Aquelle que tudo sabe, porque é infinito em sabedoria, em poder e bondade. Mas, d'outra fórma, a criancinha hontem nascida podeis já affoitamente comparal-a áquelles graves doutores; é um doutor que se aleita e entra em dentição: alguns dias mais, e vêl-a-heis defender these e supplantar os professores.

Comprehendeis, pois, que, se o velho doutor em theologia fosse pae, mettesse o filho em um carcere cheio de serpentes e ahi o deixasse para sempre? Qualquer que houvesse sido a culpa do menino, julgareis justo e discreto similhante castigo? Não vos pareceria o mestre mais louco do que o discipulo, e o pae peior que o filho? O vosso primeiro empenho não seria pôr o algoz no logar da victima? Não se levantaria toda a sociedade contra esse sabio sem coração? Nossas leis, nossos tribunaes consentil-o-hiam? Ah! castigos, sim, mas castigos que corrijam, e o perdão a final: eis o que é justiça de pae. Não entendemos outra. Ao chefe de familia não se consente poder arbitrario sobre os seus: a esposa tem direitos; tem-os o filho, o servo, protegidos pela sociedade, que para esse fim especialmente se constituiu. Se isto repugna ás antigas tradições, nem por isso é menos racional, equitativo e moral.

Ainda assim, por mais que fizesse este doutor atroz, seria menos cruel que o Deus prégado por elle. Se a morte não viesse rapidamente arrancar-lhe a victima, o officio de algoz cançal-o-hia. É difficil de supportar, ainda mesmo a um mau pai, o aspecto das torturas que elle exercita na pobre creatura que gerou. No coração humano tudo é mudavel, tanto o amor, como, por feliz compensação, o odio. Um principe morovingiano, chamado Charmne, revoltou-se contra Clotario; Clotario fez queimar vivos seu filho, a nora e os netos; mas diz a historia que elle se arrependêra. Se tal supplicio durasse uma semana sómente, de certo elle os teria salvado. Que bom pai! Que excellente rei!

Que amavel é este Clotario de par com o Deus que nos pintam! Este Deus quer que pensemos no inferno, mas não que se morra ahi; á imitação do algoz das prizões feudaes, deixa viver os pacientes torturando-os e disvela-se em lhes protrahir a agonia! Manda-os soffrer, ouve-os gemer durante a eternidade, e procede sua vingança, sem fechar olhos, sem tapar ouvidos, e por isso mesmo é que n'elle reconhecemos não um homem variavel, mas o que elle é, um Deus.

Ó Deus dos antigos, Bel, Teutates, Plutão, Eolin, seja qual fôr teu nome, Deus das batalhas, Deus do gladio, Deus dos fortes, guerreiro feroz, senhor irascivel, juiz sem entranhas, Deus dos eternos rancores, tu não és o meu Deus! O Deus que adoro, o unico e verdadeiro Deus, é o melhor dos Paes; apezar das minhas culpas, não me trata como inimigo nem como escravo; conhece melhor a minha fraqueza do que eu a sua força; e, até quando me castiga, não esquece que foi elle quem me creou e que eu sou seu filho.

II
O purgatorio

É o purgatorio o logar incognito em que os mortos esperam, soffrendo, o perdão das culpas commettidas na terra. Ha ahi o chorar e o padecer; mas não se amaldiçôa Deus: bemdiz-se. Os soffrimentos ahi supportados são salutares porque se comprehende a justiça d'elles; e corrigem porque a esperança não é anniquillada.

Se tal logar existe, de que serve o inferno?

Deixar dizer que a eternidade é que apavora e refrêa o peccador. O peccador não sabe o que seja a eternidade; porque é impossivel absolutamente formar-se uma clara idêa do que seja isso. Se recuamos perante nós um pouco que seja as balisas do tempo, a nossa imaginação e razão se perdem; e cahimos nas prezas das mesmas angustias que sentiriamos, se vissemos a verdadeira eternidade.

Para que o homem se aterre lhe basta imaginar o soffrimento de que é capaz a sua natural sensibilidade, e qual o podem comprehender as faculdades do seu entendimento. Para que iremos mais longe? Não é bastante ameaçar os maus com castigos proporcionados ás suas faltas, durante um espaço de tempo desconhecido ou incalculavel n'este mundo? O que fôr mais do que isto é inintelligivel. Para lá d'estes limites, a ameaça nada importa; a alma está refarta de justiça, oppressa de terror, extenuada de padecer, dobra-se, cáe, aniquilla-se, adora, supplica perdão, não póde comprehender senão a piedade, está surda e insensivel a tudo o mais. O remate da justiça para nós é o perdão; e, se n'essas extremas alturas onde a imaginação póde chegar, e onde o peccado roja gemente, se em vez de perdão, nos mostraes o odio ainda flamejante, lá vai tudo: o terror tocou o apogeu; turva-se a razão, idêa de justiça e de bondade tudo se desfaz; a alma, que cahira crente, levanta-se atheista.

Se o tal inferno existe, no outro mundo coisa comprehensivel ha uma só; é o blasfemar dos condemnados.

Mas se tal inferno existe, de que serve o purgatorio? Pois os protestantes não o aboliram discretamente? Para os que podem crêr em tal inferno, que é cem mil annos de purgatorio? Este acaba e o inferno não; seculos e milhões de seculos de penitencia não se contam, esquecem-se. Em vista d'este sinistro inferno em que a misericordia é desconhecida, inutil o soffrimento, e a justiça um enigma, o purgatorio é um paraizo. Quem nos dera a certeza de lá ir! que os castigos ahi soffridos, por mais demorados e rigorosos que sejam, não ha temel-os: desejam-se. Por maneira que o mais terrivel castigo que imaginar se póde, o mais equitativo e rasoavel, deixa de impressionar as almas pervertidas pelo espectaculo d'uma punição sem siso nem justiça apparentes.

As pobres almas aterradas, aturdidas, estupefactas são impellidas involuntariamente a offender a Deus de dois modos; primeiro temendo-lhe a vingança, segundo não lhe temendo a justiça. A idêa dos castigos inefficazes e dôres infructiferas, por muito monstruosa, odiosa e falsa que seja, se humanamente a consideramos, torna inutil a idêa dos castigos poderosos e dôres salutares, por muito bella, clara, natural e divina que ella seja.

III
Necessidade do purgatorio

Quem quer que sejaes, senhor ou servo, rico ou pobre, esposo ou pai, viuva ou noiva, não negueis as expiações da vida futura. Não conheceis maus em prosperidade, cercados de respeitos, inaccessiveis á lei, e que se deitam e levantam sem remorsos? Não conheceis innocentes opprimidos, anciãos abandonados, orphãos desbalisados, pessoas honradas cuja vida é toda padecer e que nenhuma lei feita ou por fazer defenderia de homens ingratos e perversos? Se sois feliz hoje, sêl-o-heis amanhã? Convencei-vos de que negar a vida futura, seria o mesmo que negar a immortalidade da alma, e logo sua liberdade e responsabilidade; e, por consequencia, o mesmo seria negar virtude, direito, Providencia, e constituir este baixo mundo um verdadeiro inferno, um sonho, um pesadêlo, onde tudo seria horror e abominação, excepto o nada, tudo injusto, excepto o crime victorioso, tudo absurdo, excepto a inveja, o egoismo, a violencia, e a astucia que se roja. Ah! crêde na vida futura, com suas expiações e recompensas. E, se ha quem exclua do ceo a piedade, não vades vós, por uma irracional desforra, excluir tambem do ceo a justiça.

IV
Mysterios

Não nos accusem os theologos de negarmos acintemente os mysterios.

Os theologos referem o que vae no inferno como se tivessem por lá viajado. Pelo que elles dizem é paiz dos mais conhecidos: sabe-se o caminho, quaes são os seus productos, e qual o modo de viver dos seus moradores, bem como a origem, nomes e a gerarchia dos principes que lá reinam. Em outro capitulo estudaremos as edificantes descripções que fazem d'elle já physica, já moralmente.

Ácerca do purgatorio tem havido mais prudencia quasi nada se sabe do que la se passa: é portanto mais mysterioso que o inferno. Todavia, sem impedimento de ser mysterioso, que differença! Quanto mais profundamos a eternidade penal, menos se acredita; ao invez, quanto mais pensamos no purgatorio, mais nos sentimos compellidos a crêl-o. É o inferno mysterioso como o diabo, como a noite, como a contradicção, a confusão e o chaos. É o purgatorio mysterioso como Deus, como a alma, como a consciencia, como a vida, como a luz que nos alumia, como a materia impenetravel, como toda a natureza, como a verdade, como tudo o que existe e de que nós apenas conhecemos em sombra a existencia e apenas percebemos atravez de um veo, mas o bastante para não poder duvidar. É elle tão certo como tudo o mais do mundo; assenta no intimo de nossa alma sobre as mesmas bases da moral, do direito, do dever, do respeito a outrem, piedade, liberdade, amor, e sentimento do infinito. É por tanto o purgatorio, quanto á razão, o verdadeiro mysterio da justiça divina, assim como a Incarnação e a Paixão, quanto á fé, são o mysterio do Amor divino; – mysterio de justiça que, de mais a mais, se concilia maravilhosamente com aquelles mysterios d'amor, dos quaes o inferno perpetuo seria a negação.

Muitissimo nos espanta que os protestantes o não vissem. Quando tinham que escolher entre dous dogmas inconciliaveis, um velho e outro novo, sacrificaram, tanto em nome do Evangelho como da razão, um dos dois que mais se harmonisava com as leis da razão e a moral do Evangelho.