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Sobre(viventes)

Sete histórias de amor e superação

Sobre(viventes)

Sete histórias de amor e superação

Susana Gaião Mota













TÍTULO: Sobre(viviente)

Sete histórias de amor e superação

AUTORA: Susana Gaião Mota©, 2021

COMPOSIÇÃO: HakaBooks - Optima corpo 12

ILUSTRAÇÃO DA CAPA: Laura Rodríguez Baró©

DESIGN DE CAPA: Hakabooks©

1ª EDIÇÃO: março 2021

ISBN: 978-84-18575-65-5

HAKABOOKS

08204 Sabadell - Barcelona

+34 680 457 788

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Agradecimentos e Dedicatória

Este livro passou de um projeto a uma realidade graças à vontade, empenho e perseverança da Isabel Miguéns. Ao voto de confiança da minha amiga Rossana Appolloni e à dedicação e conhecimento da Cecília Abecasis. A elas, o meu muito obrigada!

Dedico-o a todas as crianças do mundo, que merecem ter um teto, comida, saúde, paz e amor para crescerem em segurança.


Santa Casa Da Misericórdia De Cascais

Prefácio

Isabel Miguéns

Provedora Santa Casa da Misericórdia de Cascais

Estas são palavras que nos interpelam, SEMPRE.

São o testemunho de sofrimento e de ausências que desconhecemos.

São histórias verídicas de crianças que não o puderam ser.

São também um raio de alvorada um abraço de partilha e um tempo de acreditar.

A estas crianças, hoje jovens adultos teremos sempre de dizer obrigado.

Porque nos ensinaram que apesar de tudo e de todos, com eles e por eles, foi possível encontrar um caminho, que só eles poderão percorrer.

A nós técnicos, dirigentes e Instituição, resta-nos continuar a ser humildes e capazes de ouvir, de partilhar e de acreditar.

Que este testemunho possa ser uma semente e esta semente possa vir a ser uma árvore.

Quem sabe, um dia teremos uma floresta.

A toda a equipe e voluntários que acompanharam e continuam a acompanhar esta “CASA” o nosso reconhecimento.

Ao Centro Distrital de Segurança Social de Lisboa, o nosso obrigado pela confiança e por aceitar que partilhemos alguns dos grandes desafios do nosso tempo.

A Instituto da Segurança Social de Lisboa e aos seus dirigentes o nosso obrigado pela confiança e pela partilha.

Introdução

Armando Leandro

Juiz Conselheiro jubilado e ex-Presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens

Agradeço a honra e o privilégio de escrever breves palavras introdutórias desta publicação da Santa Casa da Misericórdia de Cascais, tão rica de significados e mensagens, explícitos e implícitos, bem sintetizados no inspirado título -Sobre(viventes) Sete histórias de amor e superação.

A sua divulgação – que muito merece e se deseja o mais ampla possível – pode proporcionar o aprofundamento da interiorização da variedade e complexidade das situações lesivas dos direitos das crianças, dos jovens e das famílias, e da essencialidade de conjugar as intervenções, preventivas e reparadoras, do ponto de vista técnico, científico e organizacional, com a palavra e a participação ativa de todos eles, num ambiente que gera o amor, a compreensão e a confiança na superação dessas situações de sofrimento e de exclusão ou limitação da realização pessoal, familiar e comunitária.

Creio que é essa a mensagem essencial que poderá resultar dos «milagres» tão bem descritos nas histórias de amor e superação.

De salientar a justa ênfase dos «heróis» Sobre(viventes).

Ênfase conjugada com a revelação dos atores pessoais e institucionais. Atores que tiveram o admirável mérito de sensibilidade, humanismo, saber, sabedoria, «sentido do Outro», fé inquebrantável na persistência do amor que ultrapassa barreiras aparentemente intransponíveis.

Esta publicação poderá ainda constituir estímulo significativo para uma indispensável generalizada «cultura de prevenção», sistémica e integrada, das situações lesivas dos direitos das crianças, dos jovens e das famílias. Cultura de prevenção ainda não suficientemente expressa na intervenção comunitária concreta.

Seja-me permitido uma sentida homenagem, expressa na crença de que presentes e futuros mais justos, progressivos e felizes, de crianças, jovens e famílias, muito continuarão a depender de admiráveis personalidades como «Cecília Abecasis», «Isabel Migueis» e Colaboradores.

Essas personalidades, capazes de corresponder ao apelo de «Sobrevivência» realizada, de cada criança, jovem ou família, merecem o apoio e a admiração devidos aos que,recordando Torga, não têm vazios de existência, por os encherem todos de amor, esforço sábio e esperança.

Mais algumas notas

Catarina Marcelino

Vogal do Instituto de Segurança Social

Nesta obra é-nos apresentado um olhar de adultos que vivenciaram situações de perigo, enquanto crianças e jovens, tendo beneficiado da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, no âmbito do sistema de promoção dos direitos e proteção de crianças e jovens em perigo.

Nestes testemunhos encontramos os efeitos concretos da Proteção destas crianças e jovens, do processo de Promoção dos seus projetos de vida, da sua capacitação, do reforço e ativação das suas competências, que, por ter sido proporcionado um ambiente reparador e fomentada a criação de laços afetivos de qualidade, foram determinantes para a sua estruturação e desenvolvimento integral.

A permanência das crianças e jovens em casa de acolhimento residencial deseja-se transitória, devendo ser pelo período estritamente necessário, enquanto medida de promoção e proteção, que tem como finalidade afastar o perigo em que se encontra e salvaguardar os seus cuidados básicos essenciais de saúde, segurança, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral.

Assim foi, nestas situações. E é com um enorme sentimento de “missão cumprida” que o Instituto da Segurança Social, I.P. se congratula e emociona ao ler estes relatos.

Há histórias que nos fazem acreditar.

Cecília Abecasis

Assistente social e antiga diretora

da Casa de Acolhimento

Cresceram numa casa a que chamaram sua, uma casa com alma, onde se sentiram amados e protegidos. Pertenceram a uma comunidade que os acolheu como um dos seus, que teve a sabedoria de valorizar os seus talentos e onde encontraram oportunidades de carreira e de afirmação.

Nela cresceram, estudaram, praticaram desporto, fizeram amigos e, de crianças desprotegidas, tornaram-se jovens e adultos confiantes, sempre disponíveis para os outros.

Aquela que foi a sua casa continuou sempre atenta ao seu percurso e a ela voltaram vezes sem conta, apenas para conversar, para dar notícias dos seus sucessos, para pedir conselhos, para trazer os seus filhos, para participar na Ceia de Natal! Laços que o tempo não apagou… São uns heróis!

Notas da autora

Quando recebi o convite para escrever estas histórias aceitei de imediato. Antes de mais porque me é grato falar de casos de superação e vidas com estórias felizes.

Gosto de testemunhar e mostrar aos outros que o nosso destino não nos escolhe, mas nós podemos escolher o nosso destino.

Sou jornalista há mais de 15 anos e por isso adoro uma boa história. Sou psicoterapeuta há menos tempo, mas os estudos nesta área levaram-me a ter vontade de aprofundar e compreender melhor a mente humana.

Com interesse por ambas as temáticas, ter a oportunidade de escrever um livro como estes é uma dádiva, da qual estou muito grata.

Mas tenho de sublinhar que, mais do que as boas histórias ou as pessoas complexas que encontrei, o melhor foram as lições de vida e de humanidade que estes jovens adultos me deram e certamente darão aos leitores.

Tentei encontrar-lhes denominadores comuns, e identifiquei alguns que irei referir mais à frente, mas o maior de todos, sem qualquer dúvida, é a generosidade com que olham a vida, apesar de ela já ter sido tão dura com eles.

São pessoas com grandes corações e uma capacidade de perdão incomum.

Todos tiveram infâncias trágicas, famílias disfuncionais, no seio das quais tantas vezes se esqueceram de que eram crianças para garantirem a própria sobrevivência ou para cuidarem dos pais, de irmãos, de sobrinhos, dos que se autodestruíam à sua volta.

Tudo indiciava que não teriam capacidades físicas nem emocionais para lidarem com tamanhas missões. Mas tiveram, resistiram, e assim que a tempestade acalmou desabrocharam mais bonitos e maduros numa espécie de renascimento.

Quando penso nestes jovens, vem-me à cabeça a minha flor favorita — a flor de lótus. Ela é especial, pela sua simbologia e pela sua história. Uma espécie de lírio de água que simboliza a criação, a fertilidade e, sobretudo, a pureza, porque emerge das águas turvas e estagnadas mantendo a sua beleza sempre intacta. Com distanciamento e proteção, consegue crescer sem se sujar nas águas que a envolvem (a raiz está na lama, o caule na água e a flor ao sol).

Na crença hindu, o lótus simboliza a beleza interior: “viver no mundo sem se ligar com aquilo que o rodeia”. No Egipto representa a “origem da manifestação”, ou seja, o nascimento e o renascimento, visto que abre e fecha consoante o percurso da luz do sol.

A flor de lótus tem por isso a capacidade de enfrentar a escuridão de noite e florescer todos os dias limpa, bonita e pura.

Estes jovens são flores de lótus, e, mesmo tendo sido filhos de uma infância menor, tornaram-se adultos talentosos e funcionais.

Poderia sublinhar que são pessoas de sucesso, mas acho que mais importante do que isso é o facto de serem adultos conscientes, respeitadores, cumpridores e tremendamente humanos.

Diz-se que quem é vítima de maus-tratos, maltratará, quem é educado para perder, perderá, quem cresce com maus exemplos irá por maus caminhos. Estas ideias feitas não passam de preconceitos.

Há pessoas terrivelmente lúcidas que aprendem com os maus exemplos a não os replicar. Convivem com realidades das quais, logo que podem, se procuram distanciar Pessoas que apesar de maltratadas jamais maltratam, que apesar de não terem sido amadas conseguem amar profundamente.

Mas todos têm uma qualidade que faz delas especiais – a capacidade imensa de perdoar. Porque onde há escuridão não entra a luz e para amar é preciso primeiro perdoar.

Perdoar não significa compreender as atitudes do outro, não significa condescender com elas, limita-se a aceitá-las como são e a acreditar que não puderam ou não conseguiram ser melhores.

Perdoar liberta: quem carrega o peso da raiva não tem espaço para as coisas boas. E eles sabem isso desde muito tenra idade.

À medida que as entrevistas iam decorrendo, confesso que o entusiasmo deu lugar à dor: como sorrir para alguém que me disse que em criança sofreu maus tratos, passou fome, foi abandonado ou viveu na rua?

Quando regressava a casa e tinha de escrever sobre as histórias relatadas muitas vezes protelava esse momento com um desconforto enorme.

Saber destas realidades já é tão doloroso que nem consigo imaginar o que será passar por elas. Eu também já fui criança, tenho um filho, e nem nos piores pesadelos me imaginaria a passar, ou a fazer passar o meu filho ou qualquer criança do mundo, por situações destas.

É utópico dizê-lo, mas maltratar crianças devia ser algo inexecutável. Infelizmente não é — e nem é preciso ser órfão, nem crescer longe dos pais, para se ser vítima de maus-tratos físicos, psicológicos ou morais.

Um alento ao ouvir estas histórias foi saber que nos momentos mais críticos apareceu sempre alguém na vida destes jovens que fez a diferença. Por isso eles não se perderam, por isso eles estão aqui, por isso eles têm a imensa gratidão e a sensibilidade de nunca recusar ajuda a ninguém. Sabem que um pequeno gesto pode fazer toda a diferença para outras pessoas em momentos de fragilidade.

Curiosamente, quase todos trabalham no campo da ação social, dedicados ao serviço ao próximo e à comunidade. Alguns foram, ou ainda são, voluntários.

Quando chegava ao conforto da minha casa fazia o exercício de pensar como seria não ter um lar, não ter um canto a que chamar meu, e sobretudo não ter uma família que ampara nos momentos difíceis e comemora nos momentos de conquista.

Mas muitos destes jovens têm famílias. Têm pais, têm mães que em algum momento lhes deram amor, olharam por eles. Não foi o suficiente, mas foi o necessário para os porem no mundo. Nem sempre quem ama consegue cuidar. Nem sempre podemos acreditar que os nossos pais são as pessoas que melhor nos tratam na vida. Nem sempre é verdade!

Por outro lado, estes jovens sabem que respeitar-se a si próprios, encarar a sua missão de viver, e fazer algo de bom enquanto estão neste mundo é mais importante do que ter um pai ou uma mãe presentes. Viver a vida é um dever e cada um deve fazê-lo da forma mais feliz que conseguir.

Estes jovens são muito dignos, conquistaram o seu espaço, construíram as suas famílias e carreiras, e depois destes caminhos ainda estenderam as mãos aos que um dia lhes viraram as costas.

O que eles fizeram e fazem são lições de vida. Tenho por isso muito orgulho em ter podido conhecer o seu passado e o seu presente, em ter podido ouvi-los e, de alguma forma, mostrá-los como um exemplo e uma inspiração.

Eles foram deserdados e isso fê-los procurar o seu próprio tesouro. Tiveram fé suficiente para achar o mapa que os levou lá. O tesouro está no interior de cada um de nós. Essa é a nossa maior herança.

Quando quisermos avaliar onde cada um chegou, devemos sempre procurar saber qual foi o seu ponto de partida. É o caminho que faz a diferença, não lugar onde se chega.

Que o mundo possa aclamar pessoas tão ricas de espírito e com tanta nobreza de sentimentos.

(Sobre)viventes: devemos-lhes uma grande obrigada, porque estão entre nós como exemplos de amor, dignidade e humanismo!

Estas histórias são verdadeiras, embora alguns dados tenham sido alterados para proteger a identidade dos intervenientes e respetivas famílias.

Os casos relatados situam-se entre os anos de 1980 e 2018, numa Casa de acolhimento da Santa Casa da Misericórdia de Cascais, nos arredores de Lisboa, e foram recolhidos já na vida adulta dos protagonistas.

“Uma das melhores coisas que nos pode

acontecer na vida é ter uma infância feliz.”

Agatha Christie

Casos de Vida

1

— É feliz?

— Se ser feliz é um ato de coragem, talvez!

Mimi, 37 anos, Lisboa

Chegou sem querer chamar a atenção, mas do alto do seu metro e setenta era difícil não reparar na sua exuberância inata.

Esguia, de ar confiante, com traços exóticos, voz e olhar doces, assim é Hamida, conhecida desde sempre por Mimi.

Tem origem indiana por parte do pai e isso está-lhe estampado no rosto, na pele e nos olhos. Cabelo longo, escuro de nascença, mas pintado de louro por agora, porque gosta de mudar de vez em quando. Talvez da próxima vez que a encontremos já não tenha o mesmo visual, porque gosta de variar, mas apenas na aparência.

Tem uma história difícil de contar, nem tanto por si, mas pela crueza dos factos que podem dar uma má impressão daqueles que ama e que a rodeiam.

Escolhe bem as palavras, tenta não se emocionar, quer sentir-se uma fortaleza para os três filhos que tem para criar. Já cuidou de uma criança em tempos: o sobrinho. Perdeu-lhe o rasto, e tampouco sabe o nome que lhe atribuíram posteriormente, mas assegura, conformada, que “foi melhor para ele!”.

Se pudesse tinha dado outro destino àquela criança, mas ela própria era então uma criança, na altura em que foi retirada à família e colocada “à experiência” no Centro de Acolhimento Temporário descrito neste livro.

Era o mês de Dezembro do ano de 1998. Mimi tinha 15 anos e a única preocupação da assistente da Segurança Social responsável pelo processo era não a querer na rua.

A diretora do Centro foi desde logo avisada: “É natural que tente fugir”.

E tentou, e conseguiu, mas voltou, e só saiu da casa de acolhimento para uma casa própria aos 21 anos, ou seja, seis anos depois.

A primeira coisa que Mimi disse nesta entrevista, mal se sentou, foi: “Eu em pequenina fui muito feliz!”

Baixando os olhos continuou naquela incursão pelo seu passado longínquo que tenta manter impoluto na memória – “Entretanto foram as opções da minha mãe que fizeram com que as coisas corressem mal”.

O orgulho na progenitora e na educação que recebeu dela na infância é referida com um sorriso nos lábios porque a mãe “pode não saber ler nem escrever, mas é uma mulher muito culta”.

Mimi relembrou os fins-de-semana em que a mãe passeava com ela e com os irmãos por Lisboa e lhes explicava as origens dos locais por onde passavam. Hoje em dia, Mimi faz o mesmo com os filhos, porque lhes quer passar essa espécie de legado: “Afinal nem tudo é mau, é isso que a pessoa tem de ver: do mau tirar a parte boa”.

Mimi tem cinco irmãos, quatro rapazes e uma rapariga. Um deles nunca chegou a conhecer. Outro vivia, durante a sua infância, numa casa de acolhimento.

A morar na mesma casa eram ela, dois irmãos e uma irmã mais velhos. A sua maior ligação sempre foi com o primogénito, com quem conviveu até ir para a casa de acolhimento: “Foi o que sempre lutou por nós!”

O pai, conheceu-o há pouco tempo. E se em nada a marcou na educação e nos ensinamentos, está-lhe no ADN e nas características físicas. “É indiano, muito engraçado, já está velhote”.

A complacência inicial é seguida pela desilusão dos factos: “Não foi uma receção muito calorosa e eu resisti a receber o amor dele, mas eu sou assim porque não me dou a conhecer com facilidade. Foram muitos anos sozinha com a minha mãe, a lutar por uma vida, e de repente ele aparece, como se não se tivesse passado nada”.

Mimi não gosta de se demorar muito neste assunto: “Gostei de o conhecer e pronto. Ele vive perto de Lisboa, até me liga de vez em quando, mas nada mais do que isso”.

E se tratar uma filha assim para ele é normal Mimi aceita, mas não compreende: - “Não me cabe a mim perceber porquê, até porque tenho de me preocupar com os meus próprios filhos”.

Era o padrasto que ela via como um pai, até este morrer.

Mas no campo dos afetos mais precoces uma outra pessoa era o centro do seu mundo. Uma criança — mais concretamente o seu sobrinho — de quem cuidou incondicionalmente até ele ser adotado.

Foi o mais difícil de ultrapassar, saber que teria de se separar daquela criança de quatro anos que ela adorava e tratava como filho: “Mas era o melhor, ele tinha o direito de ter um lar estruturado”. Esta justificação aceita-a agora com a maturidade dos adultos, mas naquele momento o coração não pôde compreender.

Agora, David, o sobrinho que já é maior de idade e já tem outro nome, é com certeza um adulto feliz, cresceu com uma família e é isso que interessa. Mas importa também saber que ele se lembra de certeza da tia Mimi. E a tia Mimi acalenta a esperança de que um dia a sua família atual lhe fale dela e lhe conte o quanto o amou e protegeu quando ambos eram ainda crianças.

Crianças de idades diferentes, mas unidas por laços de sangue e por um acontecimento que mudou as suas vidas para sempre.

Remontando aos factos que Mimi, naturalmente, não gosta de recordar: naquele outono de 1998 a tragédia bateu à porta da sua família. O futuro trágico já se adivinhava, mas ninguém, a não ser os adultos, tinham a capacidade de deter o rumo dos acontecimentos.

No apartamento onde viviam Mimi, a mãe, o padrasto, dois irmãos, a irmã e o sobrinho, uma morte acabou por expor o que acontecia no quotidiano daquela casa.

Uma noite, tragicamente, o padrasto caiu da janela.

Na sequência dessa morte houve buscas ao apartamento e a mãe acabou por ser presa, e posteriormente condenada a cinco anos de prisão por tráfico de estupefacientes. O irmão mais velho também foi condenado pelas mesmas razões.

Mimi tinha uma forte ligação ao padrasto e ficou profundamente marcada com a sua morte. Até porque presenciou tudo.

Nas buscas à casa, a polícia apreendeu armas e drogas.

Depois dos trágicos acontecimentos Mimi conseguiu ficar inexplicavelmente mais de 45 dias em casa com o sobrinho. Eram duas crianças a viver sozinhas. Não saíam da habitação e ir à escola tornou-se inviável.

Sem água nem luz, eram os amigos de Mimi que lhe valiam. Dormiam à vez lá em casa com ela e com o sobrinho ou apareciam pela manhã com pão fresco e leite para que não passassem fome.

Mas havia também os inimigos, os consumidores e traficantes que sabiam o que se fazia ali. O problema maior foi quando Mimi se tornou uma delatora junto da polícia e passou a correr risco de vida: foi vítima de ameaças e até de ofensas físicas.

Era impossível manter-se ali com o sobrinho, por isso, embora tenha resistido com todas as suas forças no dia em que os foram buscar, acabou por aceitar o inevitável: precisava de acreditar com esperança num recomeço e ver como corria. Nunca pensou, no entanto, separar-se de David.

Mimi passou de dona de casa e mãe a uma simples adolescente acolhida num lar. Com todas as regras e dificuldades que isso acarretava para quem já estava habituada a ser dona da própria vida.

Chegou assustada, cansada de problemas e injustiças, e os primeiros dias foram muito complicados — Mimi sentia falta das suas coisas, de poder estar à vontade e da sua família.

Foi num impulso que pulou o muro ao fim de uma semana. O seu único plano era fugir para bem longe dali.

Mas no seu campo afetivo apareceu uma pessoa que se viria a revelar muito importante, e mesmo a mentora que até aí nunca tivera: a diretora, à época, daquela casa de acolhimento.

Nessa altura, Mimi recorda que Cecília acreditou que ela já não voltava. “Mas voltei e fui muito feliz”.

Assim que Mimi chegou à casa, Cecília percebeu que tinha em mãos o desafio de lidar com uma jovem revoltada, marcada pelos acontecimentos, mas também “muito inteligente e com uma personalidade muito forte”. E essas duas características foram o mote para que a diretora a começasse a fazer acreditar que não podia desistir e que podia reverter a situação desfavorável em que se encontrava.

Os meses seguintes permitiram a Mimi refletir e passar por todas as duras etapas de um luto que teve inevitavelmente de viver e superar.

Começou por se revoltar com os acontecimentos recentes: “achei que era egoísta da parte deles, como adultos, não pensarem nas consequências dos seus atos e eu com 14 anos ter ficado sozinha com o meu sobrinho que tinha quatro e tê-lo mantido comigo um mês e meio até virem as assistentes sociais”.

A pergunta que não pode calar perseguia-a: “o que faço agora?”. Mas para uma jovem de 14 anos é muito difícil responder a esta questão. Petrificou. Não queria saber de nada, não conseguia sequer chorar, fazer planos ou ter esperança no futuro. Foi mais uma vez Cecília que conseguiu que “eu chorasse e pensasse na minha vida e que havia todo um longo caminho pela frente”.

O mais difícil para ela em todo o processo foi perder o rasto à família toda e ir viver para um local estranho onde não conhecia ninguém.

Mimi pensava na família a toda a hora, “chorei muito”, mas o tal “Anjo” que apareceu na sua vida, Cecília, conseguiu que ela fizesse visitas regulares à mãe na prisão. Às vezes era mesmo a diretora que a levava lá quando a assistente social não podia.

“Fizemos questão que a Mimi acompanhasse a mãe”, relembra Cecília, que sempre tentou atender as necessidades daquela menina revoltada mas cheia de garra e bons valores afetivos.

E Mimi recorda com gratidão essas visitas que fez, especialmente a primeira: “Estava cheia de nervos, a minha mãe é transmontana e passou-me muitos bons valores. Então quando lhe contei, na visita, que fumava ela não me recriminou e até me deixou fumar ao pé dela. Ficámos mais amigas as duas”.

Faltava à mãe de Mimi, segundo a sua perspetiva, ouvi-la a ela e aos irmãos enquanto filhos, e a jovem queria dar-lhe a sua visão dos acontecimentos. Foi o que fez logo na primeira visita.

Com o distanciamento no tempo e no espaço, Mimi consegue agora avaliar que “a certa altura, a minha mãe perdeu-se completamente, e o dinheiro acabou por falar mais alto, meteu-se em negócios sujos, mas quem sou eu para a julgar? Quando as pessoas têm dificuldades às vezes deixam-se levar”.

No entanto, e retirando o que fica do que passa, Mimi tinha uma mãe que não era perfeita, mas estava presente. Que lhe dera amor no passado e agora estava presa, mas podia visitá-la de vez em quando e, portanto, nada estava perdido.

Mas, ainda a desestruturar esta adolescente, estava a situação do sobrinho. Depois de ingressar na Casa de Acolhimento, Mimi mantinha o contacto regular com o menino, que ia lá passar os fins de semana com ela. Não podia viver lá, porque ali só aceitavam crianças mais velhas, e por isso foi para outra instituição. Mas os fins de semana com a tia eram muito importantes para os dois.

O pai de David estava preso, a mãe tinha-o abandonado em bebé e tinha paradeiro desconhecido, e, portanto, com tão tenra idade esta criança estava apta para adoção. O problema era Mimi conseguir aceitar isso e ter de se separar do sobrinho.

“Foram longas conversas pontuadas por muitas lágrimas e revolta”, recorda Cecília, para convencer Mimi de que o sobrinho merecia a oportunidade de ter uma família e um lar funcional onde pudesse crescer.

Foi um processo tão doloroso que ainda abala as estruturas desta menina, que já é mulher e mãe de três filhos!

Dos problemas herdados do tempo que vivia com a família vinha também o medo que se foi desenvolvendo de ir à escola. Toda a gente a conhecia e na escola andavam alunos que traficavam ou consumiam droga e tinham feito negócios com a sua família.

Cecília decidiu não pôr logo Mimi a estudar, não fosse ela ser perseguida por gangs ligados ao tráfico. Acabou por ir para um estabelecimento de ensino mais afastado, onde podia ficar longe dos olhares dos “inimigos” da família.

Acabou por não seguir o ensino normal e começou a fazer cursos profissionais. Primeiro de informática, a que se sucederam outros.

Fez, em 2002, um curso de validação de competências que lhe deu as equivalências necessárias e permitiu que não tivesse de regressar ao ensino público, que continuava a ter receio de frequentar e onde se sentia desfasada ao pé dos miúdos mais novos.

Depois, e por provar que era autodidata e tinha apetência para aprender, acabou por entrar num curso de Conservação e Restauro, que além de um diploma lhe deu a possibilidade de conhecer muitos lugares. Fez estágios em Coimbra, Lyon e Florença.

Na Casa de Acolhimento souberam entendê-la e respeitar os seus medos, e isso foi o mote para que ganhasse confiança. O suporte da casa de acolhimento permitiu-lhe a reconstrução da sua própria identidade.

Começou a ter regras e horários para se poder, posteriormente, integrar bem na sociedade.

Mimi atribui muitos dos méritos também à sua personalidade: “Eu sou bem-humorada, tenho a capacidade de me rir das coisas e, ao permitir-me isso, não levei tudo tão a sério e consegui andar para a frente”. Fazia-o muito com os voluntários da casa, com quem conversava e ria horas a fio.

A integração com os meninos da idade dela foi mais difícil: “eu era muito retraída”. Mimi considera que com o tempo foi aprendendo a abrir o coração e dar-se a conhecer.

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