Romancistas Essenciais - Franklin Távora

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Joana não pôde conter, diante da cena final daquela tragédia infame, a sua justa e bela indignação.

— Homem cruel, onde aprendeste esta lição indigna que acabas de ensinar a teu filho?

A esta angélica exprobração Joaquim respondeu com uma gargalhada de desprezo que retumbou por toda a vizinhança.

— Quem matou o coelho, José? perguntou Joana ao menino, para o qual tinha a autoridade que não podia exercitar sobre o principal responsável do estranho delito.

— Fui eu, mamãe. Papai mandou que eu matasse, e por isso matei o coelho.

Joana volveu novamente os olhos entristecidos a Joaquim, o qual não se demorou a retorquir com a imprudência que o caracterizava

— Fui eu mesmo que o mandei. Que tens com isso? Quererás tomar-me contas, Joana?

— Eu não, Deus sim; Deus há de tomar-te-as um dia, homem sem coração.

— Deus! Quem é Deus, toleirona? Quem já o viu? Quem já ouviu a sua voz? Estás caducando, mulher.

Sem ter para o seu tirano outra resposta que o silêncio, Joana resignou-se a dar-lha, e foi cair sobre um tamborete, com o rosto inundado novamente de lágrimas.

Tempos depois entrou José em casa gritando e chorando. Foi o caso que, tendo ele querido tomar de um menino do vizinho uma xícara de arroz-doce, o menino, que tinha mais idade, mais corpo e mais força do que ele, não só não se deixou esbulhar de sua propriedade, mas até bateu em José com vontade, sem contudo se sair ileso, porque José lhe pôs a cara em sangue com as unhas, e lhe arrancou da coxa um pedaço de carne com os dentes.

Sabendo do acontecido, Joaquim fez de uma folha de facão velho um punhalzinho e, chamando o filho, entregou-lhe a nova arma, mediante este discurso:

— Sabes para que fim te dou este ferro, José? É para não sofreres desaforo de ninguém, seja menino ou menina, homem ou mulher, velho ou moço, branco ou preto o que te ofender. Se alguma vez entrares em casa, como entraste hoje, apanhado, chorando, ouve bem o que te estou dizendo, dou-te uma surra de tirar pele e cabelo, e corto-te uma orelha para ficares assinalado. Toma o ferro.

José tinha então seus nove para dez anos, e ouviu a advertência do pai com toda atenção, prometendo cumprir fielmente as suas ordens.

Joana, que tudo presenciara, e de certo tempo atrás adotara o alvitre de não contrariar abertamente o marido para o não incitar a maiores excessos, aguardou a sua ausência, e quando foi tempo pregou a José as lições de moral que seguem:

— Meu filho: Deus, nosso pai, que está no céu, não pode receber bem os feios atos a que teu pai, que está na terra, te aconselhou há pouco. Para os mais velhos não tenhas nunca expressões descorteses e muito menos ações ofensivas; ainda que seja um negro, deves ter, embora não sejas de sua qualidade, respeito pela idade dele. Seja a tua única vingança, quando alguém te ofender, pacífica retirada; não há vingança a maior, nem mais digna: procedendo deste modo, terás, meu filho, agradado a Deus e dado aos homens mais bonito exemplo do que se houveres proferido, em resposta, palavras injuriosas ou insultuosas contra o teu ofensor. As armas só servem para excitar à prática de crimes; os homens bons não trazem consigo armas. Dá-me o punhal, de que teu pai te fez presente e recebe em troca este rosário que te dou para tua consolação nas tribulações[1]. Reza por estas contas, e encomenda-te todas as manhãs e todas as noites a Deus. Assim praticando, virás a ser estimado de todos e darás prazer a tua mãe que morreria de dor e vergonha se te visse apartado do caminho do bem.

De que serviram porém estes bons conselhos, se Joaquim, vendo mais tarde o rosário no pescoço do filho, fez em pedaços a enfiadura, espalhou as contas pelo chão, e chamou a mulher feiticeira?

Não ficou aí a manifestação do seu desagrado. Voltando-se para Joana:

— Se continuares a fazer asneiras como esta — disse ele — acabas queimada, bruxa; e eu não respondo pelo que venha a praticar para impedir que continues a contrariar as minhas determinações. Quem avisa amigo é.

O pároco, a cujo conhecimento chegou, por portas travessas, o escândalo, mandou chamar Joaquim à sua presença, e lhe disse que. se ele repetisse a cena do rosário, ou obrasse ato idêntico, seria ele Joaquim quem deveria de morrer queimado por crime de heresia.

Joaquim tornou a casa tão furioso, que puxou pela faca para matar Joana, a quem atribuiu o mexerico; esta, porém, não correu nem pediu que a socorressem; limitou-se a chorar em silêncio a sua desgraça e a apelar para Deus a quem não cessava de encomendar o filho em suas orações.

Depois de haver esgotado o vocabulário dos epítetos infamantes contra sua mulher, e dos convícios imundos contra o vigário, determinou Joaquim de deixar a casa para se ir meter com José no "oco do mundo", palavras suas.

Que noite passou Joana!

Não houve rogativa, não houve lágrimas que abrandassem o coração do mameluco. Desgraçada mãe, que pediste e choraste em vão, em vão como sempre!

— Vai só, Joaquim, já que me queres deixar; deixa porém comigo meu filho; peço-te esta graça por tudo quanto há sagrado na terra e no céu — disse ao marido a infeliz mulher com angelical doçura, momentos antes da partida fatal.

— Nessa não caio eu — replicou Joaquim. — Se José ficasse em tua companhia, quando eu voltasse um dia por aqui, achava-o servindo ao vigário ou, pelo menos, feito sacristão.

José entretanto, como querendo escusar-se às saudades da despedida, encaminhou-se para o quintal donde se pôs a olhar para os araçazeiros e goiabeiras em que ele foi encontrar novo motivo de pesar com que não contava. Eis que uma menina de longos cabelos castanhos, que estava brincando em um dos quintais contíguos, foi tirá-lo da sua contemplação.

— Que está você fazendo, José?

— Ora! Não sabes que vou sair de casa, Luisinha?

— Não sabia, não.

— Pois vou, e não sei quando voltarei. Estou triste. Tenho pena de deixar mamãe.

— E de mim não tem também pena? perguntou ela com suave ingenuidade.

— Tenho também, sim; eu estava lembrando-me de você agora mesmo. Olhe, Luisinha: se eu algum dia voltar você me quer para seu marido?

— Eu lhe quero muito bem, José. Mas não gosto quando você judia com os passarinhos e dá pancadas nos meninos.

— Pois eu lhe digo uma coisa: se algum dia eu chegar aqui de volta, tenha logo por certo que não faço mais mal a ninguém. Se pareço mau, Luisinha, não é por mim.

Deste inocente colóquio os veio tirar a voz de Joaquim que chamava por José para partirem. Pouco depois o pai e o filho deram as costas à povoação. Joana ficou de cama.

Data desse dia a vida que levaram até o momento de caírem no poder da justiça. Não foi ela nada menos do que uma longa série de atentados que dificilmente se acreditam. O número destes atentados e as circunstâncias que os revestiram, não há quem os saiba com individuação e clareza. Muitos deles foram de todos esquecidos, na longa travessa de mais de um século que se conta de sua perpetração; e dos que assim se não perderam chegou aos nossos dias uma notícia vaga, incompleta e por vezes tão escura, ou tão confusa, que temos lutado com grandes dificuldades para, por ela, recompor esta história.

É que as tradições do crime são menos duradouras que as da virtude.

Há nisto uma lei salutar da Providência.

V

LUISINHA era uma menina branca, órfã, de índole benigna e de muito bonitos modos. Compadecida da pouca sorte da pequena, uma viúva recolheu-a em sua casa à conta de filha, e começou logo a. ter para ela maternal solicitude. Luisinha era digna deste amparo, não só pelos predicados sobreditos, senão também pelos seus encantos naturais que a todos cativavam com justa razão.

Florinda, a viúva, deu à menina a educação que então se usava e que, com poucas modificações, e alguns acrescentamentos, ainda hoje se usa no campo. Assim, não se demorou muito que Luisinha soube fiar, coser costuras chãs, fazer bicos e rendas, respeitar os mais velhos e encomendar-se a Deus. Como era dotada de excelente coração, dentro em pouco era estimada por todos do lugar, e até pelos comboeiros e boiadeiros que se arranchavam no povoado para deixar passar a força do sol do meio-dia, ou aí pernoitarem quando não podiam, ainda com ar de dia, romper a mata onde se acoitavam negros fugidos e malfeitores.

A mata tinha mais de légua de comprido, e ninguém lhe sabia os esconderijos.

Quando se divulgou que Joaquim havia deixado a mulher, todos, a uma voz, logo prognosticaram que ele ia estabelecer dentro da mata virgem o seu novo domicilio. À vista da sua má índole de todos conhecida, houve quem assegurasse que ele estava de mãos dadas com os facinorosos de Pernambuco, da Paraíba e do Rio Grande do Norte, que ali se homiziavam. Muitos destes eram conhecidos por seus nomes e pessoas, e uma vez por outra faziam sortidas sobre os povoados, saqueavam as vendas, perpetravam mil desatinos, e escapavam sempre à ação da justiça, ineficaz naquele tempo, como ainda o é hoje a nossa polícia nos povoados longínquos, para não dizermos nas próprias capitais segundo sabemos.

A voz do povo não era senão o eco da verdade.

Não se meteu muito tempo que crimes de nova espécie, revestidos de circunstâncias que velavam a maior perversidade de parte dos delinqüentes, vieram a atestar que os negros arraiais estabelecidos no centro da espessura haviam feito novas aquisições que primavam, nas ciladas, no manejo das armas, na firmeza das execuções.

A princípio não se soube a quem atribuir o sangue novo levado às veias dos grupos dos criminosos aí asilados, os quais, bem que numerosos, nunca manifestaram a audácia, a ferocidade inaudita que surpreendiam e aterravam agora as populações. Para maior confusão destas, tinha sido visto mais de uma vez o Joaquim, ora de companhia com o filho, ora cada um sozinho, montado no seu cavalo, vendendo legumes, macaxeiras, farinha, açúcar pelas povoações, e fazendo compras no Recife; o que deixava, pelo menos supor que eles se davam ao trabalho da lavoura, e passavam a vida honestamente à custa do suor de seu rosto. Mas em menos de dois anos não se pôde mais pôr em dúvida que fossem consenhores dos vastos e virgens domínios, onde figuravam talvez como os primeiros e mais respeitados de todos os outros conquistadores, seus iguais.

 

Algumas vítimas que tinham conseguido, por felicidade ou acaso, escapar com vida das garras dos feros algozes, deixando-lhes unicamente dinheiro, fazendas ou gêneros, declaravam que o mais audaz e o mais terrível dentre eles era um jovem de cabelos tão crescidos que lhe batiam nos ombros, assemelhando-se aos de uma dama. Outros diziam que tinham visto por muitas vezes o Joaquim na mata dos salteadores, e que na pessoa do jovem dos cabelos compridos ou do Cabeleira, segundo começaram logo de chamá-lo, haviam reconhecido seu filho José Gomes.

Notou-se também uma espécie de moderação, ou de suspensão de hostilidades, ou ao menos de cessação de crueldade nestas, de parte dos salteadores em certas quadras do ano, durante as quais não figuravam nos acometimentos nem o Cabeleira nem seu pai. Daí se inferiu, com todo o fundamento, que os dois matadores não limitavam as suas correrias àquelas redondezas, mas que, pelo contrário, deixando os seus esconderijos, visitavam novos termos, percorriam outros lugares, como os selvagens mudam de região quando na que preferiram para a sua transitória residência, não encontram mais com que alimentar a sua indolência e bárbara voracidade.

Esta conjuntura foi dentro de pouco tempo confirmada pelos clamores que se levantaram nas freguesias e termos vizinhos, e nos lugares remotos aonde o Cabeleira e seu pai foram levar o assombro e o terror de que já tinham enchido a província natal. As pacificas ribeiras do Rio Paraíba e do Rio Grande do Norte, os engenhos, povoações e vilas das duas províncias, que trazem os nomes destes dois grandes rios, começaram a pagar, como as ribeiras do Capibaribe, e as propriedades rurais e os pontos populosos de Pernambuco, o terrível imposto a que por mais de uma vez nos temos referido no correr desta narrativa. Os bandos dos salteadores escolheram para centros das suas operações as matas próximas dos rios, as catingas pegadas aos caminhos donde podiam facilmente espreitar e acometer a seu salvo os inofensivos viajantes que, com o fruto do trabalho honesto e da indústria esforçada, deixaram muitas vezes nessas medonhas solidões o seu sangue, a sua própria vida.

Cresceram a par a idade de Luisinha e o nome odioso do Cabeleira, nome que, principiando como um boato ou uma dúvida, se foi de dia em dia condensando e se constituiu afinal uma fama que ecoou, com os uivos das feras carniceiras, do sul ao norte, do sertão ao litoral, engrossando sempre com as novas façanhas, como um fraco regato acrescenta o volume das suas águas e se faz rio caudal com os subsídios que cada dia recebe em sua longa e demorada passagem pelo deserto.

Do fundo da obscuridade, que envolvia a sua existência, a menina acompanhou com os olhos inundados de lágrimas as fases sucessivas que atravessou esse nome destinado a ter uma página enlutada na história da pátria. E que bem dentro no seu coração estava a imagem do companheiro de infância a quem ela nunca pôde esquecer, ainda quando esta imagem lhe aparecia, como tantas vezes aconteceu, envolta em uma nuvem de sangue, e acompanhada de uníssonas maldições.

À noticia de um novo atentado cometido pelo moço que por uma lei natural da imaginação sempre se lhe representava com as feições do menino de outrora, Luisinha sentia no coração uma dor semelhante à que produz a dentada de uma serpente.

No terço que se rezava de noite em casa de Florinda, na missão que o coadjutor celebrava de madrugada, em qualquer ocasião própria para elevar o pensamento às regiões onde flui a eterna fonte das consolações em cujas águas se retemperam das dores da vida os espíritos resignados e crentes, a pobre moça tinha sempre uma oração para que Deus abrandasse a natureza de José e o tornasse, pela contrição e pela emenda, digno do perdão da sociedade. Ela não podia crer que, tendo sido esta tantas vezes indulgente para outros criminosos, fosse inexorável para o mancebo que por algum tempo andara apartado do caminho do dever. Pobre, ingênua e crédula criança!

Mal sabia que, para grande lição da sociedade do futuro, estava escrito que o cometa que assim abrasava a Terra, percorreria a vastíssima órbita que a Providência lhe traçara, e se afundaria nos espaços, não entre refulgentes auroras, mas dentro de profundas e medonhas escuridões.

Uma tarde Luisinha foi buscar água no Rio Tapacurá, que banha a cidade da Vitória, então povoação de Santo Antão, à qual pertencia Glória de Goitá donde era natural o Cabeleira. Santo Antão distingue-se na história pernambucana pela circunstância de lhe estar próximo o Monte das Tabocas no qual se verificou em 3 de agosto de 1645 a batalha que iniciou a insurreição portuguesa contra o domínio holandês, e exercitou direta e decisiva influência no futuro político, comercial, industrial e religioso do Brasil. Esta memorável batalha, depois de seis longas horas de fogo, declarou-se em favor dos nossos primeiros dominadores. Em comemoração deste acontecimento, uma lei provincial de 6 de maio de 1843 erigiu a antiga povoação em cidade a que chamou da Vitória como acima se vê.

O Tapacurá, que de inverno tem enchentes formidáveis, estava então cortado pelo rigor da seca de que tratamos no capítulo anterior. No seu largo leito viam-se unicamente, a espaços como de ordinário, pequenos poços onde os habitantes mal achavam água para o consumo diário.

Luisinha, não querendo levar para casa água chafurdada, passou pelos primeiros poços, já muito remexidos, e foi encher a sua vasilha em um que distava pouco menos de quarto de légua da povoação.

O poço ficava à beira de um capão de mato. De um lado o terreno elevava-se gradualmente, e acidentava-se mais adiante, formando ziguezagues quase inacessíveis e esconderijos escuros, a que a espessura das árvores dava um aspecto medonho. Do lado oposto a margem plana, igual e descampada, formava com a banda fronteira um admirável contraste.

Quando Luisinha, da areia do rio onde se sentara a descansar se dispunha a levantar-se para tornar a casa, deu com os olhos em um homem que da borda do mato a observava em silêncio com tal interesse que parecia querer atraí-la a si com a vista.

Sem demora correu ela ao pote, mas já foi tarde. Formando um pulo do outro lado do rio onde estava, o desconhecido veio cair no mesmo instante entre ela e a vasilha, sem perder, no rápido vôo, uma só das armas com que se achava apercebido.

— Em vão, meu bem, pretendes fugir-me. Antes que o diabo esfregasse um olho, eis-me aqui ao pé de ti, disposto a não te deixar ir embora senão por minha livre vontade.

O sítio era inteiramente deserto, e as trevas da noite não tardavam a envolver de todo a natureza.

Luisinha, lançando os olhos pela margem afora, não viu viva alma. Teve então tamanho medo, que involuntariamente caiu sentada aos pés do terrível desconhecido. Lembrou-se de gritar por socorro, mas logo viu que seria inútil esta tentativa, Visto que as suas vozes se perderiam no vasto ermo onde unicamente ecoava o coaxar dos sapos e das rãs, o silvo das cobras, o canto agoureiro dos bacuraus.

— Meu Deus! exclamou ela. Não haverá um cristão que me valha nesta aflição?

— Ninguém, ninguém te valerá, bonita rapariga — respondeu o desconhecido, levantando-a por um braço .e como querendo arrastá-la na direção da língua de terreno por onde se podia ir, a pé enxuto, à margem fronteira.

— Mas, meu senhor — tornou Luisinha achando em si mesma coragem de que nunca se julgara capaz — por tudo quanto é sagrado lhe peço que me deixe ir embora. Ê quase de noite, e, se me demorar mais tempo aqui, arrisco-me a encontrar algum malfeitor que me ofenda no caminho.

— Queres maior malfeitor do que eu?

— Vosmecê não é um malfeitor. Vosmecê veio caçar por estas bandas e, como me encontrou neste ermo, está me metendo medo para divertir-se à minha custa. E creio até que havia de defender-me se alguém quisesse fazer-me mal.

— Certamente. Nenhum gavião seria capaz de tirar-me das unhas a minha formosa juruti. Ora, vem comigo; não tenhas medo. Atravessamos por este limpo, ganhamos a capoeira, subimos pela aba da serra e...

— Deus me livre! exclamou Luisinha assaltada por novos terrores.

— Olhe: se você não quiser vir por bem, vem por mal — disse o desconhecido.

— Por mal? E onde está Deus? interrogou Luisinha, elevando todo o seu espírito aos pés daquele que está em toda a parte para acudir aos atribulados que o invocam com sincera confiança. Nem por mal nem por bem. Eu não vou com vosmecê ainda que me custe a própria vida. Eu sei que Deus me está ouvindo de dentro deste mato, de cima deste céu. Ele há de lembrar-se de mim.

Diante da firmeza na realidade admirável, com que a frágil moça respondeu à sua ameaça, o malfeitor sobresteve involuntariamente. Tornando logo em si, porém, continuou com certo disfarce de mau anúncio:

— Ora, menina, deixe-se de asneiras e vamos para diante enquanto o caso não fica mais sério. Se você é bonita, eu também não sou feio; assim, podemos ter filhos galantes como os têm os passarinhos no seio da solidão.

— Meu Deus, meu Deus, compadecei-vos de mim enquanto é tempo! exclamou ela quase vencida de terror.

Então à luz crepuscular que enchia a planície como uma neblina, lobrigou Luisinha um vulto que se dirigia para o lugar onde ela se achava com o malfeitor. Não foi preciso mais para que recrudescesse o seu valor que a ia desamparando.

— Cuidas que não vejo quem ali vem? perguntou o desconhecido, apontando o vulto que, como vinha pelo rasto da moça, com pouco mais estaria com eles. Eu podia agora mesmo meter-me contigo pelo mato adentro. Se tentasses gritar, tapava-te a boca, e ninguém saberia o teu fim. Mas quero ficar, para, em vez de uma, levar em minha companhia duas mulheres para o mato, onde há grande necessidade desta fazenda.

— Estou aqui, minha mãe, estou aqui — gritou Luísa quase ébria de prazer pela sua salvação, que teve por indubitável desde que na mulher recém-aparecida reconheceu Florinda.

O malfeitor, porém, seguro de seu poder, nem se moveu, nem se alterou sequer; e para dar testemunho irrecusável de que não fazia caso do inesperado adjutório, chasqueou de Florinda, por se apresentar armada com um cacete e um facão.

Querendo Luisinha correr ao encontro da viúva que, tendo ouvido as palavras da rapariga, fora em seu socorro com gestos e meneios de louca, o desconhecido, cujos olhos cobriram de repente com uma expressão indescritível a pobre vitima, não lhe consentiu arredar o pé de junto de si.

— Não irás — disse rudemente, assentando a mão sobre o braço da moça com tanta força e violência, que a ela se afigurou que ele lhe tinha dado um golpe com o coice da arma.

Florinda passava por ser a mulher mais forte de toda aquela ribeira.

Ela derrubava grossas árvores a machado, abria roçados por empreitada, cortava na mata virgem lenha que vendia na povoação, e até tarrafeava nas lagoas como um hábil pescador. Não se distinguia só nos serviços do campo, mas também em fazer excelentes tapiocas e ótimo arroz-doce que eram as delícias dos matutos e sertanejos nas feiras.

Era curiboca, reforçada, não feia e de boa estatura. Acreditava na existência do diabo, no inferno e nas penas eternas como ainda hoje acredita a gente do campo e uma grande parte dos habitantes das cidades; mas em compensação tinha uma fé viva e fervorosa em Deus, e era de costumes irrepreensíveis, fé e costumes que desgraçadamente faltam a muitos dos que têm hoje aquela primeira crença.

Tendo ficado viúva, sem filhos, na flor dos anos, não se quis casar segunda vez, e nunca ninguém achou motivo de pôr em dúvida a sua honestidade A Luisinha, a quem pouco depois de ter casado, tomou sob sua proteção, como já referimos, consagrava ela todos os seus afetos, e nela fazia consistir o seu orgulho, o seu prazer e a sua felicidade.

Não sendo de meias medidas quando se julgava ofendida, Florinda botou-se com todo o ímpeto que trazia, ao desconhecido, o qual, sem soltar Luisinha, que se torcia ao aperto da mão de ferro que a segurava, rebateu o golpe do facão de Florinda com o cano do bacamarte. Com o choque o facão partiu-se, e a folha inteira foi cair dentro no poço, ficando na mão da curiboca o cabo imprestável da infame arma.

 

Florinda era prudente. Tanto que se viu desarmada, sobresteve, dominou a sua justa indignação e, com voz masculina que lhe dera a natureza, assim falou ao malfeitor:

— Que quer vosmecê fazer com minha filha?

— Quero levá-la comigo para meu divertimento. Se tens força para impedires o meu intento, é agora a ocasião.

Ouvindo estas acerbas expressões, Florinda, que com a vista medira de cima a baixo o seu adversário, meteu-lhe o cacete com todo o ânimo que lhe dava sua vida sem mancha, e a justa defesa da filha, seu único tesouro, de todos acatado e querido. No mesmo instante o ar sibilou, e ouviu-se o som de uma pancada contra um corpo sonoro. Um grito, antes urro medonho, ecoou pela vasta solidão, e uma massa que se parecia, na forma e no peso, com um tronco de angico anoso, tombou sobre a areia. O desconhecido acabava de obrar uma ação vil. Com a coronha do bacamarte tirara os sentidos àquela digna mulher, que o encarara sem medo.

Vendo sua mãe cair desfalecida, Luisinha quis correr em seu amparo, mas não lho permitiu a mão do malfeitor que a puxou para trás com força hercúlea.

— Ah! não conheceste o Cabeleira, cascavel? acrescentou ele com os olhos fitos em Florinda. Vêm meter-se na boca da onça, e depois dizem que a onça é cruel.

Aos ouvidos de Luisinha aquele nome passou como uma chama elétrica, que lhe deu forças para volver à vida.

— Cabeleira! repetiu ela.

Só então viu os longos cabelos que caíam em ondas por debaixo das abas do chapéu de palha sobre os ombros do assassino.

— De que te admiras? Não sabes que o Cabeleira está em toda parte onde não o esperam? Vem comigo.

E sem mais contemplação, o matador arrastou a menina contra a vontade, a resistência, os sobre-humanos esforços que esta lhe opunha, por junto do corpo de Florinda e seguiu em busca da margem fronteira, onde a noite era já fechada, e o aspecto do sítio pavoroso.

— Agora te conheço, José malvado — disse a moça. Mata-me também, já que mataste minha mãe que nunca te ofendeu.

— Ah, conheceste afinal o Cabeleira?

— Tanto me conheceste tu, desgraçado!

— Que queres dizer com estas palavras? perguntou o bandido.

— Olha-me bem. Até de Luísa te esqueceste! Assassino, eu te perdoo a morte: mata-me.

Tinham chegado à beira do capão de mato. O Cabeleira estacou. O que acabava de ouvir tê-lo-ia prostrado mais depressa do que um golpe igual ao que descarregara, havia pouco, sobre uma das fontes de Florinda, se no mesmo instante não lhe houvesse chegado aos ouvidos um assobio agudo, sinal de extrema aflição no couto próximo.

— Ah! era você? Perdoe-me, Luisinha. Eu não a esqueci. Perdoe-me. Eu não sabia que era você — disse então, com brandura, Soltando a moça sem mais demora.

— Só Deus te poderá perdoar, assassino de minha mãe, — respondeu, abafada em lágrimas e soluços, aquela que se considerava órfã e desvalida pela segunda vez.

— Perdoe-me, Luisinha. Nem eu a posso levar comigo, nem posso demorar-me por mais tempo. O meu rancho está em perigo, e os camaradas chamam-me em socorro deles. Mas espere por mim um pouco debaixo deste juazeiro, que eu quero que você me ouça. Eu volto já.

E, sem perder mais um momento, desapareceu dos olhos de Luísa como uma vã sombra.