Kitabı oku: «Romancistas Essenciais - Monteiro Lobato», sayfa 3
CAPITULO VI
O Tempo Artificial
Quando de novo me encontrei com o professor Benson no laboratorio prosseguiu ele na exposição interrompida.
— Onde estavamos, senhor Ayrton?
— Na pre-determinação.
— Sim. Foi nesse ponto que Jane nos interrompeu. Pois bem: se tudo inexoravelmente se determina pela influencia reciproca das vibrações, se é isto pura mecanica, embora duma meta-mecanica inaccessivel ás forças da inteligencia do homem, é logico que a pre-determinação é possível em teoria.
— E na pratica tambem! aventei eu iluminado de subita ideia. Homens ha que adivinham ocorrencias futuras. Eu mesmo já tive ocasião de observar comigo um curioso caso de pressentimento lá nos negocios da firma. Veiu-me não sei de onde a ideia de que um freguês ia falir. Disse-o ao senhor Sá, o qual me chamou de tolo. Um mês mais tarde esse freguês abria bancarrota! Nunca me pude explicar isso pois nada conhecia dos seus negocios, nem coisa nenhuma ouvira falar a respeito.
— Esse caso pode ser visto de outra maneira. A ideia de requerer falencia podia estar em ação no cerebro do freguês. Ideia é vibração que repercute em ondas como tudo mais, e certos cerebros possuem bela faculdade emissiva ou receptora. Emitiu esse freguês uma vibração da ideia e o cerebro do senhor Ayrton agiu como polo receptor.
— Mas a leitura das linhas da mão? A quiromante que na Martinica predisse a Josefina, então simples burguesinha crioula, que seria imperatriz da França?
— Aí já o caso é diverso, como no de todas as profecias comprovadas. Havemos que conceber certas organizações possuidoras duma faculdade pre-determinante. E não me custa admitir isso, já que construi o pre-determinador.
— Que significa essa nova palavra, professor?
— Vamos ao pavilhão vizinho; lá me compreenderá melhor. Passamos á sala imediata, recinto envidraçado e em forma de funil, cujo bico era uma das tais torres de ferro enxadrezado.
— Aqui temos o nervo ótico do futuro. Chamo a este conjunto "o grande coletor da onda Z."
Eu andava de novidade em novidade e por mais alerta que pusesse o cerebro tinha de fazer paradas constantes, pedindo ao professor explicações parciais.
— Onda Z, professor Benson? Ainda não me falou nela.
— Só agora chegou o momento. A multiplicidade infinita das formas, isto é, das vibrações do eter, produz turbilhões ou ondas, que consegui classificar uma por uma e captar por meio deste conjunto receptor que as polariza...
— ?I
— Polarizar é reunir tudo num só ponto, num polo.
— Compreendo.
— Este conjunto receptor polariza os turbilhões e os funde numa especie de corrente continua, ou, usando de imagem concreta, de um jacto. Suponha milhões de gotas de chuva a caírem num imenso funil e a sairem pelo bico sob a forma continua de um jorro cristalino. Todas as gotas estão no jacto, mas fundidas e sob outra forma. Assim o meu coletor. Apanha o turbilhão das ondas e as polariza naquele aparelho.
Olhei para o aparelho que o dedo do professor apontava e apenas vi um emaranhado de fios e grandes carreteis de arame, que em calão eu definiria muito bem com a palavra estrumela. Mas guardei o vocabulo, visto que a lição da Groenlandia ainda estava muito fresca em minha memoria.
— Consigo assim, prosseguiu o sabio, concentrar em minhas mãos o presente, isto é, o momento atual da vida do universo, como imensa paisagem panoramica que toda se reflete numa chapa fotografica e nela se conserva latente até que vá ao banho revelador. Quer isto dizer que na corrente continua, invisível como o fluido eletrico, que gira naquele caos aparente de fios, solenoides e bobinas, está tudo quanto constitue o momento universal!
Apesar da segurança do velho sabio e da solidez de suas deduções eu permanecia numa vaga duvida. Na minha curteza mental eu achava excessivo estar tudo quanto existe reduzido a tão homeopaticas proporções e, ainda mais, impalpavel e invisível. O professor Benson adivinhou a minha indecisão e esmagou-a como quem esmaga uma pulga.
— Sabe o que é isto? perguntou mostrando-me uma coisinha de minusculas dimensões.
— Uma semente, respondi.
— E que é uma semente? Uma pre-determinação. Aqui dentro está predeterminada uma arvore de colossais dimensões que se chama jequitibá. Se o amigo admite que desta semente, que analisada só revela a presença de um bocado de amido, sais, graxa, etc. Surja sempre, e de um modo fatal, um majestoso jequitibá, porque vacila em admitir um fenomeno semelhante, qual a polarização do momento universal numa semente, que no caso é o fluido que circula no meu aparelho?
O simile matou-me de vez todas as veleidades de cepticismo e foi como quem ouve a voz de Deus que dali por diante me entreguei sem reservas ás palavras do sábio.
— Prossiga, doutor, murmurei.
— Obtenho, pois, neste aparelho, uma corrente continua, que é o presente. Tudo se acha impresso em tal corrente. Os cardumes de peixes que neste momento agonizem no seio do oceano ao serem apanhados pela agua tepida da Corrente do Golfo; o juiz bolchevista que neste momento assina a condenação de um mujik relapso num tribunal de Arkangel; a palavra que, em Zorn, neste momento, o kronprinz dirige ao ex-imperador da Alemanha; a flor do pessego que no sopé do Fushiama recebe a visita de uma abelha; o leucocito a envolver um microbio malevolo que penetrou no sangue dum fakir da India; a gota d'agua que espirra do Niagara e cai num liquen de certa pedra marginal; a matriz de linotipo que em certa tipografia de Calcutá acaba de cair no molde; a formiguinha que no pampa argentino foi esmagada pelo casco do potro que passou a galope; o beijo que num estudio de Los Angeles Gloria Swanson começa a receber de Valentino...
— A fatura que neste momento o senhor Sá está acabando de somar... Compreendo, professor. Toda a vida, todas as manifestações poliformes da vida, tudo está ali, como o jequitibá, com todos os seus galhos e folhas e passarinhos que pousam nele e cigarras que o elegem para palco de suas cantorias, está dentro da sementinha. Não é isso? conclui radiante.
O professor Benson riu-se do meu entusiasmo e pareceu-me na realidade satisfeito com o discípulo.
— Perfeitamente, amigo Ayrton. Tudo está ali. Pela primeira vez desde que o mundo é mundo consegue o homem esse espantoso milagre — mas só eu sei o que isso me custou de experiencias e tentativas falhas!... Fui feliz. O Acaso, que é um Deus, ajudou-me e hoje me sinto na estranha posição de um homem que é mais do que todos os homens...
Sua fisionomia irradiava tanta luz — a luz da inteligencia, — que só a poderia suportar um inocente da minha marca. Estou convencido de que se outro sabio o defrontasse naquele instante estarreceria de assombro, considerado como Isaias diante das sarças ardentes quando delas trovejou a voz de Jeová. A minha ingenuidade, a minha inocencia mental salvou-me. Hoje estremeço quando penso em tudo isso, como estremeceu Tartarin de Tarascon ao saber que os abismos que com risonha coragem ele arrostara nos Alpes eram de fato abismos e não cenografia como, iludido por Bompard, no momento supôs. Hoje que já nada mais existe do professor Benson a não ser uma lapide no cemiterio, e nada existe senão cinzas do seu maravilhoso laboratorio, se me ponho a analisar esse período da minha vida tenho sensação de que convivi com um Deus humanizado. O professor Benson falava das suas invenções com tanta simplicidade e me tratava tão familiarmente que jamais me senti tolhido em sua presença — como me sentia, por exemplo, na do Senhor Pato, o socio comendador lá da firma. Sempre que me cruzava com o comendador eu tremia, tanto se impunha aos subalternos aquela formidavel massa de banhas, vestida de fraque, com anel de grande pedra no dedo e uma corrente de relogio toda berloques que nos esmagava a humildade sob a arrogancia e o peso do ouro maciço. Diante do comendador Pato eu tremia e balbuciava; mas diante do professor Benson, um deus, sempre me senti como em face de um igual. Compreendo hoje o fenomeno e sei que a verdadeira superioridade num homem não o extrema dos "inocentes", como dizia o professor — e por isso chamava Jesus a si os pequeninos. Até na indumentaria aqueles dois homens eram antípodas. Na do comendador, o fraque propunha-se a impressionar imaginações, a estabelecer categorias, a amedrontar os paletós sacos com a imponencia da sua cauda bipartida; na do professor Benson tinha a rouca por unica função vestir um corpo a modo de resguarda-lo das bruscas variações atmosfericas.
Mas voltemos atrás. Ao ouvir dizer ao professor Benson que todo o momento universal estava ali, olhei para a maranha de fios e bobinas com um sentimento misto de orgulho e piedade. Orgulho de ver o Tudo escravizado diante de mim. Piedade, porque havia nisso uma certa humilhação para o Tudo...
A voz pausada do velho sabio tirou-me de tais cogitações.
— Até aqui permanecemos no presente. A onda Z ali captada só diz respeito ao presente, e se eu ficasse nessa etapa de pouco valeria a minha descoberta. Mas fui além. Descobri o meio de envelhecer essa corrente á minha vontade.
— Envelhecer?... murmurei refranzindo a um tempo todos os musculos da cara.
— Sim. Faço-a passar pelo aparelho que tenho no pavilhão imediato e ao qual denominei cronizador. Vamos para lá.
O professor tomou a dianteira e eu o segui, ainda repuxado de musculos faciais. O pavilhão imediato possuia ao centro um novo aparelho tão incompreensível para a minha inteligencia como os anteriores.
— Aqui temos o cronizador, disse o meu cicerone apontando para o esquisito conjunto. Este mostrador, que lembra o dos relogios, me permite marcar no futuro a epoca que desejo estudar.
— ? !
— Perca o habito de assustar-se, porque senão acabará cardíaco. A corrente penetra por este fio, sofre um turbilhonamento e envelhece na medida que eu determino com o movimento deste ponteiro. É como se eu tomasse a semente e por um golpe de magica dela fizesse brotar a arvore aos dez anos de idade, ou aos cinquenta, ou aos cem — ao arbítrio do experimentador. Compreende? — Compreendo...
— E destarte a evolução, que com o decorrer do tempo necessariamente vai ter a vida atual do universo, eu a apresso e a detenho no momento escolhido. Este meu cronizador, em suma, é um aparelho de produzir o tempo artificial com muito mais rapidez do que pelo sistema antigo, que é esperar que o tempo transcorra. Obtenho um ano num minuto de turbilhonamento; penetro no futuro, no ano 2.000, por exemplo, em 74 minutos. Opera-se durante a cronização uma zoada, que é o som dos anos a se sucederem, som muito semelhante a um eco distante...
— Sei. O que ouvi na hora do almoço.
— Exatamente. Quis Jane visualizar o futuro no ano 2.336, ou seja a 410 anos deste em que estamos. Para isso colocou aqui o ponteiro e abriu o comutador. A corrente envelheceu e automaticamente parou no ponto marcado, isto é, no ano 2.336.
A minha curiosidade crescia. Percebi que chegara ao ponto culminante da descoberta do professor Benson.
— E depois? indaguei ansioso. Para ver, ou como diz o professor, para visualizar esse futuro, como procede?
— Devagar!... Consigo, como ia dizendo, envelhecer a corrente até o ponto desejado. Ao obter isso, a evolução determinista que rigorosamente vai dar-se no universo com o decorrer normal do tempo dá-se artificialmente dentro do aparelho. E, chegada ao termo da cronização que visamos, a corrente turbilhonada torna-se estatica, por assim dizer congelada. E fico eu na posse dum momento da vida universal futura — isto é, com o 4 da nossa primitiva imagem do 2 + 2. Resta-nos agora a ultima parte da operação, a qual, por comodidade, executo no meu gabinete. Não notou lá uma especie de globo cristalino?
— Foi a primeira coisa que me impressionou neste castelo.
— Pois é o porviroscopio, o aparelho que toma o corte anatomico do futuro, como pitorescamente diz Jane, e o desdobra na multiplicidade infinita das formas de vida futura que estão em latencia dentro da corrente congelada.
— Por que, corte anatomico? indaguei, para não deixar ponto obscuro atrás de mim.
— Nunca esteve num laboratorio de miscroscopia? Com uma navalha afiadissima o anatomista opera um córte na ponta do seu dedo, por exemplo. Tira uma lamina de carne, a mais fina que possa, e estuda-a ao microscopio. A essa fatia do seu dedo chamará ele "corte anatomico". É Jane uma menina muito viva e gosta de falar por imagens, algumas extraordinariamente pitorescas...
A evocação de miss Jane veio perturbar a contensão do espirito com que eu acompanhava as revelações do mestre. Meu espirito cansado repousou nesse gracioso oasis, e foi com infinita inocencia que indaguei:
— Que idade tem ela, professor?
Mas o velho sabio talvez nem me ouvisse, porque entrou a dar explicações sobre a segunda função que possuía o cronizador: involuir a corrente, rodar para trás — o que permitia cortes anatomicos no passado.
— Mas isso não interessa, aventei levianamente. O passado é velho conhecido nosso.
— Engano. É tão desconhecido como o futuro e o presente. Desta vez abri a boca, e lá por dentro me soou como tolice a frase do sabio. Mas vi logo que o tolo era eu.
— Do presente que é que sabe o amigo Ayrton? Sabe apenas que está neste minuto conversando comigo. Mais nada. Não sabe nem sequer se os senhores Sá, Pato & Cia. estão a esta hora de falencia aberta.
— Impossivel! Aquela gente é solida como as montanhas!... Só vendem á vista...
— Quantas planícies não marcam hoje o lugar outrora ocupado por montanhas!... Do presente o amigo Ayrton só sabe, isto é, só tem consciencia do que no momento lhe afeta os sentidos.
— Na verdade! exclamei. Nem o meu Ford, que era tudo para mim, sei onde pára...
— E se ignoramos o presente, que dizer do passado?
— Mas a Historia?
O professor Benson sorriu meigamente um sorriso de Jesus.
— A Historia é o mais belo romance anedotico que o homem vem compondo desde que aprendeu a escrever. Mas que tem com o passado a Historia? Toma dele fatos e personagens e os vai estilizando ao sabor da imaginação artística dos historiadores. Só isso.
— E os documentos da epoca? insisti.
— Estilização parcial feita pelos interessados, apenas. Do presente, meu caro, e do passado, só podemos ter vagas sensações. Ha uma obra de Stendhal, La Chartreuse de Parme, cujo primeiro capitulo é deveras interessante. Trata da batalha de Waterloo, vista por um soldado que nela tomou parte. O pobre homem andou pelos campos aos trambolhões, sem ver o que fazia nem compreender coisa nenhuma, arrastado ás cégas pelo instinto de conservação. Só mais tarde veio a saber que tomara parte na batalha que recebeu o nome de Waterloo e que os historiografos pintam de maneira tão sugestiva. Os pobres seres que inconscientemente nela funcionaram como atores, confinados a um campo visual muito restrito, nada viram, nem nada podiam prever da tela heroica que os cenografos de historia iriam compor sobre o tema. Eis o presente... Vamos agora ao gabinete, concluiu o professor. O mais interessante se passa lá.
Acompanhei-o, literalmente apatetado. Aquele homem pensava de modo tão diferente de todo mundo que suas ideias me davam a impressão de algo novo e operavam em meu cerebro como luz que invade aos poucos uma sala de museu. Mil coisas que nunca supus existirem em minha cabeça revelaram-se-me de pronto. Coisas mínimas, germes de ideias, antigas impressões recolhidas nos vaivéns do viver quotidiano ressurgiam animadas de estranha significação. Outras, que eram capitais outrora, diluiam-se. O comendador Pato, até vinte dias antes tido por mim como o mais formidavel expoente do genio humano, decaia a irrisorias proporções. Oh, como desejei ve-lo ali em contato com o professor, para gozar a derrocada das ridículas ideias de fraque que ele tinha na cabeça!
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CAPÍTULO VII
Futuro e Presente
Ao entrar no gabinete iluminei-me todo por dentro. Estava miss Jane adiante do globo de cristal, absorvida com certeza na visualização de um corte anatomico. Um raio de sol coado pela vidraça transfazia em luz o louro de seus cabelos. Miss Jane era toda atenção. Seus olhos azues verdadeiramente bebiam algum mara-vilhoso quadro. O professor Benson estacou á porta, fazendo-me gesto de silencio, e assim permaneceu até que a moça desse volta a um comutador e regressasse ao presente.
— Papai, exclamou ela, estou no fim da tragedia, no crepusculo da raça. Dudlee ganhou uma estatua... Boa tarde, senhor Ayrton. Desculpe-me o estar dizendo a meu pai coisas que nem por sombras o senhor pode desconfiar o que sejam. Compreendo que é indelicado falar em lingua estranha na presença de pessoas que a desconhecem...
A bondade de miss Jane encantou-me; e, como a jovem não me olhasse nos olhos, pude replicar:
— Mas tudo nesta casa me é linguagem estranha! O que acabo de ver assombra-me de tal maneira que tão cedo não me reconhecerei a mim mesmo.
— Está fazendo progressos, Jane, disse o professor. O amigo Ayrton compreendeu muito bem a parte teorica da minha exposição.
— Ou compreendi, exclamei, ou pareceu-me compreender. Aqui o professor fala com tal simplicidade e clareza que nem parece um sabio. Conheci um lá na cidade, e grande, a avaliar pela fama, com quem tive de tratar a mandado da firma. Pois confesso que não pesquei coisa nenhuma do que o homem disse. Esse, sim, parecia falar uma linguagem de mim nem sequer suspeitada...
— Não era um verdadeiro sabio, interveio miss Jane. Os verdadeiros são como meu pai, claros e fecundos como a luz do sol. Mas quer saber o senhor Ayrton o que eu fazia ha pouco?
— Não lhe contes ainda, Jane. Explica-lhe primeiro a função do porviroscopio, enquanto vou repousar um bocado. Sou velho e qualquer esforço além do habitual me cansa.
Antes que o professor Benson se retirasse, deu miss Jane um salto na cadeira, leve como a corça, e veiu beija-lo no rosto.
— Este querido paizinho! murmurou, acompanhando-o com os olhos amorosamente.
Depois voltando-se para mim:
— Não é uma benção das fadas ter um pai destes? Como sabe conciliar a maxima inteligencia com a maxima bondade!
— E com a maxima simplicidade! acrescentei. Não caibo em mim de gosto ao ver o homem que podia ser dono do mundo, se quisesse, tratar-me como se eu fôra alguem.
— Não se espante disso. Meu pai é coerente com as suas ideias. Todos para ele somos meras vibrações do eter.
— Até miss Jane?
— Eu serei vibração de um eter especial, muito afim do que vibra nele, explicou ela a sorrir. Mas, sentemo-nos, senhor Ayrton, que ha muito que conversar.
Já disse que eu era um rapaz acanhado, sobretudo em presença de moças bonitas; mas o ambiente de familiaridade e franqueza daquela casa modificou-me logo. Cheguei até a suportar nos olhos os olhares da linda jovem, sem perder a tramontana como da primeira vez. É que nem remotamente lembrava aquele olhar o olhar malicioso das mulheres que eu conhecera. Fui percebendo aos poucos que de feminino só havia em miss Jane o aspecto. Seu espirito formado na ciencia e seu convívio com um homem superior, dela afastavam todas as preocupações de coquetismo, proprias da mulher comum.
Isso me pôs á vontade. Sentia-me, não um moço em frente de uma donzela, mas um espirito diante do outro.
Aproveitei o ensejo para esclarecer-me a respeito do professor Benson. Soube que era descendente de um mineralogista norte-americano que um seculo antes viera ao Brasil estudar a composição de certa zona aurífera. Gostou da terra e nela se fixou, casando-se com a filha de um fazendeiro de S. Paulo.
— Desse consorcio, explicou miss Jane, só veio ao mundo meu pai, que cedo foi enviado á Europa, onde se dedicou a estudos cientificos. Lá se casou tarde e lá residiu por certo tempo. Veio depois tomar posse dos bens deixados pelo meu avô — e aqui nasci eu. Mas não me lembro de minha mãe. Morreu muito moça, anos 9 anos... Desde essa epoca estabeleceu-se meu pai neste recanto e consagrou-se integralmente á sua invenção. Passou o nosso mundo a resumir-se neste laboratorio. Raras vezes vamos á cidade, pouco in-teresse, aliás, achando nós dois em seu tumulto.
— Pudera! Quem tem o passado e o futuro nas mãos...
— Realmente é isso. Este aparelho fornece-nos tamanhas maravilhas, que a bem dizer vivemos muito mais no porvir do que no presente. Meu gosto é realizar estudos dos anos mais remotos, e só lamento não ter um cerebro imenso qual o oceano para reter tudo o que vejo. Outra coisa que lamento é não podermos dar a publico a nossa invenção. A bondade de meu pai o impede.
— Não alcanço muito bem o porquê...
— Pretende ele, e com muita logica, que a humanidade não está apta a suportar a revelação do futuro. Acha que a sua invenção cairia no poder de um grupo o qual abusaria da tremenda soma de superioridade que a descoberta lhe concederia. Fosse meu pai um homem vulgar, de pouca sensibilidade de coração, e ele mesmo assumiria o predomínio que receia ver na posse de outrem. Basta dizer que até hoje apenas se utilizou deste invento para reunir o dinheiro necessario á nossa vida e aos enormes dispendios dos seus estudos.
— Agora me lembro, miss Jane, que lá fora é o professor Benson conhecido como um jogador de cambio que jamais perde.
— E assim é. Fizemos experiencia com o marco e o franco e os fatos corresponderam com exatidão ás indicações deste aparelho. Mas meu pai limitou-se a ganhar o necessario para o trem de vida que leva. Estamos na posse de elementos para alcançar o que quisermos, para reunirmos nas mãos a maior soma de ouro com que se possa sonhar. Isso, porém, nos seria de todo inutil. Para que necessitamos da mesquinha riqueza do mundo se nada não nos dá ela que se aproxime do que temos aqui?
— Por mais espantosa, miss Jane, que seja a descoberta do professor Benson, espanta-me ainda mais o carater das duas pessoas que estão no seu segredo. Podem ser tudo e não querem ser nada...
— Ser tudo!... Que significa ser tudo? Quando penso nas grandezas do mundo, rio-me delas...
Miss Jane conversou comigo por mais de um hora sobre os mais variados assuntos. E explicou-me depois o funcionamento do aparelho, recorrendo ás suas imagens habituais, tão pitorescas. A corrente perdia no globo de cristal a sua forma concentrada e visualizava-se como numa projeção de cinema, reproduzindo momentos de vida futura cora a exatidão que vai ter um dia.
— Ficamos na posição de um espectador imovel num ponto. Só vemos e ouvimos o que passa ao alcance dos nossos olhos ou soa ao alcance dos nossos ouvidos. Isso ás vezes dificulta a compreensão de certos momentos da vida futura. Aparecem-nos coisas que não podemos compreender por falta dos elos anteriores da evolução. No ano 3.527, por exemplo, vi na população da França evidentes sinais de mongolismo. Os trajes não lembravam nada do que usam hoje as criaturas em parte nenhuma da terra, nem sequer pude perceber de que seriam feitos. Esqueci-me de dizer que o nosso aparelho não vai além do ano 3.527. Sua potencia pára aí. Focalizado para o ano de 3.528 já dá uma visão de tal modo baça que não distinguimos nada. Ficamos, eu e meu pai, perplexos ante aquele mongolismo da França. Só depois, fazendo cortes menos recuados e combinando uns com os outros, conseguimos decifrar o misterio. Tinham-se derramado pela Europa os mongois e se substituído á raça branca.
Não pude conter um gesto de espanto, e fiz tal cara que miss Jane sorriu.
— Que horror! Vai então acontecer essa catastrofe? exclamei. A jovem sabia respondeu com serena impassibilidade:
— Por que, catastrofe? Tudo que é tem razão de ser, tinha forçosamente de ser; e tudo que será terá razão de ser e terá forçosamente de ser. O amarelo vencerá o branco europeu por dois motivos muito simples: come menos e prolifera mais. Só se salvará da absorção o branco da America. E como esta, quantas revelações curiosas! Outra, que muito me impressionou, foi a transformação das ruas que se nota no ano 2.200 em diante. Cessa a era dos veículos. Nada de bondes, automoveis ou aviões no céu.
— Como pode ser isso, miss Jane? É quasi um absurdo.
— Pois para lá caminhamos. Em cortes sucessivos que fiz de dez em dez anos observei a diminuição rapida dos veículos atuais. A roda, que foi a maior invenção mecanica do homem e hoje domina soberana, terá seu fim. Voltará o homem a andar a pé. O que se dará o seguinte: o radio-transporte tornará inutil o corre-corre atual. Em vez de ir todos os dias o empregado para o escritorio e voltar pendurado num bonde que desliza sobre barulhentas rodas de aço, fará ele o seu serviço em casa e o radiará para o escritorio. Em suma: trabalhar-se-á á distancia. E acho muito logica esta evolução. Não são hoje os recados transmitidos instantaneamente pelo telefone? Estenda esse principio a tudo e verá que imensas possibilidades para vir traze-lo. O progresso foi grande, mas repare quando á radio-comunicação se acrescentar o radio-transporte. Outrora, por exemplo, se o senhor Ayrton quisesse fumar um charuto tinha de mandar um criado busca-lo á charutaria; hoje pede-o pelo telefone, mas o charuteiro ainda é obrigado a mobilizar um carregador para vir traze-lo. O progresso foi grande, mas repare que atraso ainda!
Mobilizar um homem, isto é, uma massa de 60 ou 70 quilos de carne, faze-lo dar mil ou cinco mil passos, gastando vinte ou trinta minutos da sua vida. só para transportar um simples charuto! Chega a ser grotesco...
— Realmente. Mas no futuro?
— No futuro o senhor Ayrton fumará á distancia. Veja quanta economia de tempo e esforço humano!
Julguei que miss Jane estivesse a caçoar comigo e até hoje permaneço na duvida. Em seu rosto, porém, não vi a menor sombra de motejo.
— Pode ser, mas... duvidei.
— Esse mesmo "pode ser, mas..." diria um romano do tempo de Cesar se alguem lhe predissesse que um romano do tempo do oleo de ricino não precisaria sair de sua casa para conversar com um cidadão de Paris. Sabe o senhor Ayrton, no entanto, que isso é comezinho hoje e nem sequer admira a ninguem.
— Falar é uma coisa e fumar é outra.
— Hoje, que só temos a radio-comunicação. Mas chegará o dia da radio-sensação e do radio-transporte, com radical mudança do nosso sistema de vida. Os veículos ao sistema corrente desaparecerão um por um. Voltará o homem a caminhar a pé, por prazer, e as ruas se tornarão uma delicia. O senhor Ayrton sabe o que quer dizer uma rua hoje...
— Ninguem melhor do que eu, miss Jane, pois desde menino vivo nelas. Que angustia, que permanente inquietação! Temos que andar com cinquenta olhos arregalados, para prevenirmos trancos e atrope-lamentos.
— Tudo isso desaparecerá, e adquirirão as cidades uma calma deliciosa, como hoje a de certas aldeias. Vi New York nesse periodo. Que diferença do atropelado e doido formigueiro de agora!
— Deve miss Jane ter observado coisas maravilhosas!...
— Menos maravilhosas do que desnorteantes para as nossas ideias atuais. As invenções vão sobrevivendo no decurso do tempo, umas saidas das outras, e as coisas tomam ás vezes rumo muito diverso do que a logica, com ponto de partida no estado atual, nos faria prever,
O professor Benson reapareceu nesse momento e a conversa tomou outro rumo. Eu me achava na situação de um homem que ingerisse um estupefaciente desconhecido. Estava com a minha capacidade de assimilação de ideias esgotada e já com uma ponta de dor de cabeça a dar sinal de que o cerebro exigia repouso. Sem que eu o dissesse, o velho sabio, mais sua filha, compreenderam-no perfeitamente e dali até o jantar só me falaram de coisas repousantes.
A noite custei a conciliar o sono, o que era natural. Mas sinceramente o digo: o que mais me dansava na cabeça não era o desvendamento do futuro nem as suas abracadabrantes maravilhas, e sim a imagem de miss Jane. A estranha criatura loura, de olhos tão azues, impressionara por igual meu cerebro e meu coração. Comecei a ver nela o verdadeiro tudo; e se me dessem a opinar entre a posse da descoberta do professor Benson e o te-la ao meu lado para o resto da vida, não vacilaria um instante na escolha.
Dormi por fim e, em vez de sonhar com o mundo futuro entrevisto na palestra da moça, sonhei no encanto do presente, todo resumido em conjugal convivencia com o meigo anjo sabio.
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