Kitabı oku: «Romancistas Essenciais - Monteiro Lobato», sayfa 4
CAPITULO VIII
A Luz que se Apaga
No dia seguinte, logo pela manhã, soou-me aos ouvidos uma novidade desagradável. Não passara bem a noite o professor Benson.
— Estou velho, meu caro senhor Ayrton, disse-me ele ao encontrar-se comigo. Já sinto cá dentro a maquina funcionar com esforço. Jane ignora o meu estado, mas a pobre menina não me terá por muito tempo na terra. Ficará só. Dei-lhe, entretanto, tal educação, e possue ela tais qualidades de carater, que morrerei feliz. Saberá agir no mundo como se contasse sempre comigo.
Veio-me aos labios um ímpeto de confidencia. Quis apresentar-me ao professor como o braço forte que se oferecia a miss Jane quando o de seu pai viesse a faltar. Contive-me a tempo. Lembrei-me da minha insignificancia e do pouquíssimo que eu ainda era naquele lar. Limitei-me, pois, a confirmar as ideias do velho em relação á filha, dizendo:
— Pelo que com ela conversei ontem tive a mesma impressão. É miss Jane uma criatura superior, uma madame Curie capaz de prosseguir nos trabalhos de seu pai, se o quiser.
— Jane o quereria talvez, mas não posso consentir nisso. Bastam-lhe, para lhe encher a vida, as visões que já teve e a superioridade que adquiriu conhecendo o futuro proximo. Isso lhe permitirá por-se a salvo das contingencias da necessidade. Possue Jane um caderninho onde anotou a cotação dos principais valores de bolsa nestes proximos cinquenta anos. Está assim habilitada a ser detentora do dinheiro que quiser. O dinheiro ainda é tudo para os homens. O estranho dote que deixo á minha filha se resume nesse caderninho de notas... Mas conheço Jane. Extremamente imune ás ambições que atormentam o comum das mulheres, levará um viver apagado, sem exterioridade, toda entregue á vida cerebral, que a tem intensissima.
O professor fez uma pausa, como se o esforço daquelasconfidencias o tivesse cansado. Depois, disse:
— Realizei o que jamais sonhara nos delirantes sonhos da minha mocidade — e me vejo forçado a levar para o tumulo o grande segredo... Jane não o revelará a ninguem e ainda que o faça não estará na posse da solução tecnica. O senhor Ayrton, unica testemunha presencial de tudo, tambem o não revelará a ninguem.
— Proibe-mo, professor?
— Não, não proibo, já disse. Mas se algum dia tiver a ingenuidade de o revelar a alguem, passará por louco, e se insistir, por louco varrido, dos que os homens metem nos hospícios. O instinto de conservação e de sociabilidade é que o vai impedir de revelar o que está vendo aqui.
Miss Jane entrou nesse momento e notei que o velho sabio se contrafazia diante da moça para não denunciar o seu estado de saude. Apesar disso ela observou.
— Um pouco palido, meu pai...
— Sim, mas estou perfeitamente bem. Temos aqui o senhor Ayrton e compete a ti, minha filha, organizar o programa do dia. Pouco posso acompanha-los. Uma delicada experiencia vai absorver-me por algumas horas.
Miss Jane olhou-me com os seus lindos olhos claros e disse:
— Escolha, senhor Ayrton. Ontem foi a teoria, hoje começa a ser a pratica. Vai estudar uns córtes. Escolha um momento da vida futura que o interessa.
Miss Jane estava linda como uma rosa desabrochada naquela manhã na roseira proxima do meu quarto. Meus olhos envolveram-na num veu de enlevo e se o coração pudesse falar ter-lhe-ia eu dito que só me interessava o presente nela concentrado. Mas respondi de outro modo.
— Sou um leigo em materia de futuro, miss Jane, e nem escolher posso. Deixo isso ao seu inteligente criterio.
— Não tem vontade de ver o que se passará aqui, neste lugar onde estamos, no ano 3000?
— Já fizeste esse corte, Jane, interveio o professor.
— Fiz, sim, meu pai, mas será curioso repeti-lo para o senhor Ayrton.
— Perfeitamente, concordei. Ha sempre mais interesse para nós em ver assim futurizado um ponto nosso conhecido do que um desconhecido.
— Pois então, resolveu o professor Benson, comecem por aí e não contem comigo. Vou trabalhar.
Ergueu-se e saiu. Miss Jane acompanhou-o até á porta e ao tornar me disse:
— Acho meu pai um tanto abatido hoje. Já está nos setenta anos e velhice é doença...
Uma nuvem de melancolia sombreou-lhe os lindos olhos azues e um breve suspiro lhe escapou do peito. Tambem eu no intimo me sombreei de tristeza, embora mentisse exteriormente, nesse intuito de consolação facil que tais lances impõem.
— Qual! exclamei. O professor é rijo. E com a vida calma que leva ainda viverá muito.
— Assim seja, murmurou Miss Jane, porque não sei o que será de mim sem ele. Acho-me tão identificada com meu pai...
Arrisquei urna pergunta indiscreta:
— Nunca pensou em casamento, miss Jane?
A moça entreparou, olhando-me entre admirada e divertida.
— Casamento? Ora que coisa interessante, senhor Ayrton!...
Ha de crer que é a primeira vez que tal palavra soa nesta casa? Ca-sa-men-to!...
E repetiu-a diversas vezes como se repetisse uma palavra de som esquisito e nunca antes pronunciada.
— Sim, continuei eu, todas as moças se casam. O amor um dia vem e...
Miss Jane permaneceu alheada, como entregue a profundas cogitações interiores.
— "Todas as moças"... repetiu. Mas serei eu moça? Nunca me analisei, senhor Ayrton. Minha vida tem sido voar de seculo em seculo por esse futuro afora em companhia de meu pai. Sinto que sou apenas um espirito que observa e possue meios de visualizar o que está fora do alcance humano. Será isso ser moça? Amor?... Que é amor, senhor Ayrton? O seu vocabulario é tão novo para mim como deve ser para o seu espírito esta nossa mentalidade futurista. Mas vamos ao que serve. É tempo de operar um corte.
Miss Jane dirigiu-se ao gabinete do porviroscopio e eu acompanhei-a, tomado de espanto diante de um ser tão alheio ao seu tempo e á sua condição. Lá fora, amor e casamento constituem a obsessão unica de todas as mulheres. Em criança, brincam de casar as bonecas. Nubeis, cuidam exclusivamente de casar a si proprias. Velhas, cuidam de casar ou descasar as outras. Havia, pois, uma mulher no mundo, e formosíssima que não só não pensava em amor e casamento mas á qual tais expressões soavam como vozes ineditas...
Era simplesmente prodigioso!
Diante do porviroscopio ela se deteve e depois de algumas explicações me fez colocar no ano 3000 o ponteiro. Em seguida viu num mapa a situação geografica do ponto onde nos achavamos e ensinou-me a mover o ponteiro marcador das latitudes e longitudes.
— Pronto! exclamou. Basta agora abrir esta valvula. A corrente envelhecerá de 1074 anos, que são quantos vão do em que estamos ao ano 3000. Envelhecerá e nos dará sinal disso automaticamente. Mas como o envelhecimento de cada ano consome um minuto, teremos...
Tomou de um lapis e calculou, rapida.
— Teremos de esperar 17 horas e 54 minutos. O relogio marca as nove e, pois, só conseguiremos ter cá o ano 3000 ás nossas ordens entre meia noite e uma da madrugada. Estou afeita a estas observações a qualquer hora da noite, mas não sei se para o senhor Ayrton não será incomodo...
— Absolutamente não. Só lamento não poder satisfazer já, já, a minha curiosidade. Ver um pedaço da nossa terra no ano 3000, que portentosa maravilha! Diga-me alguma coisa, miss Jane, do que me vai ser revelado...
— Não. Não quero prejudicar a sua surpresa. Prefiro falar de aspectos que vi em outros tempos e outros paises.
Lances ha na vida absolutamente indeleveis. Essa tarde que passei com a filha do professor Benson, a ouvir-lhe as revelações do futuro, como esquece-la jamais?
Não poderei reproduzir aqui tudo quanto ela me disse; seria compor um catalogo sem fim. A invasão mongolica, o feroz industrialismo da Europa mudado em contemplativismo asiatico, a evolução da America num sentido inteiramente inverso... quanta coisa formidavel! Mas nada me interessou tanto como o drama do choque das raças nos Estados Unidos.
— Esse choque, disse miss Jane, deu-se no ano 2228 e assumiu tão empolgantes aspectos que reduzido a livro dá uma perfeita novela. Não sei se o senhor Ayrton é literato...
— Já fiz um soneto na idade em que todos desovam sonetos...
— Pois se não é poderá tornar-se. O principal para uma novela é ter o que dizer, estar senhor de um tema na verdade interessante. Ora, eu fornecerei os dados dessa novela e o senhor Ayrton terá oportunidade otima para apresentar-se ao mundo das letras com um livro que a critica julgará ficção, embora não passe da simples verdade futura.
A ideia sorriu-me, e todo me lisonjeei com a opinião que miss Jane fazia das minhas capacidades artísticas.
— Quer tentar? insistiu ela. Contar-lhe-ei com a maxima fidelidade o que vai passar-se. De posse desse material, e depois de pessoalmente fazer varios cortes que o ajudem a formar ideia justa do ambiente futuro, atirar-se-á á tarefa. Desde já asseguro uma coisa: sairá novela unica no genero. Ninguem lhe dará nenhuma importancia no momento, julgando-a pura obra da imaginação fantasista. Mas um dia a humanidade se assanhará diante das previsões do escritor, e os cientistas quebrarão a cabeça no estudo de um caso, unico no mundo, de profecia integral e rigorosa até nos mínimos detalhes.
— Realmente! exclamei. Será romance como os de Wells, porém verdadeiro, o que lhe requintará o sabor. Quanta novidade!
— Os leitores andarão pulando de surpresa, e estou já a imaginar as caras de espanto que hão de fazer quando o senhor Ayrton falar, por exemplo, da cirurgia do doutor Lewis.
— Quem era?
— Oh, um magico da anatomia, o primeiro que praticou o desdobramento do homem.
Franzi os sobrolhos.
— Desdobramento da personalidade? perguntei.
— Sim, mas desdobramento anatomico. O doutor Lewis, sabio que começou a surgir em 2201, teve a ideia de romper com o plano simetrico do corpo humano. Possuímos dois olhos e dois ouvidos que agem como a parelha de cavalos a puxar no mesmo rumo o carro. Lewis alterou isso. Por meio dum delicado processo cirurgico, desligou — desxifopagou os nervos óticos e auditivos, dando autonomia aos dois ramos. Conseguiu dess'arte que o "desdobrado" pudesse ver uma coisa com o olho direito e outra com o esquerdo, e tambem ouvir ás duplas, com a audição assim desligada.
Miss Jane fez breve pausa, como a recordar. Depois disse:
— Lembro-me que no escritorio do Intermundane Herald observei o primeiro desdobrado em ação, primeiro e unico aliás.
— Intermundane Herald, miss Jane? Cheira-me isso a psiquismo...
— E cheira certo. Era um jornal de radiação metapsiquica, que veiu atender á velha sede de liame com os vivos que os mortos sempre manifestaram. Em vez das pobres almas penadas andarem pelo mundo em busca de mesinhas falantes e mediuns, unico meio que possuem hoje de conversar conosco, liam o Intermundane Herald.
— E como se manifestavam? Pois não posso crer que tambem colaborassem nesse jornal...
— Disso se encarregava a Psychical Corporation, dona de grande estação central de Detroit. Afluíam os espíritos para ali e chamavam os vivos pela linha metapsicotonica internacional, como hoje nos chamamos pela linha telefonica.
O meu assombro era grande, embora tocado de uma pontinha de desconfiança. Estaria miss Jane a mangar comigo? Olhei-a firme nos olhos. A lealdade que neles vi era a mesma de sempre.
— Mas, continuou ela, voltando ao meu homem desdobrado direi que pude observa-lo em ação no escritorio do Herald. Estava á mesa de trabalho, a examinar com o olho direito uma gravura antiga e a consultar uma tabua de logaritmos com o esquerdo. Ao mesmo tempo ouvia a musica da moda com o ouvido direito e com o esquerdo atendia a um colaborador do jornal. Ocupava-se em quatro coisas diversas, valendo assim por quatro homens não desdobrados.
— Há...
— E não ficava nisso. Era bem um Homo elevado, não á quarta, mas á sexta potencia, porque ainda recolhia a queixa dum dos espíritos leitores do Herald — espirito rabugento, a avaliar por certos ímpetos nervosos da mão que estenografava.
— E com a outra mão que fazia?
— Alisava meigamente um gatinho que lhe sentara no colo. Encarei-a de novo, firme. Miss Jane não piscou. Logo, era verdade. A experiencia dos olhos que piscam sempre me pareceu infalível na pesca dos potoqueiros.
— Mas não foi coisa que se generalizasse, continuou a moça. A ruptura por intervenção humana dos planos normais da natureza nunca foi bem sucedida. Sobrevinham sempre complicações imprevisiveis á argucia dos sabios, e irremediaveis. Esse pobre desdobrado, por exemplo, acabou logo depois de maneira tragica. Em vez de persistir na sua sexta potencia, empastelou-se, confundiu-se e acabou não sendo nem sequer um homem apenas, como antes da operação. A mais horrorosa demencia veiu destruir aquela obra prima da cirurgia de 2228. Por esta amostra vê o senhor Ayrton quantos episodios interessantes podem enriquecer a sua novela, concluiu miss Jane.
Fiquei de olhos parados, a cismar.
— Outra coisa que muito me maravilhou foi o Teatro Onírico, prosseguiu ela.
— Que?
— O teatro dos sonhos.
— Fiquei na mesma...
— Descobriu-se um processo de fixar na tela os sonhos, como hoje o cinematografo fixa em filmes o movimento material. E dada a riqueza do nosso subconsciente, mar donde emana o sonho, e mar profundo do qual a consciencia não passa da exígua superfície, pode o senhor Ayrton imaginar que maravilhosas representações não se davam nesse teatro. Nem as Mil e Uma Noites, nem Edgard Poe — nada valia um só desses espetaculos onde o contra-regra se chamava Imprevisto. Tornou-se a arte suprema, a mais deleitosa de toda — e ainda uma ciencia. A alma humana só deixou de ser o enigma que hoje é depois que pôde ser assim fotografada em suas manifestações de absoluta nudez. Até então apenas lhe conhecíamos as manifestações vestidas pela Censura, isto é, as suas atitudes.
Miss Jane pausou um bocado, enquanto eu refervia.
Era de maravilhar a transformação que se operava em mim! Vinte dias antes eu não passava de modesto empregado de rua duma casa comercial — e estava agora na iminencia de tornar-me autor de um livro assombroso, capaz de cobrir meu nome de gloria. A ideia desvairou-me e a novela principiou a formar-se-me nos miolos com fragmentos de romances lidos em rodapé de jornais. O começo do primeiro capitulo chegou a traçar-se de chofre em minha cabeça:
— "Era por uma dessas tardes calmosas de verão, em que o astro rei, rubro como um disco de cobre," etc.
Estava eu nesse devaneio quando um criado penetrou de surpresa no gabinete. Chamou de parte miss Jane e disse-lhe algumas palavras agitadas. Sem pedir licença a moça retirou-se com precipitação.
Fiquei atonito, sem saber o que pensar. Delicada e fina como era, se assim se retirava de minha companhia sem o classico e sorridente "com licença" é que algo de grave ocorria. Fiquei na minha poltrona ainda uns dez minutos com o ouvido atento aos menores rumo-res, tentando decifrar o misterio. O silencio era absoluto; nem sequer se ouvia o zum-zum do cronizador a trabalhar. Consultei o relogio.
— Dez e quinze. A corrente já está no ano 2001, pensei comigo, ano que não alcançarei. Mas meu filho Ayrton Benson Lobo o alcançará.
Pus-me a sonhar, e os sonhos logo me acalmaram a inquietação produzida pela inexplicavel retirada de miss Jane. Vi-me amado de tão gentil criatura e com ela casado. Por esse tempo já não fazia parte deste mundo o professor Benson. Setenta anos tinha ele; era natural que não durasse muito. Miss Jane ficava só na terra, sem relações sociais, sem sonhos de grandeza mundana. E não seria eu nessa epoca apenas o pobre diabo que era, triste ex-empregado dos senhores Sá, Pato & Cia. Seria um autor, um romancista! Os jornais dariam meu retrato e me tratariam de "ilustre homem de letras". Talvez até cavasse a Academia. Uma situação social, sem duvida, e das mais bonitas. Poderia aproximar-me da inconsolavel menina e oferecer-me para seu companheiro de vida. Claro que miss Jane aceitaria o meu coração. Viagens depois, mundo a correr — Paris, New York. Levariamos conosco o caderninho das cotações...
— "Olá, senhor corretor, compro mil ações da Niagara Falls Company!"
A piedade do corretor vendo esta carinha chupada de brasileiro amarelo comprar ações de uma empresa cuja bancarrota estava iminente! Sorri-se lá consigo e vende-mas, piscando o olho para os seus auxiliares. No dia seguinte noticia nos jornais: Uma jazida de platina encontrada nas terras da Niagara! As ações da companhia centuplicam de valor. Reapareço no escritorio do corretor atonito a fumar um charuto imponente, e vingo-me do seu sorriso de vespera.
— "Hoje vendo, meu caro palerma. O brasileirinho amarelo hoje vende, sabe?..."
E lá deixo de novo as ações da Niagara e embolso milhões sonantes... Compro em seguida um hiate, o mais belo e comodo que houver...
No meu sonho julguei ser o capitão do hiate e ia responder-lhe com uma ordem — "Rumo a boreste!", quando ao pé de mim vejo miss Jane, muito transtornada de feições.
— Senhor Ayrton, meu pai passa mal! Venha ve-lo...
Corri atrás dela, tomado de negros pressentimentos. Penetrei no quarto do professor. Lá estava o bom velho no fundo da cama, muito desfeito, dando mais a impressão de um defunto que de um ser vivo.
— Quer que vá buscar um medico? exclamei ansioso ao aproximar-me do enfermo.
— Não, respondeu lentamente a voz cava e debil do professor, inutil. Conheço o meu estado e sei que chegou o momento...
A moça atirou-se-lhe aos braços e cobriu-lhe o rosto de beijos convulsos.
— Boa Jane, disse ele, é hora de separar-nos. Tenho confiança em ti e espero que passado o rude momento te conformes com a situação, buscando conforto no estoicismo que te ensinei e de que te dei exemplo em vida. Há já algum tempo que me sentia mal. Ocultava-o a ti para evitar-te um sofrimento inutil. Mas esta noite percebi que chegara o fim. Quando te deixei no gabinete com pretexto de concluir um trabalho, iludi-te, ou, melhor, vim fazer um trabalho muito diverso do que poderias supor. Vim destruir a minha descoberta. Queimei toda a papelada relativa e desmontei as peças mestras dos aparelhos. O que resta nenhuma significação possue e não poderá ser restaurado. Desfiz em meia hora o trabalho de toda uma vida. Da minha invenção restam apenas as impressões que te ficaram na memoria. E quando por tua vez morreres, tudo se extinguirá...
— Meu pai! exclamou Jane achegando o seu rosto afogueado á face descorada do velho.
— Teu pai, teu amigo, teu companheiro de trabalho...
Não pude conter-me diante do doloroso lance e grossas lagrimas brotaram-me dos olhos. O moribundo não esqueceu o hospede. Volveu com esforço um olhar para o meu lado e disse em voz cada vez mais fraca:
— Adeus, Ayrton. O acaso o trouxe aqui para me ver morrer. Seja amigo de Jane. Adeus...
Um impulso atirou-me de joelhos ao pé do leito do moribundo; tomei-lhe as palidas mãos e beijei-as tão enternecido como se beijara as de meu proprio pai.
— Adeus, Jane!... foram suas derradeiras palavras.
Fechou os olhos e imobilizou-se. Minutos mais tarde estava apagada a luz daquele cerebro, o mais potente que ainda desabrochou no seio da humanidade...
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CAPITULO IX
Entre Sá, Pato & Cia. e Miss Jane
Pobre moça!... vinha eu pensando comigo ao voltar do enterro do professor Benson. Se é grande a dor de perder um bom pai, que dizer de quem perdia tal pai?...
De fato, quasi que com seu pai perdera Jane a sua razão de ser na vida. Desde menina se consagrara a estudos do porvir, e é natural que quem possue tal faculdade de pre-videncia não se preocupe grande coisa com a atualidade. Para nós, encerrados nas quatro pa-redes dos cinco sentidos, o presente é tudo; mas quão pouco não será ele para uma criatura colocada no tope da montanha, podendo ver tanto a paisagem do que lá passou como a do que vai passar!
O magico aparelho do professor Benson deixara de existir, e dele, como dissera o moribundo, só restavam as impressões subsistentes na memoria da filha. Tinha miss Jane, portanto, de refazer sua vida, adaptar-se á condição comum dos pobres seres humanos que só vêem um palmo adiante do nariz.
— Está como eu, murmurei em soliloquio. Passou tambem a pedestre...
Mas vi logo o falso da comparação. Eu podia com o tempo voltar casta dos rodantes, adquirindo novo automovel. Miss Jane nunca mais alcançaria a onividencia...
O castelo ficava a tres quilometros de Friburgo, pela estrada onde se dera o meu desastre. Ao passar por essa estrada reconheci o ponto e parei á borda do desbarrancado. Estavam ainda patentes os sinais do trambolhão.
— Estranhos caminhos da Interferencia! exclamei comigo mesmo. Para ver a maravilha das maravilhas e conhecer a mulher que me está iluminando a alma e talvez faça de mim um romancista, foi mister que eu passasse por este precipício aos trancos, e lá fosse parar semi-morto ao fundo da barroca...
Logo adiante, dobrada uma curva da estrada, vi erguer-se o vulto misterioso do castelo, com suas torres metalicas. Parei tomado de viva emoção. Olhei para a singular fabrica e perdi-me em pensamentos de saudade e incerteza.
Entre aquelas paredes duas nobres criaturas humanas me haviam abrigado com extremos de carinho; trataram-me do corpo, salvaram-me a vida e não satisfeitas ainda me revelaram o segredo irrevelado. No castelo conheci a mulher divina que jamais sairá do meu coração. Lá estive em minha casa, como no seio da minha verdadeira familia...
Mas quão tudo mudara! Eu não podia mais continuar naquela situação de hospede depois de morto o hospedeiro. Tinha que afastar-me dali — afastar-me do lugar que era na verdade o meu verdadeiro lugar na terra...
O coração confrangeu-se-me dolorosamente e foi com o olhar sombrio e a cabeça baixa que transpus de novo os umbrais do castelo.
Chamei um criado. Por coincidencia apareceu o surdo-mudo que me acompanhara na primeira saída pelos campos. Esqueci-me dessa circunstancia e perguntei-lhe:
— Não será possível falar a miss Jane?
O criado tambem se esqueceu de que era surdo-mudo e tornou:
— Acho inconveniente. Miss Jane recolheu-se em tal estado de abatimento que nenhum de nós se atreve a perturba-la.
Vi que o homem tinha razão. Pedi-lhe papel e, ali mesmo no vestíbulo, tracei o seguinte bilhete:
Com o coração alanceado Ayrton despede-se de miss Jane. Volta ao seu fado anterior, cheio, pelo resto da vida, dos sentimentos de gratidão e enlevo que os donos deste castelo encantado lhe despertaram n'alma. Se acha miss Jane que o hospede ocasional lhe merece alguma coisa, permita-lhe que a venha ver de vez em quando .
Entreguei-o ao criado e sai.
Estava outra vez na rua — e nunca avaliei tão bem a sensação do decair. Quando o anjo mau se viu expulso do paraíso a sua impressão devera ter sido igual á minha...
Na curva da estrada volvi um ultimo olhar ao castelo. Lagrimas me vieram aos olhos, e foi com a infinita tristeza de um corvo triste que alcancei a estação de Friburgo. Rodei para o Rio.
Ao apresentar-me no escritorio da firma o assombro do senhor Sá foi enorme. Olhou-me com os olhos arregalados, como se visse aparecer um espetro; depois vincou a testa de todas as temíveis rugas com que tanto nos apavorava e disse:
— Muito bem, senhor Ayrton Lobo! Sempre contei com a sua presteza, quando o senhor me andava a pé. Agora, que se deu ao luxo de um automovel, gasta-me vinte e tantos dias numa simples cobrança e aparece-me com essa cara de cachorrinho que me quebrou a panela!
Me, me, me, me... tudo para aquele homem se relacionava egoisticamente á sua pessoa...
Procurei acalmar-lhe a furia, contando do desastre e da minha internação numa casa acolhedora. Mas o eter em vibração que era o senhor Sá fôra evidentemente interferido por uma rabanada de saia das furias de Esquilo. Em vez de aceitar a minha escusa, o homem redobrou de acusações.
— E por que me não preveniu? Um empregado decente, logo que se vê numa situação dessas, a primeira coisa que faz é avisar aos patrões. Pensa então o senhor que isto aqui é brincadeira? Não sabe que somos uma firma séria e temos o direito de ser bem servidos? Está despachado. Não nos servem empregados da sua ordem.
Nesse momento um rumor muito meu conhecido denunciou a presença da outra parte da firma. Era o senhor Pato que chegava. Ao ve-lo surgir á porta, dentro do seu formidavel fraque de elasticotine de cem mil réis o metro e todo reluzente de penduricalhos de ouro maciço, confesso que tremi. Olhou-me o homem d'alto a baixo, fulminantemente, e sem dizer palavra foi para um canto confabular com o socio. Não sei o que disseram. Só sei que ao cabo de dois minutos o senhor Sá voltou-se para mim e indagou:
— E o seu automovel?
— Perdi-o... respondi com voz sumida.
Sá trocou com o socio um olhar risonho e ironico; em seguida, divertido lá no intimo por uma ideia, humanizou-se.
— Pode ficar na casa, senhor Ayrton, mas compreende o caro amigo que não nos é possível pagar a um moço que anda a pé o mesmo ordenado que pagavamos a um que tinha automovel proprio...
Pronunciou um "proprio" de boca cheia, trocando com o Patrão um novo olhar de malícia.
Resignei-me, já que precisava viver. E murcho, de cabeça baixa, com o espirito a agarrar-se á lembrança de miss Jane, reassumi na casa as minhas velhas funções.
A semana toda passei-a na rua, a trabalhar como um automato. Meu pensamento fugia para longe do que eu executava. Impossível fixa-lo nas reles coisas que me mandavam fazer, quando havia um ponto luminoso a atrai-lo como íman. Impossível tomar a serio os negocios de Sá, Pato & Cia. depois do deslumbramento daquelas semanas no castelo. Eu já não era mais o mesmo. Era um ser que se dilatara imensamente — e que esperava...
Executei mal as minhas comissões e sofri do senhor Sá varias reprimendas. Ouvia-as, porém, tão absorto nos meus pensamentos que não poderei reproduzir nada do que ele me disse.
Eu aguardava ansioso a chegada do proximo domingo. Iria novamente rever o castelo e extasiar-me ainda uma vez diante da imagem querida.
O domingo chegou. Fui. Miss Jane recebeu-me no gabinete e fez-me sentar na poltrona onde me achava no momento em que o criado a chamou. Encontrei-a serena e resignada, embora com todos os estigmas da sua grande dor impressos na fisionomia. Seus olhos denunciavam o cansaço das lagrimas.
Permaneci calado por uns instantes, sem ter o que dizer. Quem rompeu o silencio foi ela.
— Obrigada, senhor Ayrton. A sua visita me fará bem, me acalmará os nervos, coisa que nunca supus que tivesse... A minha solidão é hoje extrema. Como castigo de ter tido ás mãos o tudo, vejo-me agora sem nada. Este casarão vazio... os laboratorios já sem função... o porviroscopio, onde passei anos a me deslumbrar com visões ineditas, morto, reduzido a simples materia inerte, sem alma...
A alma de tudo era meu pai...
Alcancei a situação da querida criatura e foi com a alma á boca que lhe disse:
— Compreendo como ninguem o seu caso, miss Jane, e sei que até hoje no mundo pessoa alguma num só dia perdeu tanto. Horas apenas convivi com o professor Benson e apesar disso a sua lembrança viverá em mim como não vive a de meu pai. Imagino, pois, a falta que faz ele á sua filha, á sua companheira de estudos e visões...
Miss Jane sacudiu a cabeça como a espantar ideias importunas. Depois esboçou o sorriso mais triste que inda vi. E com um suspiro murmurou:
— Paciencia. Meu pai ensinou-me o estocismo, mas é bem difícil o estoicismo nos grandes momentos de dor. O estoicismo é uma atitude...
Tres horas passei em companhia da desolada jovem, e consegui afinal distrair o seu espirito contando-lhe o meu reaparecimento no escritorio. Chegou a sorrir quando lhe desenhei a imagem hipopotamica do senhor Pato, todo a reluzir berloques de ouro maciço.
— Que felicidade ser como esse homem, agir como ele, formar de si proprio a ideia que ele forma! comentou miss Jane. Ignora tudo, mas não tem a sensação disso. Meu pai era o contrario. Levava ao extremo oposto o conceito da sua propria pequenez — e o senhor Ayrton sabe que se houve no mundo criatura mais que todas as outras foi meu pai... Imagine se tomba nas mãos desse senhor Pato a maquina de sondar o futuro!
— Aplica-la-ia em enriquecer-se como dez Cresos, pendurando no corpo tanta quinquilharia de ouro que quando andasse na rua havia de tilintar. E a pobre humanidade, assombrada, era bem capaz de meter-se de joelhos á sua passagem, certa de que resurgira no mundo o Bezerro de Ouro disfarçado em homem.
— Bem razão tinha meu pai em não tornar publica a sua descoberta. Só mesmo um espirito de eleição como o dele poderia resistir ás tentações resultantes, concluiu miss Jane.
Soube nesse domingo muitos detalhes curiosos da vida do professor Benson, e de como chegara á descoberta da onda Z, ponto de partida para o mais.
— Foi o psiquismo que lhe revelou essa onda que resume e reflete a vida universal do momento. O fato de certos indivíduos agirem como polarizadores de uma força desconhecida impresionara profundamente a sua agudissima inteligencia. Meteu-se a estudar o fenomeno sob uma luz nova e chegou a apreende-lo de modo integral. Pobre pai!
Falamos depois do nosso romance sobre o choque das raças na America.
— Sim, disse miss Jane animando-se. Contínuo a pensar que o senhor Ayrton não deve perder a oportunidade. Ouvirá de mim tudo o que sei a respeito e escreverá um livro deveras interessante. Não lhe prometo já, já, fazer essas revelações. Neste meu estado, compreende que me seria penoso. Mas o tempo cicatriza, eu sei, e lá chegaremos. Para mim será até um derivativo á dor da saudade. Dizem que recordar é reviver e eu pressinto que minha vida vai resumir-se nisso: recordar, reviver o que tenho acumulado na memoria. Venha todos os domingos e creia que sua presença me será sempre agradavel — além de que estamos ligados pelo grande segredo...
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