Kitabı oku: «Carlota Angela», sayfa 3

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–Perde o tempo, minha mãe—disse Carlota com firmeza.—Esses homens aborreço-os; o mundo tem para mim um só homem; não vejo, nem quero ver outro: é Francisco de Mendonça, porque sou d'elle, considero-me já sua mulher, e…

–Tu que dizes, Carlota!?—bradou apavorada D. Rosalia—És já mulher d'elle? Pois tu… Credo! tu estás ahi a dizer blasphemias… Ó desgraçada, pois tu…

–Eu quê! o que está ahi a mãe a fazer uns espantos que não sei a que vem? Se me julgou culpada de alguma acção indigna de mim, é mais uma injustiça que faz ao homem que amo. Tenha a segurança de que Mendonça não me humilha; pelo contrario, eleva-me, ama-me bastante, e é bastante virtuoso para não querer que a minha consciencia me accuse de alguma fraqueza.

Oh! ninguem sabe comprehender, como quem ama, uma nobre alma! Tenho eu, e elle tambem tem a infelicidade de sermos avaliados por pessoas que adoram o dinheiro sobre todas as cousas, e crêem que fóra do dinheiro não ha virtudes nem contentamentos. Ó minha mãe, foi uma desgraça darem-me uma educação differente da que receberam meus paes. Eu vejo as cousas e as pessoas de um modo diverso. Olho para a riqueza como para um obstaculo á minha ventura, e não posso deixar de aborrecel-a…

Bem vejo que minha mãe se admira d'esta linguagem, creia que não é falta de respeito, nem confiança nas minhas fracas forças; é animo que me dá um amor puro, e digno de mim; é uma força de que eu preciso para convencer meus paes de que privar-me de casar com Mendonça é o mesmo que matar-me!

Minha mãe não quer que eu morra, e ha de proteger-me, ha de amollecer o duro coração de meu pae, ha de lembrar-lhe que o consentimento dado não póde ser negado sem deshonra para elle, e grandes torturas para mim. Seja por mim, minha querida mãe, seja boa como tem sido sempre. Tenha dó da sua filha unica, da filha que nunca lhe desobedeceu, e, se hoje desobedece, deve ser muito dolorosa a violencia que lhe querem fazer…

Carlota Angela soluçava no seio de D. Rosalia, cujos vasos lacrimaes se romperam copiosamente.

Eram de bom agouro as lagrimas da enternecida mãe.

As difficuldades, que ella oppunha, eram vencidas por novas supplicas de Carlota. D. Rosalia acabara por prometter, com o seu silencio, vencer a resistencia do marido.

Norberto saíra entretanto para o Porto, e fora ao paço do bispo prevenir a magistratura ecclesiastica contra as diligencias de Francisco Salter de Mendonça. Alguem o aconselhou que fizesse entrar sua filha n'um convento, para obviar ao rapto, visto que, dado o passo da fuga, o mais airoso e honesto era remediar a deshonra irreparavel sem o casamento.

D. Rosalia Sampayo tinha uma irmã freira benedictina, no Porto, senhora muito reformada, muito rezadeira, e havida em conta de predestinada, lá dentro, e de religiosa illustrada entre as pessoas das suas relações.

Carlota Angela visitava-a miudas vezes, e entretinha-se longas horas na grade, e até alguns dias dentro do mosteiro, onde sua tia lhe ensinava muitas devoções mirificamente salutares, com as quaes Carlota saía convencida de que, fazendo-as um mez, ganharia indulgencias bastantes para remir das penas do purgatorio toda a christandade.

A madre Rufina, sem desagradar ao seu director espiritual, frade carmelita de poucas lettras e muitas virtudes, era uma tolerante senhora, a quem Carlota confessara a sua inclinação ao official de marinha, resultando-lhe d'ahi ter de rezar, por conselho da tia, mais algumas devoções para que a Virgem lhe inspirasse o melhor destino n'este mundo.

Carlota dizia-lhe que o seu apaixonado era pobre. Madre Rufina replicava que pobre era quem não tinha a graça de Deus. Carlota redarguiu que talvez os paes não a dessem a um rapaz sem dote. A benedictina appellava para a vontade do Altissimo, que fazia tudo pelo melhor. Ora, Carlota Angela, melhor ou peior avisada, entendia que Deus, na maxima parte dos actos humanos, e nomeadamente nos casamentos, não punha nem dispunha. Isto será menos orthodoxo; mas é necessario impor á responsabilidade do homem, ou do diabo, cousas que por ahi ha que não parecem de Deus.

Norberto de Meirelles foi do paço do bispo ao convento de S. Bento da Avè Maria, e fez chamar sua cunhada. Contou a desordem em que se achava sua casa, foi eloquente no seu genero, desafogou a ira abafada em presença da filha, e terminou dizendo que, o mais tardar no dia seguinte, Carlota havia de entrar no convento, onde estaria até se lhe varrer a mania de casar com o tal Pedro-malas-artes.

A madre Rufina respondeu que na casa do Senhor não se recebia ninguem introduzido á força; que sua sobrinha não estava no caso de aceitar com prazer o recolher-se a um convento, quando o seu coração propendia e ligava a outros amores. E concluiu, aconselhando a seu cunhado prudencia e caridade com as inclinações de Carlota, que, se não eram convenientes aos olhos do mundo, tambem não eram peccadoras aos olhos de Deus.

E, em resposta ás impertinentes réplicas de Norberto de Meirelles, a digna esposa do Senhor prometteu chamar sua sobrinha, relatar-lhe as mágoas de seu pae, tentar demovel-a do seu proposito, e pedir muito, primeiro, a Maria Santissima que tocasse o coração de Carlota com a resolução mais conducente ao caminho da virtude n'este mundo, que é o da salvação no outro.

Norberto saiu pouco contrito, e notou que sua cunhada gosava uma reputação usurpada. O homem achava aquelles principios irreconciliaveis com a santidade de que D. Rosalia fazia o panegyrico, todos os dias. Não obstante, a irritação moderou-se-lhe, na esperança de que, em ultimo refugio, seu cunhado doutor faria em Lisboa, com o dinheiro, o que a violencia não conseguisse cá.

A freira pediu ao capellão do mosteiro que lhe acompanhasse sua sobrinha; e teve com ella o seguinte dialogo, quasi textual dos apontamentos de Carlota Angela, que devemos á confidencia de uma sua amiga, de quem logo fallaremos:

–Teu pae, menina, esteve aqui hontem, e fez-me pena. Pediu-me que te despersuadisse do amor a…

–Pediu-lhe um impossivel, minha tia—interrompeu Carlota.

–Nada é impossivel a Deus, minha sobrinha.

–Deus escuta-se na consciencia, e a consciencia não me condemna o coração.

–Mas que te diz ella sobre os deveres de uma filha?

–Diz que tenho satisfeito a todos aquelles em que correspondo aos deveres de pae.

–Não sejas tão absoluta nas tuas respostas, Carlota. A desobediencia é um crime.

–E o suicidio, minha tia?

–O suicidio é o maior dos crimes, porque é o desprezo do divino remedio nas dores passageiras d'esta vida.

–Pois creia que obedecer é morrer; se obedeço, se retiro o meu amor… retirar, meu Deus! eu disse uma loucura! eu não posso retirar o meu amor a Francisco; o mais que posso é mentir; mas essa mentira custa-me a morte… é o suicidio, e mais ainda… é um assassinio, porque eu mato o homem que me é tudo n'esta vida…

Carlota rompeu n'um alto soluçar de lagrimas, que fez chorar a religiosa.

–É escusado—disse esta, após um longo intervallo de silencio, cortado de suspiros—é escusado combater a tua paixão. Eu pedi tanto ao Senhor, em communidade, com algumas santinhas d'esta casa, que te mudasse a tenção, que já agora não posso duvidar que o céo abençôa a tua união com esse mancebo. Já não te reprehendo, nem dissuado, minha sobrinha. Faremos com tua mãe o que não podérmos fazer com o espirito teimoso de teu pae. Enternece-a com as tuas lagrimas, menina; esperta-lhe a compaixão de que está cheio um coração maternal.

–Já o consegui; minha mãe chorou commigo, e prometteu alcançar de meu pae o consentimento que elle já tinha dado.

–Já tinha dado?! a quem?

–A Francisco Salter, quando me foi pedir.

–E depois? desdisse-se!…

–Quando consentiu, foi para dar tempo a meu tio de nos urdir uma traição. Francisco partiu hontem para Lisboa, chamado a toda a pressa. O plano é talvez demoral-o lá; mas de que serve a má fé de meu pae, e as astucias de meu tio? Cá está o meu coração para vencer tudo. Cêdo ou tarde, Francisco voltará, e depois… e depois, se tanto for necessario, fujo de casa.

–Santo nome de Jesus! não digas tal desatino, que offendes a Deus. O teu amor, se tal fizesses, deixaria de ser um sentimento honesto, minha sobrinha. Ha nódoas que nunca se lavam, e intenções boas que deixam sempre uma face má voltada para os juizos severos do mundo. Já agora, filha, esgota todo o teu calix de fel para que se não diga que achaste doçura no crime. Eu entrei de vinte e dois annos n'esta casa, estou cá ha vinte e seis, e ainda me recordo do que era o mundo lá de fóra, e o que lá não aprendi ensinaram-me cá pessoas que entraram para aqui sangrando ainda das chagas que receberam lá.

Carlota, eu hoje não te fallo a linguagem que me ouviste até aos quatorze annos. Conheço o teu coração, e acompanhei-lhe o desenvolvimento mais de perto que teus paes. Tua mãe não te podia entender, porque tua mãe saiu aos quinze annos da companhia de um tio abbade para casar com um homem capaz de lhe abafar a intelligencia, se ella a tivesse. Teu pae é um honrado commerciante, tem sabido augmentar os seus haveres com a mira de te deixar muito rica, e não entende nada de coração.

Já vês, minha querida sobrinha, que teus paes ignoram a sua culpa, e não fazem mais do que julgam ser o melhor para a tua felicidade. Não os desgostes emquanto for compativel a obediencia com os affectos invenciveis da tua alma. Teu pae quer que te recolhas a este convento. Se vieres, se quizeres vir para a minha companhia, não preciso dizer-te que as tuas acções hão de ser aferidas pelos deveres de uma menina recolhida n'esta casa. D'aqui diligenciaremos o teu casamento com esse sujeito; mas as nossas diligencias hão de cooperar todas sobre o animo de teu pae, até obtermos o consentimento, esquecendo-nos de que elle procedeu mal, negando o que uma vez tinha concedido. Agora, pensa, Carlota.

–Tenho pensado.

–Queres, ou não queres entrar no convento?

–Quero sim, minha tia; hoje mesmo, se é possivel.

–É, que eu tenho ainda licença para tu poderes entrar; mas é preciso que teu pae o saiba.

Carlota Angela desceu acceleradamente as escadas que conduziam da grade para a portaria. Ia banhada de lagrimas. Ao abrir-se a porta, com o seu tristonho ranger nos gonzos, Carlota estremeceu, e apoiou a face, como esvaîda, no cunhal do muro.

–Vem, menina,—disse do interior a madre Rufina.

Carlota Angela pôz o pé no limiar, e exclamou, estendendo os braços para a madre porteira:

–Disse-me agora o coração que era para sempre!… Que é isto que eu sinto, meu Deus!

–Se é Deus que t'o faz sentir, minha sobrinha, louvemol-o todas pelo bello presagio que te inspirou.

A porta fechou-se. Carlota, rodeada de freiras, e nos braços de todas, soltou um ai que parecia um grito desentranhado do coração.

VI

 
Qui amans egens ingressus est princeps in amoris vias,
Superavit œrumnis is suis œrumnas Herculis.
 
Plauto. (Persa.)


O demonio da ambição…

A. Herculano. (Monge de Cister.)

Francisco Salter de Mendonça, logo que chegou a Lisboa, procurou o ministro da marinha, e encontrou-o, contra as suas presumpções, bem encarado e affavel.

D. Rodrigo de Sousa Coutinho era um astuto politico, sabia conhecer os parvos pavores do intendente geral da policia, e amava bastante a pasta para contrariar as suggestões do principe regente, que tremia dos pedreiros-livres, quando não tremia das conspirações da filha de Carlos IV.

Ainda assim, o ministro, protector affeiçoado de Salter de Mendonça, e particular amigo do frade progenitor, que valia muito com Mellos e Ficalhos, houve-se astutamente na recepção do official de marinha, mostrando-lhe a ordem do dia, em que era promovido a capitão-tenente, e dando-lhe os emboras da escolha acertada que o principe regente fizera dos seus talentos e energia, para, com mais dois officiaes, o enviar ao Brazil a correr com o apresto de uma esquadra, que as prevenções da guerra demandavam.

Este gracioso acolhimento desfez, ao primeiro intuito, as suspeitas de Mendonça. A intriga era incompativel com a mercê do posto, e a honraria do encargo. A reflexão, porém, sobreveio ao juizo da primeira impressão, e Salter, recordando o que se passara no Candal, creu de novo que o bacharel promovera o seu desterro, simulada com a mascara do favor.

A nova de ter sido adjunto ao intendente Manique o tio de Carlota Angela revalidou a desconfiança.

Mendonça apresentou-se ao ministro, e pediu licença para tornar ao Porto, onde o chamavam compromissos, do coração em que a sua palavra de honra se achava empenhada. D. Rodrigo objectou com a necessidade urgente da partida no praso fixo de quatro dias; discorreu profusamente ácerca da primazia dos deveres de portuguez em confronto com os particulares do coração; e encareceu o azedume com que sua alteza, o principe regente» veria posporem-se negocios do estado ás allianças amorosas de um subdito que lhe merecera tão relevante prova de real confiança.

Instava, por outra parte, o frade benedictino, e a parentella illustre do frade, vaticinando ao capitão-tenente um almirantado em poucos annos de serviço.

Para estes prophetas de glorias ensurdecera Mendonça.

O coração accusava-o de ingrato e vil, se a cabeça se deixava instantaneamente desvairar com as vanglorias da fama. A imagem chorosa de Carlota Angela apparecia-lhe como um estimulo de honra, se o fraco espirito humano inclinava ouvidos aos embaimentos da consideração, do renome, e dos altos destinos a que o conduzia uma boa estrella.

Mendonça, quando as felicitações de amigos e invejosos pareciam já galardoal-o das bizarrias previstas, meditava rejeitar não só o novo posto e a commissão mais valiosa que elle, mas tambem a patente que já tinha. O tempo urgia, e os aprestos para a saída acceleravam-se com extraordinaria diligencia. O capitão da real brigada deliberou pedir a sua baixa, ou, caso lh'a negassem, dar parte de doente. N'este proposito estava, quando recebeu uma carta de Carlota Angela, datada no convento de S. Bento da Avè Maria.

Carlota contava-lhe miudamente os successos que a levaram ao convento; o patrocinio que encontrara em sua tia, as esperanças que esta lhe dava de docilisar a pertinacia do pae; o contentamento que ella sentia em esperar no remanso d'aquelle santo asylo o esposo querido; a liberdade que estava gosando alli de pensar no seu anjo, alli, onde ninguem tentava desvanecer-lh'o do coração; em resumo, Carlota dizia-lhe que estava prevenida contra todas as borrascas, assegurando-o de que só saíria do mosteiro para ser esposa do predilecto da sua alma. Não ajuntaremos ao conciso extracto da longa carta as meiguices de amorosa uncção, os enternecidos deliquios da saudade, os azedumes e dulcidão d'esse agrodoce espinho, que rasga o seio ao mesmo tempo que o balsamo da esperança allivia a dor, cicatrizando a chaga. Essa carta era o que devia ser uma carta de Carlota Angela: a alma inteira, no que a alma n'uma virgem tem de communicativo ao coração estranho, se estranho póde dizer-se o coração amigo que se sente e escuta dentro do nosso.

Francisco Salter era formado d'este barro humano, contra o qual se tem vociferado e estampado muita satyra.

A mais suave maledicencia, querendo poupar a natureza humana ás querelas e libellos da philosophia rixosa, diz que o homem é um mysterio.

A theologia christã, para desencarregar o supremo artifice do desaire da sua obra, diz que o homem é um ente degenerado da sua primitiva puridade.

Em boa paz com theologos e philosophos, a mim se me afigura que o homem é um composto de grandeza e pequenez, uma dualidade de gigante e pygmeu.

Mendonça tinha uma unica macula na sua excellente natureza: era a imperfeição, era a falha do grande brilhante, que o leitor, de animo frio e vista clara, vae ver commigo.

A carta de Carlota Angela tranquillisou-o; não disse tudo—alegrou-o, deu-lhe um ar radioso de confiança e certeza na dedicação, que momentos antes lhe incutia o receio da mudança.

O homem é assim.

Parece que o amor sem a desconfiança, a esperança sem a duvida, lhe dá um socego de espirito que não quadra á sua natureza irrequieta. O pungir de constante espinho é-lhe um necessario estimulo de vida. Se elle sáe do coração, é forçoso que fira o orgão de outras paixões. Se o amor prevalece á ambição de gloria ou de riquezas, satisfaça-se o amor, e a outra paixão resultará com toda a impetuosidade do arco retezado… Não se tirem já contra Francisco Salter conclusões que o vago d'aquellas premissas não auctorisa.

A carta não baixou a temperatura, mas mitigou o rescaldo do amor, a ancia da incerteza, affrontamento das conjecturas que elle formava ácerca do destino que o irritado Norberto daria a Carlota, depois da arrojada ameaça do Candal.

Se a levariam fóra do reino:

Se a casariam violentamente com outro:

Se a encerrariam n'um convento, incommunicavel:

Se a despersuadiriam com razões das que vencem o vulgar das mulheres, quando o amante as não anima com a sua presença:

Se Carlota seria uma mulher vulgar, susceptivel de succumbir ás contrariedades.

Tudo isto eram hypotheses atormentadoras; mas a carta respondia a todas. Carlota estava a salvo da perseguição; sósinha com o seu amor, que ninguem lhe impugnava; nutrindo-o com saudades na solidão do claustro. Este convencimento aplacou a vertigem de Mendonça.

A ideia de pedir a baixa pareceu-lhe desnecessaria. O espaçar-se o casamento para mais tarde afigurou-se-lhe racional e necessario aos seus deveres de militar, e ao cumprimento dos encargos com que o principe regente o honorificava.

E, depois, dizia n'elle o ente pensante:

«Não será bem decoroso para mim voltar do Brazil com uma posição tão acrescida em honras, que ninguem possa notar desigualdade entre mim e a filha do opulento commerciante?

«Como homem brioso, não deverei eu querer que a propria Carlota me considere um homem disputado por herdeiras iguaes, ou ainda superiores a ella?

«Os paes de Carlota, quando eu voltar habilitado para entrar no valimento dos mais poderosos, e igualar-me a elles, não terão pejo, vendo-me entrar em sua casa a castigal-os com pedir-lhes, segunda vez, a filha, sem dote?»

Assim fallava o orgulho do espirito; o coração, porém, patrocinando o anjo puro, a quem similhantes conjecturas injuriavam, tinha arrebatamentos de tão sentida queixa, ou clamava com tamanha ternura á consciencia incorrupta do mancebo, que, mais de uma vez, o amor saiu victorioso, e o projecto de pedir a baixa readquiriu novos estimulos.

E os sonhos de gloria?

E os respeitos do mundo, que não eram, como hoje, restrictos ao dinheiro?

E o cortar uma carreira, quando a aurora do seu brilhante dia raiava tão sem nuvens?

E uma longa vida a viver só das commoções de um amor satisfeito?

E o emparelhar com os mais nobres, quando se tem um nascimento obscuro, ou se não póde, sem desdouro, proferir o nome do pae, que inverga, não a farda do general, mas o habito dos monges negros?

Replicava assim o orgulho reagente; e o amor supplicante exorava de novo; a imagem melancolica de Carlota Angela espelhava-se no coração do moço; resurgia ovante em toda a sua nobreza e isenção a amorosa alma, e a tenção de não partir reaccendia-se mais calida e inabalavel.

Assim, pois, chegou Mendonça a submetter o seu requerimento ao despacho do ministro.

Maior seria o pasmo de D. Rodrigo, se não julgasse o capitão da real brigada de marinha compromettido na maçonaria, onde se pactuara que a desobediencia implicaria pena de morte, a ferro ou a veneno como a de José Anastacio de Figueiredo, em Mafra, á sombra das telhas reaes.

O ministro chamou o requerente a uma audiencia secreta, e disse-lhe que não só lhe negava a baixa, mas até lhe exigia o cumprimento das ordens regias; que seria mal visto de sua alteza o subdito que tão mal correspondesse ao regio conceito: que seria degenerado portuguez o que, no solemne momento de pôr peito em defeza da patria e á remuneração de patrioticos feitos, se furtasse aos trabalhos e ás glorias: que seria irrisorio não justificar o requerimento de baixa com mais motivos para tamanho desconcerto que um pueril amor, que não devia passar de um incidente de terceira ordem na vida de um homem intelligente, e fadado para estrondosos destinos: que, finalmente, o valimento se converteria em castigo, se elle requerente persistisse na disparatada baixa, cuja concessão lhe grangearia o riso de uns, o odioso de outros, suspeitas perigosas de muitos, e, mais que tudo, a mal-querença de sua alteza, que tencionava nomeal-o major da armada, logo que servisse tres mezes no Brazil.

O remate da allocução era a douradura da pilula. Major da armada! a aspiração mais vantajosa de tantos, que a não realisavam na velhice! Voltar, depois de alguns mezes, a Portugal, major da armada, condecorado, ennobrecido, chamado aos conselhos do soberano, e talvez ao ministerio!

Mas deixar Carlota no convento, a carinhosa Carlota, amada dois annos, amada para sempre, votada aos sacrificios, aos desprezos, ás injurias, a tudo, para lhe merecer a elle a renuncia de glorias que retardavam um enlace tão suspirado!

Mendonça, na vespera da saida para o Rio de Janeiro, escreveu esta carta:

«Vê, minha Carlota, que eu choro. A afflicção não me deixa outro desafogo. Quando receberes esta carta, separam-nos centenares de leguas. Eu parto ámanhã para o Brazil, obrigado pela minha condição de servo agaloado. Deram-me o commando de um navio, e mandam-me cumprir serviços de que eu cobraria esperanças para grandes honras, se a minha gloria unica não fosses tu, esposa da minha alma. Quiz dar a minha baixa, requeri, instei, negaram-m'a, e impozeram-me as leis militares. Quiz dizer-te um adeus por algum tempo; não me consentiram delongas, porque a corveta Amazona esperava-me quasi aprestada para se fazer á vela.

«Mas eu não parto, Carlota. Comtigo fico, anjo. O meu coração ahi fica, ahi está pulsando no teu. As lagrimas de saudade que choras, choram-as tambem os meus olhos. Entre nós, n'esta longa distancia que nos separa, prende-nos a mesma cadeia de dores, de afflicções, de terriveis presentimentos. Quando te doer no coração o presagio da minha morte, sentil-o-hei tambem eu lá, e chamarei por ti no silencio da minha alma, n'este grito surdo da saudade, que é um despedaçar de todos os ligamentos da vida.

«Por que choramos nós, Carlota? Invoquemos a razão desvairada pela angustia; suppliquemos a essa filha de Deus, senão remedio, ao menos conforto ás nossas dores. Deveremos nós chorar como choram amantes infelizes? Eu creio que não, minha cara esposa. Se hoje nos dissessem: «a vossa união ha de realisar-se passados seis mezes, ou ainda um anno», teriamos justo motivo para nos rebellarmos contra o destino, contra a Providencia que nos aproximou tão dignos um do outro?

«Não, Carlota, porque o nosso amor não está ameaçado de alguma sinistra casualidade que o aniquile ou arrefeça. As distancias são impossiveis entre duas almas identificadas. Para ti no claustro, para mim na amplidão dos mares haverá sempre o mesmo santuario de fervente amor, a mesma acção de graças a Deus, que não quer o infortunio dos que o confessam e chamam nas suas agonias. As nossas lagrimas ha de a esperança enxugal-as. A esperança nos acordará dos sonhos tristes. A saudade, que desalenta e cansa, irá ao futuro pedir sorrisos ás risonhas imagens da nossa ventura de esposos. Oh! nós não temos razão para chorar uma separação de alguns mezes, quando nos separamos tão confiados, como se acabassemos de receber a benção no altar, como se, no derradeiro abraço, sentissemos entre nossas faces o rosto de um filho.

«Que ridente imagem esta, ó Carlota! que estranho palpitar de coração eu sinto agora! que delicias nos aguardam para o dia immorredouro da nossa felicidade!

«Animo, minha adorada esposa! Eu careço de imaginar que tens coração para aceitar, sem fraqueza, esta dor. Preciso alentar-me da tua coragem, para que o auxilio da razão não esmoreça. Animei-te; mas as lagrimas não me deixam escrever, nem a ti te deixarão entender estas palavras. Agora se me cerra em indizivel tortura o coração. Largo a penna, desafógo em gemidos este aperto de alma, similhante ao impossivel de comparar-se. Não me venço. Já creio que te perdi. Accuso-me de ingrato por que não deserto, e calco as leis, e fujo para ti, e te roubo a todo o mundo, para mendigar comtigo uma esmola em paiz estrangeiro. Eu sou vil, sou indigno de ti, e rasgarei esta carta, ou ler-t'a-hei de joelhos, para que tu me perdôes tamanho crime.

«Que digo eu, meu Deus! que penso eu, e que farei da minha vida! Impossivel, Carlota, impossivel deixar de seguir o meu destino! Agora mesmo sou chamado á secretaria para receber as ultimas ordens. Este calix irremediavel ha de ser tragado, ou a deshonra, a perseguição, e o perder-te… Que horrivel palavra!

«Um juramento, Carlota! Faz-me um juramento, ajoelhada diante de um crucifixo. Eu não o tenho aqui, mas invoco o testimunho de Deus, porque o meu coração, quando tu proferires estas palavras, ha de ouvir-t'as, e recolhel-as. Jura que só sairás do claustro para ser minha esposa; e, se a morte me colher longe de ti, acabarás ahi teus dias, e nenhum ente sobre a terra roubará á minha alma a melhor parte que lhe fica no mundo, esperando que Deus a chame para a acolher ao infinito amor da bemaventurança.

«Juraste, Carlota? Agora crê que o meu espirito te pediria contas d'esse juramento, se a perfidia denegrisse a tua alma immaculada.

«Perfida!… tu!… Perdôa-me, anjo do céo, pelas lagrimas que choro, pelas que tu choras, mais puras, mais angustiosas que as minhas!

«Adeus.....................»