Kitabı oku: «Carlota Angela», sayfa 11

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XIX

As religiões no meio do seculo, são como as ilhas no meio do mar, que ás vezes por invasões do mesmo mar se vão comendo, e soçobrando, e padecem suas injurias da visinhança deste poderoso adversario. Mas se nas ilhas ha tempestades, que será no coração dos mares? Oh! alegrem-se as ilhas, e multipliquem-se! que ainda com a communicação tão visinha dos mares, estão muito mais firmes e seguras que elles.

P. Manoel Bernardes. (Floresta.)

Decorreram alguns mezes, tres seriam, depois do terrivel combate d'aquellas duas grandes almas comsigo mesmas.

Os succedimentos d'este lapso de tempo chegaram ao meu conhecimento contados de diversas maneiras.

Dizem informações do mosteiro, que a religiosa Carlota Angela, recobrando o vigor que o susto religioso lhe quebrantara, tentou de novo evadir-se, n'um impeto de delirio, pela porta de serventia dos carros que abre para o largo de S. Bento: tentação diabolica de que a energumena pôde salvar-se por intercessão do patriarcha, o qual n'esse momento lhe empeceu a fuga com o baculo, que a cegou com sua vivida refulgencia. Isto, pelos modos, não está bem averiguado, nem canonicamente se encampa, como milagre, á crendice dos leitores.

Outras informações mais racionaes dizem que Francisco Salter de Mendonça fora, no decurso d'esses tres mezes, com pontualidade quotidiana ao mosteiro, onde passava horas e horas na grade, com Carlota Angela, e com sua tia, algumas vezes.

A tradição, porém, mais corrente, e sustentada por pessoas coevas de grande auctoridade, é que Francisco Salter não voltara ao convento depois d'aquella fuga mallograda, senão anno e meio mais tarde, já vestido com o habito da ordem benedictina.

Foi-me, portanto, necessario pedir informações a um conventual de frei Francisco da Soledade, que assim se chamou na religião o capitão de marinha. Queria eu que me contasse qual foi o viver d'esse desventurado no mosteiro; que assombrosas pelejas se deram n'aquelle seio, antes que o habito o amortalhasse; quantas vezes a luz da graça divina alumiou o coração blasphemo do noviço; quantas vezes a mão glacial da morte lhe esfriou na fronte os estos afogueados da desesperação.

Colleccionei das vagas lembranças do egresso que fora seu companheiro de noviciado em Tibães, as seguintes miudezas, que apenas satisfizeram a minha curiosidade:

Francisco Salter apparecera na manhã do dia seguinte áquella noite do anterior capitulo, no mosteiro de S. Bento da Victoria pedindo ao dom abbade que o admittisse a noviciado. Mendonça era alli conhecido como sobrinho do afamado monge, que ajuntava ao lustre do nascimento e ao das lettras a santidade sufficiente para que o mundo lhe perdoasse uma velleidade de moço, da qual velleidade procedera Francisco Salter.

O abbade acolhera-o de bom animo, suspeitando, porém, passageiro desgosto de coração. Teve-o em sua casa alguns dias, esperando o conselho do tempo, até que, senhor das mágoas do mancebo, acreditou na firmeza da resolução e na efficacia do balsamo.

Decorrido um mez de prova, Francisco foi fazer noviciado para a casa de Tibães, e ahi é que o meu informador o tratou com intimidade mediana, porque o noviço vivia tão taciturno e triste, que os seus companheiros, por pena, o não importunavam com frivolos allivios.

Sem embargo da pouca convivencia, notou o egresso que as noites do noviço deviam de ser atribuladas, porque nunca de manhã lhe vira os olhos sem raios de sangue, e como que ainda crystallinos dos residuos de lagrimas regeladas pelo frio das manhãs.

Observara elle mais que, nas obrigações do côro, Francisco era pontual, mas os seus labios, nem sequer murmuravam as orações do breviario. E, posto que para os companheiros houvesse censuras do mestre por motivos identicos, Francisco nunca fora reprehendido, nem ainda procurado na cella, se alguma vez faltava ao côro. D'isto inferiam os demais noviços que o seu companheiro trouxera do Porto especiaes recommendações do dom abbade.

Acrescenta que Francisco, ás horas em que os noviços passeiavam na cêrca, não saía do seu cubiculo, ou ia sentar-se no claustro lendo a Imitação de Christo, livro que nunca lhe esquecia; ou lia um por um os singelos epitaphios das lagens que formam o pavimento do claustro.

Notava-se que durante um anno o mysterioso noviço apenas recebera uma carta do dom abbade, em que lhe era dada a nova de que todos os seus papeis estavam legalisados canonicamente para poder professar, concluido que fosse o tempo do noviciado.

N'este pouco se resume o que pude alcançar do egresso indifferente ou desmemoriado.

Quem nos dirá, pois, as angustias do amante de Carlota Angela? O coração.

Consultemos o coração aquelles que o tivermos.

Revivamos algum tormento da alma, se o tivemos na vida, e teremos inducções remotas do que seria aquelle demorado paroxismo, aquelle lento suicidar-se em presença de homens que não lhe entendiam as lagrimas, nem saberiam nem poderiam enxugar-lh'as, se as entendessem.

A imagem de Carlota devia de estar sempre entre elle e o Christo. A luz da graça divina devia de ser muitas vezes deslumbrada pelo reflexo da labareda que o abrasava no intimo.

A phrase blasphema prenderia muitas vezes á consolação do Kempis. As mãos convulsas deviam travar do habito para rasgal-o sobre o seio onde batia o coração amante, do bravo, do homem de amor e batalhas, do que a sociedade fizera atheu, antes que a desgraça fizesse religioso.

E, se assim não acontecia, abençoada seja a religião de Jesus, que tanto póde! Abençoadas sejam as angustias, que levam pela mão o filho da desventura ao pé de uma cruz, e o hasteam n'ella como holocausto, que se consola por saber que ha um Deus compassivo a vel-o em suas torturas.

É o que necessitam os grandes infelizes, e esse olhar misericordioso do Senhor, que reanima e salva do inferno dos homens aquelle que os homens desampararam mutilado em todos os affectos, espedaçado em todas as cordas do coração, que não coube na terra, repellido da communhão dos innocentes prazeres d'esta vida, condemnado a expiar no flagicio da sua dor immerecida as culpas que os grandes perversos não expiam, á vista de suas victimas.

Se, pois, Francisco Salter caía de joelhos, paciente e consolado, aos pés do crucificado, abençoada seja a religião de Jesus, que tanto póde!

Desde o dia em que frei Francisco da Soledade professou, a freira benedictina recebeu regularmente novas d'elle, escriptas de Tibães, onde o frade prolongou a sua residencia.

Faziam-lhe saudades os sitios onde tanto chorou.

Aviventara com a sua angustia as arvores seculares, os penhascos, e as cruzes que lhe ouviram os gemidos.

Essas existencias insensiveis viviam-lhe na alma, e custava-lhe o desprender-se d'ellas.

O coração affeiçôa-se aos logares onde soffreu ou gosou, quando o goso não é crime, nem o soffrimento a desesperação da alma corrompida. As alegrias do impio, e as tristezas do perverso, essas não deixam traços indeleveis de suavissima saudade ou branda mágoa no coração.

Frei Francisco sabia que morrera para o mundo, e o ermo de S. Martinho de Tibães era-lhe um sepulchro grato, uma lousa amiga sua, já polida dos prantos d'elle. Impetos ainda de coração mal domado o impelliam para Carlota. Mas quem era n'este mundo a professa benedictina? Era um cadaver como elle, uma existencia passada, uma vaga imagem que esvoaçava entre a cruz e o monge, e parava um momento para lhe verter nas mãos erguidas uma lagrima.

Que importavam as visões da noite, esse fitar de olhos lagrimosos na lua, e nas estrellas, nas nuvens encapelladas, e no clarão do relampago?

Que valia ao pobre coração do frade estrebuxar ainda nas agonias do amor, no paroxismo horrivel d'esse suicidio de tantas vidas?

Que conforto lhe seria baixar do céo os olhos sobre si, e ver-se amortalhado?

Não recorramos ao milagre para explicarmos a tranquillidade do espirito que de repente abjura o mundo, e se lança desesperado ás misericordias divinas.

Terrivel deve de ser o preço da tranquillidade, quando não é a morte que a traz. A morte, sim: essa será sempre a bem-vinda dos desgraçados, porque Deus lhe fez de gêlo a mão que ella põe no seio abrasado do afflicto.

As cartas de Carlota Angela eram um adeus repetido ao seu amigo, um convite festival para a eternidade. Nem uma só reminiscencia do passado escurecia a linguagem lucida da prophetisa que descrevia as alegrias do céo. Era tudo porvir, tudo paragens do vôo que ella ia desferir da margem da sepultura para além. Dos seus soffrimentos nada lhe dizia: os da alma abençoava-os, os do corpo chamava-lhes o doce pungimento dos espinhos da sua corôa gloriosa.

Soror Rufina, amiga do monge benedictino, escrevia-lhe menos enlevada em extasis. Fallando-lhe da sobrinha, contava-lhe os rapidos progressos de uma tisica irremediavel, e da paciencia christã com que ella via aproximar-se o termo de suas dores. A ultima carta que lhe escreveu, revelava-lhe o desejo que sua sobrinha mostrara de ver o seu amigo, o seu esposo celestial, uma vez, uma só vez antes de morrer.

Frei Francisco mediu as suas forças, e pediu a Deus que lhe aniquilasse as que elle sentia para encarar Carlota, se eram peccaminosas.

Seis mezes depois de professo, o monge foi ao Porto, e recolheu-se ao mosteiro de S. Bento da Victoria. D'ahi consultou soror Rufina sobre a sua ida ao convento, porque entrara n'elle o presagio de que a infeliz succumbiria ao vel-o desfigurado, encanecido, e triste como o espectro de uma felicidade morta, que os vermes roazes da desventura tornaram pavorosa.

Rufina sondou sua sobrinha, e Carlota, antes de responder, sentiu uma convulsão estranha, que lhe fez espirrar do seio borbotões de sangue. Passada a crise, que julgaram derradeira, Carlota disse anciosamente que aceitava a visita do seu irmão, e quanto mais depressa, mais grata lhe seria.

Cuidavam as amigas da moribunda que similhante impressão lhe seria salutar.

Os medicos, com a sua costumada innocencia, conjecturavam que a presença do monge faria uma grande revolução nos elementos desorganisados da vida de Carlota, e agouravam a possibilidade de uma cura por meios todos moraes.

N'esta esperança, que fazia sorrir a freira, frei Francisco foi avisado para encontrar Carlota n'uma grade.

Espectaculo indescriptivel!

Frei Francisco entrara na grade onde dezoito mezes antes concertara a fuga de Carlota. Alli se trocaram, em phrases cortadas de suspiros, queixumes contra o destino; porém, as esperanças deslumbrantes acudiam logo com as promessas de uma vida cheia de prazeres, prazeres embora criminosos no tribunal dos homens, porém perdoaveis, talvez, aos olhos de Deus. D'alli saíra Francisco Salter de Mendonça, o capitão de marinha, com o coração fremente de aspirações, e até de soberba por ter calcado, ao cabo de tantas desventuras, a inexoravel desgraça.

Oh! quão mudado agora! Como elle se estava examinando diante do seu passado! O que se passaria n'aquella alma, e n'aquella fronte inclinada para as mãos cruzadas sobre o seio! Porque não deu o Senhor duas lagrimas áquelle infeliz!

Carlota Angela appareceu, encostada ao braço de sua tia. O monge erguera-se, e voltado para ellas baixara a cabeça, e não mais erguera do chão os olhos. Encostando uma das mãos á banqueta da grade, sentia-se o tremor d'este movel sob a pressão convulsa. Apenas a madre Rufina proferira alguns monosyllabos, Carlota fitara os olhos lucidos de um brilho sinistro no habito do monge, e, voltando-os, silenciosa, para sua tia, parecia perguntar-lhe se era aquelle Francisco Salter.

–Francisco!—balbuciou ella.

O frade estremeceu a esta voz, e encarou a freira.

–Francisco!—repetiu ella com a voz quasi desfallecida—és tu?

–Não vol-o disse, minha irmã, que me não conhecerieis?—disse o benedictino com um violento sorriso.

–Conheço, conheço…—tornou ella, sentando-se, ou caíndo na cadeira aonde a tia se esforçara em sental-a.—Era assim que eu o via nos meus delirios, irmão da minha alma. Cá o sentia no coração morrendo assim… Faltava-me ouvir este som de finados que me está cortando os ultimos fios… É por mim, ou por ti, Francisco?… por ambos…

De feito, soava um dobre a finados na torre do mosteiro. Expirara momentos antes uma religiosa d'aquella casa, a quem Carlota pedira que intercedesse ao Senhor por ella, a fim de que a chamasse a si antes que se apagassem os cirios do funeral da agonisante. Esta fizera um gesto affirmativo, e expirara com os olhos fitos na freira.

Carlota proferira aquellas palavras, e pedira uma gotta de agua. Emquanto soror Rufina descera á portaria a buscal-a, a freira introduziu a custo o braço pela grade e disse:

–Francisco! dá-me a tua mão.

O monge tomou a mão de Carlota, e, ao apertal-a, sentiu a frialdade humida da mão de um cadaver. A posição da religiosa era violenta, com o peito encostado aos ferros, e a tosse suffocava-a. Frei Francisco fez esforço para afastar o braço, mas debalde. Aquella mão apertava como a do naufrago em trances de morte. Um frouxo de tosse salpicou de sangue o braço do monge, e em seguida, já quando Rufina entrava na grade com o copo, a mão de Carlota decaíu com o braço ao longo da grade, a fronte pendeu para as costas da cadeira, o outro braço já se não ergueu para tomar o copo da agua que lhe roçava os labios humidos de sangue.

–Minha filha!—exclamou a atribulada freira. Carlota descerrou as palpebras, relanceou a vista quasi apagada para o monge, e fechou-as de novo, murmurando:

–Ouviu-me Deus!

Rufina soltou um ai vibrante, e caiu de joelhos aos pés da sobrinha.

Frei Francisco ajoelhou tambem, e disse com terrivel serenidade:

–Oremos por ella. Meu Deus! recebei a martyr em vosso seio!

CONCLUSÃO

Cinco annos depois, vivia ainda no mosteiro de S. Martinho de Tibães frei Francisco da Soledade.

Os leitores de mais rija e invulneravel organisação admiram-se de que tal homem podesse viver tanto.

A mim custar-me-hia tambem a crel-o, se m'o não fizessem acreditar pela data da lousa que vi na claustra d'aquelle mosteiro, com os meus proprios olhos.

Viveu cinco annos para purificar-se e fazer-se digno da esposa que o esperava no céo.

Quereis saber a purificação qual foi?

Norberto de Meirelles e sua mulher, quando a filha expirava, luctavam com as extremas perseguições da fortuna infausta.

Mezes depois, estavam pobres, pobres até á indigencia.

Frei Francisco chamou estes infelizes para a visinhança do mosteiro, e dava-lhes tres partes do seu pão. A communidade, quando conheceu tamanha virtude, repartia tambem do seu por elles. A mãe de Carlota expirou nos braços do monge, o velho sobreviveu-lhe um anno, e expirou quinze dias antes de frei Francisco.

Francisco Salter saíu d'este mundo, quando já não tinha a quem perdoar em nome de Carlota Angela.

Vêde-me do céo a mim, e a todos os infelizes, almas bemaventuradas!

Não foi a minha imaginação que vos creou! Logo que eu me senti soffrer em vós, a vossa passagem na terra deixou vestigios.

FIM