Kitabı oku: «Carlota Angela», sayfa 6

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X

Não ha coração sem amor; ou seja a Deus ou seja ao mundo, ha de amar quem tem coração.

Fr. Antonio das Chagas. (Obras espirituaes.)


Vêde agora se ainda persistis em vossa pretenção, porque, se este modo de viver vos não contentar, tendes liberdade para ficardes no estado em que até agora vivestes.

(Ceremonial da congregação dos monges negros.)

E Carlota Angela?

Não dorme ainda o suspirado somno da morte sob a lagem humilde do claustro. Vive a vida que faz compaixão, e, nas pessoas que amam, excita o piedoso desejo de a verem alar-se para um mundo melhor.

Creram-a moribunda em frequentes accessos: Rufina, Dorothea, e todas as religiosas de S. Bento lhe deram o beijo da despedida, na face cadaverica, muitas vezes. Se, por instantes, tibio clarão de vida lhe retingia o rosto, é que a labareda da febre ahi vinha emprestar-lhe uma reanimação convulsa, á qual succedia o esvaîmento, com o suor frio do traspasse.

As orações eram contínuas. A communidade ia do quarto de Carlota para o côro, e do côro tornava ao quarto em ancias e esperanças que o fervor da oração lhe dera.

De uma vez, encontraram-a tranquilla, risonha e desopprimida. Uma a uma, Carlota chamou-as á beira do leito, apertando-lhes a mão, e murmurando uma palavra inintelligivel.

Ás que choravam pedia que a não lastimassem, porque ella estava consolada com a esperança de descansar. Ás mais idosas, e veneraveis por sua santa vida, supplicava que a protegessem com os seus merecimentos, pedindo ao Senhor que lhe descontasse nas da outra as penas d'esta vida.

Perguntava pela mãe, mas, se lhe fallavam do pae, se lhe diziam que elle vinha todos os dias saber d'ella, Carlota franzia a testa, e dava sustos de crescimento febril.

Soror Rufina esperava que ella lhe fallasse de Francisco Salter; Dorothea, a carinhosa noviça, aventurava algumas palavras allusivas; Carlota, porém, nunca permittiu á primeira, com o seu silencio, proferir tal nome; e á segunda, debulhando-se em lagrimas, fazia com a mão um signal de não poder ouvil-a.

Uma tarde, as duas meninas passeiavam no pomar: era a primeira vez que a filha de Norberto de Meirelles saía do seu quarto.

–Quando professas tu, menina?—disse Carlota.

–D'aqui a tres mezes.

–Já? Vens a ser freira, mais velha do que eu nove mezes; mas ainda temos tres mezes de companheiras de noviciado.

–Pois queres professar, Carlota?!

–Quero, Dorothea, quero; se me não valesse essa esperança, estava morta. Já agora, o que me resta n'este mundo é o bem de me julgar perto de outro: d'aqui até lá, quero estar vestida com a minha mortalha, pedindo ao Senhor que… dê o céo…

Carlota, entalada por subitos soluços, não proseguiu.

–Diz, minha amiga… tu não me dizes tudo—acudiu Dorothea, abraçando-a com estremecido amor—ias fallar n'elle?… por que foges de me dizer que ainda o amas no céo?!

–Fugia de t'o dizer, Dorothea, porque o teu coração não póde avaliar que amor era este que perdôa a um ingrato, e daria a vida para o restituir ao amor de outra infeliz que o amou e o perdeu como eu o amei e perdi. Mais desgraçada que eu ha uma só pessoa: é a mulher que o adorava; e mais desgraçado que ella e que eu, é elle, o infeliz, a quem tão pouco tempo o Senhor deixou gosar a mulher que o mereceu mais digna do que eu fui, e não teria, talvez, um pae que a aviltasse aos olhos d'elle.

–Como o teu coração é bom, Carlota!

–Bom? quem sabe! desgraçado, sim, ou diz antes, Dorothea, que já não é coração; só sinto a minha alma, só sinto este desejo do céo; recordo quanto amei, quanto soffri, e tudo aceito, e o mais que soffrer, com o contentamento de uma penitente.

–Pois verás que ainda havemos de ter dias de alegria, Carlota! Adopta-me como tua irmã; viveremos tão queridas e juntas, fallaremos tanto do que sentirmos triste ou agradavel, que chegaremos a gosar a existencia…

–Não penses isso, minha amiga… Eu não quero dar-te quinhão das minhas amarguras. O meu curto viver ha de ser muito oppressivo para as pessoas que me estimarem. Muitas vezes te fugirei, porque o chorar de uma infeliz, como eu, precisa ser desafogado, sósinho, e aos pés de Deus. Alegria? jámais, jámais, Dorothea… Bemdito seja o Senhor, que me dá esta casa para acostumar a minha alma a adoral-o, e me deu aqui exemplos de virtude, sem os quaes, fóra do convento, tinha-me tirado a vida n'um d'aquelles frenesis de que tremo com a lembrança.

Estas palavras foram ditas com serena melancolia; porém decorrido breve intervallo de silencio, Carlota rompeu em gemidos, lançando-se ao seio de Dorothea.

–Que tens, Carlota? Ainda agora estavas tão socegada!…

–O que em cinco mezes se tem passado!—soluçou ella—Morto! é possivel que elle já não viva!… que eu esteja aqui, eu, meu Deus, eu que o adorava até á perdição! e pôde elle abandonar-me, esquecer-se da pobre Carlota! Isto não póde ser, Dorothea!… eu nunca o vi morto nos meus delirios, nunca, nunca o vi senão como na ultima vez que lhe fallei, jurando-me um amor eterno… Será isto uma falsidade? Será meu pae que prefere matar-me!? Diz, Dorothea, não te parece muito possivel esta crueldade!

–Póde ser, Carlota!… quem sabe?! Olha, filha, tudo se ha de saber com o tempo… Tem esperança, sim?

–Nenhuma!—replicou ella, caíndo da instantanea exaltação—não tenho esperança nenhuma! Se elle vivesse escrevia-me. É certo, é horrivelmente certo que não vive, que me desamparou, que foi castigado com a morte por ter assassinado uma amiga que se perderia por elle… Está tudo acabado, tudo, meu Deus, menos este peso de vida com que já não posso…

Carlota Angela recolheu-se taciturna ao seu quarto, e escreveu a sua mãe uma breve carta, em que lhe pedia o consentimento de seus paes, e as licenças necessarias para entrar no noviciado.

D. Rosalia quiz procurar Carlota; Norberto de Meirelles, receiando que sua mulher deixasse escapar algum ligeiro indicio de viver Francisco Salter, encarregou-se da resposta. Estas suspeitas fundavam-se nas querelas continuadas em que andavam, por causa de Carlota. D. Rosalia, algumas vezes, reprovara o zelo de seu irmão, e dureza do marido, mórmente depois que a freira lhe vaticinara a morte de Carlota. Norberto, escarnecendo, com lerdo desdem, o prognostico, impunha grosseiramente a D. Rosalia o calar-se, até ver em que paravam os taes fanicos da rapariga.

Depois, porém, que a viu convalescer, o arrozeiro chasqueava os vaticinios da cunhada, e aceitava de melhor vontade a proposta da filha, na esperança de a curar da loucura, durante o anno do noviciado, com os recursos que o cunhado doutor promettia espiritar-lhe, consoante o andamento do tempo, bom para tudo.

Antes, porém, de diligenciar o contracto do noviciado para a filha, Norberto de Meirelles mandou-a chamar, e Carlota, admoestada brandamente por soror Rufina, obedeceu.

–Vamos a ver, menina, que mania é essa de seres freira?—disse elle.

–Isto não é mania, meu pae, é aceitar com reconhecimento a consolação unica, e a melhor que Deus me dá n'este mundo, com esperanças de outro melhor.

–Beatices que te metteu na cabeça tua tia… Deixa-te d'isso, Carlota; o convento é para quem é. Nunca te vi inclinação para este modo de vida…

–A religião não é modo de vida, meu pae, é regra de vida.

–Não me dês sentenças, menina. Eu bem sei o que digo. Olha que isto aqui é para sempre. Se professares, não tens remedio, ainda que te arrependas; é d'aqui p'ra Christo.

–Pois d'aqui para Christo é que eu quero ir, meu pae. Saiba que é inutil contradizer-me. A força que eu sinto em mim para ser freira é invencivel. Não me tolha a alegria, se é alegria este santo desejo de vestir o habito. Os obstaculos podem mortificar-me, mas não mudam o meu proposito. É escusado embaraçar-me. Offereci-me ao Senhor, quando cuidei de morrer de dor, pedindo-lhe allivios; senti-os, o Senhor apiedou-se de mim; é que a misericordia divina me aceita do modo que eu mais digna me posso fazer de morrer em paz.

–Isto passa-te, Carlota. Como tens de ser noviça um anno, veremos como se te reviram as ideias.

–Pois sim, meu pae; se eu me não achar com forças de servir a Deus, dir-lh'o-hei, e sairei do convento.

–É o mais certo, e verás como te ha de parecer bom isto cá de fóra. Tu és bonita, és rica, és prendada, podes casar…

–Meu pae! por quem é não continue…

–Então que tem isso? Já cá te disseram que o casar é crime? Boa vae ella! Ainda ha seis mezes que estavas n'outras ideias…

–Se o pae faz gosto em atormentar-me, diga o que lhe parecer, que eu escuto-o; mas se me tornar a procurar, eu não venho aqui…

–Isso é modo de fallar a teu pae, Carlota! Cá dentro ensina-se a dizer isso a quem te creou, e trabalha para ti ha trinta annos? Cuidadinho commigo, menina! Eu tanto tenho de bom como de mau. Se tua tia cuida que eu sou um mono de palha, engana-se…

–Que mal lhe fez minha tia?

–Que me fez?! Encheu-te essa cabeça de teias de aranha, lá com as suas arengas do beaterio, e deu-te auso a responderes com poderio a teu pae!

–Eu não o offendi…—atalhou ella, chorando—Pedi-lhe que não fizesse sangrar uma ferida de que estive á morte… Quem for meu amigo, ha de querer que eu ache allivio em alguma cousa; se a religião m'o dá, deixem-me ser freira, e não me fallem em casamentos impossiveis. Ora aqui está o que eu supplico a meu pae; se isto o offende, perdôe-me; e se é offendel-o não vir á grade para ouvir palavras que me amarguram, virei todas as vezes que o pae quizer.

–Está bom; basta de chorar. Vae-se tratar dos arranjos para o teu noviciado. Deus lhe ponha a virtude, e te guie para o que for melhor. Eu ainda espero ter-te commigo, alegre e folgazã como eras antes de conhecer esse homem que…

–Meu pae!

Carlota Angela erguera-se sobresaltada, e Norberto estacou, sopeando a ira que lhe espertara a vehemencia, um pouco soberba, da filha. A ira degenerou em um sorriso, cuja versão não acho no meu elucidario de sorrisos sandios.

O arrozeiro, receioso de esbarrondar-se, como elle depois dizia a D. Rosalia, saiu da grade, onde a filha permaneceu longo tempo enxugando as lagrimas, para simular socegado o semblante.

Um mez depois, entrava Carlota Angela, com a mestra de noviças e a cantora, no côro, onde se reunira a communidade.

A dona abbadessa empunhando o bago, insignia magestosa da prelazia, estava no tôpo das duas alas de religiosas, solemnes e magnificas com suas roçagantes cogúlas. O clarão tremente dos cirios banhava o recinto de baço esplendor e sombras magestosas.

A tres passos distantes da prelada, que lhe sorria com maternal caricia, Carlota prostrou-se com a face em; terra.

A humildade com que fizera a reverencia, o subito rompimento das lagrimas, que a noviça não podera represar, a voz compungida da prelada, proferindo o quid petis, e o soluço tremido de Carlota, respondendo misericordiam… «a misericordia de Deus e a vossa», a terrivel magestade do silencio, durante as genuflexões da noviça; todos estes actos, impressivos de religiosa melancolia, tocaram o coração das religiosas a ponto de correrem lagrimas por todas as faces, no momento em que a prelada, commovida como todas, disse a Carlota, ainda ajoelhada ante si: Surge, «levanta-te».

A noviça voltou-se com as duas religiosas para o altar-mór, enxugou as lagrimas emquanto fazia as reverencias do ceremonial, ajoelhou de novo aos pés da prelada, que proferiu uma breve pratica ácerca das gravissimas obrigações que a noviça contrahia com o promettido esposo. Carlota ouviu-a com as mãos erguidas, sem levantar os olhos para o rosto venerando da abbadessa, onde a graça, ternura e o sorriso da bondade eram um como suave encarecimento ás virtudes que aconselhava, e estimulo para merecer no céo o galardão de as praticar.

Carlota lançou de si o sumptuoso vestido, e os enfeites da cabeça. Longa e farta trança de cabellos negros se desenrolou até á cintura. Uma freira tomou a tesoura, e de dois golpes lhe cerceou a trança, que depôz em uma bandeja. A mestra de noviças cingiu-lhe a touca branca, e a prelada lançou-lhe aos hombros o habito ou mantilha. Carlota, durante este acto, parecia não sentir, não perceber a profunda e dolorosissima significação que elle deve ter para a mulher expulsa dos prazeres do mundo, onde todas as suas esperanças foram cruelmente desmentidas.

Estavam de joelhos todas as religiosas, ella, entre a mestra e a prelada. As cantoras entoaram o hymno: Veni, creator spiritus. Era um canto melancolico acompanhado a orgão; um mystico e lagrimoso offertorio da alma atribulada ao supremo consolador das angustias. Cantada a primeira estrophe, ergueram-se todas, excepto a noviça. Seguiram-se os versiculos e orações entoadas no côro e no altar-mór. A mestra de noviciado dissera a Carlota que se levantasse, terminada a ceremonia; a noviça, porém, continuava ajoelhada com as mãos entrelaçadas sobre o peito. Recommendaram-lhe de novo que se erguesse, vendo que ella estremecia, como se já não podesse sustentar a violencia da posição. Carlota não se erguia, até que lhe deram a mão, e encontraram frias de neve as d'ella. Fizeram vão esforço para levantal-a, algumas freiras que a rodearam. Carlota não respondia, apenas respirava; quiz obedecer ao impulso que lhe davam para erguer-se, mas á pallidez, ao turvamento da vista, seguiu-se o desmaio.

Soror Rufina, Dorothea, e as outras ergueram o alarido do susto. Na igreja estava a mãe de Carlota, escondida na sua mantilha, chorando, recitando Padre-nossos machinalmente, e promettendo a Deus confessar-se da sua culpa, se era culpa ter occultado a sua filha o engano que o tio doutor lhe urdira, arranjado com o pae.

Quando, porém, os ais do côro chegaram aos seus ouvidos, com as exclamações afflictas de Rufina, D. Rosalia saíu da teia de um altar, veio ás grades do côro de baixo, e rompeu em brados desentoados, chamando a filha. O capellão-mór, vestido de sobrepeliz, estola e pluvial, veio lembrar á lamuriante senhora, que a sua gritaria não era propria da casa de Deus. D. Rosalia replicou, menos commedida, que queria cá fóra sua filha, viva ou morta. E n'esta altercação estiveram ella e os capellães, recreando uns e fazendo chorar outros dos circumstantes, até que soror Rufina e outras freiras vieram á grade do côro aquietar a mãe de Carlota, dizendo-lhe que o incommodo fôra um passageiro desmaio.

E assim fora, felizmente.

Carlota voltou a si, quando a mãe gritava. Os brados fizeram-a sair do côro vacillante e alvoroçada. Quizeram encaminhal-a á cella; mas Carlota sabia que era costume ir a noviça, finalisada a ceremonia, visitar as doentes.

Foi; e ás mais enfermas pedia que, se o Senhor as chamasse brevemente, rogassem a Deus que a levasse para si.

XI

Pois ainda não ouvistes de seu valor o maior encomio.

José de Sousa (o cego). (Obras posthumas.)


Vereis amor da patria… etc.

Camões. (Lusiadas.)

Junot, a marchas forçadas, esperançoso ainda de obstar á saida da familia real, ia sobre Lisboa. A regencia desnorteou com a imbecilidade rara de que era dotada; a classe média, presumindo a tyrannia proxima, ainda quiz debalde oppôr um dique á invasão; mas a populaça, sedenta de anarchia, onde sevar temporariamente os vis instinctos, remoinhava, alegre e enthusiastica, rugindo como o tigre que fareja o sangue.

Joaquim Antonio de Sampayo foi, n'essa época, a preexistencia dos grandes homens, das summidades estadistas dos ultimos vinte annos. Avaliando quanto difficil seria acertar com o caminho seguro na encruzilhada das perspectivas politicas, não preferiu algum, e aceitou-os todos como conducentes á prosperidade, quando a fortuna, filha da velhacaria, vem, de puro namorada, emendar as asneiras do seu predilecto.

Sampayo lamentava com Manique o desamparo em que ficara o reino pela impolitica e precipitada fuga do principe regente. Incriminava com os fidalgos a cobardia de similhante desaire para o paiz dos Pachecos e Albuquerques. Ouvia com acquiescencia os murmurios da nobreza contra a dynastia bragantina, murmurios timidos, que mais tarde se formularam n'uma vilipendiosa petição, requerendo ao usurpador um rei da sua escolha, e nomeadamente o general Junot, que comprara consciencias tão degeneradas como a do conde da Ega, e do bispo do Porto, Antonio.

Com a classe média, Sampayo bociferava contra os francezes, e promettia sacrificar nas hecatombas da patria a sua ultima pinga de nobre, generoso e patriotico sangue. Todavia, exhausto o fôlego das imprecações retumbantes, e accendida a flamma do heroismo nos peitos burguezes que se apinhavam nas praças, Sampayo, passando da iracundia ao reflectido exame das circumstancias, dizia que a sublevação popular seria um desatino sem proveito, um sacrificio de vidas e fazendas intempestivo e inglorio para as quinas lusitanas. Sobre isto, vinham os conselhos de homem que privava no segredo dos destinos de Portugal, conselhos de paciencia, de resignação, e, mais que tudo, de maxima prudencia na entrada de Junot.

Relacionado com a plebe, em razão do seu ministerio na intendencia geral da policia, o antigo advogado da rua de Santa Catharina insinuava-se nos grupos desordeiros e respondia com impertigamento de oraculo ás perguntas desconchavadas que lhe faziam. Napoleão, dizia elle que não era o impio que se dizia. Napoleão, e os seus generaes, não saqueavam as igrejas, nem arrombavam as portas dos conventos de freiras, nem violentavam a virtude das donzellas, nem attentavam contra a liberdade do povo. Pelo contrario—continuava elle, baixando cada vez mais a voz, e relanceando o olho observador por sobre as physionomias suspeitas que chegavam de novo—pelo contrario, Napoleão queria mudar a face das cousas em favor das classes opprimidas, chamando o povo á partilha dos regalos e direitos que a classe nobre lhes viera usurpando pouco e pouco através dos seculos. Dito isto, o povo rompia em vivas a Napoleão, e acclamava general o doutor Sampayo, que se esgueirava surrateiramente pela primeira brecha que a agitação lhe proporcionasse.

D'alli, ia á intendencia dizer a Manique o fermento que azedava os rasteiros instinctos da canalha. Alvitrava o emprego da força armada para dispersar os bandos, com prudencia; e, compungido de patriotica lastima, deplorava o indiscreto arbitrio dos palacianos que aconselharam ao principe uma fuga tão calamitosa no instante em que o prestigio da nacionalidade estava na presença do soberano.

Fora nomeada uma deputação para cumprimentar Junot. Além dos expressamente enviados pela regencia, Joaquim Antonio de Sampayo associou-se na deputação com alguns particulares, que se davam pressa em depôr aos pés do invasor a porção infame do paiz que elles representavam.

O ajudante do intendente arremedava a lingua franceza, e fazia-se entender melhor que o deputado da regencia, o tenente-general Martinho de Sousa e Albuquerque.

Junot, em Sacavem, chamou Sampayo a uma conferencia particular, e informou-se de cousas que a deputação não elucidava por astucia, ou por ignorancia da lingua. O certo é que o general francez, maravilhado do bonapartista, ou da torpeza do informador, julgou-o necessario, agradeceu-lhe com um aperto de mão os serviços prestados ao reformador da Europa, e prometteu-lhe acrescental-o, quanto em si coubesse, em honras e fazenda.

Chegados a Lisboa, as proclamações que circulavam entre a populaça eram de Sampayo. N'ellas se aquietava o espirito publico, dizendo-se que o excellentissimo senhor Andoche Junot, heroe de Toulon e de Nazareth, era o emissario da paz, da ordem, e da prosperidade portugueza; que a propriedade era sagrada para o exercito do imperador da França; que a virtude das virgens, e das menos suspeitas d'esse respeitavel estado, era inviolavel; que ninguem fugisse de suas casas, nem viesse para a rua fazer assuadas, algazarras, ou outras que taes manifestações de desordem e descontentamento.

O bacharel Sampayo ajudara, na vespera do embarque da familia real, a encaixotar as pratas da patriarchal, que deviam acompanhar os reaes emigrados. A celeridade, porém, do embarque, fez que os quatorze carros de preciosos objectos ficassem no caes de Belem, e voltassem, com grande jubilo do cabido, a serem armazenados na sacristia da igreja. Sampayo, emquanto se encaixavam as riquissimas bandejas, castiçaes, corôas, lampadas, etc., resistira heroicamente aos assaltos da ladroice, que lhe estavam segredando o modo de empalmar algumas peças miudas de preciosissimo trabalho. Pôde sopear a tentação; mas não via, sem grande mágoa, confiar-se aos caprichos do oceano uma carga tão valiosa. Um tal ou qual allivio o desopprimiu da sua pena, quando viu ficarem em terra os carros, e voltarem depois a despejarem a prata sob o tecto protector da sua igreja. Sampayo, a proposito d'isso, asseverou ás freiras de Santa Anna, onde almoçava todos os dias, que andava alli milagre n'aquella reconducção! Não acreditava elle, porém, que o milagre fosse perfeito e averiguado, emquanto um bom quinhão d'aquella prata não entrasse em casa d'elle. Convencido do «trabalha, que eu te ajudarei», o bacharel concorreu quanto em si cabia para que o milagre se completasse.

O processo não deixa de ser engenhoso: «engenho» é a palavra com que a civilisação, ainda então embryonaria, substituiu a palavra «ladroeira» dos costumes, das biographias, e das acções humanas, que, por força do progresso, hão de ir perdendo a nomenclatura aspera e illogica que lhe davam os gothicos moralistas de carcomida memoria.

O engenhoso Sampayo (diga-se assim de um homem que merece o respeito que se presta aos contemporaneos, apesar do seu atrazo de meio seculo), o engenhoso bacharel pediu uma audiencia particular a Junot, e denunciou-lhe a existencia de quarenta caixões de prata na igreja patriarchal.

Junot chamou seu cunhado, que por signal se chamava Jufre, e commetteu-lhe o encargo de sequestrar a prata, associado ao serviçal e benemerito denunciante.

Os dois, com alguns operarios de confiança de Sampayo, entraram na igreja, fecharam-se cautelosamente, e arrombaram os caixões, excepto dois, que não foram inventariados, ou o denunciante se encarregou de os inventariar em sua casa, para onde foram transportados, ao escurecer.

Completou-se d'esta arte o milagre, que Sampayo, em beatifico extasi, agradeceu toda a noite, contemplando uma a uma as formosas e corpulentas peças que tencionava fundir em baixella de seu serviço, quando melhores dias de ordem e tranquillidade fossem concedidos ao desgraçado Portugal, que elle continuava a prantear com as freirinhas de Santa Anna.

Dera-se, entretanto, o costumado reviramento na opinião da plebe.

Junot não sabia, não podia, nem devia esconder as suas intenções usurpadoras.

A bandeira franceza fora arvorada no castello de S. Jorge. As armas reaes do arsenal foram picadas. Do parapeito do seu camarote abaixo, Junot desenrolara as aguias vencedoras. As costas populares, n'uma desordem do Terreiro do Paço, tinham sido apalpadas pelas cronhas francezas. Nove portuguezes tinham sido espingardeados nas Caldas.

Dissolvida, em summa, a regencia, fora inaugurado o governo de Napoleão.

A populaça, portanto, bramia, e sobretudo, porque a sua força era nulla, o seu poder desprezado, a sua fome e sêde cada vez mais insaciavel pela careza dos generos. Havia um só meio de entreter-lhe as sanhas, ou captar-lhe as sympathias: era quebrar os poucos esteios da ordem, defendidos ainda pelas armas francezas, era facilitar o saque por meio da anarchia.

A plebe, quando lobrigava Sampayo, cercava-o, pedindo-lhe conta das promessas que elle fizera. O expedito bacharel desfazia-se dos importunos, recommendando-lhes paciencia, e esperança nos serenos dias que se haviam de seguir á crise indispensavel n'uma instituição de principios novos, creada expressamente para o bem geral.

O povo ouvia-o com escarneo, e apupava-o, quando elle abria com os hombros passagem para escapar-se.

Uma vez, porém, passava o bacharel na rua da Amendoeira, onde, por esses tempos, se arruava a escoria das meretrizes, e se abandoavam os condignos hospedes. Conheceram-o, e fizeram-lhe assuada.

Um gaiato de maus figados, instigado pela celeuma, saltou ao costado do bacharel, e enterrou-lhe, com retumbante penantada, o chapéo até aos queixos. A gargalhada publica victoriou o garoto, incitando-o a maiores emprezas, e aguçando o estimulo dos emulos. Outro gaiato, cioso dos applausos, capeava-o pela frente com um lenço vermelho de uma meretriz, emquanto um terceiro, um quarto e um quinto lhe achatavam o chapéo, que já não podia restaurar o antigo prumo. Uma alcouceira lançava-lhe ao tiracollo uma restea esbrugada de alhos, emquanto outra lhe mettia na portinhola da casaca, uma couve lombarda. Esta por um tubo de lata lhe assoprava feijões á cara, emquanto outra lhe pendurava um rabo-leva de papel na casaca, ou lhe esguichava fetidas aspersões com a seringa carnavalesca.

Sampayo gritava por soccorro. Alguns soldados portuguezes e hespanhoes, que por alli estanciavam, mantinham a neutralidade, ou riam á socapa do infeliz gêbo. O bacharel, vendo passar uma guarda de soldados francezes, bradou ao commandante, dizendo-lhe em francez que era victima da canalha, porque adorava Napoleão.

O francez varejou com a espada as costas dos gaiatos; porém, as rameiras, o povo, os gaiatos, animados pelos soldados portuguezes e hespanhoes, fizeram menção de apedrejar os francezes. Travou-se uma sanguinolenta desordem, á qual Sampayo deveu a evasiva.

A cólera não lhe deu respiro, até entrar no palacio de Junot. Queixou-se amargamente, dizendo que os amigos da França eram as primeiras victimas dos inimigos do imperador, n'um paiz de que Junot brevemente seria o monarcha.

O governador de Portugal enviou Sampayo ao intendente geral da policia Lagarde, com especial recommendação, e poderes discricionarios.

Dos soldados portuguezes, alguns foram lançados na enxovia, outros deportados, e as meretrizes da rua da Amendoeira, rua Suja, e immediatas, depois de rapadas á navalha, e vergastadas no pateo da intendencia, foram desterradas para o Alemtejo.

Parece-nos opportuna n'este logar essa pagina ridicula da biographia de um homem, que merecia ter mais ampla chronica, em vista do tragico desfecho que no proximo capitulo se dirá.