Kitabı oku: «A Estrutura Da Oração», sayfa 2
TERÇA E QUARTA-FEIRA
Perfume e fedor
Adveniat regnum tuum.
Circula no ar, evaporando-se gradualmente, fugindo, divertindo-se e depois espreitando com timidez, voltando a manipular o meu olfato com o seu poder e com a impertinência da sua aparição. Recebo a fragrância e sinto como se os músculos do meu rosto se esticassem num sorriso de prazer. Satisfaço a minha necessidade de sentir o cheiro, infiltrado nas minhas narinas, do ar balsâmico carregado, acalmo a pressa odorífica inalando mais fundo e perco-me no suor das flores. Ao abrir os olhos, a imagem do rosto do menino junto de mim, devolve-me à realidade dos meus olfatos rotineiros, pois ao cumprimentá-lo, recebo o ar que mudou o aroma das suas bochechas para o cheiro horrível do meu hálito matinal.
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Decidi que o menino deveria continuar de repouso, portanto, celebrei a missa sem a sua ajuda. Neste momento, a sua ausência parece-me mais tolerável. Justifiquei o movimento pendular do incensário, cujo fumo marcou a minha pele, com uma essência de resina. Agora vejo-o recostado contra o sofá, assoando o nariz num lenço caqui enquanto uma dose variada de desenhos em movimento transitam pelo ecrã. Vou para a rua, rumo ao mercado.
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Malecón está completamente deserta. A frescura do rio brinda-me com um cheiro de água doce que se mistura com o simples aroma das palmeiras que adornam os seus contornos. O trânsito está fraco. O mesmo beco de sempre me acolhe com o cheiro a cerveja, a urina implantada pelos cantos despreocupados, com postes manchados de pestilência. Acelero o passo enquanto observo o nome de um estabelecimento novo, escrito em letras maiúsculas e em itálico. “Um lugar de perdição, Senhor, e ainda por cima no meu beco favorito”.
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O mercado é um turbilhão de odores. Os legumes e as ervas aromáticas, os grãos e o marisco, os alimentos processados e as frutas, todos eles espalham uma extensa gama de sensações que invadem o olfato. Conduzo o meu corpo até à banca das especiarias. Fico impregnado com o cheiro da canela, dos cominhos, do cravo-da-índia, do pimentão-doce. Pago as especiarias com algumas moedas que Isaac, o vendedor, solteiro e com rosto carnudo, recebe em gesto de simpatia.
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Corto o robalo em fatias grossas que primeiro passo por água e depois, com a carne já limpa, passo pelo sal e pelo limão. Refogo e coloco a comida num prato de porcelana. O seu aroma é forte e apetecível, tanto que Tomás abandonou o seu posto diário de batalha para me controlar com a sua língua esfomeada ao pé da cozinha, facto que talvez contradiga o meu ceticismo sobre a capacidade do seu nariz. Moo as bolinhas de pimenta, os paus de canela, o cravo-da-índia e os cominhos. Adiciono vinagre. Um líquido lacrimal percorre-me os olhos e atiro as cebolas picadas para dentro da frigideira com o seu doce aroma. Acrescento o peixe com um pouco de xerez. Tapo e deixo a cozer em lume brando.
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Voltei uma vez mais a implorar pelo perdão divino. “Estou arrependido de ter pecado por pensamentos e palavras, atos e omissões. Senhor, acolhe este pobre pecador para que volte para o Teu caminho e possa ser salvo por Ti”.
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Ali estão eles, a dançar com alegria na podridão. Encantados com a sensualidade. A luxúria satisfaz-se na armadilha do regozijo carnal e na concupiscência. Os prazeres desonestos sublimam-se em peixes horrendos, em conchas abismais e outras merdas. Cabras, camelos, cavalos e aves ansiosas pelo gozo sustentado pela devassidão. O espaço fede a pecado, a luxúria. Corrompem o ambiente com uma praga emanada do lado mais negro do nosso ser. Deixo de observar o quadro e certifico-me dos poucos minutos que disponho para o descanso antes que os sinos comecem a tocar.
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Estou prestes a celebrar a missa com um enorme cansaço muscular. Bebo dois copos de água que abafam o ruído do meu fígado, ou pelo menos é isso que imagino, ou desejo. Coloco a batina. Sinto-me mais puro.
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O menino faz-me uma pergunta que me deixa pasmado. Obriga-me a retroceder até que caio vencido no sofá. Incentivo-o a sentar-se do meu lado. Concorda, mas não sem antecipar um gesto que me adverte da disposição de não transgredir o seu propósito. Acaricio uma mescla de cabelo que escorrega da sua cabeça e coloco-a atrás da orelha, lugar onde pertence. Sinto o seu olhar carregado de expectativa. Tento não dececioná-lo e digo-lhe que Deus é bom e misericordioso, que não o podemos conhecer fisicamente ou imaginá-lo com os perfis anatómicos aos quais estamos habituados, mas esta aula de catequese não satisfaz a sua curiosidade. Mostro-me forte. Digo-lhe a verdade, que é preciso amar a Deus mesmo sem conhecê-lo. Diz-me, com uma cara de derrota e resignação, que Deus é complicado. Só me sinto vivo ao experimentar o doce aroma a almíscar que fica impregnado no meu nariz enquanto ele afasta as suas nádegas do móvel. Chamo-o. Volta-se com um olhar luminoso, com aquele olhar que me incita a agarrar-lhe pelas bochechas e a satisfazer os meus impulsos. Mas peço ao Senhor que me ajude, porque a ele nada é impossível, e então, com as forças renovadas, encaminho o menino para o meu quarto. Digo-lhe que é um segredo. Revelo-lhe que conheço a Deus. E mostro-lhe.
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Deus não é pequeno, embora o pareça a olho nu. Está distante para poder ter uma maior perspetiva do mundo, é só isso. O seu olhar, como sabemos, é omnipresente. Sentado no seu trono, a sua cabeça está coroada por uma coroa e nas suas pernas, descansa o livro sagrado. As suas costas estão protegidas por uma longa capa imperial. Consigo vê-la agora, enquanto o Padre Misael me mostra esta pintura peculiar. A escuridão do quadro causa-me medo. Contudo, resisto. No horizonte, por trás da névoa que cobre o céu, fechado no vidro côncavo, está Deus, e consigo vê-lo. Agora já o conheço. E vejo o seu sorriso.
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Preparo-me para dormir com o cheiro perfumado que provém da sua nuca. Rezamos juntos, corpo a corpo, e pedimos a Deus que nunca nos afaste do seu caminho, a fim de nos poder exultar nos seus preceitos. Há algo no ar que me impede de respirar normalmente. Tenho a absurda premonição de que estou a ponto de cair num pesadelo do qual não poderei despertar. Lá fora, começou a chover, muito suavemente.
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A manhã está fria. A chuva refrescou o ambiente. Dormi tranquilamente, em paz com o meu espírito e protegido pela infinita misericórdia de Deus. Fico mais descansado por saber que os pesadelos terminaram o seu trabalho de tortura noturna e que deram espaço para uma trégua. O meu otimismo não me garante que os derrotei. Uma parte de mim, sabe que conseguirei sair desta batalha contra o demónio, mas outra, a mais frágil, indica-me a dimensão do meu fracasso, pois a cada momento a minha mente sucumbe à tentação e cada parte do meu corpo infringe essa lei que exige a minha alma.
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Decidi tomar um banho. Tive a sensação de impureza na minha pele, não só pelo fedor das minhas axilas, mas também pela montanha de obscenidades que carrego no pensamento. Devo estar purificado antes de subir ao altar. Refrescar-me um pouco não me fará mal, de modo que começo a ensaboar a minha pele. Também lavo a minha alma com orações.
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A temporada de inverno aproxima-se e já é possível sentir o seu cheiro. Qualquer mortal o pode fazer, mas sobretudo os seres que estão habilitados da melhor forma para tais necessidades. Por isso, Tomás, ao contrário do que o clérigo pensa, sabe disso melhor do que ninguém. Reconhece como alheio o aroma etéreo que destila o solo perto da amendoeira. Por isso demarca o seu território com frequência. A estação do verão, já a terminar, é vencida pela humidade elemental dos ciclos. O cheiro da terra emerge e inunda o portal com o seu éter. Os antigos diziam que o petricor era o sangue dos deuses, a essência que corria nas suas veias. Hoje não passa de um aroma aclamativo que, de vez em quando, e desde que a sua qualidade de fuga não se desvaneça, causa-nos um pequeno desconforto, sem nos apercebermos de que é e sempre foi, ao longo de várias épocas, o verdadeiro suor desta terra, o seu cheiro aflorado. Tomás o compreende. O seu nariz não se desgastou até ao ponto de o mundo lhe ser indiferente. Ele percebe alguma coisa de odores. Compreendeu algo na sua longa vida de cão. Por isso deixa de urinar na amendoeira e tende-se a uma postura mística rara, já derrotado pelo clima, sobre as folhas húmidas que formam um colchão natural. O seu olfato realçou-lhe a sagrada condição das estações. Agora, finalmente, uma nuvem esquiva brinda-o com um pouco de sol que a sua pele agradece.
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Encontrei um velho amigo no mercado. Tivemos uma conversa agradável, mas breve.
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A senhora Salomé chegou enquanto estive ausente. Explica-me, em forma de justificativa, as suas penúrias. Digo-lhe que evite as preocupações, que compreendo a situação e que tire a semana de folga. Insiste em preparar o almoço de hoje como forma de compensação pela futura ausência. Não irei implorar. Fecho-me no meu quarto enquanto a senhora cozinha e tiro uma garrafa de vinho do meu lugar secreto. Começo a beber com longos goles.
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A garrafa está a metade e deixo-a sem qualquer precaução sobre a mesa de cabeceira. O vinho ingerido provoca-me uma leve sensação de tontura que pretendo expulsar com uma chávena de café. Imploro por um banho de água fria, mas a senhora Salomé diz-me que a comida está pronta. Engulo a sopa com ressentimentos. O calor acalma o vazio do meu estômago, o estranho desconforto causado pela bebida. Levanto-me da mesa olhando para o menino que come e dirijo-me aos meus aposentos com uma enorme vontade de dormir.
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Entreabro os olhos e a primeira imagem que vejo é a do mundo. A minha bebedeira não é adequada para perscrutar as delícias imundas do seu jardim. Imagino o corpo nu do menino com verdadeira luxúria e depois volto a adormecer. Quando acordo, apercebo-me de uma posição incomum do lado direito do quadro pintado. Suponho que alguém tenha revisto a pintura. A senhora Salomé está proibida de entrar nos meus aposentos e sempre foi respeitosa, portanto a minha única suspeita recai sobre a curiosidade do miúdo. Não me irrita, mas também não me agrada a sua invasão. E então, sinto a pastosidade que manchou as minhas cuecas durante o sono.
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Hoje vieram menos pessoas à igreja do que ontem. No entanto, os meus sermões foram mais extensos.
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O último livro da Bíblia anuncia um inferno repleto de fogo e enxofre como condenação para aqueles que traem as leis do Senhor. Um inferno de fetidez, de vapores fedorentos, seria um tormento insuportável, mesmo para qualquer alma alheia às debilidades do corpo. Defeco calmamente e com alguma dor. O meu esfíncter expulsa um gás em forma de um guincho agudo. Cheira mal, mas aspiro-o, imaginando um tormentoso inferno pestilento, saturado de eflúvios fedorentos e, aqui sentado, o cheiro sobreposto à imaginação incita-me à náusea. Abro um pouco da porta, permitindo que circule um pouco de ar fresco que sacuda os miasmas excrementícios, o ar viciado que contaminou o meu organismo.
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Tomás fareja-me a perna, provavelmente por ter sentido o cheiro a sabão no meu corpo após o banho. Começa a emitir grunhidos desagradáveis. Puxa-me pelo tecido do pijama e rasga-o, inundando-o com a sua baba. “Cão feio”. Agora vejo-o afastar-se, satisfeito com a sua brincadeira. Tiro o pijama e vejo-me nu em frente ao espelho. Não resisto a fazer uma carícia à zona dos meus testículos. Um fluxo elétrico faz-me tremer. O meu pénis incha num tom vermelho-escuro. Ao reagir, afasto-me do espelho com horror. Tiro outra roupa e tento esquecer os meus desejos.
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O Sinédrio dos sentidos acolhe com agrado a proposta de trair a alma.
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Tiro-lhe a camisa com uma serenidade que nem parece a minha. Mas são as minhas mãos que despem o seu tronco. Deito-o com o rabo virado para a minha cara, que afasto imediatamente, corando instantaneamente. Acaricio as suas costas que provavelmente estarão a queimar com o fresco do mentol. Os seus pulmões já o sentem, tenho a certeza, pois as minhas mãos esfriam ao ritmo das massagens. Contemplo pela última vez o seu rabo perfeito de jovem dominante. Volto-o com o seu rosto virado para mim. Meto o mentol sobre os seus peitorais e aproveito para apalpar os seus mamilos tímidos que emergem sem ousadia. O cheiro forte do eucalipto penetra-me.
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Esta madrugada, ambos dormem com o ruminar da chuva a açoitar a rua. Nem o Padre Misael teve o sonho da faca, nem o jovem Manuel a visão da besta. Talvez tenham desaparecido de vez. Estamos no limiar de um novo dia. No centro da cidade, a chuva arrasta todos os pivetes da rua do bilhar. A chuva forte limpa a velha árvore do pátio. Durante as chuvas, alguns ingénuos afirmam que é Deus a chorar por todos os pecados da humanidade. A imagem mais acertada não estaria simbolizada pelas lágrimas divinas que caiem sobre o mundo, mas pelo chiado da urina que nos encharca, como o de Tomás, que agora descasca a casca da velha amendoeira. De uma forma ou de outra, afinal é do corpo do Deus imaterial que provem o líquido que nos lava.
QUINTA-FEIRA
Frio e calor
Fiat voluntas tua, sicut in caelo, et in terra.
Sou sacudido por uma descarga ardente cuja génesis é o occipício e parte em êxodo destilando por toda a minha coluna dorsal. Os meus tendões despertam e obrigam-me a esticar o comprimento do meu corpo na prazerosa dor que é consumida de forma orgástica nas minhas cuecas. Sinto como o meu pénis vai descendo lentamente, derrubado pelo prazer convulsivo da poluição, enquanto na minha alma se forma um vazio que não consigo suportar. O frio desliza pela janela aberta e balança a cortina com um uivo lânguido e consecutivo. Observo como o veludo estremece sobre a parede, embate no vidro da janela, contra a moldura feita de pinheiro. Sinto a brisa deslizar e colar-se às minhas axilas, agitando-me a pele numa rajada que arrepia o meu corpo todo. Suspiro. Separo-me do interior maculado pelo sémen. Levanto-me e oro pela fraqueza do meu corpo.
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O calor do café encoraja-me a deixá-lo. Prefiro ingerir o sumo de pêssego com pequenos golos. O menino conta-me uma história um pouco profana, mas não me atrevo a repreendê-lo. Apenas olho para ele e esboço um sorriso frio. Hoje também não me fez companhia na missa e fez-me tanta falta, principalmente quando o bispo Pio deu a bênção. Observo-o e maravilho-me com as suas feições, com o seu olhar despreocupado, com o seu cabelo despenteado pela manhã. Levanto-me rapidamente da mesa, tentando desviar o olhar que continua voltado para ele, uma e outra vez.
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Tive tremores. Hoje não sairei de casa nem sequer para atender os paroquianos que estão a preparar-se para a sexta-feira Santa. Deixei alguns compromissos menores ao cargo de outrem, seguindo a recomendação do doutor. O miúdo prepara-me uma infusão que ingiro com os medicamentos. Ao voltar-se, pude notar o movimento das suas nádegas num vaivém provocador. Rendo-me ao sono.
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Vejo o rosto do rapaz ao acordar. Esteve a fazer-me companhia durante todo o tempo em que estive com febre. Diz-me que fez o almoço e conforta-me o corpo com uma sopa quente que insiste em dar-me à boca, colher atrás de colher. Mas depois vem um momento de tensão. Repreendo-o por ter examinado a pintura sem o meu consentimento e responde-me que só queria saber o que continha o quadro. Não é uma questão de proibir-lhe o conhecimento, mas considero que deveria ter consultado antes uma voz que lhe confirmasse se estava ou não capacitado para tal conhecimento. Responde-me que se sente apto e implora que o guie pelo quadro. Após uma luta de súplicas e rejeições, cedo ao pedido e permito-lhe abri-lo. Ele faz uma cara de surpresa. “É lindo” diz, “mas horrível ao mesmo tempo”. “É a nossa alma”, digo-lhe ou penso simplesmente. O choque residual da febre deixa-me tonto. Neste momento só me dá vontade de afastar-me do menino, de gritar com ele para que saia do meu quarto e que desapareça para sempre, que Deus me revelou que ele é um emissário do demónio. Sou invadido pela vontade de o excomungar da minha vida. Sei que farei tudo ao contrário, porque me ergo para ele e pouso uma mão sobre o seu ombro e a sustento num abraço cheio de intenções. “O que estás a ver é um paraíso, um inferno, e isto aqui”, digo-lhe com uma voz magnânima indicando-lhe a parte central, “é o mundo”. “Por agora já chega! Teremos tempo para o examinar parte por parte”. O meu corpo não resiste ao impulso e beijo-o na bochecha enquanto desço a mão até à fenda das suas costas. Não reage em forma de rejeição. Pede-me, inesperadamente, que lhe dê a bênção.
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Mandei o miúdo ao mercado para fazer compras. Sinto a sua ausência e tento combater o desejo com uma oração, mas ao estar ajoelhado, as palavras ficam-me presas na garganta. Desta vez não consigo rezar. Levanto-me, tomo um duche de água morna, e preparo-me para o receber o mais arrumado possível.
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O menino finalmente chega, mas infelizmente vem acompanhado pela menina Raquel, uma mulher prestativa à disposição da Igreja, jovem, apesar dos seus quase quarenta anos, solteira, apesar da sua beleza. Atrás dela entra uma comitiva de senhoras que se juntaram para me fazer uma visita e oferecer-me frutas, compradas precisamente, imagino, à bela solteirona. Tomás cumprimenta com latidos de indignação. Recebo-as com aparente agradecimento, dando-lhes, com a autoridade que me conferem, algumas advertências, mas também uma ou outra tarefa para a preparação da procissão de amanhã e despeço-me delas de forma delicada alegando o pretexto do meu repouso. Fecho a porta atrás delas, com o gume de ferro bolorento e dobradiças enferrujadas, e vou ao encontro do rapaz por toda a casa.
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Convido-o uma vez mais a entrar no meu quarto. Mantemos uma conversa sobre certos aspetos teológicos que ele debate com leve consentimento. Instruo-o enquanto pouso a minha mão aberta sobre a sua apetitosa coxa carnuda. Incentivo-o a fazer uma oração em conjunto. Coloco-me atrás dele e juntos proferimos o nosso pedido habitual. Sinto o calor do seu corpo que abafa o frio do ambiente e, ao mesmo tempo, refresca o ardor das minhas entranhas.
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O corpo vence-me. Deito-me com o sabor das frutas ainda patente no meu paladar. Ensaio uma oração que se derrete na tentativa. A minha cabeça está em outro lugar, na figura do miúdo. Dirijo-me com passos cambaleantes até à sua porta. Entreabro-a e vejo o seu corpo adormecido no prazer da sesta numa postura fetal com um belo traseiro a apontar na minha direção, convidando-me a acariciá-lo, a dar-lhe uma dentadinha definitiva. O meu corpo gelado ferve de febre ou de algo mais. Numa explosão de lucidez, volto para a minha cama.
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Acordei com a viscosa sensação do suor colado à minha pele. Observo o brilho do sol da tarde que se reflete no espelho e inunda o quarto com o seu resplendor, invadindo cada esquina. Entendo a necessidade de me lavar, pois uma onda de calor invade o quarto e as minhas virilhas estão pegajosas. A febre já passou. Imploro por um pouco de água fresca.
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Enviei as indicações aos fiéis por escrito para a procissão da sexta-feira santa. O menino foi a minha companhia enquanto escrevia a mensagem que depois encarregou-se de entregar, estimulado pela promessa de ensinar-lhe uma parte do quadro. Não consegui conter o meu interesse dos seus movimentos, o meu olhar recaiu sobre ele a todo o momento. Fez-me até desviar a caneta em algumas características.
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A caixa do disco possui como capa a imagem de um caminho cercado por folhas outonais que se perdem num horizonte sugestivo. A passagem amarelada atravessa um bosque de absoluta gentileza. Nenhum pássaro estraga a tranquilidade. Nenhum animal se atreve a profanar a serenidade do pequeno universo de folhas e terra. Todos estão escondidos para, de forma fogosa, inaugurarem um paraíso infernal. Coloco o disco no aparelho, obrigando-o a girar rapidamente. Aquela geringonça transforma-se num minúsculo turbilhão infinito que gira a milhares de rotações por minuto. A música invade a sala, muito lenta, como se estivesse a lutar por acordar de um sono imposto por forças restritas, inalando sossego, absorvendo silêncio, mantendo-se no espaço que depois ocupará com a sua tonalidade imperial. Mas será o frio. O baixo marca o ritmo, prosseguindo de forma contínua, jorrando com um crescendo que matiza as tímidas intervenções dos violinos: são os passos do caminhante a quem pressiona alguma tribulação, são os rangidos do gelo a ponto de quebrar-se. Agora, soam os raios queimados pelo violino solista, o tormento da orquestra ruge e agita o espaço e vibra aos pés do desgraçado. A competição começa com o impulso do baixo que pulsa com insistência e marca rapidamente as pegadas. A imposição magistral do violonista principal invade, atingindo com as suas rajadas de vento gelado, e o intenso frio obriga a tremer e impõe o ranger de dentes.
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“Estás a ver esta zona aqui”, e mostra-me a parte superior do lado direito da pintura aberta. “Todo o quadro simboliza os suplícios do pecador. Mas esta parte daqui, especificamente, é a imagem tópica, usual, que fazemos do inferno. Enxofre a cair numa chuva contínua, montanhas destruídas e cobertas de escuridão e pessoas num sofrimento indescritível”.
“Nesta zona”, mostra a parte central com o dedo indicador desenhando uma elipse, “o gelo marca um grande contraste com o fogo de enxofre, porque dentro da conceção do inferno como lugar de tortura eterna, um espaço de gelo é um dos lugares mais horríveis. Vê como se racha aqui e o pobre homem fica à mercê da água fria”.
“Nesta parte”, mostra a inferior, “está aquilo que na arte chamamos de inferno musical, devido à utilização de instrumentos musicais como símbolos de tortura. Muito comum em certos pintores místicos. Estás a ver esta gaita, mais para aqui está o alaúde, aqui está a harpa. E aqui, uma flauta. Consegues ver?”
Questiono-o se o inferno é mesmo assim. Pela janela noto que já é de noite.
“Bom”, diz-me, “o desespero e o martírio, de certeza que estão bem representados pelo autor, e aqui sobre este quadro, por parte do imitador, que é um intérprete, como prefiro chamar-lhe”.
Pergunto-lhe como é que vê o inferno através do que diz a sagrada escritura. Não responde. Parece imerso numa reflexão que escapa ao momento e às minhas dúvidas. Está realmente a perguntar-se de como será o inferno.
“O livro sagrado mostra o inferno como um lugar de incandescência perpétua onde as almas serão lançadas para os lagos de enxofre. É assim que o pintor o retrata na parte superior desta obra. De facto, Cristo menciona-o constantemente, mencionando determinadas premissas, tais como o fogo que nunca se apaga, o lamento e o ranger de dentes, o castigo eterno”.
Fala sem olhar para mim, como se estivesse a falar consigo próprio.
“Há séculos que se considera o fogo e o gelo, ou melhor dizendo, o calor e o frio, como os sofrimentos mais atrozes num lugar de castigo eterno. Um grande poeta da antiguidade descreve uma parte do inferno com a habitual chuva de chamas, e outro segmento, é o dos traidores, formado na sua plenitude por gelo. O demónio, como regente deste espaço de perdição, está enfiado a partir da cintura na superfície gelada. Chora com os seus seis olhos e agita as suas seis asas enfurecidas”.
Imagino um inferno de gelo. O Hades seria um paraíso em comparação. Uma tortura sem fim no entorpecimento perene. Mas o que o meu corpo tolera agora é o calor. Um calor intenso que se prolonga à medida que avança o ensinamento do padre Misael e que me oprime com o ar carregado pela sua aproximação, tão próximo. Reconheço as suas palavras como uma forma de sabedoria espiritual. Não quero aborrecê-lo mais com a futilidade dos meus questionamentos. Peço a sua bênção e concede-ma com grande força, depois esculpe-me um beijo sagrado na boca.
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Decidimos comer pão para o jantar, eu com um pouco de vinho e ele com um copo de sumo. Falamos à mesa sobre temas de especial interesse para ele. Olho-o nos olhos enquanto lhe explico determinadas conceções sobre sentir o Espírito Santo pulsando na palma da sua mão. Depois levo as minhas ao seu rosto. O impacto do seu corar roça a minha cara. Acaricio as suas bochechas e volto a beijá-lo, desta vez de forma profunda.
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Palpita o odiável beijo que delimitará o itinerário da traição e do inferno.
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Estou no seu quarto e mostra-me um pijama bege. Informa-me que estou apto para servir um representante de Deus no mundo, que de hoje em diante serei o seu guia espiritual. Explica-me que a batina é o único vestuário sagrado que o ser humano possui. As minhas novas tarefas consistem em despi-lo e vestir-lhe a roupa de dormir. Parece-me uma tarefa simples e aceito com gosto servir ao padre, um filho de Deus purificado.
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As suas mãos deslizam lentamente pelas minhas coxas. Sinto-as mornas, reparadoras, tão perturbadoras e aprazíveis. Contenho um gemido. Vibro ao sentir a sua respiração na zona do meu pénis, na trepidação dos meus pelos que se agitam atraídos pela onda de magnetismo da sua pele navegando pela minha pele, através do rosa dos seus dedos castos. Agora é o meu peito que se satisfaz, que se alegra num prazer que não pertence a este mundo. A minha pele arrepia-se. Sou dominado pelo seu toque. Arrebatado pelo contacto da sua pele imaculada. Os vincos da minha camisa agitam-se ao ser lentamente desabotoada. Grito sem qualquer contemplação, mas ele não para. Parece ter iniciado uma tortura na qual se sente um carrasco e não quer deixar a sua vítima escapar. Presencio este segmento da minha existência como um momento vital. Abraço-o e mantenho-o assim durante um tempo, o qual não me atrevo a estabelecer. Sou eu quem se afasta. Veste-me com uma agilidade insuspeitável. Um sufoco queima o meu corpo. Ajoelha-se diante de mim, formalmente, e pede-me a bênção. Concedo-a com um beijo no seu cabelo espesso. Vislumbro que a minha alma não descansará até que satisfaça o meu corpo. O meu corpo não estará satisfeito até que dê início ao que a minha alma tanto nega. Não aguento mais e aqui deitado, rendo-me ao doce suplício do prazer solitário. Depois vem o vazio. Rezo a noite toda pela minha salvação.
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O padre aceita a derrota da sua alma, renunciou a si mesmo e entrega-se à vontade de Deus. Prostra-se sobre o chão de azulejos frescos e reza, com o rosto caído sobre as mãos. “Meu Pai, se for possível, não me faças beber deste cálice. Contudo, não seja feita a minha vontade, mas sim a tua”. Confrontado por ter iludido a sua responsabilidade espiritual, o padre Misael tenta descansar, mas torna-se impossível conciliar o sono. Aproxima-se da janela e acaba por sentir a brisa que atinge o seu rosto e alivia o calor intenso.
O jovem entrou na profundidade do sono, e com ele a calamidade do pesadelo que não o abandona. Desta vez tenta, apesar da fragilidade da sua fissura, escapar dos suspiros da besta ciclópea que está a um passo de o alcançar com as presas cobertas de baba. Conhece o fim inevitável da sua história. O seu suor serão gotas de sangue que cairão sobre a terra. Uma explosão de calor impregnada no ar circula inutilmente sobre o corpo arrepiado do menino.
Todos sabemos que Deus, ao ser espírito, e o mais supremo de todos, não sente. Pelo menos não como este homem desgraçado, e muito menos como este pobre jovem pecador de um inferno inaugurado que nem sequer se concretiza. Está na hora de dormir, padre, descanse, que amanhã o mundo trará um novo começo. Deus não entende os seus suplícios.
Os ombros do padre Misael recebem um peso colossal. Exausto, prostra-se sobre a cama e fecha os olhos. O pesadelo da navalha e as orelhas voltarão a surgir do canto obscuro da culpa.
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