Kitabı oku: «Um club da Má-Lingua», sayfa 2
– Foi Deus em pessoa que o inspirou em m'o trazer para aqui. Arrepio-me só de pensar que poderia ter ido hospedar-se para outra qualquer parte. Devoravam-n'o! Atiravam-se a elle como quem se atira a um thesouro, a uma mina!.. Eram capazes de lhe tirar a camisa! Não põe na sua ideia o que por ahi vae de almas sofregas, vis e arteiras n'esta nossa Mordassov.
– Ah! meu Deus! mas para onde queria que o levassem a não ser para sua casa? Sempre tem cada uma, Maria Alexandrovna, interveiu Nastassia Petrovna, a incumbida do chá. Talvez quisesse que carregassem com elle para casa da Anna Nikolaievna!
– Mas com tudo isso, por que se demorará elle tanto? É exquisito! disse Maria Alexandrovna, erguendo-se, impaciente.
– O tio? Aquillo ainda é negocio para cinco horas! E d'ahi, bem sabe que está perdido da memoria; é capaz de se ter esquecido de que é seu hospede. É um homem extraordinario, Maria Alexandrovna. Se soubesse!
– Ora vamos! Que está a dizer?
– A verdade, Maria Alexandrovna. É um homem mecanico. Não o vê ha seis annos, mas sei o que ha a esse respeito. É a recordação de um homem, esquéceram-se de o enterrar. Tem olhos de vidro, pernas de cortiça; todo elle de engonços, a propria voz é artificial.
– Valha-nos Deus, sempre é um tal esturdio! exclamou Maria Alexandrovna com uns modos doridos. Não tem vergonha, o senhor, a falar assim de um veneravel ancião, que é seu parente? (A voz de Maria Alexandrovna, n'esta altura assume entonação tocante.) Sequer ao menos, lembre-se de que é uma reliquia da nossa aristocracia! Meu amigo, essas leviandades provêm-lhe das taes novas ideias em que está sempre a falar. Meu Deus! tambem eu participo dessas ideias; comprehendo que o principio que rege as suas opiniões é nobre, honrado. Presinto n'essas ideias novas o que quer que é de elevado, de sublime. Mas tudo isso não me impede de ver os lados praticos, por assim dizer – da questão. Tenho vivido na sociedade, conheço melhor que o senhor os homens e as coisas, pois que o senhor é apenas um rapaz. Este vélhinho afigura-se-lhe ridiculo lá por causa da edade. O senhor, ha dias, affirmava que queria dar alforria aos seus servos, que cada qual deve ir com o seu século. Tudo isso, sem duvida, lá por que o leu para ahi algures no tal seu Shakespeare! Acredite, Pavel Alexandrovitch, o seu Shakespeare já lá vae ha que tempos. Se elle resuscitasse, apezar de ser um génio, não percebia uma palavra do viver moderno. Se alguma coisa existe de majestoso, de cavalheiresco n'esta nossa sociedade contemporanea, é com certeza a aristocracia. Um principe é sempre um principe; faz um palacio ainda que seja de uma cabana. Ao passo que o marido da Natalia Dmitrievna, que mandou construir um palacio, fica sendo o marido da Natalia Dmitrievna, e mais nada, – e a Natalia Dmitrievna pode pôr em cima de si meio cento de crinólines, que nunca passará de ser a Natalia Dmitrievna como d'antes. Tambem o senhor, meu caro Pavel, é um representante da aristocracia, de lá veiu. Aqui onde me vê, ouso tambem ter-me na conta de não ser alheia á aristocracia. Pois bem! Ai do filho que chasqueia dos proprios antepassados! E d'ahi, não deixará de convir, d'aqui a nada, meu amiguinho, que é preciso pôr de lado o seu Shakespeare, sou eu que lh'o digo. Estou certa em que agora mesmo não é sincéro. Está armando ao effeito!.. Mas… eu para aqui a dar á lingua! Deixe-se estar, meu querido Pavel; vou saber noticias do principe. Talvez precise de alguma coisa, e com estes meus criados!.. E saiu apressada Maria Alexandrovna.
– Maria Alexandrovna parece estar contentissima pelo facto de o principe não se ter ido hospedar para casa da elegante Anna Nikolaievna; e comtudo, a Anna Nikolaievna tem pretensões a ser parente do principe. É capaz de estoirar de raiva! – observou Nastassia Petrovna.
Mas, notando que lhe não respondem, Madame Ziablova, depois de haver esguelhado uma olhadéla para a Zina e para Pavel Alexandrovitch, percebe que é alli de mais e sae, tambem, como quem vae procurar qualquer coisa. E d'ahi, desforra-se da propria discreção deixando-se ficar atráz da porta, de ouvido á escuta.
Pavel Alexandrovitch trata logo de se approximar da Zina; está commovidissimo, com a voz a tremer:
– Zinaida Aphanassievna! Não está zangada commigo? diz timidamente e com modo supplice.
– Com o senhor? Mas por quê? pergunta a Zina um tanto ruborizada, erguendo sobre elle os esplendidos olhos.
– Pela minha vinda prematura, Zinaida Aphanassievna, já não podia supportar mais longo apartamento. Ainda mais quinze dias! E eu a vêl-a sempre em sonhos! Vim para saber a minha sorte… Mas por que franze as sobrancelhas, está zangada? Com que então, ainda hoje não apanho resposta decisiva?
Á Zinaida, effectivamente, carregou-se-lhe o parecer.
– E eu antevia que me havia de falar a esse respeito, encetou ella em voz rispida com uns vislumbres de despeito. (Declina a vista.) E como semelhante apprehensão me maguou em extremo, acho melhor cortar de vez toda e qualquer indecisão… mais vale assim… O senhor exige, quero dizer, pede uma resposta? Seja assim. A minha resposta será a mesma que já lhe dei: espere. Repito-lhe, ainda não estou resolvida, não lhe posso prometter o ser sua mulher… Não é coisa que se obtenha por exigencia, Pavel Alexandrovitch; mas, para o tranquillizar accrescentarei que o não rejeito definitivamente. E comtudo, note que, se o deixo esperar uma decisão favoravel, é por dó da sua inquietação. Repito-lhe que quero tomar em plena liberdade a minha decisão, e se eu em conclusão lhe declarar que o rejeito, nem por isso depois me deve increpar por lhe ter dado esperanças. E fique isto assente por uma vez!
– Mas então, então! exclamou Mozgliakov em voz de mais em mais supplice, será isso uma esperança? Poderei fundar uma qualquer esperança n'essas suas palavras, Zinaida Aphanassievna?
– Lembre-se de tudo que lhe tenho dito e funde tudo que quiser: é livre. E nada mais acrescentarei. Não o rejeito, digo-lhe, tão somente: Espere! Reservo-me o direito de o rejeitar se assim o julgar necessario… Far-lhe-hei ainda notar o seguinte, Pavel Alexandrovitch: se veiu mais cedo do que tinha dito com o sentido em operar por meios indirectos, esperançado em fazer valer a sua influencia, a da mamã, por exemplo, enganou-se nos seus calculos. Se assim fôra, rejeitál-o-hia de vez, entendeu? E agora, basta, se me faz favor! Até que eu proprio lhe torne a falar n'isso, nem palavra a semelhante respeito.
Foi proferido em tom firme, sêcco, o conjuncto d'este discurso, sem hesitações, como se fôra decorado de antemão. E Pavel sente o nariz a crescer-lhe. N'este comenos eis que entra Maria Alexandrovna. Logo atráz d'esta entra madame Ziablova.
– Já ahi vem, Zina! Quer-me parecer que não tarda ahi! Nastassia Petrovna, avie-se… o chá!
E Maria Alexandrovna n'uma azafama, toda ella.
– A Anna Nikolaievna já mandou saber noticias; a Aniutka, a creada, até já veiu pedir informações á copa. Ha de estar como uma bicha! disse a Nastassia Petrovna, investindo com o samovar.
– E a mim que me importa? responde Maria Alexandrovna, a desfechar as palavras por cima do hombro a madame Ziablova. Como se me interessasse o que poderá pensar Anna Nikolaievna! Tenho a certeza em como não serei eu que mande seja quem fôr á sua copa. E demais, fique sabendo, muito me admiro de que me façam passar por inimiga da Anna Nikolaievna, coitada! Pois é opinião corrente em Mordassov. Ora seja juiz, Pavel Alexandrovitch. Conhece-nos a ambas: por que é que eu havia de ser sua inimiga? Para lhe disputar a supremacia? Sou indifferente a essas coisas! Ella que seja a primeira, eu lhe irei dar os parabens! Emfim, é injusto, e quero defendêl-a. É meu dever. Mas para que é que a calumniam, para que hão de andar a malhar assim na pobre da creatura? É nova, gosta de se enfeitar: será por isso? Quanto a mim, acho que vale mais gostar dos trapos do que um certo numero de coisas de que tanto gosta a Natalia Dmitrievna, das taes coisas que nem sequer se podem nomear. Será ainda lá porque a Anna Nikolaievna gosta de visitas e não pode parar em casa? Mas, santo Deus! Se ella não tem instrucção de qualidade nenhuma, e com certeza que lhe havia de ser difficil o abrir um livro e entreter-se dez minutos a fio fosse com o que fosse. É garrida, dá de olho, da janella abaixo, a todo e qualquer que passa pela rua. E d'ahi?.. Mas para que será que andam para ahi a apontál-a como uma beldade? É macilenta, que até mete medo! Dansa que é um riso vê-la, chega a ser comica, convenho, mas por que será que dizem que a polkar é um portento? Usa uns chapeus inconcebiveis! E d'ahi, ella terá culpa de lhe faltar o gosto? Affirme-lhe que faz bem em pregar na cabeça um papel de rebuçado, e verá que o faz. É linguareira, mas se por aqui não haverá quem o não seja. O senhor Suchilov, com aquellas suas enormes suissas, está pregado em casa della de manhã até á noite, e de noite até manhã, tenho a certeza. E d'ahi, santo Deus! para que é que o marido joga as cartas até ás cinco horas da madrugada? Se o que se vê por ahi são maus exemplos! E demais, não deixará de ser talvez mais outra calumnia. N'uma palavra, hei de sair sempre, sempre, sempre, sempre a defendêl-a… Mas! ai, Senhor! Ahi vem o principe! É elle! é elle! conheci-lhe os passos! Era capaz de os distinguir entre mil. Até que o vejo, afinal, meu principe!..
IV
Á primeira vista, ninguem confundiria o principe com um velho, mas examinado de mais perto, ninguem deixaria de verificar que é um cadaver movido por mólas; empregaram toda a casta de artificios para disfarçar n'um adolescente semelhante mumia. Um chinó estupendo, suissas, bigodes postiços, mais pretos que o proprio ébano, lhe tapam metade do rosto. As faces estão pintadas com singular pericia; nem uma ruga: que é d'ellas?.. Vestido no rigor da moda, dir-se-hia saído de um figurino de alfaiate. Traz assim a modos de uma visite, isto é, qualquer coisa elegantissima feita expressamente para as visitas matutinas. Luvas, gravata, collete, tudo isso de brancura deslumbrante e do mais requintado gosto. O principe manqueja um tudo-nada, mas tão levemente! Dir-se-hia mais um tempêrozinho exigido pela móda.
Um monoculo no olho, – n'aquelle, exactamente, que é de vidro, – vem saturado de perfumes. Quando fala, arrasta umas certas palavras, talvez por impotencia senil, ou por serem postiços os dentes, ou ainda por elegancia. Pronuncia umas certas syllabas com doçura extraordinaria e accentua a letra e. Tem uma pontinha de não se-me-dá que lhe ficou da sua vida de homem feliz em amores. Se não perdeu de todo a transmontana, pelo menos está sem memoria. Engana-se a cada instante, fica-se a mascar e a metter os pés pelas mãos. É necessario ter um certo dom de opportunismo para sustentar com elle uma conversa. Maria Alexandrovna, todavia, tem a consciencia dos proprios recursos, e a presença do principe léva-a ao auge do enthusiasmo.
– Mas não o acho nada mudado, nada, nada! exclama ella agarrando em ambas as mãos ao hospede e amesendando-o n'uma commoda poltrona. Sente-se! sente-se, principe! Seis annos! seis annos, inteirinhos e integrados sem nos vermos, e nem uma carta, nem uma linha, durante todo o tempo! Oh! quantas culpas não tem para commigo, principe! Se soubesse o quanto eu estava zangada comsigo, meu caro principe! Mas, e esse chá! esse chá! Ah! meu Deus! Nastassia Petrovna, o chá!
– Obrigado… ô – ôbrigado!.. sou cul… cul… pado… gaguejou o principe.
(Esqueceu-nos dizer que gaguejava um tanto; e d'ahi, é moda.)
– Cul… culpado! Ora imagine que, o anno passado, quiz abs… absolutamente vir aqui, acrescentou a mirar a casa através da luneta.
Mas tinham-me mettido medo: disseram-me que por aqui andava a có… cólera…
– Não, principe, não a tivemos por cá, affirmou Maria Alexandrovna.
– Tinhamos a morrinha, meu tiozinho, interrompeu Mozgliakov, que se quer tornar conspicuo.
Maria Alexandrovna méde-o com olhar sevéro.
– Ha de ser isso… a mo… mo… rrinha ou coisa que o valha. E vae, eu então deixei-me ficar. E seu marido, minha que.. querida Maria Nikolaievna, ainda está na ma… a… gistratura?
– Não, principe, diz Maria Alexandrovna, meu marido não está na ma… a… gistratura.
– Iá apostar que o tiozinho a está confundido com a Anna Nikolaievna Antipova! exclama o perspicaz Mozgliakov.
Acto continuo, porém, mordeu o beiço, percebendo que nem por isso está muito á vontade Maria Alexandrovna:
– Pois é isso, é… A Anna Nikolaievna, e… e… e eu sempre a esquecer-me… e então! Antipovna, exactamente, An… ti… povna, confirma o principe.
– Não, principe, está equivocado! disse Maria Alexandrovna com um rizinho azêdo. Eu não me chamo Anna Nikolaievna, e, confesso, nunca suppuz que se esquecesse de mim. Estou espantada, principe, sou a sua velha amiga, a Maria Alexandrovna Moskalieva. Não se recorda, principe, da Maria Alexandrovna?
– Maria Ale… lexan… xandrovna! Ora vejam! E eu a confundi-la com a Anna Vassiliévna… é delicioso!.. Dizia eu, pois, que me não fui hospedar em casa da… E eu, amigo, a cuidar que me levavas exactamente para casa da tal Anna Matveina!
É impagavel! E dahi, acontece-me isto tanta vez! Quanta vez não vou eu parar onde não quizéra!.. Em geral, fico sempre contente, sempre contente, aconteça o que acontecer. Com que então não é a Nastassia Vassiliévna!
É interessante!
– Maria Alexandrovna, principe! Maria A – lex – androvna! Se é coisa que se faça! Esquecer-se assim da sua melhor amiga!
– Melhor amiga, sim, é verdade! Perdão, pe… er… dão! silva o principe fixando a attenção na Zina.
– A minha filha Zina! O principe ainda a não conhece! Não estava em minha casa quando aqui veiu pela ultima vez; lembra-se?
– Sua filha! É um encanto! um encanto! murmura o principe assestando ávido a luneta na Zina. – Mas que belleza; disse com visivel sobresalto.
– Serve-se de chá, principe? pergunta Maria Alexandrovna desviando a attenção do jarreta para um groom, parado defronte d'elle com uma bandeja.
O principe serve-se de uma chavena de chá e contempla o groom de bochechas rochonchudas e rosadas.
– Ah! ah! ah! É seu filho? Perfeito, muito perfeito! e… e… e… bem comportado, já se vê?
– Perdão, principe… accode pressurosa Maria Alexandrovna. Ainda estou toda a tremer… Com que, então, deu uma quéda? Não se magoaria? Não é prudente arriscar a sua pessoa em semelhantes aventuras!..
– Virou-se! virou-se! O cocheiro virou a carruagem commigo dentro! exclama o principe com extraordinaria animação. E eu, a pensar que era o fim do mundo ou coisa parecida. Os santos me perdoem: apanhei um susto… vi as estrellas ao meio dia, eu esperava lá!.. eu es… pera… va lá!.. E tudo aquillo, por culpa do meu cocheiro, do Pamphilio: entrego-te este negocio, meu amigo, has de tratar do inquerito… Estou convencido de que attentou contra a minha vida!
– Muito bem! muito bem, tiosinho! responde Pavel Alexandrovitch, fica a meu cuidado. Mas oiça lá; se lhe perdoasse por esta vez, hein, que lhe parece?
– Por caso nenhum! Tenho a certeza de que quiz dar cabo de mim, elle e mais o Lavrenty, que eu deixei lá em casa. Ora imaginem, encasquetaram-se-lhe as taes ideias novas, uma negação… que eu sei lá… e era um communista em toda a extensão da palavra. Quando me vejo a sós com elle… fico logo em suores frios.
– Ah! que verdade, principe! Não pôe na sua ideia o que eu tambem tenho aturado a esta sucia! Já despedi por duas vezes toda a creadagem. Que gente tão estupida! Anda uma pessoa a ralhar com elles de manhã até á noite.
– E… stá claro! Gosto de ver um lacaio que não fure paredes, observou o principe, satisfeito, como aliás succede aos velhos, de que lhes escutem com respeito a tagarelice, – é até a principal qualidade de qualquer lacaio… uma to… leima sincera… em certas occasiões. Incute-lhes uma certa imponencia… solemnidade! N'uma palavra, é mais distincto, e eu, a primeira qualidade que exijo a um serviçal é a distincção. É por isso, que conservo o Tarenty, estás lembrado do Tarenty, meu amigo? Assim que o vi, percebi-lhe a vocação: Has de ser porteiro. É phe… e-nome-nalmente es… tupido. Com aquelles olhos de carneiro mal morto: Mas que boa presença! que solemnidade! Em pondo a gravata branca, faz um figurão! Gosto d'elle deveras! Eu, ás vezes, ponho-me a olhar para elle, e não me canço de o ver: ali onde o vêem, está escrevendo um livro… É um verdadeiro philosopho a… al… lemão, o proprio Kant, ou antes, um, perú gordo e bem comido, um ser incompleto, tal qual cumpre a todo e qualquer se… er… viçal.
Maria Alexandrovna ri ás gargalhadas e bate palmas; Pavel Alexandrovitch faz côro: acha immensa graça ao tio. A Nastassia Petrovna ri tambem; e a propria Zina dá um ar de riso.
– Mas que graça, principe! que alegria! exclama Maria Alexandrovna. Que preciosa faculdade de observar ridiculos… E desappareceu o senhor da sociedade! Privar assim de um talento o mundo durante cinco annos inteiros!.. Mas podia até escrever comedias, principe! Podia muito bem restituir-nos Visine, Griboiedov, Gogol!
– É verdade, é verdade!.. confirma encantado o principe… eu podia restituir… Quer crêr? Eu d'antes tinha muita graça, até escrevi para o theatro um vô… ô… deville. Com umas coplas que eram uma delicia! Por signal que nunca foi representado.
– Que pena! Como havia de ser divertido? Sabes o que te digo, Zina, que vinha mesmo a proposito. Nós, justamente, principe, andamos a combinar umas récitas de amadores com um fim de beneficencia patriotica, em favor dos feridos… Vinha mesmo ao pintar o seu vaudeville.
– E… stá claro, estou prompto a escrevêl-o. De mais a mais, já nem me lembra uma palavra, mas tenho de memoria um ou dois trocadilhos que… (O principe beija as pontas dos dedos.) Eu, em geral, quando estava no estrangeiro… fazia um verda… deiro furor… Lembro-me de mylord Byron… fomos muito intimos… Dansava á maravilha a krakoviak no congresso de Vienna…
– Mylord Byron, meu tio? Ora vamos, que está para ahi a dizer!
– Está claro!.. Byron. E d'ahi, talvez fosse outro. Exactamente, era um polaco, lembro-me agora muito bem; um grande original, o tal polaco! Intitulava-se conde, e porfim, veiu-se a saber que era cozinheiro.
Mas dansava lindamente a krakoviak. Quebrou uma perna. Foi n'essa occasião, até, que lhe fiz estes versos:
O nosso conde polaco
Dansava a krakoviak
E d'ahi… já me esqueceu… ah!
Desde que partiu a perna,
Nunca mais pôde dansar.
– Sim, sim, deve de ser isso, rico tiozinho! exclama Mozgliakov, pôdre de riso!
– Está c-claro! Quer-me parecer que seria isto ou coisa que o valha. E d'ahi é possivel que não seja. O que lhes sei dizer é que os versos me saíram muito bons. Escapam-me certas coisas, tenho tanto que fazer!
– Mas, não me dirá, principe, pergunta com muito interesse Maria Alexandrovna, em que é que se occupa n'aquella sua solidão? Lembrava-me tanta vez do principe! Estou a arder de impaciencia por saber tudo por miudos…
– Em que é que me occupo! Ora essa… immensa coisa em que me occupar… em geral. Umas vezes descanso, outras vezes dou o meu passeio… a imaginar cá umas coisas…
– Deve de ter muita imaginação, rico tiozinho.
– Muita, meu caro. Ás vezes, acontece-me imaginar coisas de que eu proprio fico pasmado. Quando eu estava em Kadnievo… A proposito, tu não foste vice-governador em Kadnievo?
– Eu, tiozinho? Que está dizendo! Pelo amor de Deus! exclama Pavel Alexandrovitch.
– E eu a confundir-te com elle…
E dizia eu commigo: Por que será que elle está tão mudado?.. Porque o outro tinha uma phisionomia imponente, espirituosa… um homem extra-a-ordina… ria… mente intelligente. Compunha sempre versos… a proposito… De perfil, era tal qual um rei de copas.
– Acredite, principe, interrompeu Maria Alexandrovna, essa vida ha de deitál-o a perder, lhe juro eu! Encerrar-se durante cinco annos n'um ermo! Não ver, não ouvir pessoa alguma!.. Sabe o que lhe digo, o principe é um homem perdido! Pergunte a algum dos seus amigos, que lhe sejam fieis, e todos lhe dirão isto mesmo: é um homem perdido!
– De… de… vé-éras? arrasta o principe.
– Com certeza… Digo-lh'o como se fôra uma irmã, porque sou muito sua amiga, – pois que as recordações do passado, para mim são sagradas. Que interesse poderia eu ter em o enganar? Nada, nada, é preciso absolutamente mudar de vida, aliás, não resiste?..
– Valha-me Deus! pois eu hei de morrer, assim, tão depressa? exclama o principe, assustadissimo. E caso é que adivinhou: as minhas humorroides dão cabo de mim, e ha uns tempos para cá, principalmente… e quando me atacam as crises, tenho sin-tó-ó-mas es… espan… tosos… Eu já lhe vou contar tudo… por miudos…
– Deixe lá, tiozinho, contará isso tudo, para outra vez. Agora, não será tempo de irmos dar o nosso passeio?
– Pois, sim, vá lá, ficará para outra vez; e d'ahi talvez não interésse… Mas com tudo isso… é uma doença… extrê-ê-mamente interessante. Com uma tal variedade de episodios! Vê se me lembras, meu caro, contar esta noite, com todos os pormenores, uma certa particularidade das humorroides.
– Ora, escute, principe, atalhou ainda Maria Alexandrovna. Devia ir ao estrangeiro, para ver se se curava.
– É isso, é! Ao estrangeiro, absolutamente. Lembro-me de que, ahi por 1820, a gente divertia-se im-men-sa-mente no estrangeiro. Estive para casar com uma viscondessa, e era francêsa. Eu estava apaixonado por ella, e queria consagrar-lhe toda a minha vida. Que ella, aliás, casou com outro… Caso exquisito!.. Tinha estado em casa della não havia ainda duas horas, e foi n'este meio tempo que um barão allemão a conquistou. Veiu a acabar n'um hospital de doidos.
– Mas, caro principe, estavamos falando na sua saúde, e dizia-lhe eu que devia pensar n'isso muito a sério. Ha grandes medicos lá pelo estrangeiro. De mais a mais a mudança de ar, já por si, é importantissima. Terá que renunciar a Dukhanovo, por uns tempos, quando menos.
– Abso-o-lu-tamente! Já me conformei, tenciono tratar-me pela hy-dro… the… rapia.
– Pela hydrotherapia?
– Está claro! Foi isso mesmo que eu disse, pela hy… dro… the… rapia. Já me tratei pela hy… drotherapia. Estava eu nas aguas. Tambem lá estava uma senhora de Moscou, varreu-se-me o nome, uma mulher muito poetica, com setenta annos, ou coisa assim; tinha uma filha com uns cincoenta annos, e com uma belida n'um olho. Falavam ambas sempre em verso. Aconteceu-lhe um desastre! N'um fogacho de genio, matou o criado. Teve seus da-res e to… mares com a justiça. E como eu ia dizendo, puzeram-me no regimen da agua; que eu, ainda assim, não estava doente: mas se não faziam senão dizer-me "Trate de si! trate de si!" E eu, por delicadeza, puz-me a beber a agua e, effectivamente, senti allivio. Bebi, bebi, e tornei a beber! Acho que bebi um lago inteiro… É optima coisa a tal hy-dro-the-rapia. Dou-me muito bem. Eu, se não tivesse caído de cama, tinha passado lindamente.
– Lá isso é verdade, rico tio. Ora dize-me, rico tio, aprendeste logica?
– Valha-o Deus! Que pergunta? observa Maria Alexandrovna, escandalizada.
– Está c-claro, meu amigo… ha muito tempo, aqui para nós. Estudei philosophia, na Allemanha. Frequentei os cursos todos mas d'ali a pouco esqueceu-me tudo… Mas… confesso, metteu-me um tal susto no corpo com as taes do… enças que… fiquei atarantado… Eu volto já. Dêem-me licença!
– Aonde vae, principe? exclama, pasmada, Maria Alexandrovna.
– Não tardo aqui. Não me demoro… Vou apenas… assentar um pensamento… Até já…
– Que tal lhe pareceu? exclama Pavel Alexandrovitch, á gargalhada.
Maria Alexandrovna perde de todo a paciencia.
– Eu não o entendo, na verdade, não posso comprehender de que é que se ri! – começa ella com animação. Rir de um ancião respeitavel, de um parente! Rebentar a rir a cada palavra que elle solta da bôcca! Abusar d'aquella bondade evangelica! Tenho até vergonha de o ouvir, Pavel Alexandrovitch! Mas não me dirá o que é que lhe encontra de ridiculo? Ainda não fui capaz de lhe notar o lado ridiculo.
– Mas se nunca conhece ninguem, se não faz senão metter os pés pelas mãos!
– Ahi tem as consequencias do tal sequestro de cinco annos entregue á guarda d'aquella megéra! Devemos antes ter dó d'elle, em vez de rirmos á sua custa. Veja lá, nem a mim mesmo me conheceu, até! O senhor foi testemunha. Pois não é terrivel! É preciso salvá-lo. Eu, se lhe propuz ir ao estrangeiro, foi na esperança de que se resolva a largar de mão aquella… regateira.
– Sabe o que lhe digo, é preciso casál-o, Maria Alexandrovna.
– E o senhor a dar-lhe! É incorrigivel, senhor Mozgliakov.
– Não sou, acredite, Maria Alexandrovna, eu, d'esta vez, estou falando até muito a sério. Por que é que o não havemos de casar? É uma ideia como outra qualquer. Em que é que isso o pode prejudicar? No estado a que elle chegou, é um expediente que o pode salvar, creio eu. A lei ainda lhe permitte casar. D'esse modo, vê-se livre d'aquella desavergonhada, desculpe a expressão. Escolherá para ahi qualquer menina, ou qualquer viuva honesta, intelligente, carinhosa e pobre, sobretudo, que não deixará de o tratar como filha e que comprehenderá que lhe deve ser grata. Que coisa melhor lhe poderia acontecer? Um coração terno e fiel, em vez d'aquella… moita! Está claro que convem que seja bonita, pois o tio professa ainda o culto da belleza. Não viu os olhos que elle deitava á Zinaida Aphanassievna?
– E onde irá desencantar semelhante ideal? pergunta Nastassia Petrovna toda ella ouvidos.
– Não está má pergunta? A senhora, por exemplo, sem irmos mais longe… se me dá licença, perguntar-lhe-hei por que é que não ha de casar com o principe? Primeiro e segundo, porque é bonita, e viuva, ainda por cima. Terceiro, por que é fidalga. Quarto, por que é honestissima. Ha de amá-lo, amimá-lo, pôr na rua a tal carcereira, carregar com o principe para o estrangeiro, dar-lhe papinha e goloseimas… tudo isto até que chegue o dia em que elle diga adeus a este mundo de amarguras, o que tardará para ahi um anno, quando muito, ou um mez ou dois, quem sabe; depois fica sendo princesa, viuva, rica e, para compensar o trabalho, casa para ahi com um marquez qualquer, ou um general. É bonito, pois não acha?
– Ai! Deus meu! Que amor eu lhe havia de ter, por gratidão, quando por mais não fosse, se elle pedisse a minha mão! exclama Madame Ziablova.
Os olhos feriram-lhe lume, até.
– Mas, isso sim!.. são sonhos!..
– Sonhos? Tem empenho em que se realisem? Experimente, peça-me que lhe alcance essa pechincha. E corto desde já este dedo se hoje mesmo não fôr noiva do principe. Não ha nada mais facil do que persuadir o meu tio. Diz sempre a tudo, que sim. A senhora bem o ouviu, ha boccado. Casamol-o sem elle dar por isso. Enganamol-o, é verdade, mas se é para seu bem, pois não acha? Em todo o caso, a senhora do que devia tratar era de ir arranjando uma toilette á altura das circumstancias, Nastassia Petrovna.
A animação de Mozgliakov transforma-se em enthusiasmo. A Madame Ziablova, com o seu tino todo, está-lhe a crescer até agua na bôcca.
– Eu bem sei; nem é preciso que m'o lembre, que estou para aqui uma trapalhona… Pareço até uma cozinheira, pois não pareço?
Maria Alexandrovna está com um cara de palmo. Afoito-me a affirmar que ouviu a proposta de Pavel Alexandrovitch com uma pontinha de terror. Quer sim quer não, teve mão em si.
– Tudo isso é muito bonito, mas é um chorrilho de futilidades sem pés nem cabeça, e que não vem nada a proposito! disse, com sequidão, dirigindo-se ao Mozgliakov.
– Então por quê, minha querida Maria Alexandrovna? Por que é que diz que são futilidades fóra de proposito?
– O senhor está em minha casa, e o principe é meu hospede. Não consinto que ninguem se esqueça do respeito que se deve á minha casa! Tomo as suas palavras como mera brincadeira, Pavel Alexandrovitch; mas, ahi vem o principe, graças a Deus!
– Eu… c… cá… es… tou, guincha o principe ao entrar. É espantoso, querida amiga… que fecundidade com que acordou hoje este m… meu espirito! Ás vezes – talvez não acredites – mas acontece-me estar um dia inteiro sem me accudir um pensamento a esta cabeça…
– Seria a tal queda d'inda agora que lhe abalou os nervos…
– Tambem me quer parecer, meu amigo, ach… acho util, até, o tal accidente, tanto assim que estou resolvido a perdoar ao meu Pheophilo. Queres que te diga? – Palpita-me que não premeditará attentar contra os meus dias. E demais… já está bem castigado, cortaram-lhe as barbas.
– Cortaram-lhe as barbas! – Que me diz? Elle, que tinha umas barbas mais compridas que um principado allemão.
– Es… tá c-claro!.. sim… um principado. Em geral, meu amigo, são muito acertadas as tuas conclusões. Mas as barbas d'elle são postiças. Ora imaginem: Mandaram-me um catalogo: acabam de chegar do estrangeiro umas optimas barbas quer para cocheiros quer para gentlemen: suissas, barbas á hespanhola, pêras á império, etc.; tudo de primeira qualidade, por preços muito mó-mó-di… cos. E eu, então, encommendei umas barbas para cocheiro. Mandaram-m'as: Ma-a… gnificas! Mas a do Pheophilo era duas vezes mais comprida. E eu muito atrapalhado: que hei de eu fazer? Recambiar as barbas postiças, ou mandar rapar as do Pheophilo? Reflecti maduramente e resolvi em favôr das barbas postiças.
– Prefere a arte á natureza, rico tiozinho?
– Pois está claro!.. E que desgosto que elle teve quando se viu de cara rapada. Cada pêllo que lhe cortavam era um dia de vida que lhe tiravam. Mas não serão horas de sair, meu caro?
– Estou ás suas ordens, tio.
– Principe, ouso esperar que só irá a casa do governador! exclamou Maria Alexandrovna, muito sobresaltada. O principe, pertence-me, faz parte da minha familia, por todo o dia. Escusado é dizer, que não tenho nada que ensinar-lhe, pelo que diz respeito a Mordassov. Talvez queira ir fazer a sua visita á Anna Nikolaievna, e não tenho direito de o dissuadir de dar semelhante passo. Tanto mais que estou persuadida de que a sua propria experiencia lhe servirá de guia. Lembre-se de que, hoje, sou sua irmã, sua mãe e sua aia por todo o dia… Ah! Estou toda a tremer por sua causa, principe!.. O principe não conhece esta gente, não conhece, digo-lho eu… Não, que elle é preciso tempo para os conhecer.
– Deixe o caso por minha conta, Maria Alexandrovna, disse Mozgliakov; tudo se passará conforme lhe prometti.
– Entregar-me nas suas mãos, eu?.. O senhor é um estouvado? Cá o espero para jantar, principe. Costumamos jantar cedo. Que pena que eu tenho de que, n'esta occasião, meu marido esteja no campo! Havia de gostar tanto de o ver! Estima-o tanto! Dedica-lhe tão sincera amizade!