Kitabı oku: «Um club da Má-Lingua», sayfa 4
VI
A coronela Sofia Petrovna Farpukhina apenas suggere moralmente o tipo da pêga. Quanto ao phisico, participa antes do pardal. É uma mulherita cincoentona com sardas entre ruivas e amareladas pela cara e uns olhos que nunca param. O corpo ético, implantado sobre umas sólidas pernas de pardal, esconde-se por debaixo das amplas pregas d'um vestido escuro, de seda, em continuo restralar, visto como a coronela nunca póde estar quiéta. É uma linguareira ruim e vingativa, perde o tino com a seguinte ideia: "Sou coronela." Ella e o marido, coronel reformado, jogavam a unhada a toda a hora: elle ostentava no rosto os signaes das garras da consorte. Ella, préga no bucho com quatro copinhos de vodka, todas as manhãs, e outros tantos ao deitar. Vota um odio figadal a Anna Nikolaievna Antipova e á Natalia Dmitrievna Padknvina, que a sacudiram das suas salas, ha oito dias.
– Demoro-me apenas um instantinho, meu anjo, pia a dama; nem sequer me quero sentar. Traz-me aqui unicamente o desejo de lhe contar os singularissimos acontecimentos que se estão dando. O tal principe faz andar n'uma roda viva esta nossa Mordassov. Os nossos espertalhões – comprehende – não lhe largam o rastro, a farejál-o por todos os cantos, a puxál-o para todos os lados, obrigam-n'o a beber champanhe. Eu se o não visse não o acreditava. Como é que o deixou saír? Não sei se sabe que, n'este instante, está em casa da Natalia Dmitrievna?
– Em casa de Natalia Dmitrievna? exclama Maria Alexandrovna dando um pulo na cadeira. Mas se elle ia apenas fazer a sua visita ao governador e a casa de Anna Nikolaievna, e sem tenção de se demorar.
– Para se não demorar, isso sim! E agora, corra atrás d'elle!
Não encontrou em casa o governador, foi visitar a Anna Nikolaievna, e prometteu-lhe jantar com ella, e a Natachka5, bem sabe, que nunca sáe de casa, lá estava pespegada; carregou com elle para almoçar. E ahi tem o seu principe!
– Que me diz! E o Mozgliakov a prometter-me…
– Pois sim! O tal seu Mozgliakov a quem a senhora não se farta de pôr nas nuvens!.. Está em casa delles! Olho n'elle! Veja lá se o obrigam a jogar as cartas e principia para ahi a perder como succedeu o anno passado. E o principe é capaz de se deixar limpar que nem um prato. E que calumnias que ella inventa, aquella Natachka! A atordoar os ouvidos a toda a gente com a galga de como a senhora faz a côrte ao principe com o sentido em… com um certo sentido, não sei se m'entende? E pespega-lh'o a elle na cara, até; e elle sem perceber patavina, sentado para ali como um gato encharcado e a responder, a cada palavra: "Ah! Está claro, está claro!" E sabidas as contas é ella a propria que… Mandou saír a Sonka6. Ora imagine! Com quinze annos e anda ainda de vestido curto que mal lhe chega ao joelho; tambem mandou vir aquella orfã, a Machka,7 com um vestido ainda mais curto. Impingiram a ambas uns casquêtesinhos encarnados cheios de plumas, não sei para quê, e ao som do piano põem-se a dansar, aquelles dois espinafres, deante do principe, a Kozatchok.8 Ora a minha amiga está farta de conhecer o fraco ao principe! A babar-se todo: "Que… e… fó… órmas!" diz elle "… Que… e… fó… ó… órmas!" E a mirál-as pelo monóculo, e ellas com uns módinhos, as duas perúas! Todas afogueadas á força de levantarem a perna! E toda a gente a rir, faça ideia como e porquê!.. Que nojo! E chamam áquillo dansar! Aqui estou eu que dansei de chale, quando saí do collegio aristocratico de Madame Jarmé: fiz sensação, acredite… pela nobreza!
Fartaram-se até de dar palmas uns senadores. Estavam a educar nesse mesmo collegio filhas de principes e de condes. – Mas a tal Kozatchok, aqui para nós, é tal qual o Cancan! E eu com a cara a arder, de envergonhada! Não me pude conter…
– Mas, então… tambem estava em casa da Natalia Dmitrievna? A senhora? Cuidei que…
– Então que quer! Ella offendeu-me, a semana passada, e não me ensaiei para o pespegar a toda a gente. Mas que quer, minha amiguinha, se eu estava morta por ver o principe, ainda que fosse por uma greta da porta, e ahi tem por que é que lá fui, apezar de tudo, a casa da Natalia Dmitrievna; a não ser o principe, não era eu que lá tornava a pôr os pés! Ora imagine; servem chocolate a toda a gente, e a mim, nem raça, nem sequer abrem a bocca para me pedir desculpa! Ha de ter noticias minhas! Mas adeus, meu anjo, vou-me embora, estou com muita pressa… é-me indispensavel encontrar em casa a Apulina Panfilovna para lhe contar o caso. Ah! Pode-se desde já considerar viuva da lindeza do tal principe, não é elle que volta para sua casa. Está perdido da memoria, bem sabe, e a Anna Nikolaievna terá cuidado em o não deixar saír.
Estão com medo de que a minha amiga… todas ellas… não sei se percebe? a proposito da Zina…
– Que horror!
– É como lhe digo; já corre até por essa cidade. A Anna Nikolaievna não o deixa saír sem jantar e depois não o larga. Os planos d'ella são todos elles armados contra a senhora, meu anjo! Fui deitando o olho para o pateo: que reboliço! Prepararam um jantar com trinta entradas, mandaram vir champanhe. Quer um conselho? Veja se trata de lhe deitar a mão antes de que elle vá a casa d'ella. Não, que elle, pertence-lhe, é seu hospede! Não se deixe engazupar por aquella espertalhona, por aquella ranhosa! Não vale a sola de um sapato, lá com ser mulher de um procurador. E eu, aqui onde me vê, sou coronela, fui educada no collegio aristocratico de Madame Jarmé… Forte nojo! Adeus, meu anjinho, tenho o trenó á espera, se não fosse isso, fazia-lhe companhia.
E abalou a gazeta viva.
Maria Alexandrovna, desesperada, toda ella n'um tremor. Não padece duvida que o conselho da coronela é seguro e pratico; não ha tempo para perder, mas subsiste ainda a grande difficuldade.
Maria Alexandrovna investe para o quarto da Zina. A Zina andava ás voltas pela casa, de mãos no peito, muito enfiada, cabisbaixa, no auge da afflicção. Borbotavam-lhe nos olhos as lagrimas. Fulge-lhe porém no semblante uma expressão de decisão, assim que põe os olhos na mãe. Engole as lagrimas e refega-lhe os labios um risinho sarcastico.
– Mamã, diz ella, antecipando-se a Maria Alexandrovna, desperdiçou thesouros de eloquencia em minha honra, de mais, até, visto que me não conseguiu cegar a vista, e eu não ser nenhuma creança. Querer persuadir-me de que, eu, casando com o principe, ia praticar um acto de irmã de caridade, – profissão para que não sinto a minima vocação, – justificar mediante um nobre fim baixezas egoistas, tudo isso representa apenas o mais grosseiro egoismo, entendeu?
– Porém, meu anjo…
– Cale-se, mamã, tenha paciencia, e oiça-me até ao fim. Saiba, pois, que tenho a consciencia da sua hypocrisia. Estou pois plenamente convencida de que o verdadeiro fim de tudo isto é vil; e comtudo, acceito a sua proposta, completamente, mas completamente, entendeu? Estou prompta a casar com o tal principe, prompta a ajudar os seus esforços no sentido de o convencer a casar commigo. O motivo d'esta minha resolução, não é da conta da mamã, baste-lhe saber que me prontifico a tudo: ajudál-o-hei a enfiar as botas, serei sua creada, hei de dansar para que elle se não arrependa de ter casado commigo. Mas, em troca, peço-lhe que me diga, o modo por que pretende alcançar semelhante resultado. Não ponho em duvida, visto que se empenha n'este negocio, o facto da mamã ter já urdido o seu plano. Transmita-m'o, seja franca uma vez na sua vida, eis as minhas condições.
Maria Alexandrovna ficou tão embatucada, que emudeceu sem bulir com um dedo, com os olhos espipados. Contara com a lucta contra as ideias romanescas da filha, e ficou estupefacta ao vêl-a decidida a agir contra as proprias convicções. O negocio toma verdadeira consistencia. Maria Alexandrovna, lá por dentro, não cabe em si de contente.
– Zinotchka! exclama enthusiasmada, és a carne da minha carne e o osso dos meus óssos!
Nem uma palavra mais pode accrescentar, lança-se nos braços da filha.
– Ah! meu Deus! Dispense-me dos seus abraços, mamã! respondeu, enfadada, a Zina. É absolutamente deslocado esse seu enthusiasmo. Exijo uma resposta á minha pergunta, e nada mais!
– Mas, Zina, eu amo-te, adoro-te, e tu a repelires-me! É para te ver feliz que eu ando a trabalhar. E, dos olhos de Maria Alexandrovna borbotavam lagrimas sincéras. Effectivamente, ama a seu modo a Zina, e d'ahi, a commoção do triumpho torna-a tão sentimental como qualquer baba,9 áquelle general de saias. A Zina sente bem, a despeito de tudo, que a mãe é sua amiga; mas pésa-lhe semelhante amor, preferir-lhe-hia o odio.
– Pois bem! Não se zangue, mamã; sei muito bem o que vou fazer, se eu estou tão afflicta!.. disse para tranquillizál-a.
– Eu não me zango, não me zango, meu anjinho, cacarêja Maria Alexandrovna recuperando animo. Não deixo de avaliar a tua agitação. Mas não vês tu, querida amiguinha… tu pediste-me franqueza… Seja assim, serei franca, mas acredita-me. Lá quanto a um plano inteiramente definido, é coisa que ainda não tenho, nem o posso ter: tudo depende das circumstancias. Antevejo até algumas difficuldades.
… Se aquella pêga, aindagora, esteve-me para ahi a grasnar um chorrilho de pessimas noticias. (Ah! meu Deus! não tenho tempo para perder!) Serei pois franca: juro-te que hei de conseguir o meu fim. Não vás acreditar n'uma miragem qualquer, n'uma illusão; o meu plano assenta todo elle na toleima do principe, e representa isso uma talagarça em que se pode bordar tudo que se quiser. O mais importante é que nos deixem operar. E demais, essas fufias nada podem contra mim! exclama Maria Alexandrovna assentando um murro na mêsa. Tem confiança, mas cumpre operar depressa! Hoje ainda façamos o principal, se for possivel.
– Está bem, mamã; escute ainda… uma franqueza. Sabe o motivo porque tanto me interessa esse seu plano? É porque não estou segura de mim propria. Disse-lhe que me achava decidida a praticar semelhante baixeza. Mas se os pormenores d'esse seu plano forem repugnantes em demasia, desde já lhe declaro que me verei obrigada a desistir. Sei que será mais uma baixeza, o resignar-me a entrar no lodaçal e não ter animo de lá ficar. Mas que se lhe ha de fazer? Se não pode deixar de ser assim!
– Mas, Zina, meu anjo, onde é que tu vês n'isto baixeza? replica, timida, Maria Alexandrovna. Trata-se de um bom casamento, de uma coisa normal; encara as coisas d'este ponto de vista e verás que te ha de parecer muitissimo razoavel.
– Ah! mamã, pelo amor de Deus, nada de dissimulações para commigo! Estou prompta para tudo, bem vê; que mais quer? Não se escandalize, peço-lh'o eu, por eu dar ás coisas o nome que lhes compete: será, talvez, actualmente, essa a minha unica consolação.
E sorriu com tristeza.
– Ora vamos! Vamos! Está bom, meu anjinho; pode haver estima reciproca sem identidade de convicções. Quanto ao meu plano, tem a certeza em como te não irá salpicar de lama, isso te juro eu! Quererás talvez comprometter-me? Tudo ha de correr bem, com muita dignidade, até. Não ha de haver escandalo. E ainda quando o houvesse, n'esse caso, d'este ou d'aquelle modo… já nós estariamos d'aqui muito longe… diziamos adeus a Mordassov. E depois, essas gralhas que piassem para ahi até rebentar, já nos não fazia mossa. Merecem que façamos caso d'ellas, porventura? E como é que tu, Zina, tão soberba, podes arrecear-te de semelhante gente?
– Ah! mamã, a mim não me mettem medo, acredite! Não me entende! respondeu a Zina, irritadissima.
– Está bom, está bom, minha joia, não te zangues! Onde eu queria chegar era a que essa gentalha praticam vilanias a cada instante, e que tu… por uma só vez… Mas, que digo eu… sempre sou muita tola! Trata-se até de uma nobre acção! Depende tudo do ponto de vista…
– Basta, mamã, basta! exclama a Zina.
E bate o pé.
Deixa lá! meu anjo, não torno mais!
Silencio. Maria Alexandrovna fica a olhar pelas costas para a Zina, que seguiu por a casa fora com uma expressão de cachorro a olhar para a chibata.
– Nem sequer chego a perceber como é que tenciona dar-lhe volta, prosegue com enfado a Zina. Tenho a certeza de que o resultado que tirará será uma affronta. Pela parte que me toca, tanto se me dá, mas vae ter desgosto, creia.
– Ora! Se é só isso que te dá cuidado, vae descançada, meu anjo!
Comtanto que estejamos de accordo, quanto ao mais, pouco importa! Se tu soubesses os transes de que eu tenho escapado, sã e a salvo! Em summa, permitte-me fazer uma tentativa. É urgente que eu tenha quanto antes uma conferencia com o principe. Já estou adivinhando o que d'aqui sairá. De quem eu tenho medo é do tal Mozgliakov.
– Do Mozgliakov? perguntou a Zina com desdem.
– Do Mozgliakov, sim, pois que cuidas? Mas não te assustes, ainda assim, Zina, hei-de induzil-o a auxiliar-me, até. Nem tu sabes ainda quem aqui está, Zina! Ah! tão certa tenha eu a salvação, mas assim que ouvi falar no principe, accudiu-me logo semelhante ideia! Foi uma revelação. Quem havia de dizer que elle havia de vir parar a nossa casa! Bem podiamos estar cem annos á espera d'uma occasião d'estas! Ah! és tão linda, minha Zina! Que belleza! Olha, eu, se fosse homem, atirar-te-hia aos pés um reino! Sucia de asnos! Quem não ha de estar morrendo por beijar esta mãozinha? (Maria Alexandrovna, effusiva, beija a mão da filha.) É a carne da minha carne!.. É preciso casál-o dê por onde der, áquelle imbecil! E que bem viveriamos depois, Zina! Pois nunca nos havemos de apartar, não é verdade? Não pões na rua tua mãe, quando te vires feliz? Tivemos os nossos desaguizados, mas aonde irás tu encontrar outra amiga como eu? Eu, apezar de tudo…
– Mamã, se está resolvida, é tempo de fazer alguma coisa. Está perdendo minutos preciosos! disse a Zina, com impaciencia.
– E já vae apertando. Vae, sim, effectivamente. E eu aqui a dar á lingua! Querem açambarcar o principe! Vou já a correr. É já; mando chamar o Mozgliakov e carrégo com o principe, á força, se fôr preciso. Adeus, Zinotchka! Adeus, meu amor, minha pomba! Não te desconsoles, não desanimes, não estejas triste. Então!.. Tudo ha de correr com dignidade, com muita, até. Tudo está no modo de encarar as coisas. Emfim! adeus, adeus!
Maria Alexandrovna faz o signal da cruz á Zina e sae. Investe para o quarto, detem-se um momento em frente do espelho e, d'alli a dez minutos, lá vae rodando por essas ruas de Mordassov, na carruagem de patins (já dissemos que Maria Alexandrovna vivia á larga.)
– Não, não são vocês que podem luctar de esperteza commigo! A Zina annue, e já é meio caminho andado! Não ser bem succedida! Que asneira! Ah! Zina, com que então, ha calculos que influem no teu animo? Commovi-a fazendo-lhe luzir deante dos olhos um risonho porvir… Como ella estava linda, hoje! Ora, tivera eu sido tão formosa, e haveria revolvido, até, meia Europa. Em summa, paciencia, esperemos. O tal Shakspeare ha-de-lhe passar assim que ella se vir princêsa… E que princêsa não ha de ser!.. Gosto de a ver assim; tão soberba, tão senhora de si!.. Tem uns olhos de rainha!.. Como é que ella poderia deixar de conhecer que ia n'isso o seu interesse? – Até que emfim percebeu-o! Ficarei vivendo em sua companhia, e ha de consentir em tudo que eu quiser. É princêsa? pois tambem eu! Hão-de falar de mim, em Petersburgo, até… E adeus… cidadezinha da asneira! O principe e o garoto hão-de ir marchando d'esta para melhor, e eu, caso-a com uma testa coroada! Ha só uma coisa que me mette medo: não terei usado para com ella excesso de franqueza? Assusta-me! Assusta-me deveras!
E engolfa-se em suas cogitações Maria Alexandrovna.
Assim que se viu entre quatro paredes, a Zina poz-se ás voltas no quarto, de mãos atráz das costas, a pensar. E não lhe faltava em quê, com certeza! E a revezes e quasi inconscia repetia: "é urgente, é urgente, ha já muito tempo que devia estar feito!" Que quereria dizer aquella exclamação? Por mais de uma vez as lagrimas lhe refulgiram n'aquellas pestanas tão longas e sedeúdas. Nem pensava, sequer, em as enxugar. A mãe fazia mal em estar-se inquietando! A Zina achava-se disposta para tudo…
"Eu te direi, deixa estar! pensou a Nastassia Petrovna ao saír do seu cadoz da farrapada depois de se haver retirado a coronela. E eu com tenções de pôr uma gravata côr de rosa por causa do tal principe! Sempre sou bem tola! A enfeitar-me para casar com elle! Ora, uma gravata depressa se põe! Deixa tu estar, minha Maria Alexandrovna! Com que então, eu, sou uma pécora, uma miseravel? Acceito duzentos rublos para arrombar uma bocêta! Pois já se vê, não deixar escapar a occasião!.. E demais… eu se o fiz foi por ser generosa, pois ainda tive que fazer despêsa… Eu te direi! Hei-de-lhes fazer ver a ambas se sou uma pécora ou se o não sou! Hão de aprender a lidar com a Nastassia Petrovna!
VII
Maria Alexandrovna, comtudo, deixava-se arrastar pelo proprio talento. Concebeu um plano grandioso quanto audaz. Casar a filha com um ricaço, com um principe e um moribundo; casál-a sem que ninguem o soubesse, aproveitando a senilidade do seu hospede, era não só ousadia, mas imprudencia, até. Não havia duvida, o projecto era seductor, porém, em caso de malogro, poderia vir a reverter para o autor n'uma confusão sem antecedentes. Maria Alexandrovna bem o sabia, mas não era mulher para recuar.
– Tenho-me visto em peores lances, dissera ella á Zina, e era verdade. E seria uma heroina, se assim não fôra?
Certamente, o projecto tinha seus visos de bandoleirismo á mão armada; Maria Alexandrovna não era, porém, mulher para se prender com taes ninharias. Resumia o caso n'um dito muito acertado: "uma pessoa não fica para sempre casada." Era simplicissima semelhante ideia, mas apresentava á imaginação tamanhas vantagens, que Maria Alexandrovna era a propria a assustar-se.
Como mulher de recursos, dotada de legitima faculdade creadora, urdiu o seu plano n'um revez de mão. É certo que apenas se lhe pintiparava na mente a largos traços, um tanto vagos, até. Escasseavam pormenores e havia que contar com circumstancias imprevistas. Maria Alexandrovna tinha porém confiança em si mesmo. Não era o malogro que lhe mettia medo, lá isso, não; o que a sobresaltava, era a impaciencia em encetar a lucta. A impaciencia, a nobre impaciencia minava-a, ao pensar nos possiveis obstaculos.
As mais sérias difficuldades, antecipava-as Maria Alexandrovna por parte dos seus nobres concidadãos de Mordassov, e acima de tudo, da nobre sociedade das damas Mordassovenses: Conhecia, por experiencia propria, até onde ia o odio de semelhante gente. Nem sequer punha em duvida, já se vê, que n'aquelle ensejo toda a gente lhe avaliava as intenções, supposto que ninguem houvesse dito ainda uma palavra fosse a quem fosse. Sabia, á força de triste experiencia, que não havia um unico acontecimento, por mais secreto que fosse, referente á sua vida, que, dando-se pela manhã, não andasse á noite na lingua de todas as mexeriqueiras. Maria Alexandrovna, pois, antevia apenas o perigo, esta casta de presentimentos, porém, que jamais a haviam enganado, não a enganariam ainda d'esta vez.
Eis, effectivamente, o que succedera, e de que ella ainda não tinha conhecimento. Pela volta do meio dia, isto é, tres horas, minuto por minuto, depois de haver chegado o principe a Mordassov, corriam pela cidade uns boatos algo singulares. Qual teria sido o ponto de partida? Ninguem o sabia, mas caso é que se espalharam acto continuo.
Afiançava toda a gente que Maria Alexandrovna já tinha promettido a mão da filha, da sua Zina, com vinte e tres annos e sem um kopek de dote, ao principe: que o Mozgliakov tinha sido posto a andar e que estava tudo resolvido e assignado.
Qual era a causa de semelhantes boatos? Tão bem conheciam Maria Alexandrovna que lhe tivessem adivinhado, com tão perfeita unidade, os mais intimos pensamentos? Nem a inverosemelhança de um tal boato, visto como um projecto d'aquelle genero se não leva a effeito no espaço de uma hora, nem a falta evidente de todo e qualquer fundamento, pois ninguem sabia d'onde partira a noticia, puderam dissuadir os Mordassovenses. O mais surprehendente, era o haver-se principiado a espalhar o boato no proprio ensejo em que Maria Alexandrovna encetava aquella sua conversa com a Zina a semelhante respeito. Tal é o faro dos provincianos! O instincto dos novelleiros das cidadécas attinge por vezes as raias do maravilhoso. E todavia, o caso explica-se. Baseia-se no estudo intimo e perseverante do proximo. Todo o provinciano vive debaixo de uma redoma de vidro, como se disséssemos. É-lhe absolutamente impossivel esconder seja o que fôr aos seus honrados concidadãos. Sabem a seu respeito aquillo que elle é o proprio a ignorar. O provinciano, de sua natureza, devia de ser um psicologo profundissimo. E eis o motivo porque eu ás vezes pasmava sincéramente d'encontrar na provincia tão poucos psicólogos e tanto imbecil! Mas ponhamos isso de banda.
Estoirou a noticia tal qual o raio. O casamento com o principe antolhava-se tão vantajoso a toda a gente, tão brilhante, que a face extranha d'aquelle negocio a todos escapou. Dava-se ainda uma circumstancia: A Zina era tão odiada ou mais ainda que a propria Maria Alexandrovna; e por quê? Ninguem o sabia. Entraria talvez em linha de conta a formosura da Zina, talvez pelo facto de Maria Alexandrovna, apezar de todos os pezares, ser, muito mais do que a filha, da mesma massa das outras Mordassovenses. Ausentasse-se ella da cidade, e quem sabe, é possivel que deixasse saudades. Dava animação á sociedade mediante incidentes variados. Sem ella aborrecer-se-hiam. Por outro lado, a Zina, pela sua attitude, parecia pairar nas nuvens e não em Mordassov. Não era da mesma raça, e talvez, inconsciamente, até, tivesse uns modos demasiado altivos. E eis que esta mesma Zina, ácerca de quem corria tanta historia escandalosa, aquella soberbona, apparecia millionaria, princêsa e entrava no rol da aristocracia. Dentro de um ou dois annos, talvez, vem a enviuvar e casa para ahi com algum duque, ou algum general, e quem sabe, com o governador, e coincide exactamente o estar viuvo e o ser grande admirador da formosura o governador de Mordassov. Desde então virá a ser a primeira senhora da provincia, e um tal pensamento, só por si, era intoleravel, nem haveria noticia capaz de provocar tanta indignação em Mordassov.
Estrugiam por todos os lados clamores de raiva. Diziam que era indigno; que o jarreta não tinha o juizo todo; que o tinham enganado, embaído; que urgia livrál-o da soffreguidão d'aquellas garras; que, apuradas as contas, era immoral, – uma ladroeira! Que não faltavam meninas valendo tanto como a Zina e em condições de casar com o principe.
Todas estas exclamações e estas linguarices eram apenas supposições da parte de Maria Alexandrovna, e já era demais. Estava farta de saber que toda a gente se achava prompta a praticar o possivel e o impossivel, até, para se oppôr a seus projectos. Pois não haviam confiscado o principe e não tinha agora que o reconquistar a unhas e dentes? E d'ahi, dado ainda o caso de que ella lograsse tornál-o a agarrar e trazêl-o outra vez para sua casa, não poderá comtudo têl-o preso a toda a hora. Em summa, quem é que lhe podia affiançar que hoje, ainda, dentro em duas horas, o côro solemne em peso das damas de Mordassov se não terá congregado na sua sala, e a pretexto de ordem tal que se torne impossivel recebêl-as? Se ella lhes fechar a porta, entram-lhe pela janella. Em conclusão, não se podia perder um instante, e todavia, nada estava feito ainda.
De subito, eis que brota na mente de Maria Alexandrovna, e amadurece do mesmo jacto, uma ideia genial. Referir-nos-hemos á dita ideia em logar competente: n'este ensejo, a nossa heroina lá ia rodando a toda a pressa através das ruas de Mordassov, tremenda e inspirada, decidida a dar batalha para reconquistar o principe. Nem sequer sabia o alvitre que esposaria nem onde o iria encontrar; mas sabia com certeza que mais depressa devia afundar-se Mordassov do que falhar-lhe um unico de seus projectos.
Do seu primeiro passo não podia saír-se melhor. Encontrou o principe na rua e carregou com elle para jantar.
Se me perguntarem o modo porquê, cercada por tantas ciladas armadas contra si, conseguiu pôr o nariz a uma banda á Anna Nikolaievna, declaro que considero esta pergunta offensiva para Maria Alexandrovna. Deteve o principe no acto d'este estar á porta da casa da sua rival, e a despeito de tudo, a despeito até das objecções do proprio Mozgliakov, receoso de um escandalo, atirou com o ginjinha para dentro do trem. Era n'isto exactamente que Maria Alexandrovna levava as lampas ás suas rivaes. Nos lances decisivos, não se detinha em presença de um escandalo, tendo como axioma que o exito a tudo justifica. Escusado será dizer que o principe não oppôz resistencia de maior, e como sempre esqueceu-se de tudo e ficou muito contente da sua vida.
Ao jantar, não fez senão dar á lingua, muito alegre, a fazer trocadilhos, a contar anecdótas que nunca concluia e passando de uma para outra sem dar por isso. Tinha bebido tres copos de champanhe em casa de Natalia Dmitrievna. Ao jantar, bebeu mais alguns e ficou alegrinho. Maria Alexandrovna era a propria a lhe não deixar nunca o copo vazio.
Eram irreprehensiveis as iguarias, aquelle ladrão do Nitichka esquecera-se de as chamuscar. A dona da casa desvelava-se em electrizar os seus hospedes com os enlevos da sua amabilidade. A Zina, comtudo, mantinha gélido silencio, e o Mozgliakov nem por isso estava nos seus dias. Comia pouco, estava muito preoccupado, a pensar; e, coisa que raras vezes lhe succedia, Maria Alexandrovna estava inquieta. A Nastassia Petrovna, mazomba, fazia ás escondidas signaes ao Mozgliakov e este sem dar por tal. A não serem Maria Alexandrovna e o principe, haveria descambado em jantar de enterro.
E comtudo, Maria Alexandrovna encobre intima afflicção: assusta-a a Zina, com aquelles seus modos tristonhos, de olhos vermelhos. E demais, o tempo não sobeja, e Mozgliakov, esse obstaculo material, está para alli como um marco de pedra. Ergue-se da mêsa Maria Alexandrovna, minada por funda inquietação. Mas qual não é o seu espanto, deixem-me assim dizer, quando vem ter com ella o Mozgliakov e lhe declara, que sente muito, mas que se vae retirar immediatamente!
– Aonde é que vae, então? indaga ella, com simpatia.
– Eu lhe digo, Maria Alexandrovna, enceta o Mozgliakov atrapalhado, aconteceu-me um caso um tanto esquisito… Nem sei até como lh'o diga… Mas, pelo amor de Deus, dê-me um conselho.
– Que é, diga lá?
– Meu padrinho, o Borodoniev… conhece, aquelle commerciante… encontrei-o hoje… está irritadissimo, dirigiu-me exprobações, diz que sou um soberbo. Com esta é a terceira vez que venho a Mordassov sem ir para sua casa. "Vem hoje, me disse elle, tomar uma chavena de chá commigo". São quatro horas em ponto, e elle toma o chá, á antiga, ahi pelas cinco horas, depois da sésta. Que quer que lhe eu faça… Eu avalio, Maria Alexandrovna… Mas colloque-se no meu logar! Foi elle que teve mão em meu pae que se queria enforcar, quando perdeu aquelle dinheiro do Estado!.. Foi n'essa occasião, por signal, que elle insistiu em ser meu padrinho. Se fôr a effeito o meu casamento com Zina Aphanassievna, bem sabe que disponho apenas de cento e cincoenta almas, ao passo que elle é millionario, e mais que isso, até, segundo affirmam. Não tem filhos. Se eu estiver a bem com elle, pode deixar-me cem mil rublos. Ora elle está com setenta annos, lembre-se d'isto!
– Ah! meu Deus! Mas então que é que o prende? Por que está para ahi a marralhar? exclama Maria Alexandrovna, disfarçando a custo o contentamento. Vá-se embora, vá! Com essas coisas não se brinca! E era por isso então que estava tão absorto durante o jantar? Vá, meu amigo, não se demore! Mas devia de ter ido vêl-o esta manhã para lhe provar que aprecia a sua benevolencia. Ai! esta mocidade!
– Mas, se Maria Alexandrovna tem sido a propria a arguir-me de semelhantes relações! Tudo era dizer-me que era um mujik, parente de taberneiros e agentes de negocio!
– Ah! meu amigo, quanta coisa se diz sem pensar! Tambem sou sujeita a enganar-me. – Não me tenho na conta de infallivel. E d'ahi… não me recordo… mas… é possivel que eu me achasse numa tal disposição de espirito… em summa, o senhor não tinha ainda formulado o seu pedido. Certamente, que houve da minha parte egoismo maternal, mas agora devo encarar as coisas de um ponto de vista novo. Qual seria a mãe que m'o levasse a mal? Vá e não perca um instante. Passe a noite com elle… e oiça lá! Fale-lhe a meu respeito, diga-lhe que o tenho em muita conta, que sou muito sua amiga… Proceda com habilidade. Ah! meu Deus! Tinha-se-me varrido de todo. E era eu que lh'o devia ter lembrado.
– Resuscitou-me, Maria Alexandrovna! exclama Mozgliakov encantado. E agora obedecer-lhe-hei em tudo e por tudo. E eu sem me atrever a falar-lhe n'isso! Pois bem, adeus! vou-me embora. Desculpe-me para com a Zinaida Aphanassievna. E d'ahi, hei de voltar.
– Receba a minha benção, meu amigo. E não se esqueça de falar a meu respeito. Effectivamente, é um velho estimabilissimo. Ha muito tempo que mudei de opinião a seu respeito. E demais, eu sempre o estimei na qualidade de Russo dos bons tempos, tão despido de artificios. Até mais ver, meu amigo, até mais ver!
"Foi uma fortuna carregar com elle o demonio! Que estou dizendo, foi o proprio Deus que veiu em meu auxilio."
Pavel Alexandrovitch estava já no vestibulo a enfiar a chuba, eis que rompe por alli dentro, saída não se sabe d'onde, a Nastassia Petrovna.
– Aonde vae? diz, agarrando-o pela mão.
– A casa do Borodoniev, Nastassia Petrovna, a casa do meu padrinho. Coube-lhe a honra de me baptizar. Um velho rico, um padrinho de quem se herda, um homem que se deve amimar.
– A casa do Borodoniev! Pois diga adeus, desde já, á sua noiva, disse com sequidão Nastassia Petrovna.
– Como assim?
– Assim mesmo. Suppõe que a tem segura? Isso sim! Vae, mas é casar com o principe.
– Com o principe. Que me diz, Nastassia Petrovna?!
– Que me diz, quê? – Quer ver com os proprios olhos e ouvir com os proprios ouvidos? Pendure para ahi a chuba, e venha commigo.
Pavel Alexandrovitch, aturdido, atira para o lado a chuba e deixa-se levar para o quarto escuro, cuja porta dá para a sala.