Kitabı oku: «Um club da Má-Lingua», sayfa 6
– Comprehendo essa sua pergunta, Pavel Alexandrovitch, é clarissima. Suppõe que estou fazendo uma confusão jesuitica dos interesses do principe com os meus. Pois bem, é possivel que me tivesse atravessado pela mente semelhante calculo, inconscientemente, porém, e sem resquicios de jesuitismo. Espanta-o esta minha franqueza? Peço-lhe apenas uma mercê, Pavel Alexandrovitch: não involva a Zina n'este negocio! Está pura que nem uma pomba. Não calcula; sabe apenas amar, pobre pequena! Se houve alguem que calculasse, esse alguem fui eu, e só eu! Indague, porém, sinceramente da sua consciencia e diga-me quem seria que no meu logar não haveria calculado? Calculamos os nossos interesses, as nossas mais generosas acções, até, sem darmos por isso, instinctivamente. Pois; se enganam, quantos alarmam que procedem movidos por pura nobreza de alma. Eu, porém, não quero enganál-o. Confesso que calculei. Mas, sempre quero que me diga, seria levando em vista o meu interesse pessoal? A mim, Pavel Alexandrovitch, que mais me será preciso? Vivi o meu seculo12, calculei para bem d'ella, do meu anjo, da minha filha: e qual será a mãe que m'o lance em rosto?
As lagrimas inundavam o rosto de Maria Alexandrovna.
Pavel Alexandrovitch tem escutado com pasmo semelhante confissão: latejam-lhe as palpebras, esforça-se por comprehender.
– Qual seria a mãe, sim! diga lá!.. pergunta elle, em conclusão.
Mas cae em si, acto continuo, e:
– Canta lindamente, Maria Alexandrovna, mas tinha-me dado a sua palavra, tinha-me alentado a esperança… Como posso eu supportar semelhante coisa? Terei que engulir a propria vergonha!
– E acredita talvez que não pensei no senhor, meu querido Pavel? Pelo contrario, em todos os meus calculos, o senhor tinha a sua parte. Ouso dizer, até, que foi por sua causa que eu emprehendi este negocio.
– Por minha causa! exclama Mozgliakov, desnorteado, d'esta vez. Como assim?!
– Meu Deus! Como é que se pode ser tão simples, ter vistas tão limitadas! exclama Maria Alexandrovna erguendo as mãos ao ceu. Esta mocidade! O tal Shakspeare! E ahi tem o que elle lhe arranjou, aquelle sonhador, aquelle phantasista! Viver da intelligencia e dos pensamentos alheios! E o senhor a perguntar —meu bom Pavel Alexandrovitch, qual é n'este caso o seu interesse. Para maior clareza, consinta-me uma leve digressão. A Zina ama-o, é incontestavel Mas tenho notado que, a despeito do seu manifesto amor, o caracter de Pavel Alexandrovitch, as suas aspirações lhe tem incutido uma tal ou qual desconfiança. Por vezes, e como que de caso pensado, contêm-se, é fria para com o senhor. Eis o resultado das reflexões que a levaram a desconfiar. Pois não reparou tambem n'isto que lhe estou dizendo, Pavel Alexandrovitch?
– Reparei, sim, hoje ainda. Mas que quer dizer com isso, Maria Alexandrovna?
– Bem vê, o senhor foi o proprio a reparar n'isso: logo, não me enganei. E acima de tudo, foi a estabilidade do seu caracter, a sua constancia o que mais duvidas lhe incutiu. Sou mãe, e não havia de conhecer o coração de minha filha! Ora imagine agora que, em vez de entrar aqui com exprobações, e até com injurias, em vez de a irritar, de a offender, de a melindrar, a ella tão bella, tão pura e soberba, e por esse facto, a despeito ainda da sua vontade, ir tornar-lhe mais firme a desconfiança com respeito ás suas inconstancias; supponha que acceitava com brandura a noticia, com lagrimas de magua, com desespero, até, mas com dignidade…
– Hum!
– Mau! Não me interrompa. Pavel Alexandrovitch. Quero expôr-lhe um quadro que possa ferir-lhe a imaginação. Ora imagine que ia ter com ella e lhe dizia: "Zina, amo-te mais que a propria vida, mas afastam-nos umas razões de familia. Comprehendo essas razões: trata-se da tua ventura e não me atrevo a insurgir-me contra ella. Perdôo-te, Zinaida; sê feliz se puderes!" E dito isto, lhe lançava uns olhos, uns olhos de cordeiro nas vascas da agonia, se me é licita a expressão. Ponha tudo isto na sua ideia e calcule o effeito que haveria produzido uma scena assim no coração della!
– Pois sim, Maria Alexandrovna, supponhamos tudo isso – É certo que eu podia ter me expressado d'esse modo… mas nem por isso deixaria de voltar pelo mesmo caminho com um não pelas ventas.
– Não, não, e não, meu amigo. Não me interrompa! Quero acabar de pintar-lhe o quadro para que no animo lhe produza uma impressão nobre e completa. Imagine, pois, que a vinha a encontrar; d'ahi a tempos, na alta sociedade, num baile illuminado à giorno, ao som de uma musica enebriante, no meio de um sem numero de beldades, e, no melhor da festa tão deslumbrante, o senhor, para alli, sósinho e triste, a scismar, pállido, encostado para alli, algures, a uma columna, mas de modo a dar nas vistas; o senhor a seguil-a com os olhos na vertigem da dansa; ao pé do senhor a vibrarem os divinos accordes de Strauss. Fuzila por todos os lados nas conversas o espirito da alta sociedade; e o senhor sósinho, enfiado, melancholico, immerso na propria paixão.
Considere – em que estado ficará a Zina quando o vir! E com que olhos o não ha de ella contemplar! "E eu," pensará ella, "que duvidei d'aquelle homem! Tudo me sacrificou! Despedaçou o proprio coração por minha causa!" Certamente, o seu amor de outr'óra resuscitar-lhe-hia lá dentro com força irresistivel.
Deteve-se Maria Alexandrovna para cobrar alento. Mozgliakov a barafustar na cadeira, que por pouco não estoira de todo. Maria Alexandrovna prosegue:
– A Zina, por causa da saude do principe, parte para o estrangeiro, para Italia ou para Hespanha, o paiz das murtas, dos limoeiros, do azulino céu do Guadalquivir, o país do amor, o país onde se não pode viver sem amar, onde as rosas e os beijos adejam por assim dizer no ar. E o senhor vae atrás d'ella, compromette a sua situação, as suas relações, tudo!.. E principia então o seu romance de amor: amor, mocidade, Hespanha… Deus meu!.. É certo que será platonico o seu amor, puro… mas o senhor… em summa, enlanguescem a contemplarem-se um ao outro… Espero que me haverá comprehendido, meu amigo? – Não faltarão, por lá, entes soêzes, vis, miseraveis para affirmar que não foi a lembrança do seu parentesco com o velho que o arrastou ao estrangeiro. Muito de proposito me referi ao platonismo do seu amor; não ignoro que haverá quem lhe atribua differente significação.
Mas sou mãe, Pavel Alexandrovitch e seria incapaz de o impellir para mau caminho!.. É claro que o principe os não poderá vigiar a ambos; isso que importa, comtudo? Poder-se-ha fundar n'isso semelhante accusação?
Até que por fim, morre o principe abençoando o proprio destino. Ora diga-me quem é que depois ha de casar com a Zina, a não ser o senhor? É parente tão afastado do principe que o parentesco nunca poderia representar um impedimento ao consorcio. Acceita-a, joven, rica, princêsa, e em que ensejo? Quando os mais nobres senhores se poderiam ufanar da sua alliança! Por causa d'ella, entra na mais alta sociedade; obtêm um posto de summa importancia, promoções. Diz o senhor que dispõe de cento e cincoenta almas? Mas depois será rico. O principe não deixará de fazer um testamento nos termos, por isso lhe respondo eu. E em conclusão, o principal, é o ella estar segura dos seus sentimentos e o senhor vir a ser para ella um heroe pela virtude e pela abnegação. E ainda me pergunta, onde vae n'isto o seu interesse? Tem-n'o deante dos olhos, a contemplál-o, a rir-se para o senhor, e a dizer-lhe: "Aqui me tens!" Ora vamos, Pavel Alexandrovitch!..
– Maria Alexandrovna! exclama Pavel Alexandrovitch, a tudo fiquei percebendo, agora! Portei-me como homem grosseiro, vil, reles!..
Levanta-se com vivacidade e puxa pelos cabellos ás mancheias.
– E como homem inconsiderado, accrescenta Maria Alexandrovna, inconsiderado, eis o que o senhor é!
– Sou um asno, Maria Alexandrovna! exclamou com desespero o môço. E agora, está tudo perdido! E eu que a amava com loucura!
– É possivel que não esteja tudo perdido, declara Madame Moskalieva, baixinho, como quem está reflectindo.
– Ah! se fosse possivel! Ajude-me! aconselhe-me! Valha-me! E pôs-se a chorar o Mozgliakov.
– Meu amigo, diz em apiedada voz Maria Alexandrovna e estende-lhe a mão, – praticou esse seu acto no ardor do seu affecto, estava exasperado, nem sequer tinha consciencia do que fazia. E ella não deixará de o avaliar.
– Amo-a com loucura e estou prompto a sacrificar-lhe seja o que for! clama o Mozgliakov.
– Ora escute, justifica-lo-hei aos olhos d'ella.
– Maria Alexandrovna!
– Sim, fica tudo por minha conta: collocál-os-hei em presença um do outro. E o senhor diz-lhe tudo tal qual eu acabo de lh'o dizer.
– Ah! meu Deus! Que bondade a sua, Maria Alexandrovna!.. Mas… não seria possivel procedermos a isso desde já?
– Deus nos defenda! Sempre é muito estouvado, meu amigo! Ella, então, que é tão soberba! Ia tomar isso como uma nova insolencia, um ultraje, até! Eu arranjarei tudo, e não ha de passar d'amanhã; agora, comtudo, vá se embora, vá até casa do tal negociante, ou para onde lhe apetecer… Ou, se, antes quer, volte esta noite, mas não serei eu que lh'o aconselhe.
– Vou m'embora! vou m'embora!
Meu Deus! Resuscitou-me! Mas uma pergunta, ainda: e se o principe não morre tão cedo?
– Valha-nos Deus! Sempre é muito ingenuo, meu caro Pavel! O senhor o que deve é rogar a Deus que conserve os dias d'aquelle vélhito, todo elle bondade, carinho, cavalheirismo! Devemos desejar-lhe longa vida, de todo o coração! E eu serei a primeira; noite e dia, com lagrimas, a rezar pela ventura de minha filha! Mas, ai de mim! A saude do principe, coitado, quer me parecer que está muito abalada! E demais, elle não deixará de fazer a sua visita á capital, de levar a Zina aos bailes, e receio muito, muito, acredite, que isso concorra a dar cabo d'elle! Orêmos, porém, meu caro Pavel, e quanto ao mais, entreguêmo-nos nas mãos de Deus! Espére, arme-se de paciencia, seja viril, e viril, acima de tudo! Nunca puz em duvida a nobreza dos seus sentimentos… Aperta-lhe com força as mãos, e o Mozgliakov sáe do aposento em bicos de pés.
– Até que em fim! Vi-me livre de um imbecil! diz com ares de triumpho. E agora vamos aos outros… Abre-se a porta e entra por ali dentro a Zina. Vem mais pallida do usual; fulgem-lhe os olhos com febril clarão.
– Mamã, veja se acaba com isto, que eu estou, que já nem posso mais; é tão nojento tudo isto que me vem tentações de fugir por ahi fora. Não me faça padecer por muito mais tempo, não me irrite! Este lodaçal causa-me engulho, entendeu?
– Zina, que tens tu, meu anjo?.. Estiveste escutando á porta! exclama Maria Alexandrovna olhando de fito para a filha.
– Escutei, é verdade. – Veja se m'o quer lançar em rosto, como o fez aquelle imbecil? Juro-lhe que se porfiar em obrigar-me a representar semelhante papel em tão vergonhosa comedia, renuncío a tudo, e acabo com tudo, com uma só palavra. Não ha duvida que me resolvi a prestar-me á principal vilania, mas foi por me não conhecer a mim mesma; atabáfo com semelhante vergonha!
E sae atirando com a porta.
Maria Alexandrovna segue-a com a vista e fica a scismar.
"É andar ligeira, depressa! É de si que depende tudo, e em si que consiste o maior perigo, e se esses miseraveis porfiarem em se colligar contra nós, se principiam para ahi a dar á lingua, tudo está perdido! E ella não poderá resistir contra tantas arrelias e acabará por entregar-se mediante uma rejeição. Custe o que custar e sem demora, urge carregar para o campo com o principe. Prego commigo lá, n'um pulo, e carrégo com aquelle estafermo do senhor meu esposo para aqui. Sequer ao menos sirva para alguma coisa! E assim que o outro accordar, safamo-nos."
Toca a campainha.
– E então! a parêlha? pergunta ao creado que entra.
– Está prompta, ha que tempos, responde o criado.
(Maria Alexandrovna mandou pôr o trem no acto de acompanhar o principe ao quarto d'este.)
Veste-se á pressa e corre ao quarto da Zina para lhe transmitir o seu plano e dar-lhe as devidas instrucções. A Zina, comtudo, nem lhe quer dar ouvidos, debruçada no leito com o rosto enterrado no travesseiro ensopado de lagrimas; a arrancar com as niveas mãos os compridos cabellos; tem os braços nus até ao cotovêlo. Saccóde-a, a revézes, um estremeção. A mãe dirige-lhe a palavra, sem que a Zina consinta em erguer a cabeça.
Maria Alexandrovna insiste por instantes, depois, sae, inquietissima. Sobe para a carruagem e recommenda que espertem a parelha.
"O peor de tudo", vae ruminando comsigo, "é a Zina ter ouvido a conversa que eu tive com o Mozgliakov. Empreguei com ella e com elle quasi que os mesmos argumentos; ella é orgulhosa e offender-se-hia, talvez… Hum! o que a tudo sobreleva, é a necessidade de por mãos á obra, antes de que conste seja o que fôr! Que desgraça! E se eu, para mais ajuda, não fosse encontrar em casa aquelle meu imbecil?!"
Ante esta hypothese, enraivece-se, toma-se de um rancor que nada vaticina de bom para Aphanassi Matveich. E Maria Alexandrovna impaciente, a esfervilhar!
Os cavallos despedem a galope.
X
A carruagem não corre, vôa.
Dissémos que, n'aquella mesma manhã, emquanto ella andava em procura do principe, por todos os cantos da cidade, já havia accudido á mente de Maria Alexandrovna um alvitre genial: era o confiscar por sua vez o principe quanto antes, e pregar com elle no campo; – n'aquella aldeia onde floria em paz o beatifico Aphanassi Matveich. Ia pois realizar aquella sua inspiração. Mas não encubramos ao leitor que principiava a sentir-se atribulada por uma inquietação inexplicavel. Aos proprios heroes acontece outro tanto, e no ensejo, justamente, em que estão prestes a atingir seus fins. Advertia-a um qualquer instincto de que havia perigo na permanencia em Mordassov.
"Uma vez no campo, vire-se tudo isto pés, com cabeça, que a mim tanto se me dá!"
É certo, que ainda no proprio campo, não ha tempo para perder: tudo poderá acontecer, tudo… E n'essa conformidade, Maria Alexandrovna acha-se resolvida a concluir immediatamente o consorcio. O cura da aldeia procederá á ceremonia na propria residencia. D'alli a dois dias, no outro dia, talvez, em caso de urgencia. Quantos casamentos se não tem visto, aldravados para alli em duas horas! Quanto ao principe, é levál-o a acceitar como necessidade de bom sizo uma tal precipitação, semelhante ausencia de toda e qualquer festa. "Será mais decente e mais nobre"… Poder-se-hia até seduzil-o pelo lado romanesco do negocio e fazer-lhe vibrar assim a fibra sentimental do coração. Enebriál-o-ha, se tanto fôr necessario, mantêl-o-ha n'aquelle estado de embriaguez, e a Zina ha de ser princêsa.
Se houver algum escandalo lá por Petersburgo ou por Moscou entre a parentéla do principe, consolações não hão de faltar. Em primeiro logar, são coisas que ainda estão para vir; em segundo, Maria Alexandrovna está convencida de que, na alta sociedade, nada se faz sem escandalo, e muito mais tratando-se de casamento: que é estilo. Mas os escandalos da alta sociedade, a seu ver, tem uma côr mui particular de grandiosidade, no genero do Monte-Christo e das Memorias do Diabo. Finalmente, a Zina bastar-lhe-ha mostrar-se, e a mãe ajudál-a com seus conselhos, e toda a gente ficará desarmada, acto-continuo, entre todas aquellas condessas e princêsas, não havendo uma só que seja capaz de resistir á mordassoviana habilidade de Maria Alexandrovna, sósinha contra todas ellas juntas ou contra cada uma em particular.
E é animada por semelhante pensamento que Maria Alexandrovna vem ter com Aphanassi Matveich o qual lhe é necessario, segundo seus planos.
Effectivamente, levar o principe para o campo é levál-o para casa de Aphanassi Matveich com quem o principe é possivel não se dar lá muito de travar conhecimento: mas se Aphanassi Matveich fôr o proprio a convidál-o, o caso muda de figura. E demais, a apparição de um chefe de familia, de edade veneranda, de gravata branca, casaca, chapeu na mão, acorrendo expressamente das suas propriedades, á noticia de que se acha em Mordassov o principe K… é caso para produzir optimo effeito no amor proprio d'aquelle ginjinha.
Até que por fim, havendo tragádo três verstas a carruagem, o cocheiro Safron pára junto ao patim de um comprido edificio com um unico andar, casarão de madeira, com uma extensa fieira de janélas, e envolto n'umas tilias venerandas. É a residencia estável de Maria Alexandrovna.
Já se acham illuminadas as janélas.
– Onde está o manequim? clama Maria Alexandrovna caíndo como uma trovoada, no vestibulo. Que faz aqui esta toalha? Ah! estava aborrecido, e ainda não saiu do banho! E sempre n'aquelle fadario do chá! E então! Para que estarás tu para ahi a esbogalhar esses olhos, meu idiota incuravel? Por que é que se não corta esse cabello?!
Grichka! Grichka! Por que é que não cortaste o cabello ao barine conforme te dei ordem, a semana passada?
Maria Alexandrovna premeditára operar em casa de Aphanassi Matveich uma entrada menos violenta. Mas ao vêl-o entretido a sorver o seu cházinho, com toda a sua pachorra, não foi senhora de sopitar a indignação. Para ella, tamanhos cuidados, e para elle, para aquelle ente inutil, aquella paz podre! Semelhante contraste chóca de modo cruel Maria Alexandrovna. E todavia, o manequim, ou para nos expressarmos com mais urbanidade, aquelle a quem applicam o ápodo, está sentado em frente do samovár; inerte, bôcca e olhos escancarados, petrificado, quasi, pela apparição da consorte. O adormecido vulto do Grichka assoma ao vestibulo. O Grichka tosqueneja os olhos durante toda esta scena.
– Se elle não deixa… E ahi esta porque é que o não fiz, profere em voz encatarroada e socarrôna. Peguei na tesoira para ahi umas dez vezes, e a dizer-lhe: A barinia não tarda por ahi e apanhamos ambos a nossa conta! – E vae elle e diz-me: – Não – espera ahi: quéro que me frizes no domingo; e é preciso para isso que o cabello tenha comprimento.
– Muito me contas: Com que então elle, friza-se? Inventaste então essa obra dos frizados, assim que eu virei costas?
Que termos são esses? Cuidas talvez que embellezas assim essa tua cabeça de idiota? Santo Deus! Que desordem que por aqui vae! E que cheiro! Não me dirás, miseravel, d'onde provém semelhante cheiro? vociféra a consorte a crescer de mais em mais ameaçadora para o innocente e assarapantado de todo Aphanassi Matveich.
– Ah… mi-minha mãezinha, balbucía o esposo sem se erguer e desfechando sobre o seu generalissimo uns olhos assustados e suplices, mi… mi… minha mãezi…
– Quantas vezes não tenho eu tentado encaixar-te n'essa cabeça de burro que não sou tua mãezinha, pedaço de pygmeu? Como te atreves a tratar por semelhante nome uma senhora nobre cujo logar é na alta sociedade, e não ao pé de um aguadeiro da tua laia?
– Mas, Maria Alexandrovna, tu com tudo isso não deixas de ser minha mulher em face das leis! e eu… estou-te falando… na qualidade de marido! Objecta Aphanassi Matveich, levando a um tempo a mão aos cabellos para os defender.
– Ah! Carranca! Cêpo! Se já se viu! Mulher d'elle em face das leis!.. Que quererá dizer uma mulher em face das leis? Haverá na alta sociedade alguem que empregue semelhante termo de seminarista: – em face das leis? – E quem te deu o atrevimento de me recordares que sou tua mulher, a mim que faço quanto posso para o esquecer? E para que estavas tu a tapar a cabeça com as mãos?
Olhem para este cabello! Todo encharcado! Não está enxuto estas tres horas mais chegadas! Como hei de eu carregar com elle? Haverá meio de o arrancar d'aqui? – Que hei de eu fazer? Maria Alexandrovna péga ás carreiras pela casa fóra, a estorcegar as mãos. A desgraça é nulla e facil de remediar, não ha duvida, mas se ella não pode ter mão n'aquelle seu genio imperial, impaciente em presença do minimo impecilho! Sente que precisa de desabafar a colera na pessoa de Aphanassi Matveich, visto como a sua habitual tirannia desandou para si em necessidade. E depois, toda a gente sabe o acervo de inopinadas grosserias de que são capazes, longe das vistas dos mirones, uns certos entes delicados e pechósos da sociedade mais graúda. Aphanassi Matveich, estupido e tremelica, cança a vista a seguir com os olhos as evoluções todas da consorte.
– Grichka, exclama esta por fim, traze já, já, ao barine tudo que é preciso para se vestir de ceremonia, calça, casaca, gravata e colete, brancos. Vá, despacha!
Onde iria parar a escova do cabello?
– Mas se eu acabo de sair do banho, minha mãezinha, vou apanhar algum resfriamento…
– Qual historia!..
– Estou com a cabeça encharcada!..
– Ênxuga-se. Grichka, escova o cabello ao barine, até que enxugue. Com mais força… mais… ainda mais… Assim!
O fiel e zeloso Grichka esfréga, com quanta força tem, o seu barine a quem, para mais commodidade, agarrou pelo cachaço, encostando-o para trás no divan.
Aphanassi Matveich por pouco não desata a chorar.
– E agora, em pé!.. Vê se o levantas, Grichka, dá cá a pomada…
– Vá, abaixas-te ou não, miseravel!
Abaixa-te, já te disse, meu papa jantares.
Maria Alexandrovna com as proprias mãos besunta a grenha ao marido, puxando sem dó nem consciencia pelos cabellos, bastos e grisalhos que elle, por sua desgraça, não deixou cortar. Aphanassi Matveich põe-se a gemer, a suspirar e aguenta, Deus sabe como, semelhante provação.
– Miseravel! Foste tu que murchaste as flores da minha mocidade!.. Abaixa mais essa cabeça, não ouves! Abaixa-te!
– Mas como é que eu murchei as tuas flores, minha mãezinha? regouga o esposo de bruços no divan.
– Manequim! Nem sequer percebeste a allegoria! Agora vê se te penteias.
– Grichka, veste-o depressa, anda!
A nossa heroina senta-se n'uma poltrona a vigiar com olhos de inquisidor a ceremonia indumentaria.
Aphanassi Matveich lá conseguiu tomar folego, e, quando se chegou ao laço da gravata, afoita-se a ponto de emittir opiniões ácêrca do feitio e da perfeição da laçada. Em conclusão, assim que envergou a casaca, a distincta personagem tem reconquistado de todo o aprumo e pega a rever-se ao espelho com manifesto desvanecimento.
– Mas para onde é que tu me levas, Maria Alexandrovna? indága, a fazer moquenquices á propria imagem.
Maria Alexandrovna hesita em acreditar n'aquillo que ouviu.
– Não ouvem isto? Ora o manequim! E como te atreves tu a perguntar-me para onde é que eu te lévo?
– Mas já se vê que o devo de saber, minha mãezinha.
– Caluda! Torna-me tu a tratar de mãezinha, e muito mais no sitio aonde vamos, e ficas sem chá um mês inteiro.
O marido, espavorido, nem bole sequer.
– Se já se viu? Nem sequer conseguiu apanhar a mais réles condecoração?
Colherão de marmita! – exclama ao contemplar com desprezo a casaca do marido, casaca virgem de toda e qualquer insignia.
Até que por fim, Aphanassi Matveich sente-se melindrado.
– Eu não sou colherão de marmita, sou conselheiro, minha mãezinha, pondéra com assômo de nobre indignação.
– Quê – quê – quê? – A raciocinar, por mais que me digam! Ora o mujik, o ranhoso! Tenho pêna de me faltar tempo para te ensaboar esse bestunto, quando não… Mas não as perdes, deixa estar!.. Grichka, dá-lhe o chapéu e a chuba13. Assim que eu saír, arruma estes três quartos e o quarto aberto. Vá, pega n'essa vassoira! tira as capas aos espelhos, aos relogios e quero tudo prompto em menos de uma hora! E tu, tambem, veste a casaca, e dá luvas aos criados! Ouviste, Grichka? Ouviste?
Sobem para a carruagem. Aphanassi Matveich está com uma cara espantada. Maria Alexandrovna dá voltas ao miolo para lhe encasquetar na cabeça e na memoria as recommendações mais essenciaes, elle, porém, interrompe-lhe as suas cogitações.
– Maria Alexandrovna, eu esta noite tive um sonho tão exquisito, diz, após breve silencio.
– Ápre! Manequim de uma figa! E eu que estava a pensar!.. Como te atreves tu a vir-me para cá com esses teus sonhos de mujik? Escuta, e olha que t'o digo pela ultima vez, se te atreveres, hoje, a fazer a minima allusão aos taes sonhos ou ao quer que seja… toma sentido… nem sei o que ha de ser de ti! Escuta bem: o principe K… está hospedado em nossa casa. Lembras-te do principe K…
– Se lembro! minha mãezinha, lembro-me muito bem! E por que é que elle nos dispensou tamanha honra?
– Cala-te, não é da tua conta! Tu, com a maxima amabilidade, e como dono de casa, vaes convidál-o a vir comnosco para o campo. Partimos ainda hoje. Mas se lhe disseres uma palavra só que seja, em toda a noite, ou amanhã… ou no outro dia… ou em toda a roda do anno, mando-te guardar gansos! Nem palavra! São essas as tuas funcções – e mais nada! Intendeste?
– Mas se me fizerem perguntas?
– Não importa! Cálas-te.
– Pois sim, mas uma pessoa nem sempre pode ficar calado, Maria Alexandrovna!
– Responde com monosylabos, um hum!… ou coisa que o valha, para que fiquem na persuasão de que és homem espirituoso e que reflectes antes de responder.
– Hum!..
– E atenta bem n'isto que te estou dizendo. Carrégo comtigo: ouviste falar do principe, e acto-continuo, doido de contente, deste-te pressa em vir apresentar-lhe os teus respeitos e convidál-o a ir para o campo. Percebeste?
– Hum!
– Para que estás tu já a dizer: hum! meu parvalhôco! Responde.
– Está bom, minha mãezinha, tudo se fará á medida dos teus desejos. Mas, não me dirás por que é que eu tenho que o convidar?
– Quê, quê? pois ainda te mettes a raciocinar?! Que tens tu com isso? E ainda te atreves a fazer-me perguntas?
– Mas… é que eu, por mais que faça não posso perceber como é que eu o hei de convidar sem dizer palavra!
– Eu falarei por ti, e tu, fazes-lhe a tua cortesia, e mais nada, percebeste? – De chapeu na mão…
– Percebi… minha mãe… Maria Alexandrovna.
– O principe é espirituosissimo: diga elle o que disser, ainda quando se não dirija á tua pessoa, responde-lhe a tudo com um sorriso bonacheirão e alegre, percebeste?
– Hum!
– E elle a dar-lhe com o hum! Vê se acabas com o tal hum!– a mim, responde-me ao que eu te perguntar. Percebeste?
– Percebi, Maria Alexandrovna, percebi muito bem. E como é que eu não havia de perceber? Mas estou a dizer hum! para me ir exercitando. O que tu queres é que eu me ponha a olhar para o principe, com um ar de riso… mas quando elle não me vir?
– Forte espantalho! Forte idiota! Cala-te, cala-te, e cala-te! Olha e sorri.
– Mas se elle é capaz de suppor que sou surdo!
– Olhem a desgraça! Sequer ao menos não ficará sabendo que és um imbecil.
– Hum! E se mais alguem me fizer perguntas?
– Ninguem t'as faz, deixa estar! E demais, não estará lá ninguem. E se por infelicidade, do que Deus nos defenda, apparecer alguem e te perguntarem alguma coisa, responde desde logo com um sorriso sarcastico. Sabes o que vem a ser um sorriso sarcastico?
– Uma careta muito espirituosa, pois não é verdade, minha mãezinha?
– Eu te darei o espirituoso, deixa estar, manequim! E quem é que te iria suppor capaz de ter espirito, meu asneirão? Um risinho de escarneo, percebeste? De escarneo e de desdem.
– Hum!
– Ai! Estou toda eu em suores frios por causa d'este estafermo! murmura Maria Alexandrovna. Não ha mais que ver, acho que fez uma jura em como me havia de murchar de todas as minhas flores! Teria sido muito melhor o prescindir delle.
A raciocinar por esta forma, Maria Alexandrovna tudo é olhar pela vidraça do trem e atiçar o cocheiro. Voam os cavallos, e ella a achar que se não mexem. Aphanassi Matveich, alapardado a um canto, a repetir mentalmente a lição. Até que emfim a carruagem alcança a casa de Maria Alexandrovna! Mas ainda bem a nossa heroina não tinha posto pé no patim, eis que vê passar ao lado do seu proprio trem um trenél coberto, de dois assentos, o trenél da Anna Nikolaievna Antipova. – Vinham n'elle duas senhoras. Uma dellas é a propria Anna Nikolaievna Antipova, a outra a Natalia Dmitrievna, duas amigas sinceras e recentes. Maria Alexandrovna olha para ellas, e o coração dá-lhe um báque. Ainda bem não abrira a bocca para exclamar, eis que chega outra carruagem, com outra visitante. Ouvem-se alegres exclamações.
– Maria Alexandrovna com o Aphanassi Matveich… ambos no mesmo trem! Feliz coincidencia! E nós que vinhamos passar a noite em sua casa! Agradabilissima surpreza!
As visitantes galgam a escada a pipilarem que nem andorinhas, Maria Alexandrovna contempla-as, estupefacta.
– E não vos tragar o chão! diz, lá comsigo; cheira-me isto a conluio… Pois sim!.. vocês o que não tem é unhas para luctar commigo, minhas amiguinhas!.. Esperem um nadinha!..