Kitabı oku: «Um club da Má-Lingua», sayfa 5
– Mas que quer isto dizer! Nastassia Petrovna, não percebo patavina.
– Perceberá assim que ouvir. A comedia não tarda a principiar.
– Qual comédia?
– Chiton! Não fale tão alto! Qual comédia? E é o senhor que paga as despêsas; andam a enganál-o; esta manhã, assim que o senhor saíu com o principe, a Maria Alexandrovna pôz-se a apoquentar de dôr d'ilharga a Zina, mais de uma hora, com o sentido em persuadil-a a aceitar para marido aquelle jarreta d'engonços. Dizia ella que não havia nada mais facil do que era o enredál-o. Propunha uns taes alvitres que a mim propria me causavam asco. Ouvi-os d'aqui, a Zina annuiu. E que cama lhe não fizeram ao senhor, ambas de duas! Tem-n'o na conta de um imbecil, e a Zina declarou formalmente que não casava com o senhor por coisa nenhuma d'este mundo. E eu, tão tola, que já me estava até enfeitando para pôr ao pescoço uma gravata côr de rosa!
Mas escute! escute!
– Se assim é… é uma infamia! murmurou Pavel Alexandrovitch, esparvoado, fitando olho a olho a Nastassia Petrovna…
– Mas escute! Vae ouvir o bom e o bonito!..
– Escutar onde?
– Debruce-se se ali n'aquella frincha da porta.
– Mas… Nastassia Petrovna, eu sou lá homem que me ponha a escutar ás portas?!
– Emprega bem o seu tempo! Aqui, meu paezinho, é preciso metter a honra na algibeira. Desde que cá veiu, escute…
– Comtudo…
– Se não quer, resigne-se a ficar a chuchar no dedo! E a mim que me importa? Eu com dó do senhor, e o senhor com ceremonias! Será para mim que eu ando a trabalhar? Eu, por mim, já nem cá fico esta noite.
Pavel Alexandrovitch, muito contra sua vontade, encosta o ouvido á fisga da porta. Referve-lhe o sangue nas arterias. Não percebe uma palavra de quanto em volta de si se está dando.
VIII
– Com que, então, divertiu-se muito, principe, em casa da Natalia Dmitrievna? indaga Maria Alexandrovna, deitando olhar soffrego para a futura prêsa.
(Enceta de proposito as hostilidades do modo mais innocente. De commovida, tem o coração aos pulos.)
Depois de jantar, transferiram o principe para a sala onde este havia entrado pela manhã. O ginjinha, com lastro de seis copos de champanhe, já não conserva equilibrio. Em compensação, não cessa de badalar. Maria Alexandrovna percebe que é apenas uma excitação de momento e que o hospede, d'alli a nada, ferra comsigo a dormir. Cumpre pois aproveitar a occasião. Nota com jubilo que o voluptuario ginjinha dispara á Zina uns olhares de gula. Rejubilam os seus maternaes sentimentos.
– Ex-trê-ê-ma-mente! e, não sabe? é uma mulher incom-pa-ra-á-vel… aquella Natalia Dmitrievna, uma incompa-ra-vel mulher!
A despeito dos muitos cuidados, aquelles louvores tributados á rival fazem sangrar o ciume a Maria Alexandrovna.
– Ora vamos, principe! exclama com os olhos a ferir lume, se essa sua Natalia Dmitrievna é uma mulher incomparavel, tapa-me a boca, mas é preciso que o principe conheça muito mal esta nossa sociedade! Não passa tudo de um alarde descarado de sentimentos ausentes, comédia, verniz, oiro ao de cima.
Erga uma pontinha ás apparencias, e encontrará um verdadeiro inferno escondido por baixo das flores, uma ninhada de viboras promptas a tragál-o.
– De-vé-ras! Estou pa-a-asmado!
– Sou eu que lh'o digo! Ah! meu principe! Ora escute, é a Zina! Assiste-me o dever – e a tanto me vejo obrigada – de contar ao principe uma aventura ridicula que se deu a semana passada, com aquella Natalia Dmitrievna – lembras-te? – Sim, principe, com aquella Natalia a quem tanto admira.
Ah! meu caro principe, affirmo-lhe que não sou mexeriqueira, mas devo contar-lhe isto unicamente para lhe dar uma amostra viva e irrisoria da nossa sociedade.
Haverá quinze dias veiu visitar-me essa tal Natalia Dmitrievna. Estavam servindo o café, e eu tinha que sair. Lembro-me muito exactamente das pedras de açucar que ficaram no meu açucareiro de prata: estava cheio. Volto, e que hei de eu ver? Restavam apenas tres pedrinhas. Ora, a Natalia Dmitrievna tinha ficado sósinha! Que me diz a isto?
Tem casa, dinheiro, tudo que lhe apetece… É comico e pequenino, pois não acha? – E por aqui já pode avaliar o que é esta nossa sociedade em Mordassov.
– De-ve-ras? – É uma gulodice… sobre-natural! Mas como é que ella pôde engulir um açucareiro?
– E ahi tem a sua mulher incomparavel, principe; se já se viu uma vergonha assim? Eu por mim estou que antes queria morrer, do que resolver-me a praticar um acto tão nojento!
– Está c… claro!.. está… claro! – Mas ainda assim – sempre lhe digo, que é uma linda mulher!
– Quem? A Natalia Dmitrievna! Ora vamos, principe, ella o que é é uma pipa. Ah! principe, principe, que está dizendo? Sempre fiz outra opinião do seu bom gosto!
– Está – c… claro – uma pipa! – Mas ainda assim – sempre lhe digo que é bem feita; e depois, aquella pequer… rucha que dansava… essa tambem é… bem feita.
– A Sónitchka? Ora! Uma pequena! Tem apenas quatorze annos.
– Está… claro! – mas ainda assim… é tão leve… e com umas formas… tão… geitozinhas!.. E a outra que dan… sou com ella?
– Ah! aquella serigaita d'aquella orphã, principe?
– Está claro – orphã! É porquinha, – devia ao menos ter lavado as mãos, – mas é sedu-u-ú-ctora.
E o principe, emquanto vae falando, não despega, com crescente avidez, o monóculo do semblante da Zina.
– Mas… que… linda… me… nina! tartamudéa… meio estarrecido…
– Zina, vê se tocas alguma coisa, ou antes… canta. Canta que é uma delicia, principe; chega a ser uma virtuose, ouso affirmál-o, uma verdadeira virtuose. E se soubesse, principe, prosegue a meia voz Maria Alexandrovna emquanto Zina se approxima do piano, com aquelle seu andar, lento e cadenciado, que põe num sobresalto o jarreta, e se soubesse a que ponto é amoravel, como é carinhosa para commigo! Que coração! Que sentimentos!
– Está claro! Sentimentos! E se quer que lhe diga… ainda não conheci senão uma mulher que se lhe possa comparar como formosura, responde o principe a engulir a saliva, é a condessa Naniskara; que Deus tem. Já lá vae ha trinta annos. Que mulher! Que maravilhosa formosura! Casou com o cozinheiro.
– Com o cozinheiro, principe!?
– Está claro – o cozinheiro, um francez, no estrangeiro. – E arranjou-lhe lá no estrangeiro um titulo de conde. Um homem muito instruido, com uns bigodinhos.
– E como é que viviam, e onde, principe?
– Está claro – viviam muito bem! E d'ahi, não tardou muito que se não apartassem. – Elle roubou-a e safou-se. Quer-me parecer que jogaram as cristas lá por causa de um môlho.
– Que queres que eu toque, mamã?
– Por que não cantas, antes? Se soubesse como ella canta, principe! Gosta de musica?
– Está c… laro! Um encanto – um encanto! Gosto immenso de musica! Co… onheci muito Beethoven, no estrangeiro.
– Beethoven! Ora imagina, filha, o principe conheceu Beethoven! clamou Maria Alexandrovna, maravilhada. Ah! principe, pois devéras, conheceu Beethoven?
– Está c… laro: Eramos intimos amigos. Tinha o nariz sempre atulhado de rapé… Que sujeitinho tão ratão!
– Quem, Beethoven?
– Está c… laro, – Beethoven? E não seria talvez Beethoven… mas sim outro qualquer. Ha muito allemão, por toda a parte… Que eu, afinal, parece-me que estou equivocado.
– E que hei de eu cantar, mamã?
– Ah, Zina! Canta-me aquella romança, não te lembras? Aquella que tem um accento tão cavalheiresco: a castellã e o seu trovador – Ah principe, sou doida pelos assuntos cavalheirescos! Os castéllos! aquelle viver mediéval! Trovadores, arautos! Festas e torneios!.. Vou te fazer o acompanhamento, Zina… Sente-se aqui, mais perto, principe! Ai! os castéllos, os castéllos!
– Está c… laro! os castéllos… tambem gosto de cas… tellos, repete o principe assestando na Zina o olho solitario: Mas… santo Deus! que romança!.. Estou a conhecêl-a… Ha que tempos… que tempos que a ouvi… recorda-me… ah! meu Deus!..
Não me incumbo de dizer o que foi que succedeu ao principe, quando a Zina entrou a cantar. Cantava uma romança francêsa, muito antiga e que estivera em moda, nos seus tempos. A Zina cantou a primor. A voz pura de contralto ia direita ao coração. O lindo rosto, os magnificos olhos, os dedos fusiformes a voltarem as folhas, os bastos e negros cabellos, tão lustrósos, o seio afflante, a sua pessoa féra e linda, toda ella, concorria tudo a enfeitiçar o pobre do gêbo. Não despegou os olhos de cima d'ella emquanto ella esteve a cantar. Suffocava de commovido. Aquelle senil coração, esquentado pelo champanhe, pela musica e pelas reminiscencias, palpitava cada vez com mais força, e como não havia palpitado ha tanto tempo! Estava a ponto de chorar quando ella acabou.
– Oh! minha linda menina! exclamava, a beijar-lhe os dedos, estou encantado! – E só agora é que me lembro… mas… mas… Oh! minha linda menina!..
O principe nem foi senhor de concluir.
Maria Alexandrovna sentiu haver chegado o momento psicologico.
– Para que anda a dar cabo de si, principe? – encetou com solemnidade. Quantos sentimentos, quantas forças vitaes, quanta riqueza moral lhe não resta ainda? E com tudo isso, foi emparedar-se por toda a vida num carcere! Fugir do mundo! Das amizades! É imperdoavel! Pense bem, principe! Encare a vida, como se dissessemos, com uns olhos limpidos! Lembre-se do passado, da sua aurea juventude, dos seus dias sem cuidados. Resuscite esse passado, resuscite-se a si proprio! Volte a viver entre a sociedade dos vivos: vá até ao estrangeiro… á Italia, á Hespanha, principe, á Hespanha. Precisava de um guia, de um coração que lhe tivesse amor, que o estimasse e que lhe fosse simpathico.
Pois bem! O principe tem amigos, appelle para elles e virão em monte. Cá estou eu que seria a primeira a dar de mão a tudo, e a deitar a correr para acudir ao seu chamado! Não me esqueço da nossa antiga amizade, principe! Deixaria, até, meu marido, se estivesse mais nova, e fosse tão formosa como minha filha, fazia-me sua companheira, sua amiga, sua mulher, até, se o desejasse.
– Estou certo de que, nos seus tempos, deve de ter sido uma mulher encantadora, disse o principe a assoar-se.
Tinha os olhos arrazados de lagrimas.
– A nós proprios sobrevivemos nos nossos filhos, principe, responde effusiva Maria Alexandrovna. Tambem eu tenho o meu anjo da guarda, a amiga dos meus pensamentos, do meu coração, principe! Rejeitou até agora sete pedidos de casamento, por se não querer apartar de mim.
– E por conseguinte, vae comsigo quando me ac… com… ompanhar ao estrangeiro? Sendo assim, irei para o estrangeiro… está resolvido… exclama o animadissimo principe. – Absolutamente!.. E se eu pudesse lison… jear-me com a es… pe… rança… Mas é uma menina po… rtentosa, portentosa! Ah! minha linda menina!
E o principe volta outra vez a beijar os dedos á Zina. Tentou até ajoelhar-lhe aos pés, o pobre do homem.
– Então!.. então, principe, ia dizendo que se pudesse lisonjeál-o a esperança?.. agarrou no ar Maria Alexandrovna, sentindo brotar-lhe novo accesso de eloquencia. Que homem tão singular é o principe!.. Não se considera então digno da attenção das mulheres! A formosura não consiste apenas na mocidade! Lembre-se de que é uma reliquia da aristocracia russa! É o representante dos mais refinados, dos mais cavalheirescos sentimentos, e das mais requintadas maneiras! E a Maria não amou o Mazeppa10 porventura? Li algures que Lauzun, um marquêz seductor da côrte de Luis… não sei quantos… já velho, conquistou uma das mais supinas beldades do seu tempo!.. E demais, quem foi que lhe metteu em cabeça que já era velho? Quem se atreveu a afirmál-o? Homens como o senhor envelhecerão jámais, porventura? O principe, tão opulentamente dotado de sentimento, de alegria, de espirito, de força vital, de tão delicadas maneiras! Fosse o principe para ahi a qualquer estação balnear com uma mulher joven, com uma beldade como a Zina, para não irmos mais longe, – e eu lhe diria que effeito colossal não havia de produzir, o senhor, reliquia da nossa aristocracia; ella, uma belleza de rainha! Ella, com aquelle seu pisar majestatico, de braço dado com o principe, a cantar n'uma sociedade aristocratica; o principe, pela sua parte, a fuzilar ditos de espirito! Era caso para acudirem os banhistas em pêso a fazer-lhe côrte! Dava brado por toda essa Europa! Pois teria a seu favor os jornaes, todos elles folhetins, e surgia um grito unanime: "Principe! Principe!"
E o senhor a dizer: "Pudesse eu lisonjear-me com a esperança?"
– Os jornaes… está claro, está claro!.. Os folhetins… balbucia o principe, que não percebeu nem metade do aranzel de Maria Alexandrovna e cada vez está mais lamecha… Mas… minha rica menina… se se não sen… te fa… tigada, repita outra vez aquella romança que cantou inda'gora…
– Ah! principe, ella sabe outras ainda mais bonitas! Conhece a Andorinha? Já a ouviu?
– Está claro… mas já não me lembra…
Não… não!.. aquella que cantava ha pouco: não quero a Andorinha! Quero aquella tal romança: disse o principe a pedinchar como um pequerrucho.
A Zina recommeça a alludida romança. O principe não pode ter mão em si e ajoelha-lhe aos pés a chorar…
– Oh! minha formosa castellã! (Treme-lhe a voz de senilidade e de commoção).
Oh! minha en… can… tadora castellã! Oh! minha querida menina! Quanta coisa me não veiu recordar do passado!.. E eu, então, vivia esperançado em outro porvir. N'esse tempo cantava eu com a viscondessa… uns duêtos… essa mesma romança… e agora… ah! Sei muito bem o que me espera!
O principe proferiu aquella discurso em voz entrecortada e offegante, intoiriu-se-lhe a lingua… tornam-se inintelligiveis algumas palavras. Apenas se vê que atingiu o acume da commoção. Maria Alexandrovna apressa-se em lançar azeite no lume.
– Principe! quer me parecer que se vae apaixonando pela Zina.
A resposta do principe vae além de quanto ousaria esperar Maria Alexandrovna.
– Estou apaixonado por ella a ponto d'enlouquecer! exclama o velhito muito exaltado e sempre de joelhos.
Estou prompto a sacrificar-lhe a minha vida… pudesse eu ao menos ter esperança… Mas levante-me, por quem é… sinto-me um tanto fraco… Se eu… ao menos, pudesse nutrir a es… pe… perança offerecia-lhe o meu coração… e então… eu… Havia de cantar-me todos os dias ro – ro – man – manças, e eu a olhar para ella sempre… sempre… sempre… ai, meu Deus!
– Principe, principe! Está offerecendo a minha filha a sua mão, quer-m'a roubar, a mim, a minha Zina! O meu enlevo, o meu anjo, Zina! Não te deixarei nem por quanto ha! Zina! Venha alguem arrancál-a dos braços, dos braços de sua mãe; se é capaz!
Maria Alexandrovna atira-se á filha e estreita-a nos braços, comquanto se sinta repellida com força. A mamã exaggera um tanto ou quanto a comedia, e a Zina está em transes de asco. Mas não abre a bôca, é tudo quanto deseja Maria Alexandrovna.
– Já rejeitou nove partidos só para se não apartar da mãe! clama. Agora, comtudo, o meu coração antevê o apartamento. Não ha ainda um instante, reparei que olhava para o principe de modo particularissimo… A sua aristocracia, a sua finura seduziram-n'a, principe!.. Oh! O principe apartar-nos-ha… estou-o a sentir.
– A… dó… óro-a! murmura o principe a tremelicar como uma folha.
– Com que então desamparas a tua mãe! exclama Maria Alexandrovna atirando-se outra vez ao pescoço da filha.
A Zina, morrendo por pôr ponto a tão penosa scena, estende ao principe a linda mão, e faz esforço para sorrir. O principe agarra respeitoso n'aquella mão e por pouco a não come com beijos.
– Agora, sim, agora é que eu principío a viver!..
– Zina! diz com solemnidade Maria Alexandrovna: é o mais delicado, o mais nobre dos homens! Um cavalleiro da edade média! Ella bem o sabe, principe, e sabe-o até demais, por minha desgraça!.. Ah!.. Oxalá cá não tivesse apparecido… Entrego nas suas mãos o meu thesouro… Conserve-o, principe!.. Escute os rógos de uma mãe! Qual será a mãe que poderá levar-me a mal a minha magua?!
– Basta! mamã! murmura a Zina.
– Ha de defendêl-a, principe, a sua espada ha de fulgir se as calumnias se atreverem a tocar-lhe!
– Basta mamã, aliás…
– Está c… claro… a minha espada!.. murmura o principe. Quero que o ca… casamento se realize, quanto antes… agora… é que eu devéras prin… cipío a viver!.. Tenciono mandar desde já a Dur-kha-khanovo… Tenho lá uns brilhantes, quero pôl-os a seus pés.
– Que ardor, que arrebatamentos, que nobreza de alma! E lembrar-me eu, principe, de que se estava a perder n'aquelle ermo!.. Não me canço em repetir… Eu, quando me lembro d'aquella… infernal… toda eu me horrorizo!..
– Mas que queria que eu fizesse?
Tinha tanto… mê… mêdo! choraminga o principe. Queriam pregar commigo numa casa de saude… e tive… mê… mêdo!
– N'uma casa de saude! Ah! que miseraveis! Que vileza, que crueldade!.. Já me constou isso mesmo, principe! Mas essa gente está doida! Mas por quê… por quê?..
– Se quer que… lhe diga, nem eu o sei, responde o ginjinha caindo derrengado de cansaço na poltrona. Foi assim – estava eu n'um ba… baile, e contei-lhe uma anecdóta. – Desagradou-lhes e ahi está… e resultou d'ahi uma historia… uma histo… ria.
– E foi esse apenas o motivo?
– Não foi, eu tambem tinha jogado as cartas com o principe Pedro Dmirititch, e perdido immenso… tinha dois reis e três… da… damas… quero dizer, três da… da… mas e dois r… reis… Não é isto… um r… r… rei e só… da… damas!
– E foi só por isso! – por isso! – Infernalissima protervia! Não chore, principe! Não lhe torna a acontecer! D'aqui em diante, encontra-me a seu lado, meu principe! – Pois não me aparto da Zina, e veremos quem é que se atreve a abrir bocca. Sabe o que lhe digo, principe? Que o seu casamento vae deixál-os consternados; vae envergonhál-os! Hão de ver que ainda é capaz… quero dizer… comprehenderão que tão peregrina beldade nunca iria casar com um mentecapto! – E agora, pode olhar para elles rosto a rosto, de cabeça erguida!
– Está – claro… rosto a rosto! – murmura o principe fechando os olhos.
– Está derreado de todo, diz comsigo Maria Alexandrovna; creio que estarei a soltar palavras ao vento.
– Está commovido, meu principe, precisa de ir descançar, diz debruçada sobre elle com maternal sollicitude.
– Está… c… claro… encostar-me um bocadinho.
– É tal qual… Estes abalos! – Espere ahi, vou acompanhál-o. Eu propria irei deitál-o, se for necessario… Por que é que está a olhar tanto para aquelle retrato, principe?
É o retrato de minha mãe, não era uma mulher, era um anjo! Oh! oxalá ella ainda cá estivesse! Era uma santa, uma santa, sim, nem lhe posso dar outro nome!
– Uma s… anta, é bonito!.. Eu tambem tive mãe, uma senhora extrê… ê… ma… mente nut… trida… E d'ahi, não é isso que eu queria dizer… Estou um tanto fatigado… Adeus… minha linda menina… amanhã… em sum… ma… não importa… Até mais ver… até mais ver!..
Tenta fazer um gesto gracioso, mas escorrega no pavimento encerado, e por pouco se não desiquilibra.
– Cuidado, principe. Encoste-se ao meu braço! grita Maria Alexandrovna.
– Um encanto! um encanto! Agora sim, agora começo a viver!
Ficou a sós a Zina. Sentia uma oppressão, um desprezo para comsigo mesmo. Com as faces a escaldar, as mãos contraídas, os dentes enclavinhados. Inérte, e a vergonha a arrazar-lhe os olhos de lagrimas…
N'este lance, eis se abre a porta e investe pela sala dentro o Mozgliakov – fulvo de raiva!
IX
– Ouvi tudo, tudo!
A Zina a fitar-lhe uns olhos espantados.
– Ah! E são esses os seus sentimentos! exclama com a voz tomada. Até que por fim aprendi a conhecêl-a!
– A conhecer-me? repete a Zina (fulgem-lhes os olhos, de colera). Atreve-se a falar-me assim?
Dá um passo para o mancebo.
– Tudo ouvi! insiste solemne o Mozgliakov, recuando porém um passo, mau grado seu.
– Ouviu? – Espionou, diga! emenda a Zina a mirál-o com desprezo.
– Espionei, seja? É verdade, decidi-me a praticar semelhante vilania! Mas, graças a ella… fiquei afinal sabendo que é a mais… nem sei como qualificar a sua… tartamudeava o mancêbo, de mais em mais atrapalhado sob o olhar da Zina.
– E quando haja ouvido a tudo, que é que me poderá lançar em rosto? Quem lhe deu o direito de me accusar, de me falar n'esse tom?
– Com que direito!.. Eu!? E ainda m'o pergunta!? Intenta casar com o principe… e a mim não me assiste o direito…!.. Pois não me deu a sua palavra?
– Quando?
– Quando, essa é melhor!
– Esta manhã, sem irmos mais longe, o senhor a apertar commigo e a minha resposta formal foi que nada lhe podia afirmar de positivo.
– Mas não me rejeitou em absoluto, e por conseguinte, guardava-me para o não chega – poupava-me!..
Contrahiu-se o semblante á Zina com dolorosa sensação, mas não se atenua o desprezo que sente para comsigo.
– Se o não escorraçei, responde em voz grave e compassada, mas algo trémula, foi unicamente por compaixão. Supplicava-me que esperasse, que lhe não dissesse que não. "Vá aprendendo a conhecer-me" – disse o senhor um dia, "e quando se houver convencido de que sou um homem de caracter digno, é possivel que me não rejeite." Foram estas as suas palavras, no principio das nossas relações, não as poderá renegar: E agora atreve-se a dizer, que o guardo para o não chega! Pois não percebeu, esta manhã, o meu aborrecimento por ver como antecipava de quinze dias o seu regresso? E todavia, não lhe encobri esse meu enfado, e o senhor foi o proprio a notál-o, visto que me perguntou se me não agastava este seu regresso permaturo. Chama então poupar um homem o não lhe poder encobrir o fastio que alguem experimenta em ver esse homem? Ah! Eu então guardava-o para o não chega!? Não! eu dizia commigo, a seu respeito: "Se não é demasiado intelligente, é bondoso, quando menos"… agora, comtudo, fiquei sabendo – a tempo, felizmente – que tem tanto de mau como de tolo, e só o que me resta é desejar-lhe boa jornada! Adeus!
A Zina volta-lhe as costas e caminha, de seu vagar, para a porta. Mozgliakov comprehende que tudo está perdido; referve-lhe a raiva.
– Ah! com que, eu, então, sou tolo! vociféra; tolo! – Muito bem! Adeus! Mas, antes de me ir embora, saiba que a toda a gente ha de constar a infame comédia que aqui estão representando… tanto a senhora como sua mãe. Vou contar tudo a toda a gente, que embebedam o principe, que o subornam! Ha de ouvir falar de Mozgliakov!
Estremece a Zina, vae para reponder, mas, volvido um instante de reflexão, encolhe os hombros, desdenhosa, e bate-lhe com a porta na cara. N'este conflicto, assoma aos hombraes Maria Alexandrovna. Ouviu as ultimas exclamações de Mozgliakov e adivinhou o restante. O Mozgliakov sem, se ir ainda embora! O Mozgliakov á ilharga do principe! O caso espalhado por toda a cidade pelo Mozgliakov! E todavia, é indispensável guardar segredo… Maria Alexandrovna, n'um relance, tudo calculou, a tudo preveniu, e urde um plano para aplacar o Mozgliakov.
– Que tem, meu amigo? diz estendendo-lhe a mão, cordial.
– Como meu amigo! exclama o outro furibundo. E depois de tudo isto; meu amigo! Morgen Früh11, minha senhora. Metteu-se-lhe então em cabeça embaçar-me outra vez?
– Sinto, devéras, acredite, sinto immenso vêl-o em um estado de espirito tão estranho, Pavel Alexandrovitch. Que linguagem! Nem sequer méde as palavras em presença de uma senhora!
– Em presença de uma senhora!.. Será quanto quiser… menos uma senhora.
(Ignoro o que é que elle queria dizer, mas, com certeza, devia de ser um qualquer ultrage, de esmagar.) Maria Alexandrovna com os olhos n'elle e um risinho de commiseração:
– Sente-se, diz, com tristeza, apontando para a cadeira na qual, um quarto de hora antes, estivéra sentado o principe.
– Mas no fim de contas, não me dirá, Maria Alexandrovna?.. exclama Mozgliakov, desnorteado. Está-me tratando como se a senhora estivesse innocente e fosse eu o culpado! Não pode ser!.. Vae muito além dos limites! É abusar da paciencia… de todo… digo-lh'isto!
– Meu amigo… responde Maria Alexandrovna – e deixe-me dar-lhe ainda este titulo, pois neste mundo não terá melhor amiga… – o senhor está afflicto, excitado, ferido no coração, e devo pois relevar-lhe semelhantes desmandos de linguagem. Pois bem, vou abrir-me com o senhor. Tanto mais que eu, até certo ponto, não deixo de ter culpas para com o senhor. Sente-se, pois, e conversemos. A voz de Maria Alexandrovna assumiu o auge da meiguice, é compungida a sua expressão phisionomica.
Senta-se Mozgliakov.
– Esteve escutando á porta, diz ella com uns modos de exprobação e de indulgencia, ao mesmo tempo.
– Escutei, sim! E por que não? Nem que eu fôra um asno!.. Se quer ao menos fiquei sabendo o que andava a maquinar contra mim, responde Mozgliakov, haurindo valôr da propria colera.
– E resolver-se a senhora, com a sua educação, as suas maneiras, a representar semelhante papel! Santo Deus! Mozgliakov está aos pulos na cadeira.
– Maria Alexandrovna, não posso ouvir-lhe uma palavra mais! Melhor será que se lembre do que está fazendo, a despeito da sua educação e das suas maneiras, e diga-me se lhe assiste o direito de accusar a outrem!
– Ainda uma pergunta, prosegue ella sem responder. Quem foi que lhe suggeriu a ideia de escutar á porta? Quem será que anda por aqui a espiar-me os passos? É isso o que eu não se me dava de saber!
– Lá quanto a isso, tenha paciencia, não serei eu quem lh'o diga.
– Muito bem, eu tratarei de o saber… Dizia eu, pois, Pavel, que não deixo de ter culpas para com o senhor, mas, se é que póde julgar-me com conhecimento de causa, verá que se tenho alguma culpa é a de lhe querer bem em demasia.
– Com que então, quer-me bem? – Esta a caçoar commigo, e certifico-lhe que não torna a enganar-me; serei muito creança mas nunca até esse ponto!
E elle, n'um sarilho na poltrona, e a poltrona a tremer.
– Por quem é, meu amigo, socegue se é possivel, escute com attenção, e verá que ha de concordar commigo. Eu, a principio, tencionava contar-lhe tudo, pôl-o em dia com tudo sem que se lhe tornasse necessario aviltar-se ao ponto de escutar ás portas. Se o não fiz, foi unicamente porque o negocio se achava ainda em estado de projecto e podia mallograr-se. Bem vê a franqueza de que uso para com o senhor. E, acima de tudo mais, não se volte contra minha filha, que de nada tem culpa. É doida pelo senhor, e custou-me os olhos da cara arrancar-lh'a ao senhor e persuadil-a a acceitar o offerecimento do principe.
– E eu, que com os meus proprios ouvidos, ouvi, – n'este instante, provas d'esse tal louco affecto, replica ironico Mozgliakov.
– Muito bem! Mas em que termos se lhe dirigiria o senhor? É assim que se expressa um namorado? Será essa a linguagem propria de um homem de fino trato? Offendeu-a, irritou-a.
– Como se fosse questão de fino trato, Maria Alexandrovna! Esta manhã, ambas me faziam boa cara, mas assim que eu saí e mais o principe, puzéram-me pelas ruas da amargura. – Estou sciente de tudo… tudo.
– Bebido da mesma fonte ignobil, provavelmente, observou Maria Alexandrovna com risinho de desdem. É verdade, Pavel Alexandrovitch, púl-o pelas ruas da amargura e, confesso, Deus sabe quanto me custou. Quanto não tive eu que luctar com os proprios sentimentos! Mas bastará o facto de eu me ver na necessidade de o calumniar para lhe provar a difficuldade que eu encontraria em obter d'ella que desistisse do senhor! É possivel que não veja um palmo adeante do nariz? Se ella lhe não tivesse amor, eu teria alguma necessidade de appellar para calumnias? E ainda o senhor não sabe o melhor! Tive que valer-me da minha maternal auctoridade para lh'o arrancar a ella do coração! Em conclusão, depois de esforços inauditos, consegui alcançar uns arremedos de consentimento… E visto que esteve á escuta, não deixaria de notar que ella não me ajudou em presença do principe com uma palavra, sequer, ou com um gesto. Cantou para alli como um automato; em visiveis afflições toda ella, e foi por ter dó d'ella, que eu carreguei com o principe. Tenho a certeza, até, de que se pôz a chorar, assim que se apanhou sósinha. O senhor bem viu, quando entrou… Mozgliakov recorda-se de que effectivamente a Zina estava a chorar quando elle entrou.
– Mas a senhora, a senhora, por que é que está assim tão contra mim, Maria Alexandrovna? Por que é que me foi calumniar segundo é a propria a affirmál-o.
– Ora, isso agora é outro negocio; e se o senhor m'o tivesse perguntado em termos logo ao principio, ha muito tempo que lhe teria dado resposta. Sim, tem razão, fui eu que fiz tudo, eu, sósinha: não esteja a accusar a Zina. Por que foi que o fiz? E eu respondo-lhe: primeiramente, por interesse da Zina. O principe é rico, representante de nobilississima casa, tem relações, e casando com elle a Zina faz um optimo casamento. Emfim, se elle morrer, o que não poderá tardar muito, pois todos nós, mais ou menos, somos mortaes, – n'esse caso, a Zina, nova e viuva, pertencendo á alta sociedade, fica riquissima e casa com quem quizer. Ora, está claro que irá casar com o homem a quem ama, e que foi o primeiro a quem teve amor, e cujo coração terá martirizado casando com o principe. E bastará o arrependimento… O acto que terá mais a peito será o de remediar a propria falta.
– Hum! rosna Mozgliakov pensativo, a contemplar os bicos das botas.
– Em segundo logar… mas serei breve a semelhante respeito, é possivel que me não comprehendesse. O senhor só o que sabe é ler o tal seu Shakspeare, fonte aonde exclusivamente vae beber os seus nobres sentimentos; e d'ahi, o senhor está tão moço! Eu, comtudo, sou mãe, Pavel Alexandrovitch. Caso a Zina com o principe um tanto por causa d'elle tambem, visto que para elle o casamento pode representar a salvação! Ha tanto tempo que voto amizade áquelle honradissimo ancião, tão bondoso, cavalheiresco! Quero arrancál-o ás garras d'aquella infernal creatura que ha de pregar com elle na cova!.. Invoco a Deus por testemunha em como foi patenteando á Zina todo o alcance do heroismo da sua dedicação que eu pude convencêl-a.
Arrastou-a o irresistivel prestigio da abnegação. Ella propria tem o que quer que seja de cavalheiresco. Submetti-lhe o meu projecto sob colôr de um acto christão. Vaes ser, lhe disse eu, o amparo, a consolação, a amiga, a filha, a beldade, o idolo de um homem que talvez que nem um anno tenha de vida. Mas sequer ao menos, extinguir-se-ha no dôce calôr do amor. Estes seus ultimos dias parecer-lhe-hão um paraiso. Onde é que vê n'isto egoismo, Pavel? Não! e não! É um acto de irmã de caridade.
– A senhora, então, procede desse modo, por amizade para com o principe… á laia de irmã de caridade? commenta o ironico Mozgliakov.