Kitabı oku: «Um club da Má-Lingua», sayfa 9

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XIV

Era sobremodo romanesco o caracter da Zinaida Aphanassievna. Não sabemos se teria abusado da leitura daquelle "pateta do tal Shakspeare", lá, com o tal seu utchitelzinho, mas até agora ainda não havia praticado um tão heroico acto de loucura como o que praticou n'este conflicto.

Enfiada, com os olhos a relampejarem-lhe de resoluta, toda ella n'um tremor, um portento de formosura e de colera, avança, varre com a provocação nos olhos toda aquella gente em redor de si, e por entre o silencio geral, dirige-se á mãe a qual, assim que a Zina se levantou, tornou a abrir os olhos.

– Para que é estar com fingimentos, mamã? É já tão sujo, tudo isto a que estamos assistindo! Basta de mentiras! Não vale a pêna estar a tapar lama com a propria lama.

– Mas que é isto, Zina! Tu não estás em ti! exclama Maria Alexandrovna, erguendo-se de repellão.

– Eu bem a tinha avisado, mamã, de que não podia supportar semelhante vergonha! Não estejamos a sujar-nos mais do que o estamos já!.. Assumirei a responsabilidade de tudo. Fui, eu, visto que consenti, que teci toda esta vilissima… intrigalha. A mamã estava na fé de que trabalhava com o sentido em me tornar feliz, sequer ao menos tem desculpa: eu, nenhuma!

– Que vaes tu dizer, Zina! Bem me dizia o coração que me estava ainda guardado mais este desgosto!

– É assim mesmo, mamã! Vou declarar tudo! Nem sei como não morri de vergonha… cobrimo-nos de opprobrio, tanto a mamã como eu…

– Estás exagerando, Zina! Nem sabes o que estás dizendo! Contar tudo, para quê?.. Não ha a minima necessidade… Quem se cobriu de opprobrio não fômos nós, e vou provál-o!

– Deixe-me falar! Não quero estar calada por mais tempo na presença de uma gente que desprézo e que vieram aqui unica e exclusivamente para se rirem á nossa custa. Entre estas mulheres, sem excepção, não ha uma unica a quem assista o direito de me condemnar! Todas ellas estão prontas a fazer cem vezes peor do que fizemos, eu, e a mamã. Com que direito poderiam ellas, com que direito se atreveriam a fazêl-o?

– Então! Já viram?

– Quem n'a ouve falar!..

– Mas está nos offendendo!..

– E ella, sim, que será?

– Ella sabe lá o que está dizendo? remata a Natalia Dmitrievna. Seja dito, entre parenteses, que a Natalia Dmitrievna não deixava de ter razão. Se a Zina considerava aquellas damas indignas de julgar á mãe e a si, por que era então que se ia confessar na sua presença? Em summa, a Zina tinha procedido com excessiva precipitação. E mais tarde, era esta, até, a opinião das pessoas mais sensatas em Mordassov. Tudo se poderia haver conciliado. É certo que Maria Alexandrovna, pela sua parte, se havia prejudicado pela sua precipitação e sua altivez. Ter-lhe-hia bastado meter a ridiculo o idiotazito do ginja e pôl-o a andar. A Zina, comtudo, de caso pensado e como que para arrostar com o bom senso e a sisudez mordassovense, dirigiu-se ao principe.

– Principe, diz a Zina ao velho que desde logo se põe de pé com deferencia, a tal ponto o impressionou a fisionomia da Zina, queira perdoar-nos, mas saiba que o enganámos!

– Não te calarás por uma vez! desgraçada! vocifera Maria Alexandrovna.

– Minha – menina, – minha… menina… minha… en… en… cantadora… murmura o principe, pasmado.

O caracter soberbo, fogoso e mistico da Zina leva-a a transpôr quaesquer limites. Esquece-se dos transes por que estará passando a mãe ante esta publica confissão; só vê a salvação, a redempção na franqueza, e vae até ao fim.

– Enganámol-o, sim, uma e outra, principe; a mamã resolvendo-me a aceitar a sua mão, e eu em consentir. Embriagámo-nos, eu, puz-me a cantar e a fazer tregeitos na sua presença com sentido em o saquear, conforme se expressou ha pouco Pavel Alexandrovitch, para lhe roubar a sua fortuna e o seu titulo. Era ignobil! E peço-lhe perdão! E comtudo, juro-lhe, principe… que a minha intenção… O que eu queria era… mas é duplicar a injuria o estar a procurar desculpas. E todavia, declaro-lhe, principe, que se eu tivera casado com o senhor, se eu o houvesse saqueado e roubado, em compensação, haver-me-hia tornado o seu brinquedo, a sua criada, sua escrava… A mim propria m'o havia prometido, e cumpriria o meu juramento…

Veiu interrompêl-a um deliquio, as visitantes estão de pé, todas ellas, com os olhos esgazeados. A tão imprevista quanto incomprehensivel expansão (para ellas) da Zina desorientou-as. O principe, tão sómente, tem os olhos arrazados de lagrimas, de commovido, supposto não perceba metade sequer do que ella tem dito.

– Mas… es… tá… claro… que hei de casar com a menina… com a minha… l… linda menina, visto que tanto o… o deseja. E isso para mim re… representa… até, subida hon… ra… Mas, não deixarei… de insistir em que foi sonho!.. Vejo tan… ta coisa, a so… sonhar! Por que é que se hão-de estar a inquietar? Eu não percebi coisa nenhuma, meu amigo, prosegue dirigindo-se a Mozgliakov; explica-m'o, se fazes favor!

– E o senhor, Pavel Alexandrovitch, que se vingou de mim de modo tão cruel, como é que pôde combinar-se com semelhante gente para me esfacelar desacreditando-me? Allegava amar-me!.. Mas para que estarei eu para aqui a prégar-lhe moral!.. Sou mais culpada que o senhor, offendi-o; tambem para com o senhor me vali de hyprocrisia, de mentira! Nunca lhe tive amor, e se eu um dia me resolvesse a desposál-o, seria unicamente para me ver livre d'esta maldita cidade… Mas declaro-lhe, que se tal houvesse succedido, teria em mim uma esposa fiel e carinhosa.

– Zinaida Aphanassiévna!

– E se ainda me conserva rancor…

– Zinaida Aphanassiévna!!

– Se é que, algum dia, prosegue a Zina a rebalsar as lagrimas, se é que algum dia me teve amor…

– Zinaida Aphanassievna!!!

– Zina! Zina! Minha filha!

– Sou um miseravel, Zinaida Aphanassievna, um miseravel, e nada mais!..

Produz-se um reboliço estupendo, uma vozearia de espanto, de indignação, de atroar a tudo. Mozgliakov ficou que nem que fôra de pedra, incapaz de pensar, de falar.

Sempre que um caracter fraco e ôco, afeito a constante submissão, se decide a insurgir-se, pára sempre perante um certo limite. A principio, a insurreição manifesta-se com summa energia, é a energia do desespero, comtudo; arremete contra os obstaculos, de olhos vendados, e assumme sempre fardos pesados demais para os seus hombros. Chega um momento em que o desatinado se assusta de si mesmo, estaca, como que atordoado, e diz comsigo: "Mas que estou eu fazendo?" E distende-se o arco, pede perdão o insurrecto, supplíca, implora que as coisas "voltem a estar como estavam", comtanto que isso se effectue quanto antes… Foi o que se deu com o nosso Mozgliakov. Afflictissimo com o desastre de que fôra autôr, a si proprio se abomina, despedaça-o o remorso, as ultimas palavras da Zina anniquilaram-n'o de todo. O passar de um extremo a outro extremo representa para si obra de momentos.

– Sou um jumento, Zinaida Aphanassievna! Um jumento, nem mais nem menos! Ou ainda peor! Mas hei de provar-lhe, Zinaida Aphanassievna, que hei de saber tornar-me um homem de bem!.. Saiba que o enganei – tiozinho! Fui eu, fui eu que o enganei! – O tio não estava a sonhar, e pediu effectivamente a mão de Zinaida Aphanassievna! Quando lhe disse que fora sonho, enganei-o de meio a meio…

– Mas que coisas tão espantosas que estão vindo a lume! assobia a Natalia Dmitrievna.

– Es… tá… cclaro… um sonho… responde o principe… Mas socéga, por favor! Assustaste-me… pa… pa… lavra de honra! E que bella voz que tu tens! Estou pronto a ca… sar, se fô… fôr… necessario… Mas tu foste o pro… prio a af… firmar-me que… que foi sonho!

– E como é que eu agora o hei de despersuadir? Que hei de eu fazer? tiozinho, considére em que se trata de um negocio muito sério, de familia!

– Está… cclaro… Pen… sarei. Espera ahi! Deixa ver se me vou recordando… por p… partes… Pri… meiramente, o Phio… philo, o meu cocheiro.

– Não se trata agora do Phiophilo, querido tio!

– Está… cclaro!.. Não se trata… já se vê… que era de Napoleão… E depois, tomámos chá… Appareceu uma se… senhora… e comeu-nos o açucar… todo…

– Não é nada d'isso, tiozinho, destampa para ali o Mozgliakov, fóra de si, quem lhe contou essa historia foi a Maria Alexandrovna, a respeito da Natalia Dmitrievna! Eu estava ali, escondido, atrás da porta; ouvi tudo!

– Ora esta, Maria Alexandrovna! agarra no ar a Natalia Dmitrievna, com que então foi pespegar ao principe que eu lhe tinha furtado o açucar? Eu, então, venho a sua casa para furtar açucar!

– Passa fora! mal encontra forças para emitir Maria Alexandrovna.

– Não, lá isso, tenha paciencia, Maria Alexandrovna, não lhe assiste o direito de se negar a responder. Eu, então, furtei-lhe o açucar? Estou farta de saber que não faz senão cortar-me na pelle, ha muito tempo!.. Sou eu, então quem lhe furto o açucar!..

– Mas… mi… minha senhora… isso de açucar… era sonho… o tal sonho…

– Dorna d'uma figa! resmunga entre dentes Maria Alexandrovna.

– Eu lhe direi quem é a dorna! ulula a Natalia Dmitrievna. E a senhora, que será então? Ha muito tempo que me pôz essa linda alcunha! Mas, sequer ao menos, tenho um marido, emquanto a senhora se contenta com um cêpo.

… Es… tá… cclaro… Tam… bem me lembro da Dorna…

– Ah! elle é isso?.. Tambem veiu meter a sua colherada? – Atreve-se a injuriar uma senhora fidalga?! Com que, então, sou uma dorna; olha quem fala, que nem sequer tem pernas!

– Es… tá… cclaro… Sem pernas…

… Como foi… que disse?

– Pois está sabido – nem pernas – nem dentes – Ora apanha!

– E um olho, só!.. accrescenta Maria Alexandrovna.

– Um espartilho a suprir as costellas!

– Com a cara de mólas, toda ella!

– E nem um pello nessa careca!

– O proprio bigode, é postiço, pateta das duzias, agrava Maria Alexandrovna.

– Res… peitem – o meu na… nariz… sequer ao menos! É verdadei… ro! exclama, o principe banzado de todo. – Fôs… te… tu que me de… nunciaste, meu amigo!

Para que fôste contar que o meu – cabêllo era – po… postiço?

– Tiozinho!

– Não, meu amigo, já aqui não posso ficar… leva-me para qu… alquer parte… Que gente!

Para onde tu me trouxeste!.. Valha-me Deus!

– Idiota! vocifera Maria Alexandrovna.

– Ai! meu Deus! suspira o coitado do principe. Já nem sei porque seria que aqui vim parar – mas vou ver se me lembro. – Leva-me d'aqui para fora – mano! Faziam-me em bo… bocadinhos! – E depois, é urgente que eu vá anotar um… uma ideia… ca… capital.

– Venha d'ahi, querido tio, ainda estamos a tempo. Vem commigo ahi para um hotel, qualquer, e não me aparto do tio…

– Mas… está… cclaro, com o senhor…

Adeus minha lin… da menina!

… A menina… e só a menina é a unica… que é virtuosa. É uma.. nobi… lis… sima donzella!

Vamos lá… meu caro…

Ai! meu Deus!

Não me abalançarei a descrever o epilogo da tão desagradavel scena, que se seguiu á retirada do principe. Os visitantes foram-se safando n'um berreiro de estrugir a tudo. Maria Alexandrovna ficou sósinha, em meio d'aquelle seu desastre. Já é infelicidade! Poderío, riqueza, gloria, foi-se tudo no espaço de um dia! Percebia e mais que percebia que nunca mais levantaria cabeça! A tirannia por ella exercida durante tão longo prazo sobre Mordassov estava aniquilada de todo. Que lhe restava? Não era filosofa, Maria Alexandrovna. Passou uma noite pavorosa. Desacreditada a Zina, um nunca acabar de linguarice! Hórror, hórror, hórror! Na minha qualidade de historiografo sincero, cumpre-me mencionar que Aphanassi Matveich esteve a tiritar toda a santa noite no cubiculo, ás escuras, onde se fôra alapardar para conservação dos seus olhos.

O dia immediato não amanheceu fagueiro: isto de desgraças vem sempre aos pares.

XV

Desde as oito horas da manhã que corria pela cidade um boato inacreditavel. Repetia-o cada qual com maligno contentamento, conforme é da praxe sempre que se trata d'algum escandalo do qual foi victima qualquer pessoa d'amizade.

– Perder áquelle ponto a vergonha!

– Rebaixar-se daquella maneira!

– Arrostar assim com todas as conveniencias!

– Que costumes!

Eis o que succedera:

Logo de manhanzinha, ahi pelas sete horas, salvo erro, entrava em casa de Maria Alexandrovna uma pobre vélhita, afflictissima, a supplicar da aia que fosse quanto antes accordar a barichina15, mas esta, tão sómente, ás escondidas de Maria Alexandrovna. A Zina, assustada, accudira desde logo. Cae-lhe de joelhos aos pés a velhota, aos beijos a elles, a inundar-lh'os de lagrimas, a exorar-lhe que venha ver o Vassia.

– Passou tão mal a noite! Suppõe-se até que não chega ao outro dia! Accrescenta a velha que foi o proprio Vassia quem manifestou desejos de tornar a ver a sua amada, antes de morrer; e supplica-lhe em nome do passado, e que, se ella se negar, morrerá no auge do desespero!

A Zina despede por ali fora, sem dizer nada á mãe. Vae de corrida até o extremo de um dos arrabaldes mais pobres de Mordassov. Ali, n'uma baiuca muito velha e escalavrada, á qual suprem as janelas umas como que ráchas abertas nas paredes, n'um cochichólo muito baixo de tecto e fedorento, meio atravancado com uma fornalha, jazia, em cima de uma camada de taboas, cobertas com uma enxerga, delgada que nem uma folha de papel, um môço, escondido debaixo de um capóte todo elle farrápos. Tinha livido e refegado o semblante, os olhos, a luzir com o fôgo da fébre, as mãos, seccas e transparentes. Quasi que nem respirar podia; era o estertor. Comquanto o houvesse desfigurado a doença, conservava retraços de formosura. Triste espectaculo, na verdade, aquelle rosto de tisico, do moribundo. A edosa mãe que, ainda hontem, acreditava na cura percebe finalmente que vae em breve ficar sósinha n'este mundo. Com os braços cruzados, olhos sêcos, para ali está, sem comprehender, sem poder desviar a vista de cima do enfermo, aniquilada, perseguida pela visão da cova, na terra fria do velho cemiterio atascado de neve.

Não olha para ella o Vassia, irradia-lhe no semblante a ventura: até que por fim vê aquella a quem, vae n'um anno, durante aquellas suas eternas noites de doente apenas viu em sonhos. Percebe que ella lhe perdoou, visto que veiu, visto que lhe aperta as mãos, visto que o contempla com aquelles seus lindos olhos, a chorar e a rir ao mesmo tempo. Resuscita de todo na alma do enfermo o passado: desperta-lhe dentro d'alma a vida como se quiséra tornar-lhe sensivel a que ponto é triste o ter que a deixar.

– Zina! Zinotchka! Não chores… não me estejas a lembrar que vou morrer… deixa-me contemplar-te, pensar que me perdoáste. Vou morrer sem pensar que morro, até, beijando-te as mãos… Estás tão magrinha, Zinotchka! Anjo querido, a bondade com que tu estás a olhar para mim! Lembras-te do gosto com que te rias, d'antes? Ai! Zina! Eu já nem sequer te peço perdão!.. Nem quero lembrar-me do que aconteceu… eu é que m'o não perdôo, a mim proprio… E quanta noite sem poder dormir, Zina! Quanta noite não levei eu a pensar, a recordar-me, a estalar, quasi, com saudades!.. É melhor que eu morra! Sou incapaz de viver, Zinotchka!

E a Zina, lavada em lagrimas, muda, a apertar nas suas as mãos do seu amado, como se quiséra arrancál-o á morte.

– Então, não chores! insistia o enfermo. Eu morrerei hoje, porventura? Se ha tanto tempo que está morta a felicidade! És mais intelligente e vales mais do que eu… bem sabes que valho menos do que tu, por que será que me tens amor? Bem sabes que te não mereço! Oh! quanto me não tem feito padecer semelhante pensamento! Ah! querido amor, foi um sonho a minha vida: não vivi, sonhei! E eu a desprezar a multidão: e que razões tinha eu para ser tão soberbo? A purêza do meu coração? A nobreza dos meus sentimentos? Mas se tudo isso tinha apenas a consistencia dos meus sonhos, nada mais, Zina!

– Basta! basta! Matas-me!

– Não me interrompas, Zina!.. Perdoáste-me, bem sei: e ha já muito tempo, talvez, mas avaliáste-me e comprehendeste o que eu era, e é isso que me atormenta. Sou indigno do teu amor, Zina! Fôste sempre leal e generosa; fôste ter com tua mãe e declaraste-lhe o teu firme desejo de casar commigo, ou com mais ninguem: e cumpriste a palavra dada, pois que para ti, palavra e acção são uma e a mesma coisa! Ao passo que eu… eu! Não sabes, eu até hoje não tinha comprehendido, sequer, a extensão toda do sacrificio que fazias em ser minha mulher. E lembrar-me eu de que tu, commigo, te arriscavas a morrer de fome! Mas se a mim parecia-me que nada ha n'este mundo que se compare á honra de ser esposa de um grande poeta… sem nome… é certo! Não quiz intender o motivo que alegavas para retardar o nosso casamento. Tu a padeceres por minha causa, eu a martirizar-te, a exprobar-te, a desprezar-te… até que por fim te ameacei com aquella carta… Eu, n'esse instante, nem sequer cheguei a ser um miseravel, mas sim um ente abjecto, e nada mais! Ah! nem quero pensar até onde iria o teu desprezo! Não, não! É bom que eu morra! Obrigado por não haveres querido pertencer-me! Iriam correndo os annos, e quem sabe se eu afinal não viria a ver em ti um tropêço ao meu porvir. Sim, antes assim! E agora, o amargor das minhas lagrimas, sequer ao menos, purificou este meu coração. Ah! Zina! Concede-me um quinhão no teu amor, tão sómente, no teu amor de algum dia! – N'esta hora derradeira, sequer ao menos! Sou indigno do teu amor, bem o sei! mas… mas… mas… ai meu anjo!

E a Zina, desfeita em pranto, a escutar. Tentava interrompêl-o, elle porém, ia proseguindo… supplice, a gesticular, e aquella sua voz debil… abafada e sibilante… fazia mal á Zina…

– Não me tiveras tu encontrado, e não me terias amado, e não morrias… disse a Zina. Ah! Oxalá nunca nos tivessemos encontrado!

– Não, meu amor, não! Não te estejas arguindo da minha morte! A culpa foi minha, e só minha! O amor proprio… o romantismo!.. Nunca te contaram, Zina, a minha estupida historia? Existiu aqui, ha três annos, um prisioneiro, um miseravel, um ladrão. Mas no dia em que chegou o castigo, faltou-lhe o animo. Sabendo que não levam a justiçar um enfermo, alcançou uma garrafa de vinho, deitou-lhe de infusão tabaco e enguliu-o. Tomaram-n'o uns vomitos que duraram tanto que principiou a escarrar sangue e deu cabo dos pulmões. Levaram-n'o para o hospital e, d'ali a dias, morreu tisico. Pois bem! Occorreu-me á memoria esse ladrão, no dia em que se deu aquelle caso da carta… E resolvi acabar commigo da mesma maneira. E por que foi que eu, de proposito, escolhi a tisica? Por que foi que me não enforquei ou me não deitei a afogar? Seria porque me assustasse uma morte tão abrupta? Talvez; mas a mim quer-me parecer que concorreriam, e não pouco, para isso, as minhas ideias romanescas. Não me largava este pensamento: Que morte tão bella não será a minha, estirado como agora o estou, n'uma cama, com o estertor da tisica!.. E tu, ao pé de mim, a lamentar-me, e a padecer com a ideia de que eras talvez a causa da minha doença! E eu a ver-te entrar por ali dentro, arrependida, ajoelhar á beira do meu leito… E eu a perdoar-te e a expirar nos teus braços!.. Toleima, Zina, pois não era?

– Esquece-te de tudo isso, nem me tornes a falar das tuas culpas, que tu estás a exaggerar; lembrêmo-nos dos momentos ditosos, dos dias de ventura.

– Não m'o perdôo, meu amor, e é por isso que falo a semelhante respeito. Ha já dezoito mêses que te não via. Queria alliviar este meu coração! Durante esse tempo todo, eu para aqui, sósinho, e não houve um só instante, em que eu não pensasse em ti, meu amor. O que não desejaria eu fazer para reconquistar a tua estima? Até ao derradeiro instante não acreditei que morria; não me entreguei á cama desde logo, andei a pé, por muito tempo, com o peito escangalhado. E que sonhos tão ridiculos! Ás vezes suppunha ser um grande poeta e em vesperas de publicar um poema como ainda não tinha apparecido outro egual n'este mundo, que ninguem tivera genio para o escrever. E eu a pensar que me iriam n'elle todos os meus sentimentos, a minha alma, toda inteira, e que, d'este modo, me acharia sempre a teu lado, e que qualquer que fosse o sitio em que te encontrasses, os meus versos ir-te-hiam recordar a minha existencia, e o meu sonho unico era acreditar que tu em conclusão poderias dizer: "Não, elle a final não é tão mau como eu o suppunha". Toleima, Zina, toleima, pois não é?

– Não, não, Vassia, exclamava a Zina.

E debruçada sobre o peito d'elle, pôz-se-lhe aos beijos ás mãos.

– E o ciume! Como me atormentava o ciume durante esse tempo, todo! Eu, se tivesse ouvido falar no teu casamento, caía morto, redondamente!.. E eu a vigiar-te, a espreitar-te… Era ella quem lá ia (apontando para a mãe). Tu nunca tiveste amor ao Mozgliakov, pois não é verdade? Ai! meu anjo! Lembrar-te-has tu de mim quando eu já não fôr d'este mundo? Lembras, sim, que eu bem sei! Mas os annos hão de ir passando, arrefecer-te-ha esse teu coração, o inverno ir-te-ha tomando posse da alma, e olvidar-me-has, Zina!..

– Não, não, nunca! E nunca me hei-de casar, tem a certeza!.. Foste o meu primeiro amor e serás o derradeiro.

– Tudo morre, Zinotchka, tudo, até a propria recordação, até os mais nobres sentimentos. Dão logar a um certo raciocinio: frio, que acalma as saudades. Insurgirmo-nos, para quê? Trata de aproveitar a vida, ama, sê feliz. Ama um vivo! Para que serve o teu amor a um morto? – E comtudo, não me esquéças de todo! Tivémos horas atribuladas, é certo, mas quantos dias de tanta doçura? Ah! – Foram-se de uma vez para sempre!.. Escuta… amei sempre o pôr do sol… Oh! não!.. morrer, por quê?.. Ah! viver, viver! Lembra-te da primavera! Do sol! Tão lindo! Das flores! Vivemos por uns tempos n'uma festa! E agora, olha! Olha!

E o pobre enfermo a apontar com a mão diáfana o vidro empanado pela giada. Depois agarrou-se ás mãos da Zina e entrou a chorar com amargor. E os soluços a esfacelarem-lhe o já dilacerado peito.

E assim se passou todo o dia: A Zina a dizer-lhe que jamais o olvidaria, que a ninguem n'este mundo viria a dedicar amor egual áquelle que a elle lhe dedicára. E elle a acreditál-a, a sorrir-lhe, a beijar-lhe as mãos.

N'este meio tempo, Maria Alexandrovna, inquiéta, havia já mandado por mais de dez vezes indagar o que seria feito da Zina, a supplicar-lhe que voltasse para casa, que não acabasse de se desacreditar na publica opinião. Até que por fim, ao lusco fusco, resolveu-se, esparvoada de receio, a ir, em pessôa, em procura da filha. Exorou-lhe de joelhos; a Zina a ouvil-a sem a intender. Maria Alexandrovna saíu desesperada. A Zina estava decidida a passar a noite junto do moribundo. Não lhe largou da cabeceira. O estado do infermo ia peorando a olhos vistos: quando rompeu a madrugada, quasi que nem conservava sopro de vida. E não obstante, viveu ainda um dia inteiro. Porém, no momento em que o sol no occaso abrasáva as vidraças, exalou-se a alma com os ultimos raios.

Deu-se então horrivel scena. A edosa mãe abraçou-se com o corpo do filho, e, voltada para a Zina:

– Fôste tu que o deitaste a perder, maldita! clamou.

A Zina, porém, não ouvia coisa nenhuma; estava para ali, qual estatua insensivel, como se, a ella, a alma a tivera deixado tambem. Até que por fim, abaixou-se, fez sobre o defunto o signal da cruz, beijou-o na testa, e saíu do quarto.

Tão tremendas sensações, e aquellas duas noites de véla, quasi que a haviam enlouquecido de todo… e depois, sentia-se prestes a entrar em um novo viver, triste, ameaçador.

Não teria ainda andado dois passos, eis lhe surge na frente o Mozgliakov como se com elle se abrira o chão.

– Zinaida Aphanassievna, disse com timidez, rodando a vista para todos os lados, Zinaida Aphanassievna, sou um jumento; isto é, não é isto que… Se me dá licença, não serei um jumento, visto que procedi briozamente, apezar de todos os pezares… Mas lá que fui um jumento, fui… e estou mais que arrependido… Está-me a parecer que estou a meter os pés pelas mãos, Zinaida Aphanassievna. Perdoe-me, atendendo a este concurso de circunstancias…

E a Zinaida, inconsciente, a olhar para elle, e a seguir seu caminho, sem tugir. Como no passeio não houvesse logar para dois, Mozgliakov desceu para a calçada.

– Zinaida Aphanassievna – proseguiu o mancebo, se m'o consente, estou pronto a renovar o meu pedido, pronto a esquecer tudo, a perdoar-lhe – com uma condição: – Ficará tudo sendo segredo por emquanto. Ausenta-se d'esta terra o mais breve possivel, eu sigo atras, ás escondidas, casamos para ahi seja onde fôr, sem que ninguem dê por isso, e vamos para Petersburgo. E então! Que me diz? Consente, Zinaida Aphanassievna? Responda, depressa, por quem é! Não posso esperar; poderiamos ser vistos.

A Zina não respondeu: olhou para o Mozgliakov, tão somente, mas fêl-o, porém, de modo tal, que elle comprehendeu desde logo, cumprimentou-a e sumiu-se por detrás da primeira esquina.

"Ora esta! matutava; ella, ainda não haverá dois dias, a lançar em rosto a si propria as culpas todas, e agora!.."

N'este comenos, em Mordassov, precipitavam-se os acontecimentos.

O principe, acarretado pelo Mozgliakov para o hotel, n'aquella mesma noite caíu perigosamente enfermo. Os Mordassovenses só vieram a ser informados do caso ao romper do dia. Kalist Stanislavitch não largava a cabeceira do doente. Ao anoitecer, effectuou-se uma conferencia dos medicos todos de Mordassov. Os convites para comparencia eram redigidos em latim. E não obstante, a despeito do latim, o principe achava-se em estado de delirio, e tudo era pedir ao Kalist Stanislavitch que lhe cantasse uma certa romança, a fallar a respeito de chinó e bigode postiço e, de vez em vez, muito assustado, soltava uns berros. Concluiram os medicos que era uma inflammação do estomago, resultante do excesso de hospitalidade mordassovense, e que d'ali tinha passado á cabeça. Alegaram, tambem, não sei com que fundamentos, um tal qual abalo nervoso. E d'ahi, não se esqueceram de notar que o principe havia muito que manifestava predisposições para a morte e que, por conseguinte… está claro! – e que por conseguinte, morria. Esta ultima hypothese pareceu ter certo fundamento: o pobre do ginjinha expirou ao terceiro dia, ahi pelo anoitecer. Obito a tal ponto inesperado consternou Mordassov. Acudiram em chusmas ao hotel, discutiam, abanavam a cabeça, e concluiram acusando directamente "os assassinos do principe, coitado!" (aludindo assim a Maria Alexandrovna e á filha).

Concordava toda a gente em que tão escandalosa historia não deixaria de dar brado, e podia, até, "ir muito longe".

Mozgliakov nem sabia já que fazer á sua vida. A situação, effectivamente, antolhava-se perigosa. Não fôra elle quem accarretara com o principe para casa de Maria Alexandrovna? Não fôra elle tambem que carregara com elle para o hotel? Não sabia o que havia de fazer com o cadaver, onde o enterrar, a quem informar. E de mais a mais, como passava por ser sobrinho do principe, o seu medo todo era não se lembrassem de o accusar de ter morto o veneravel ancião.

Eis que de repente mudam as scenas. Uma bella manhã, chega á cidade um viajante, desconhecido. E Mordassov, em peso, pespegado á janella, a commentar o adventicio.

– O tal viajante era nem mais nem menos que o celebre principe Chtchepilov, parente do defunto, sujeito de seus trinta e cinco annos, usando dragonas de coronel e as agulhetas de ajudante de ordens. Aquella gran-cruz compenetrava de um respeitoso pavor a todos os tchinovnicks16 do logar. O prefeito de policia por pouco não indoidece.

Em breve se veiu a saber que o principe vinha de S. Petersburgo e já havia passado por Dukhanovo. Não encontrando ali ninguem, viera seguindo as piugadas do principe até Mordassov, onde o surprehendera a fatal noticia. Tomou desde logo a tudo sobre si, e Mozgliakov retirou-se muito encolhido em presença do lidimo sobrinho.

O illustre defunto foi trasladado para o mosteiro. Ao outro dia, a cidade em peso congregou-se a ouvir a missa funeraria. Entre as senhoras, corria que Maria Alexandrovna compareceria em pessoa na egreja, para pedir perdão alto e bom som perante o caixão, em conformidade com as exigencias da lei. Escusado será dizer que tal Maria Alexandrovna não appareceu.

Fôra para o campo e levára a Zina, parecendo-lhe insustentavel a situação na cidade. Lá da sua aldeia, ia recolhendo com inquietação as atoardas e mandava tomar informações.

Do mosteiro a Dukhanovo, o caminho passava a uma versta das janellas de Maria Alexandrovna. Teve pois occasião de ver desfilar o prestito funebre. Atrás do féretro seguia uma longa cauda de trens. E por largo espaço, n'aquelle campo branco de neve, foi perfilando aquelle seu vulto negro, lento e majestoso, o carro melancólico.

D'ali a oito dias, Maria Alexandrovna, com a filha e Aphanassi Matveich, transferiu-se para Moscou. A aldeia e a casa foram postas em leilão.

E assim perdeu para sempre Mordassov uma senhora, o mais comme il faut possivel!

O caso não escapou a commentarios; nem faltou quem affirmasse que o Aphanassi Matveich se achava tambem á venda juntamente com a aldeia…

Rodou um anno, outro ainda, e ninguem tornou a falar em Maria Alexandrovna.

E comtudo, correu que havia adquirido outra aldeia em outro governo, e que outra capital de districto não tardaria em tremer entre as suas potentissimas mãos. A Zina estaria ainda á espera de noivo.

O Aphanassi Matveich…

Mas não nos tornemos éco de boatos sem fundamento. É falso tudo isso.

*

Já lá vão três annos desde que eu escrevi as linhas que acabaes de ler. Quem me diria que ainda havia de vir a folhear o manuscripto para lhe accrescentar ainda mais uma lauda?

Mas vamos ao facto:

Principiarei por Pavel Alexandrovitch Mozgliakov.

Ao ausentar-se de Mordassov, foi direitinho a Petersburgo, onde alcançou o logar que lhe andava prometido havia muito tempo. Não tardou em se lhe franquearem as portas da sociedade, infronhou-se n'umas intrigalhas, guindou-se ás alturas de espirito do século, tornou a apaixonar-se, renovou o seu pedido, voltou a apanhar um não pelas ventas, enguliu-o, e não podendo digeril-o, sollicitou o ser incorporado a uma expedição enviada a um dos cantos mais remotos d'este nosso paiz sem limites.

O corpo expedicionario transpôz sem novidade de maior florestas e desertos, alcançando a capital da longinqua região.

Foi acolhido pelo general-governador.

Era um homem magro e de semblante severo, um velho militar, ferido em diversas campanhas, condecorado com dois cráchás e com uma cruz branca. Convidou a todos os tchinovniks para um baile effectuado aquella mesma noite.

15.A menina.
16.Funccionarios.

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02 mayıs 2017
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