Kitabı oku: «Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III», sayfa 12
SCENA III
VENADORO
Ó linda minha inimiga,
Gentil pastora, esperae!
Pois que tanto amor me obriga,
Consenti-me que vos siga;
Vá o corpo onde alma vae.
E pois por vós me perdi,
E neste estado Amor pôs
Os olhos com que vos vi,
Pois os deixaste sem mi,
Oh não os deixeis sem vós!
Porque a Fortuna me disse
Que nas serras, onde andais,
Em estes extremos tais,
Não era bem que vos visse
Para não ver de vós mais.
E pois Amor se quiz ver
Da livre vida vingado,
Em que eu sohia viver;
Faça em mi o que quizer,
Que aqui vou ao jugo atado.
SCENA IV
Dom Lusidardo, o Monteiro e Filodemo
LUSIDARDO
Oh Santo Deos verdadeiro,
A quem o mundo obedece!
Meu filho não apparece.
E que me dizeis, Monteiro?
MONTEIRO
Digo-lhe que m' entristece.
Qu'eu corri por esses montes,
Bem quinze leguas, ou mais,
E busquei polos casais,
Por serras, montes e fontes,
Sem ver novas, nem sinais.
Toda a gente que levou,
Buscando-o, muito cansada
Pelo mato anda espalhada;
Mas ainda ninguem tomou,
Que soubesse delle nada.
LUSIDARDO
Oh fortuna nunca igual!
Quem me fara sabedor
De meu filho e meu amor?
Que se he muito grande o mal,
Muito mor he o temor.
Quem tolhe que não achasse
Algum leão temeroso
N'algum monte cavernoso,
Que sua fome fartasse
Em seu corpo tão formoso?
Quem ha que saiba, ou que visse,
Que das montanhas erguidas
Algum monstro não sahisse,
E com seu sangue tingisse
As hervas nellas nascidas?
Oh filho! vai-me a lembrar
Quantas vezes os mandava
Que deixasseis o caçar!
Não cuidei de adivinhar
O que Fortuna ordenava.
Eu irei, filho, buscar-vos
Por esses montes, por hi,
Ou a perder-me, ou cobrar-vos;
Que morte que quiz matar-vos,
Quero que me mate a mi.
Onde fostes fenecido,
Seja tambem vosso pae;
Ser-me-ha acontecido,
Como a virote que vae
Buscar outro que he perdido.
Vós só haveis de ficar,
Filodemo, encarregado
Para esta casa guardar;
Que de vosso bom cuidado
Tudo se póde fiar.
Ide-vos a fazer prestes,
Mandae cavallos sellar;
Pois achá-lo não pudestes,
Ir-m'heis buscar o lugar
Onde da vista o perdestes.
SCENA V
O Bobo com o vestido de Venadoro, a quem dera o seu
Canta
Los mochachos del Obispo
No comen cosa mimosa,
Ni zanca d'araña, ni cosa mimosa.
Falla
De su sayo colorado
Tan lozano me vestió,
Que yo ya no soy yo,
Ya por otro estoy trocado;
Que este sayo me trocó.
Oh qué asno Portugues,
Que loco por Florimena,
Deseó zamarra agena,
Y dame por enterés
Una zamarra tan buena!
Como yo vi la bobilla
Andar con él en questiones,
Y parársele amarilla,
Díjele: Florimenilla,
Andais en dongolondrones?
Él me dijo: Matalote,
No tengais dello desmayo.
Y en esto, como un rayo,
Tomóme mi capirote,
Y dióme su capisayo.
Capirote, en buena fé,
Si vos, cuando en mi entrastes,
Capisayo vos tornastes,
Que yo por eso cantaré,
Pues ansí me mejorastes.
Canta
Lyrio, lyrio, lyrio loco,
Con qué? Con capirotada.
Por hablar con la golosa
De amores, mirad la cosa!
Zamarrilla tan hermosa,
Que me ha dado tan honrada,
Con qué? Con capirotada.
Falla
Yo entonces respondí:
Señor, dame pan y queso,
Mas despues que lo entendí,
Dije á ella: Dale un beso,
Que él me dió zamarra á mí.
Ahora me mirarán
Cuantos á la eglesia fueren;
Y aquellos que no me quieren,
Ahora me rogarán.
Sabeis porque no querré?
Porque estoy ahidalgado;
Y cuando fuere rogado,
Cantando responderé,
Que ya estoy otro tornado.
Canta e baila
Soropicote, picote, mozas,
Ahora quiero amores con vosotras.
SCENA VI
O Pastor e o Bobo
PASTOR
Hijo Alonsillo.
BOBO
Hijo Alonsillo.
PASTOR
No me quieres escuchar?
BOBO
Pues déjame suspirar.
PASTOR
Escúchame ahora, asnillo,
Lo que te quiero mandar.
Véte al valle de las rosas,
Y di á Anton del Lugar
Que si puede acá llegar,
Porque tengo muchas cosas
Que importan para le hablar.
Porque es aqui llegado
Á este valle un hombre honrado,
Mancebo de casta buena,
Que amores de Florimena
Le traen loco y penado.
Dice que quiere casar
Con ella, que su tormento
No le deja reposar;
Y que venga festejar
Tan dichoso casamiento.
BOBO
Dicid, padre, tambien vos,
No quereis casar comigo?
Casemos ambos adós.
PASTOR
Vé, y haz lo que te digo.
BOBO
Responde, padre, por Dios.
PASTOR
Vé luego, y vuelve apresado.
Anda. No quieres andar?
BOBO
Pues que me habeis empujado,
Juro á mi de desandar
Todo cuanto tengo andado.
PASTOR
Trabajoso es este insano!
Nunca hace lo que quereis.
BOBO
Ora no os apasioneis,
Mi padrecico lozano:
Que burlaba, no lo veis?
PASTOR
Véte dahi.
BOBO
Héme aqui.
PASTOR
Vé donde te dije.
BOBO
Ya vengo.
Oh que padrasto que tengo,
Que asi me manda por ahi,
Siendo camino tan luengo!
ACTO QUARTO
SCENA I
Dionysa e Solina
DIONYSA
Oh Solina, minha amiga,
Que todo este coração
Tenho posto em vossa mão;
Amor me manda que diga,
Vergonha me diz que não.
Que farei?
Como me descobrirei?
Porque a tamanho tormento
Mais remedio lhe não sei,
Que entregá-lo ao soffrimento.
Meu pae muito entristecido
Se vai pela serra erguida,
Ja da vida aborrecido,
Buscando o filho perdido,
Tendo a filha cá perdida!
Sem cuidar,
Foi a casa encommendar
A quem destruir lha quer:
Olhae que gentil saber,
Que vai comigo deixar
Quem me não deixa viver.
SOLINA
Senhora, em tanto desgôsto.
Não posso meter a mão;
Mas como diz o rifão,
Mais val vergonha no rosto,
Que mágoa no coração.
E bofé, se eu tanto amasse,
E visse tempo e sazão,
Sem seu pae, sem seu irmão,
Que a nuvem triste tirasse
De cima do coração.
DIONYSA
Ah mana! que tenho medo,
Que s'eu em tal consentisse
Que logo o mundo o sentisse,
Porque nunca houve segredo,
Que, emfim, se não descobrisse.
SOLINA
Se eu tantas dobras tivesse
Como quantas houve erradas,
Sem que o mundo o soubesse,
Á fé qu'eu enriquecesse,
E fosse das mais honradas.
DIONYSA
Sabeis que tenho em vontade?
SOLINA
Que podeis, Senhora, ter?
DIONYSA
Fallar-lhe, só para ver
Se he por ventura verdade
O que dizeis que me quer.
SOLINA
Bofé, mana, dizeis bem,
E eu o mandarei chamar,
Como para lhe rogar
Que hum annel, que lá me tem,
Que mo mande concertar.
DIONYSA
Dizeis mui bem.
SOLINA
Vou-me lá
Chamar o seu moço á sala;
E s'este parvo vem cá,
Com elle hum pouco rirá,
Que sempre amores me fala.
Vilardo, moço?
SCENA II
Vilardo e Solina
VILARDO
Quem chama?
SOLINA
Vem cá, moço; eu te chamo.
Qu'he de teu amo?
VILARDO
Ah que dama!
Perguntais-me por meu amo,
E não por hum que vos ama?
SOLINA
E quem he esse amador,
Que quer ter comigo passo?
Será elle algum madrasso?
VILARDO
Eu sou o mesmo, que o amor
Me quebra pelo espinhasso.
E mais vós sabei de mi,
Se eu a dizê-lo me atrevo,
Que desque esses olhos vi,
Que yo ni como, ni bebo,
Ni hago vida sin ti.
E mais para namorado
Não sou ora tão madraço.
SOLINA
Sois muito desmazelado.
VILARDO
Mas antes, de delicado
Caio pedaço a pedaço.
E mais eu soffrer não posso
Que me façais tanto fero,
Qu'estou ja posto no osso,
Porque sou vosso e revosso,
Por vida de quanto quero.
SOLINA
Feros está cheia a rua.
Ora estou bem aviada!
VILARDO
Cupido, por vida tua,
Que a não faças tão crua,
Pois que te não faço nada!
Amor, Amor, mas te pido,
Que quando se for deitar,
Que le digas al oido:
Devieis-vos de lembrar
Neste tempo de hum perdido.
SOLINA
E tu ja fazes coprinhas?
Ainda tu trovarás?
VILARDO
Quem eu? Por estas barbinhas,
Que se vós virdes as minhas,
Que digais que não são más.
SOLINA
Ora, pois me quereis bem,
Dizei-me huma.
VILARDO
Ei-la aqui;
E veja o saibo que tem;
Porque esta trovinha assi,
Saiba qu'he trova do assem.
Trova
Passarinhos, que voais
Nesta manhãa tão serena,
Sabei que só minha pena
Póde encher mil cabeçais.
SOLINA
O rifão está salgado.
Essa pena te dou eu?
VILARDO
Vós e Amor, que de malvado,
Me tẽe melhor empennado,
Que nenhum virote seu.
Pois se me ouvíreis cantar!
SOLINA
E tu es tambem cantor?
VILARDO
Canto melhor que hum açor.
Quereis que vos venha dar
Musiqueta de primor,
E que vos mande tanger
Muito melhor que ninguem?
SOLINA
Ja isso quizera ver.
VILARDO
Querer-me-heis, se o eu fizer,
Algum pedaço de bem?
SOLINA
Querer-te-hei trinta pedaços.
VILARDO
E esse querer dará fruito,
Que me tire destes laços?
SOLINA
E que fruito?
VILARDO
Dous abraços.
SOLINA
Esse fruito custa muito.
VILARDO
Esse he o amor qu'em vós ha?
Pezar de minha mãe torta!
SOLINA
Ora hi, chamae logo lá
Vosso amo que venha cá,
Porque he cousa que importa.
VILARDO
Logo?
SOLINA
Logo nessas horas.
VILARDO
Não estarei aqui mais?
SOLINA
Não. Ainda ahi estais?
Vós haveis mister esporas.
VILARDO
Irei, porque me mandais.
SCENA III
O pastor, e Venadoro com elle, feito pastor
PASTOR
Mas de un mez es ya pasado
Que en esta sierra andais;
Y es caso mal mirado
Que andeis guardando ganado
Por una que tanto amais.
Y si os determinais
En querer casar con ella,
Juro á mi que nada errais;
Y si eso es para habella,
En vano cabras guardais.
Ya me distes vuestra fé
(Sábenlo estas tierras todas):
Yo con ella me engañé,
Que luego mandar llamé
Quien festejase las bodas.
Y agora dicis con pena,
Que es dura cosa casar:
Pues volveos hora buena,
Que no habeis de engañar
Con palabras Florimena.
VENADORO
Quem se ha de ter coração
Para tamanho temor?
Que em mim pegando estão.
De huma parte a razão.
E d'outra parte o Amor.
Tambem vejo que perdella
Será minha perdição;
Que bem me diz a affeição,
Que pouco faço por ella,
Pois não desfaço em quem são.
PASTOR
Digoos, si por bajeza
Dicis que no os conviene,
Daros hé una certeza,
Que en sangre y en nobleza,
Tanto como vos la tiene.
VENADORO
Pastor, digo que daqui
Farei tudo que quizerdes;
E se mais quereis de mi,
Digo que vos dou o si
Para tudo o que quizerdes.
PASTOR
Dios os dé su bendicion;
Y pues que casais con ella,
Yo os afirmo en conclusion,
Que aun de vos y mas della
Verná gran generacion.
Yo me voy por ella, hijo,
Tomadla asi mal compuesta;
Verná quien haga la fiesta;
Que en placer y regocijo
Nos festeje esta floresta.
SCENA IV
VENADORO só
Ó ribeiras tão formosas,
Valles, campos pastoris,
Porque vos não revestis
De novas flores e rosas,
Se minha gloria sentis?
Porque não seccais, abrolhos?
E vós, ágoa, que regando,
Os olhos his alegrando,
Correi, que tambem meus olhos
D'alegres estão manando.
Ah pastora, em quem espero
Poder viver descansado!
Comtigo guardarei gado,
Que ja eu sem ti não quero
Nenhuma alteza d'estado.
Diga o que quizer a gente,
Tudo terei n'huma palha,
Porque está claro e evidente
Que não ha honra que valha
Contra a vida descontente.
SCENA V
Tres pastores bailando, e cantando de terreiro, diante do pastor, que traz Florimena
PASTOR
Pues el amor os obliga
Á que hagais tan buena liga,
Tomando á Dios por testigo,
Daqui os la entrego, amigo,
Por muger y por amiga.
VENADORO
Consentis nisto, Senhora?
FLORIMENA
Senhor, em tudo consento.
VENADORO
Oh grande contentamento!
FLORIMENA
Saiba que nunca tégora
Lhe houve inveja ao tormento.
PASTOR
Asi lo dices, bobilla?
Oh! mala dolor os duela!
Pero no es maravilla
Quien consiente ansi la silla,
Consienta tambien la espuela.
SCENA VI
Tornão a bailar e cantar, e acabado, entra D. Lusidardo, e o Monteiro, que andão em busca de Venadoro
LUSIDARDO
Tres dias ha ja que ando
Por esta larga espessura
A Venadoro buscando;
E o que delle vou achando
He como quer a Ventura.
MONTEIRO
Senhor, cuido que lá vejo
Huns lavradores cantar.
LUSIDARDO
Hi diante perguntar.
MONTEIRO
Cumprido he seu desejo,
Se a vista não m'enganar.
LUSIDARDO
Como assi?
MONTEIRO
Elle não vê
Aquelle pastor loução
Com huma moça pela mão?
Se Venadoro não he,
Nem eu o Monteiro são.
PASTOR
Quien veo allá asomar,
Que se viene á nuestras bodas?
BOBO
No los dejemos llegar,
Que nos vernan á roubar,
Juro á mi, las migas todas.
LUSIDARDO
Oh Venadoro, meu filho!
Es tu este?
VENADORO
Tal estou,
Que cuido que este não sou.
LUSIDARDO
Certo que me maravilho
De quem tanto te mudou.
Como estais assi mudado
No rosto e mais no vestido!
VENADORO
Ando ja n'outro trocado,
Tanto, que fiquei pasmado
De como fui conhecido.
E se Vossa Mercê vem
Para me levar daqui,
Mais ha de levar que a mi;
E ha de ser quem me tem
Todo transformado em si.
BOBO
Eso porque lo entendeis?
Por las migas por ventura?
Voto á tal no llevareis:
Por mas y por mas que andeis
No hareis tal travesura.
VENADORO
Esta formosa donzella
Em mi teve tal poder,
Que folguei de me perder;
Pois, emfim, vim achar nella
O que não cuidei de ser.
Tanto em mi pôde este amor,
Que a tenho recebida;
E se o êrro grave for,
Aqui quero ser pastor:
Deixe-me ter esta vida.
LUSIDARDO
He certo tal casamento?
VENADORO
Tenha-o por cousa segura.
LUSIDARDO
Oh grande acontecimento!
Dest'arte sabe a ventura
Aguar hum contentamento!
PASTOR
Óigame, Señor, á mi,
Como hombre sabio, discreto,
Porque acaeció así,
Y lo que supo hasta aqui
Lo puede tener por cierto.
Muchos años son corridos
Que en esta fuente abierta,
En estos valles floridos
Hallé dos niños nascidos,
Y á su madre casi muerta.
Los niños chicos crié,
(Y desto cierto me arreo)
Y á la madre sepulté;
Y despues un gran deseo
De saber esto tomé.
Como yo fuese enseñado
De chico á la mágica arte
Por mi padre, que es finado;
Muy conoscido y nombrado
Soy por tal en toda parte.
Yo con yervas de la sierra,
Animales y otras cosas
Haré, si el arte no se yerra,
Que desciendan á la tierra
Las estrellas luminosas.
Soy, en fin, certificado
Que la madre de los dos
Fué Princeza de alto estado.
Y por un caso nombrado
La trajo á esta tierra Dios.
El macho, como creció,
Deseoso de otro bien,
Á la Corte se partió:
La hembra es esta por quien
Vuestro hijo se perdió.
Y si mas quiere, Señor,
De mi arte, prestamente
Dello le haré sabedor;
Mas ha de ser de tenor
Que no lo sepa la gente.
LUSIDARDO
Mas vamos-nos, se quereis,
Que não soffro dilação,
A minha casa, e então
Lá disso me informareis,
Que caso he de admiração.
E vós, filho, não cuideis
Que a gloria de vos achar
Não he tanto d'estimar,
Qu'em qualquer 'stado que esteis,
Não folgue de vos levar.
ACTO QUINTO
SCENA I
Solina, Dionysa e Filodemo
SOLINA
Eis Filodemo lá vem:
Asinha acudio ao leme.
DIONYSA
Isso he de quem quer bem;
Mas não sei se o vio alguem,
Porque quem espera teme.
Agora me quizera eu
Daqui cem mil leguas ver.
FILODEMO
Folgára eu assi de ser,
Porqu'este cuidado meu
Fôra mais de agradecer.
Que quando por accidente
A Fortuna desastrada
Vos apartasse da gente
N'hum deserto, onde somente
Das feras fosseis guardada;
Lá por ferro, fogo e ágoa
Buscar minha morte iria;
A voz ronca, a lingua fria,
Tamanho mal, tanta mágoa
Ás montanhas contaria.
Lá, mui contente e ufano
De mostrar amor tão puro,
Poderia ser que o dano,
Que não move hum peito humano,
Que movesse hum monte duro.
DIONYSA
Nesse deserto apartado
De toda a conversação
Merecieis degradado
Por justiça, com pregão
Que dissesse: Por ousado.
E eu tambem merecia
Metida a grave tormento,
Pois que, como não devia,
Vim a dar consentimento
A tão sobeja ousadia.
FILODEMO
Senhora, se me atrevi,
Fiz tudo o que Amor ordena;
E se pouco mereci,
Tudo o que perco por mi,
Mereço por minha pena.
E se Amor pôde vencer,
Levando de mi a palma,
Eu não lho pude tolher;
Que os homens não tẽe poder
Sôbre os affectos da alma.
E ainda que pudera
Resistir contra o mal meu.
Saiba que o não fizera;
Que pouco valêra eu,
Se contra vós me valêra.
Não deve logo ter culpa
Quem se venceo d'armas tais:
Assi que nisto, e no mais,
Tomo por minha desculpa
Vós mesma que me culpais.
E se este atrevimento
Com tudo for de culpar,
Acabae de me matar;
Que aqui tenho hum soffrimento
Que tudo póde passar.
E se esta penitencia,
Que faço em me perder,
Algum bem vos merecer,
Fique em vossa consciencia
O que me podeis dever.
Que dizeis a isto, Senhora?
DIONYSA
Eu que vos posso dizer?
Ja não tenho em mi poder,
Segundo me sinto agora,
Para poder responder.
Respondei-lhe, vós Solina,
Pois que a vós me entreguei.
SOLINA
Bofé não responderei:
Veja ella o que determina.
DIONYSA
Não o vejo, nem o sei.
SOLINA
Pois eu tambem não sei nada.
DIONYSA
Porque?
SOLINA
Do que eu fizer,
Se despois se arrepender,
Dirá qu'eu fui a culpada.
DIONYSA
Eu só quero a culpa ter.
SOLINA
Senhora, por não errar,
Não quero que fique em mim.
Esta noite no jardim
Ambos podem praticar
Como isto venha a bom fim.
Lá poderão ajustar
Entr'ambos o parecer;
Qu'eu não m'hei nisso de achar,
Que não quero temperar
O que outrem ha de comer.
DIONYSA
Vós vêdes a torvação,
Que lá nessa casa vae?
SOLINA
Dá-me cá no coração
Que he vindo o Senhor seu pae
Com o Senhor seu irmão.
DIONYSA
Filodemo, hi-vos embora,
Fallae depois com Solina.
SOLINA
Vamos-nos tambem, Senhora.
Receber seu pae lá fóra;
Não venha sentir a mina.
SCENA II
Vilardo e Doloroso, que vem dar hum descante a Solina com os Musicos
VILARDO
Assi que te contava, Doloroso, destas em que sempre andão rugindo as sedas.
DOLOROSO
Avante, que bem sei que o não dizeis polas sedas de Veneza.
VILARDO
Ja sabeis que esta nossa Solina he tão Celestina, que não ha quem a traga a nós.
DOLOROSO
Logo parece moça brigosa, que por dá cá aquellas palhas, dará e tomará quatro espaldeiradas; e ao outro dia quem ha de cuidar que huma mulher de sua arte ha de querer bem a hum parvo como a ti? porque estas taes são como homens sisudos; se de noite se achão em algum arruido, onde possão fugir sem serem conhecidos, facilmente o fazem; e ao outro dia quem ha de cuidar que hum tão honrado havia de fugir? Outros dizem: Bem pode ser, porque noite escura he capa de Judeos e de envergonhados.
VILARDO
Mui gentil comparação he esta. Mas assi que te dizia, o outro dia assi zombando lhe prometti de lhe dar huma musica, e ja chamei outros dous meus amigos, que logo hão de vir aqui ter comnosco.
DOLOROSO
Que tal he a musica que determinas de lhe dar? Não seja de siso; porque será a maior parvoice do mundo, porque não concerta com a parvoice que tu finges.
VILARDO
A musica não he senão das nossas; mas faço-te queixume, que nem com hum cão de busca pude achar humas nesperas por toda esta terra.
DOLOROSO
Nem as acharás senão alugadas; mas eu não sou de opinião que teus amores te custem dinheiro. Ora ja lá apparecem os outros companheiros, e eu tambem ajudarei de telhinha ou de assovio; e vem-me isto á popa, porque daqui iremos á porta da minha padeirinha, porque ando com ella n'hum certo requerimento.
VILARDO
Vossas Mercês vem ao proprio: boa seja a vinda. As guitarras vem temperadas?
DOLOROSO
Tudo vem como cumpre: mandae vigiar a Justiça entretanto.
VILARDO
Ora sus: fazei como se temperasseis cabeça de pescada com seu figado e bucho, e canada e meia, que nunca meu pae fez tamanho gasto na sua Missa nova.
Neste passo se dá a musica com todos quatro, hum tange guitarra, outro pentem, outro telhinha, outro canta cantigas muito velhas, e no melhor diz Vilardo:
Estae assi quedos, que eu sinto quem quer que he.
DOLOROSO
Justiça, pelo corpo de tal! Ora sus: aqui não ha outro valhacouto que nos valha, que pôr os pés ao caminho, e mostrar-lhe as ferraduras.
SCENA III
O MONTEIRO só
Como he gracioso este mundo, e como he galante! E quão gracioso sería quem o pudesse ver de palanque com carta d'alforria ao pescoço, porque não podessem entender nelle Meirinhos, Almotacés da limpeza, trabalhos, esperanças, temores, com toda a outra cabedella de enfadamentos! Ora notae bem de quantas côres teceo a Fortuna esta manta d'Alentejo: perdeo-se Venadoro na caça, eis a casa toda envolta como rio: o pae enfadado, a irmãa triste, a gente desgostosa; tudo, emfim, fóra do couce; e o galante aposentado nos matos com trajos mudados como camaleão, decepado dos pés e das mãos, por huma serranica d'Alentejo; e veio acaso a sahir de maneira fóra da madre, que a recebeo por mulher; e rapa oleo e chrisma de quem he, e renega todas as lembranças de seu pae; pois tanto tomou ao pé da letra o que Deos disse: Por esta deixarás teu pae e mãe. E attentae isto por me fazer mercê: cuidareis que este caso era solus peregrinus: sabei que os não dá a fortuna senão aos pares, como quédas. Dionysa mais mimosa e mais guardada de seu pae que bicho de seda, moça sem fel como pombinha, que nos annos não tinha feito inda o enequim; mais formosa que huma manhãa do S. João, mais mansa que o Rio Tejo, mais branda que hum Soneto de Garcilasso, mais delicada que hum pucarinho de Natal; emfim, que por meia hora de sua conversação se poderá soffrer huma pipa com cobra e gallo e doninha, como a parricida, com tanto que dissesse o pregão o porque; porque vos não fieis em castanhas (não sei se diga, se o cale, que de magoado me trava pola manga a falla da garganta; mas, com tudo, não ha quem se tenha) seu pae a achou esta noite no jardim com Filodemo, mais arrependida do tempo que perdêra, que do que alli perdia: eu, coitado de mi, que meta os dentes nos cabeçaes se desejar ave de penna.
SCENA IV
Duriano e o Monteiro
DURIANO, como cantando
Ti ri ri, ti ri rão.
MONTEIRO
Que he isso, Senhor Duriano? Que descuidos são esses? Onde he cá a ida agora?
DURIANO
Vou assi como parvo, porque o melhor he não saber homem nada de si.
MONTEIRO
Que dizeis a vosso amigo Filodemo, que assi se soube aproveitar do tempo que ficou só em casa?
DURIANO
Eu que hei de dizer? Digo que descreio desta minha capa, se não he isso caso para sahir com elle a desafio.
MONTEIRO
Porque?
DURIANO
Porque não basta que lhe dê a Fortuna gostos tão medidos sôbre o funil, que lhe põe nos braços Dionysa, a mais formosa dama que nunca espalhou cabellos ao vento, senão ainda para o assegurar em sua boa ventura, lhe vem a descobrir, que he filho de não sei quem, nem quem não.
MONTEIRO
Esses são outros quinhentos. Cujo filho dizem que he? que eu ouvi ja sôbre isso não sei que fábulas.
DURIANO
Dir-vo-lo-hei; pasmareis, que não he menos que Principe, e peor ainda. Nunca ouvistes dizer de hum irmão do Senhor Dom Lusidardo que aggravado del Rei, se foi para os Reinos de Dinamarca?
MONTEIRO
Tudo isso ouvi ja.
DURIANO
Pois esse galante, em satisfação de muitas mercês que ElRei de Dinamarca lhe fizera, meteo-se d'amores com huma sua filha, a mais moça; e como era bom justador, manso, discreto, galante, partes que a qualquer mulher abalão, desejou ella de ver geração delle; senão quando, livre-nos Deos! se lhe começou d'encurtar o vestido; e porque estes sirgos não se desistem em nove dias, senão em nove mezes, foi-lhe a elle então necessario acolher-se com ella, porque não colhessem a ella com elle: acolheu-se em huma galé; e vêde la Princeza em huma galera nueva, con el marinero á ser marinera. Finalmente, vindo navegando todo esse Oceano Germanico, bancos de Frandes, mar d'Inglaterra, e trazidos á costa d'Hespanha, não os quiz a Ventura deixar gozar do repouso que nella buscavão: deo-lhe subitamente tamanha tormenta, que sem remedio deo a galé á costa, onde feita pedaços, morrêrão todos desastradamente, sem escapar mais que a Princeza com o que trazia na barriga, a quem parece que a Fortuna guardava para dar o descanso, que a seu pae e mãe negára. Sahio finalmente a moça na praia, tal qual o temeroso naufragio deixaria huma Princeza mais delicada que hum arminho; e indo assi a pobre mulher pola terra estranha e despovoada, e sem quem a encaminhasse por onde, despois de ter perdido toda a esperança de ter algum remedio, derão-lhe as dores de parto junto de huma fonte, aonde em breve espaço lançou duas crianças, macho e femia, como vizagras. E como a fraca compreição da delicada mulher não pudesse sustentar tantos e tão desacostumados trabalhos, facilmente deo a vida, que tanto havia que desejava de dar, deixando vivos aquelles dous retratos della e de seu pae, que por causa de seus nascimentos a vida lhe tirárão, como acontece a viboras. E como as crianças fossem destinadas ao que vêdes, não faltou hum pastor que as criasse, que alli veio ter, dando a mãe a alma a Deos: de maneira que, por não gastar mais palavras, o macho he vosso amigo Filodemo, e a femia he a serrana Florimena, mulher que he ja de Venadoro.
MONTEIRO
Estranhas cousas me contais. Assi que logo de seu pae herdou Filodemo namorar a filha do Senhor que serve: não haverá logo por mal o Senhor Dom Lusidardo tomar por genro e nora, quem acha por sobrinhos.
DURIANO
Sabei que chora de prazer com elles, que ja diz que acha que Filodemo se parece natural com seu irmão, e Florimena com sua mãe.
MONTEIRO
Dae-me a entender, como se creo tão de ligeiro o Senhor Dom Lusidardo de quem isso contou.
DURIANO
No caso não ha dúvida, porque o pastor que hi achastes, lhe certificou todo o caso; e fez ao pastor muitas mercês, e mandou fazer muitas festas solemnes. Venadoro, casado com sua mulher e prima, e Filodemo, que o mesmo parentesco tẽe com a Senhora Dionysa, estão fóra de crer tamanho contentamento; cuido que zombão delle.
MONTEIRO
Ora deixa-me ir a ver o rosto a esse velhaco de Filodemo; pois de meu matalote se me tornou Senhor. Creio que vem o Senhor Dom Lusidardo: dissimulemos.