Kitabı oku: «Hamlet», sayfa 2
SCENA III
Um quarto em casa de Polonio
Entram LAERTE e OPHELIA
LAERTE
Já embarcaram os meus creados e roupas. Adeus, minha irmã; quando ventos propicios encherem as vélas ao navio que me leva, espero que com a minha ausencia não esfriará a tua amisade, e que me darás novas tuas.
OPHELIA
Duvídas porventura, irmão?
LAERTE
Quanto ao que respeita a Hamlet e á sua frivola amisade, considera-a como uma moda ephemera, um capricho dos sentidos, uma violeta da primavera, precoce mas passageira, suave mas fenecendo ao desabrochar, e cujo perfume dura um minuto apenas.
OPHELIA
Só um minuto?
LAERTE
Só, acredita-me, porque o teu desenvolvimento não é só nos musculos e no corpo; á medida que o templo toma proporções mais vastas, tambem se expande o espirito e a alma. É possivel que te ame agora, que nenhuma macula, nenhuma deslealdade offusque a pureza dos seus sentimentos; mas acautela-te, porque na posição que occupa é-lhe vedada a propria vontade, é escravo do seu nascimento. Não póde, como os outros homens, escolher só por affeição, porque á sua escolha estão ligados o bem-estar e a salvação do estado; por isso deve subordinal-a ao voto e á approvação da nação de que é chefe. Se, pois, te fallar de amor, assisadamente usarás, não acreditando senão o que a sua posição lhe permitte offerecer, vistoque a sua vontade deve ser a vontade da nação. Pensa bem, que mancha para a tua reputação, se prestasses ouvidos por demais credulos, ao encanto das suas fallas, se envenenasses tua alma, se abrisses o cofre da castidade ás suas audaciosas instancias. Acautela-te, Ophelia, acautela-te, querida irmã, luta com a tua affeição para vencer as settas e os perigos dos desejos. A virgem prudente já é assás prodiga se patenteia a sua belleza aos raios lunares; a propria virtude não escapa aos golpes da calumnia; o verme roe as filhas predilectas da primavera, antes das flores desabrocharem; e é na aurora da vida, regada pelo puro e limpido orvalho, que ha mais perigo para a flor da castidade. Sê, pois, circumspecta, a melhor protecção é o receio do perigo; a juventude é para si mesma um perigo, se não trava luta com outros maiores.
OPHELIA
Em meu coração encerrarei, como um preservativo, a tua salutar lição. Mas, querido irmão, não sejas tu, como certos pastores sem virtude, que indicam ás suas ovelhas o caminho escarpado e espinhoso que conduz ao céu, emquanto elles, libertinos, fogosos e sem pudor, trilham o caminho das flores, da licença, e são a antithese das suas palavras.
LAERTE
De mim não te arreceies: já devia ter partido; eis meu pae.
Entra POLONIO
Uma dupla benção é um beneficio duplo; abençôo a occasião de me despedir segunda vez de ti.
POLONIO
Ainda aqui, Laerte? para bordo, para bordo. Não te envergonhas? Teu navio só te espera para velejar. Recebe a minha benção, e grava na tua memoria os seguintes preceitos. Guarda para ti o pensamento, e não dês execução apressadamente aos teus projectos; medita-os maduramente. Sê lhano sem te esqueceres de quem és. Quando tomares um amigo cuja affeição tenhas experimentado, liga-o a ti por vinculos de aço; mas não dês confiança irreflectidamente. Faze por evitar questões; mas se o não podéres conseguir, conduze-te de maneira que fiques sempre superior ao teu adversario. Ouve a todos, mas sê avaro de palavras; escuta o conselho que te derem, forma depois o teu juizo. No teu trajar sê tão sumptuoso, quanto t'o permittam os teus meios, mas nunca affectado; rico, mas não offuscante; o porte dá a conhecer o homem, e n'esse ponto, as pessoas de qualidade em França revelam um gosto primoroso, e o mais fino tacto. Não emprestes, nem peças emprestado: quem empresta perde o dinheiro e o amigo, e o pedir emprestado é o primeiro passo para a ruina. Mas sobre tudo sê verdadeiro para a tua consciencia, e assim como a noite se segue ao dia, seguir-se-ha tambem, que o teu coração jamais abrigará falsidade. Adeus, que a minha benção selle em teu coração os meus conselhos.
LAERTE
Despedindo-me, humildemente vos beijo a mão, meu pae.
POLONIO
Não tens tempo que perder, teus creados esperam-te.
LAERTE
Adeus, Ophelia, recorda-te das minhas palavras.
OPHELIA
Fechei-as no meu coração; dou-te a chave, guarda-a.
LAERTE
Adeus. (Sáe.)
POLONIO
Que te disse elle, Ophelia?
OPHELIA
Com licença de meu pae, fallou-me a respeito de Hamlet.
POLONIO
Folgo que o fizesse. Disseram-me que ultimamente Hamlet tem tido comtigo frequentes entrevistas, e que tu não te esquivas ás suas frequentes visitas. Se assim é, e creio na informação que me deram, devo dizer-te que não encaras a tua posição com a lucidez que convem a minha filha, e que a tua honra exige. Dize-me a verdade, o que ha?
OPHELIA
Protestos de amor.
POLONIO
De amor! como inexperiente fallas, conservas as illusões todas. Dás tu porventura credito aos seus protestos, como tu lhe chamas?
OPHELIA
Nem sei, senhor, o que devo pensar.
POLONIO
Pois bem, eu t'o digo. É necessario que sejas bem creança para crer uma realidade os seus protestos, de cuja sinceridade devéras duvido. Não te deprecies assim; seria uma loucura.
OPHELIA
O seu respeito foi inseparavel das suas phrases de amor.
POLONIO
E tu acreditas, pobre louca.
OPHELIA
Firmou as suas palavras com os juramentos mais sagrados.
POLONIO
Assim arma o caçador os laços á avesinha innocente e incauta. Sei que, quando o sangue ferve, a nossa bôca nunca se nega a protestos e juramentos. Minha filha, estes lampejos que dão mais luz que calor, e cujo brilho é ephemero, nunca os tomes por verdadeira chamma de amor. A datar de hoje, não malbarates tanto a tua presença virginal; difficulta mais as entrevistas, que não baste pedir para as obter. Quanto ao sr. Hamlet e á confiança que n'elle podes ter, considera que é joven, e que póde tomar liberdades de que depois tenhas que te arrepender. N'uma palavra, Ophelia, descrê dos seus juramentos, porque não são verdadeiros; interpretes de desejos profanos, revestem-se da linguagem da mais santa sinceridade. Uma vez por todas, e franqueza, filha, prohibo-te toda e qualquer conversa com o sr. Hamlet. Pensa bem. Ordeno-t'o.
OPHELIA
Obedecerei, meu pae. (Sáem.)
SCENA IV
A explanada do castello de Elsenor
Chegam HAMLET, HORACIO e MARCELLO
HAMLET
Que frio horrivel, gélo.
HORACIO
O ar está devéras glacial.
HAMLET
Que horas são?
HORACIO
Não deve tardar a meia noite.
MARCELLO
Está dando meia noite.
HORACIO
Já! não ouvi, em todo o caso approximâmo-nos da hora a que costuma apparecer o phantasma. (Ouvem-se ao longe tangeres de instrumentos, e o troar de artilheria.) Que rumor é este?
HAMLET
O rei consagra esta noite ao prazer, está bebendo, e a cada copo de vinho do Rheno, os timbales e clarins proclamam o brinde que levantou.
HORACIO
Isso é costume?
HAMLET
Sim é, mas apesar de eu ter nascido n'este paiz, e estar acostumado a estes usos, ha emquanto a mim mais gloria em infringil-os, do que em observal-os. Estas orgias abjectas trazem-nos, do oriente ao occidente, o desprezo das outras nações, que nos qualificam de ebrios, e juntam aos nossos nomes os epithetos mais grosseiros. Este defeito embaça as nossas mais brilhantes qualidades, e tira-lhes todo o valor. O mesmo acontece aos individuos. Se ao nascerem, receberam da natureza alguma macula original, de que não são culpados, poisque o nascimento é independente da nossa vontade; se os afflige algum vicio de temperamento contra o qual todos os esforços da rasão são impotentes, algum costume que desagrade nos seus modos destruindo-lhes o encanto; acontece a esses homens, tendo o estigma de um defeito unico, libré da natureza, sêllo da sua estrella, acontece, digo, que todas as suas virtudes, fossem ellas puras como a graça celeste, infinitas quanto comporta á humanidade, ficariam manchadas na opinião, publica por esse defeito unico. Basta uma mollecula de liga para depreciar esse metal.
Apparece a sombra
HORACIO
Senhor, eil-o.
HAMLET
Anjos do céu, poderes misericordiosos, protegei-nos. Genio bemfazejo, ou demonio infernal, que exhalas os perfumes celestes, ou as emanações do averno; que sejam sinistras ou caridosas as tuas intenções, appareces-me debaixo de uma fórma tão grata que te quero fallar. Interrogo-te, Hamlet, senhor, meu pae, rei de Dinamarca, oh! responde-me, não me deixes, na ignorancia, morrer de emoção; mas dize-me, porque teus bentos ossos encerrados no ataude romperam os sellos; porque te levantaste do tumulo em que te haviamos depositado; porque se ergueu a lapide sepulchral para te lançar a este mundo? Como, cadaver inanimado, vestindo a tua armadura de aço, vagueias tu á duvidosa claridade da lua, imprimindo á noite um caracter de horror, lançando-nos, fracos ludibrios da natureza, nas ancias do terror; e fazendo surgir em nossas almas pensamentos que excedem o nosso alcance? Responde. Porque? Com que fim? Que exiges?
HORACIO
Faz-vos signal de o seguir, como se quizesse fallar-vos a sós.
MARCELLO
Veja, principe, o gesto cheio de cortezia e dignidade, com que o convida a seguil-o a logar mais remoto; mas não vá.
HORACIO
Senhor, pelo amor de Deus.
HAMLET
Quer-me fallar, pois bem, seguil-o-hei.
HORACIO
Não faça tal, senhor.
HAMLET
Porque? que tenho eu a receiar, importa-me tanto a vida, como se fosse um alfinete; quanto á minha alma, nada póde contra ella, porque é immortal, como elle é. Repete o signal, vou seguil-o.
HORACIO
E se elle vos attrahisse ao Oceano ou ao pincaro escarpado de algum rochedo saliente e sobranceiro ao mar; e se tomasse alguma fórma horrivel, cuja vista vos varresse a rasão tornando-vos demente? Pensae bem, senhor, não receiaes alguma vertigem ao contemplar de alto a immensidade debaixo de vossos pés?
HAMLET
Continua a fazer-me signal. Caminha, sigo-te.
MARCELLO
Não ha de ir, senhor.
HAMLET
Ninguem me detenha.
HORACIO
Seja rasoavel, principe, não vá.
HAMLET
Ouço a voz do meu destino; brada alto, e cada um dos meus musculos adquiriu o vigor dos do leão de Nemea. (A sombra faz-lhe signal de a seguir.) Chama-me outra vez, deixem-me, senhores (escapa-se-lhes dos braços.) Por Deus, que não viverá, quem ousar oppôr-se-me. Afastem-se, já disse. (Á sombra.) Caminha, sigo-te. (A sombra e Hamlet afastam-se.)
HORACIO
Apoderou-se d'elle o delirio.
MARCELLO
Sigamol-o; desobedecer-lhe é forçoso n'estas circumstancias.
HORACIO
Não o abandonemos. Qual será o resultado!
MARCELLO
Algum vicio ha na constituição da Dinamarca.
HORACIO
O céu proverá o que for melhor.
MARCELLO
Sigamos o principe. (Sáem todos.)
SCENA V
Uma parte mais afastada da explanada
Chegam HAMLET e a SOMBRA
HAMLET
Onde pretendes conduzir-me; mais adiante não irei.
A SOMBRA
Encara-me, Hamlet.
HAMLET
Que queres?
A SOMBRA
Approxima-se a hora em que me devo recolher ás chammas sulphureas e ardentes.
HAMLET
Pobre alma!
A SOMBRA
Não me lastimes, mas presta attenção ao segredo que te vou revelar.
HAMLET
Falla, é meu dever escutar-te.
A SOMBRA
Dever tambem é vingar-me depois de me teres ouvido.
HAMLET
Que ouço!
A SOMBRA
Sou a alma de teu pae, condemnada a penar durante um tempo certo, a jejuar n'um carcere de chammas, até que as culpas que mancharam a minha vida estejam completamente expiadas e purificadas pelo fogo. Se não me fosse defezo revelar os segredos do meu carcere, far-te-ía uma narrativa de que cada palavra encheria de terror a tua alma, gelaria o teu sangue, os olhos quaes estrellas brilhantes saíriam das suas orbitas, os anneis do teu cabello desfazer-se-íam em completa desordem, e cada cabello ficaria hirto como as cerdas do javali; mas estes mysterios eternos não são para ouvidos profanos de carne e de sangue. Escuta, escuta, oh escuta-me! se alguma vez amaste teu carinhoso pae…
HAMLET
Oh céus!
A SOMBRA
Vinga a sua morte, causada por um assassinio, cobárde, infame e nefando.
HAMLET
Um assassinio?
A SOMBRA
Infame! todos os assassinios o são, mas nunca houve nenhum mais infame, inaudito e horrendo do que este.
HAMLET
Apressa-te em desvelar-m'o, para que prompto, como a meditação, ou como o pensamento de amor, possa saciar a minha vingança.
A SOMBRA
Grato sou ao teu empenho, Hamlet; era preciso que fosses mais apathico do que a planta grossa e crassa que immovel e inerte apodrece nas margens do Lethes, se não sentisses n'este momento commoção alguma. Agora, ouve-me. Espalhou-se que emquanto dormia no meu jardim, uma serpente me mordêra; é assim que uma fallaz narrativa enganou a Dinamarca sobre a causa da minha morte. Sabe tu pois a verdadeira, nobre mancebo: a serpente cujo dardo matou teu pae, cinge hoje a corôa d'este reino.
HAMLET
Oh meus propheticos presentimentos, meu tio!
A SOMBRA
Sim, esse monstro, incestuoso, adultero pela magia das palavras, pelos dotes insidiosos. Oh loquela perversa, oh dotes nefarios, poisque tem tal poder de seducção, e conseguiu inspirar essa vergonhosa paixão a minha mulher, apparentemente tão virtuosa. Oh! Hamlet, que degradação! Descer de mim, cujo amor nobre e digno não tinha desmentido um instante o juramento prestado junto ao altar, a um miseravel, entre cujas qualidades naturaes e as minhas havia um abysmo! Mas assim como a virtude resiste inabalavel ás tentações do vicio, aindaque debaixo da fórma da Divindade lhe apparecesse, assim tambem a impudicicia, embora associada a um anjo celeste de luz, cansa-se da santidade do leito conjugal, para ir habitar o mais desprezivel prostibulo. Mas já sinto a frescura da aurora, forçoso é que eu termine. Emquanto dormia no meu jardim, era esse o meu costume todas as tardes; teu tio, aproveitando a minha inconsciencia, approximou-se de mim, munido de um frasco de meimendro, e lançou-me n'um ouvido o conteúdo. É um veneno tão activo para o sangue humano, que com a subtileza do mercurio corre e se infiltra em todos os canaes, em todas as veias, coalhando e alterando o sangue pela sua acção energica: o mais puro e limpido não lhe resiste, é como uma gotta de qualquer acido n'uma taça de leite. Tal foi o seu effeito, que uma lepra instantanea cobriu meu corpo de uma crosta impura e infecta. Eis como durante o meu somno, tudo me foi arrebatado de uma vez, e pela mão de um irmão, vida, corôa e consorte. A morte surprehendeu-me em estado flagrante de peccado; sem sacramentos, sem me reconciliar, nem com Deus, nem com a minha consciencia; tinha que comparecer perante o Juiz Supremo vergando sob o peso das minhas iniquidades. Horror, horror, cumulo de horror! Se em teu coração vibra a fibra da sensibilidade, não o toleres. Não consintas que o leito do rei de Dinamarca se transforme em mansão da luxuria e do incesto. Mas seja qual for a tua vingança, conserva-te moral e puro, e poupa tua mãe. Entrega o seu castigo ao céu, e aos espinhos do remorso que lhe dilaceram o coração. Adeus, cumpre-me deixar-te; a luz do perilampo, cujo fogo sem calor começa a esmorecer, annuncia a approximação da aurora. Adeus, adeus, adeus. Recorda-te sempre de mim. (A sombra retira-se.)
HAMLET
Oh! santas legiões do céu, oh! terra, que mais? Invocarei o inferno? Oh! opprobrio; contém-te, ah! contém-te, meu coração, e vós, meus musculos, não percaes o vigor, e redobrae de força e energia para me suster. Recordar-me de ti? Sim, sombra infeliz, emquanto a memoria não abandonar este meu cerebro desordenado. Recorda-te de mim; sempre! quero varrer da minha memoria todas as recordações frivolas, todas as maximas colhidas nos livros, todos os vestigios, todas as impressões do passado, tudo quanto a juventude e a observação coordenaram, e em sua vez dar só lugar, sem rivaes, juro-o pelo céu, aos teus preceitos. Oh! mulher perversa, oh infame e damnado monstro! oh memoria, grava bem o seguinte, que nos sorrisos do homem se póde occultar um crime; assim é na Dinamarca (escreve n'uma carteira). Meu tio, espere-me. A minha senha será de hoje em diante. Adeus, adeus, adeus. Recorda-te de mim. Jurei-o.
HORACIO ao longe
Senhor, senhor?
MARCELLO ao longe
Senhor Hamlet?
HORACIO
Que o céu o proteja.
HAMLET
Assim seja.
MARCELLO ao longe
Olá, olá, senhor!
HAMLET
Pousa meu falcão, pousa. (Imita o canto do falcão e o chamamento do falcoeiro.)
Chegam HORACIO e MARCELLO
MARCELLO
O que se passou, senhor?
HORACIO
Que novas, senhor?
HAMLET
As mais extraordinarias.
HORACIO
Conte-nol-as, principe.
HAMLET
É um segredo.
HORACIO
E não sou eu capaz de o guardar? O principe conhece-me.
MARCELLO
E eu?
HAMLET
Que me dirão quando o souberem: que coração humano o teria pensado. Juram-me segredo?
HORACIO e MARCELLO
Jurâmos.
HAMLET
Não ha em toda a Dinamarca um scelerado igual.
HORACIO
Era necessario que um espectro saísse do tumulo para nol'o dizer?
HAMLET
É verdade, têem rasão. Basta de palavras, um aperto de mão, e cada um volte onde o chamam os negocios e as suas inclinações, porque todos têem inclinações e negocios, sejam quaes forem: eu, pobre pária do mundo, vou orar.
HORACIO
São palavras incoherentes e sem sentido, alteza.
HAMLET
Peza-me que te offendesses, peza-me devéras.
HORACIO
Em que, senhor?
HAMLET
Por S. Patricio, que te offendi e gravemente. Quanto á apparição de inda agora, é um phantasma honesto, digo-t'o eu. Quanto ao desejo de conhecerem, senhores, o que entre nós se passou, reprimam-n'o. E agora, meus bons amigos, em nome da nossa amisade, da nossa camaradagem de estudos e de armas, façam-me um favor.
HORACIO
Qual é? Não hesitâmos.
HAMLET
Nunca digam o que viram esta noite.
AMBOS
Conte com a nossa palavra, principe.
HAMLET
Quero um juramento.
HORACIO
Prometti o segredo.
MARCELLO
Já jurámos.
HAMLET
Mas jurem sobre a minha espada.
A SOMBRA (debaixo da terra)
Jurem.
HAMLET
Ah! ah! meu camarada, és tu que fallas; estás ahi, meu valente, approxima-te; ouvem a sua voz, prestem o juramento.
HORACIO
Diga-nos a formula, principe.
HAMLET (afastando-se um pouco com elles)
Jurem sobre a minha espada, que guardarão sigillo do que viram e ouviram.
A SOMBRA (debaixo da terra)
Jurem.
HAMLET
Hic et ubique. Vamos para mais longe. (Afastam-se um pouco.) Approximem-se, e estendendo a dextra sobre a minha espada, jurem por este gladio nunca revelar o que viram e ouviram.
A SOMBRA (debaixo da terra)
Jurem pela sua espada.
HAMLET
Bravo, velha toupeira, como caminhas depressa subterraneamente, que bello mineiro! Afastemo-nos mais uma vez, meus bons amigos.
HORACIO
Por vida minha, é prodigioso!
HAMLET
Acolhâmol-o como se acolhe um estrangeiro. O céu e a terra encerram mais mysterios, que os conhecidos pelos philosophos; mas venham. Notem o que notarem nos meus modos, se eu julgar necessario affectar maneiras extravagantes, jurem-me pela sua salvação que nunca cruzarão os braços, meneando a cabeça, nem lhes escaparão palavras ambiguas, como por exemplo: Muito bem, muito bem—já sabemos– ou —se quizessemos fallar– ou —ainda ha pessoas que se ousassem– ou outras expressões equivocas, dando a perceber que estão na confidencia; jurem que nada farão; e possa, quando mais precisarem, não lhes faltar a graça divina.
A SOMBRA (debaixo da terra)
Jurem.
HAMLET
Acalma-te, alma penada. Assim, senhores, recommendo-me á vossa affeição, e tudo quanto um homem tão debil como Hamlet possa fazer para lhes provar o seu affecto, fal-o-ha com a ajuda de Deus. Retiremo-nos juntos, e silencio; peço-lh'o eu. Ha no mundo alguma grande perturbação. Maldição. Porque serei eu o eleito para a terminar? Vamos, partâmos juntos.
Fim do acto primeiro
ACTO SEGUNDO
SCENA I
Uma sala em casa de Polonio
Entram POLONIO e RINALDO
POLONIO
Rinaldo, entrega a meu filho este dinheiro e estas letras.
RINALDO
Sim, meu senhor.
POLONIO
Mas antes de o procurar, obrarás assisadamente tomando informações a seu respeito.
RINALDO
Era essa a minha intenção.
POLONIO
Bem, muito bem; toma antes todas as informações pelos dinamarquezes que estão em París, vê as suas relações, e com quem se dão, quaes os seus gastos; depois de te assegurares pelas tuas perguntas que conhecem meu filho, procura colher informações mais exactas, sem comtudo o dar a entender. Dissimula que o conheces perfeitamente, dizendo, por exemplo: Conheço o pae e a familia, mas d'elle não tenho conhecimento algum. Entendes, Rinaldo?
RINALDO
Perfeitamente, senhor.
POLONIO
De todo não me é desconhecido, pódes acrescentar. Conheço-o pouco é verdade, comtudo aquelle de quem fallo é um dissipador com todos os seus defeitos; imputa-lhe então todos os vicios que te parecer, excepto aquelles que podem deshonrar um homem, toma conta n'isso; só as loucuras e imprudencias proprias de um joven que se sente livre de todo o constrangimento paterno.
RINALDO
O jogo, talvez?
POLONIO
Bem, e as bebidas, a esgrima, as pragas, o genio buliçoso, a convivencia do prostibulo, é até onde te auctoriso que chegues.
RINALDO
Actos são, na verdade, que não deshonram.
POLONIO
Sabes bem como te deves haver fazendo estas imputações. Não aggraves os factos accusando-o de devassidão continua e habitual; não pretendo tal; censura-o mas com discrição; exprime-te como se attribuisses as suas faltas aos defeitos inherentes á mocidade, ao abuso da liberdade, ao arrebatamento de um espirito fogoso, á effervescencia de um sangue ardente.
RINALDO
Mas, senhor?
POLONIO
Porque será conveniente obrar assim.
RINALDO
Para lh'o perguntar estava eu.
POLONIO
É onde eu queria chegar, e na minha opinião é um ardil sem igual. Depois de teres imputado a meu filho esses ligeiros defeitos, que se podem considerar quando muito como imperfeições n'uma bella obra; se o teu interlocutor, aquelle que queres sondar, notou no joven a que te referes algum dos vicios mencionados, está certo que responderá immediatamente: Meu caro senhor, ou meu amigo– ou meu cavalheiro– segundo o costume do individuo, ou o uso do paiz…
RINALDO
Prosiga, senhor.
POLONIO
Então… que estava eu dizendo? pela santa missa – que queria eu dizer? o que era?
RINALDO
Fallava da resposta…
POLONIO
Que te darão, é isso, e não deixarão de responder: Conheço esse mancebo, vi-o ainda hontem, ou outro qualquer dia, em tal epocha, com estes ou com aquelles, surprehendi-o jogando, ou n'uma orgia ou numa rixa, ou ainda, vi-o entrar n'uma casa suspeita; ou outras cousas similhantes: agora vês como com a mentira se colhe a verdade. É assim que nós, as pessoas entendidas, empregâmos a miudo o embuste e a falsidade para descobrir a verdade. Ahi está o caminho que seguirás para saber o comportamento de meu filho. Percebes agora?
RINALDO
Sim, meu senhor.
POLONIO
O Senhor seja comtigo, boa viagem.
RINALDO
Meu amo!
POLONIO
Observa tu mesmo as suas inclinações.
RINALDO
Fal-o-hei, senhor.
POLONIO
Mas não o distráias da sua vida.
RINALDO
Bem entendo.
POLONIO
Adeus. (Rinaldo sáe.)
Entra OPHELIA
POLONIO
Que te traz por aqui, Ophelia?
OPHELIA
Meu pae, meu pae, ainda tremo.
POLONIO
Porque? Falla por piedade.
OPHELIA
Querido pae, estava no meu quarto trabalhando em costura, quando de repente deparo com o sr. Hamlet, mas em que estado! as vestes em desordem, o cabello em desalinho, as meias caídas arrastavam pelo chão, pallido e branco como uma mortalha, tremiam-lhe as pernas, o rosto tinha a expressão do desespero, qual profugo do inferno mensageiro de novas horriveis.
POLONIO
Enlouqueceria por tua causa?
OPHELIA
Não sei, meu pae, mas receio-o devéras.
POLONIO
Que te disse elle, Ophelia?
OPHELIA
Tomou-me os pulsos, apertando-os convulsivamente, depois afastando-se á distancia do seu braço, levando a mão á testa, fitou os olhos no meu rosto, como se me quizesse retratar. Assim se demorou por largo tempo, por fim saccudindo-me levemente o braço, levantando e baixando por tres vezes a cabeça, suspirou tão profundamente, que todo o seu corpo estremeceu, parecia o prenuncio da morte. Feito isto, deixou-me, partiu e desviando a cabeça, como um homem que para achar caminho não precisa o auxilio da vista, transpoz a porta; mas então o seu olhar estava fito em mim.
POLONIO
Segue-me, filha, vou procurar o rei. É o delirio do amor; a sua violencia mata-o, e impõe á sua vontade actos de desespero, que nenhuma outra paixão humana excitaria. Peza-me sinceramente. Dize-me, ter-lhe-ías tu dirigido ultimamente alguma palavra cruel.
OPHELIA
Não, meu pae; mas obedecendo ás suas ordens, recusei as suas cartas e evitei a sua presença.
POLONIO
Eis o que perturbou a sua rasão. Doe-me de o não ter conhecido melhor: receiei que as suas intenções não fossem serias, e que só pretendesse consummar a tua ruina. Arrependo-me do fundo de alma das minhas desconfianças. Parece que o confiar cegamente na previdencia é o apanagio da minha idade, como o contrario é o defeito da mocidade. Vem, dirijâmo-nos ao rei, convem que elle nada ignore; porque o sigillo d'este amor poderia acarretar mais desgraças do que a sua revelação resentimentos. (Sáem ambos.)