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Kitabı oku: «Hamlet», sayfa 3

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SCENA II

Uma sala no castello de Elsenor
Entram o REI, a RAINHA, as suas comitivas, ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN
O REI

Sejam bemvindos, caros Rosencrantz e Guildenstern. Independentemente do gosto de os ver, a necessidade do seu prestimo me obrigou a chamal-os a esta côrte sem demora. Ouviram seguramente fallar da transformação de Hamlet; digo transformação, porque já não é o mesmo homem, nem moral nem physicamente. Só a morte do pae póde ser a causa do transtorno da sua rasão, não posso conceber outra. Educados com elle desde a infancia, sympathisando entre si pela idade e pelo caracter, peço-lhes que permaneçam algum tempo na côrte, procurem inspirar-lhe o gosto e prazer da sua convivencia, aproveitem todas as occasiões para descobrir se a sua afflicção não tem alguma causa desconhecida, cuja revelação nos permittisse dar-lhe remedio.

A RAINHA

Bastante tem fallado nos senhores, e estou convencida que ninguem no mundo lhes é mais affeiçoado. A liberalidade do rei compensará largamente os seus serviços e os seus incommodos. Esperâmos dos senhores esta prova de affeição.

ROSENCRANTZ

Vossas magestades são nossos soberanos, e os reis não pedem, mandam.

GUILDENSTERN

Estamos promptos a obedecer; disponham de nós, senhores. Depondo aos pés dos reis os nossos serviços e a nossa dedicação, pedimos-lhes só que ordenem.

O REI

Obrigado, senhores.

A RAINHA

Obrigada tambem eu; vão ter com meu filho: infelizmente mal o reconhecerão. (Á sua comitiva) Alguns d'estes senhores conduzam estes cavalheiros junto de Hamlet.

GUILDENSTERN

Praza a Deus, que a nossa presença lhe seja agradavel e os nossos cuidados um lenitivo.

A RAINHA

Deus queira. (Rosencrantz e Guildenstern sáem seguidos de alguns cortezãos.)

Entra POLONIO
POLONIO

Senhor, regressaram de Noruega os embaixadores, satisfeitos com o resultado da sua missão.

O REI

És sempre correio de boas novas.

POLONIO

Senhor! esteja vossa magestade certo que a minha alma põe a par a dedicação ao meu rei e o respeito e amor ao meu Deus. A menos que a minha sagacidade habitual me enganasse, descobri a verdadeira causa da loucura do senhor Hamlet.

O REI

Estou ancioso por conhecel-a.

POLONIO

Primeiro os embaixadores, depois eu.

O REI

Recebe-os, e encarrego-te de os introduzir á nossa presença. (Polonio sáe.) (Á rainha.) Annunciou-me, querida Gertrudes, que conhece a causa da doença de seu filho.

A RAINHA

Receio bem que a morte de seu pae e o nosso precipitado consorcio sejam as causas unicas.

O REI

Sabel-o-hemos em breve.

Entram POLONIO, VOLTIMANDO e CORNELIO
O REI

Bemvindos sejam, amigos. Falla tu, Voltimando; que novas trazes de nosso irmão de Noruega?

VOLTIMANDO

Envia-vos seus cumprimentos e sauda-vos cordealmente. Mal nos ouviu, ordenou ao sobrinho que pozesse fim aos seus preparativos guerreiros. Julgava-os dirigidos contra a Polonia; mas convencido por um detido exame que eram contra vossa magestade, e indignado por Fortimbraz se prevalecer do estado precario, a que a idade e a doença o tinham reduzido, ordenou-lhe que comparecesse na sua presença. Fortimbraz obedeceu á ordem intimada, e depois de severamente reprehendido pelo rei de Noruega, prestou nas mãos de seu tio o juramento de nada emprehender contra vossas magestades. O idoso monarcha, para provar o seu jubilo, concedeu-lhe uma pensão annual de tres mil escudos, e licença para combater os polacos com as tropas alistadas. Ao mesmo tempo pede-vos pelas presentes (entrega as cartas), que concedaes ás suas tropas livre passagem pelo vosso territorio nas condições estipuladas n'este escripto.

O REI

Este resultado enche-nos de satisfação; quanto ao pedido, lel-o-hemos, e depois de maduramente examinado, responderemos. Agradecemos-lhes os seus valiosos serviços. Descansem agora; juntos ceiaremos logo. (Voltimando e Cornelio sáem.)

POLONIO

Felizmente está terminado este negocio. Senhor e senhora; discutir o que constitue a auctoridade, e em que consiste a obediencia dos subditos, porque a noite é noite, o dia é dia, e o tempo é tempo, seria perder sem proveito a noite, o dia e o tempo; por isso, visto que a concisão é a alma do espirito, emquanto que a prolixidade é só o corpo ou o involucro exterior, serei breve: Vosso nobre filho está louco, digo louco, porque haveria falta de rasão em querer definir o que constitue verdadeiramente loucura. Passemos adiante…

A RAINHA

Menos estylo, Polonio.

POLONIO

Senhora, não faço estylo, juro-o. Seu filho está louco; é triste, mas é verdade. É verdade que é uma lastima, mas é uma lastima que seja verdade; é uma estulta antithese, mas tal qual é acceite-a; não emprego arte. Está louco; resta-nos procurar a causa d'esse effeito, ou antes defeito, porque forçosamente a deve ter. Siga bem o meu raciocinio: Tenho uma filha, tanto a tenho, que me pertence. Minha filha, fiel ao dever e á obediencia que me deve, note bem, entregou-me este escripto. (Mostra um papel.) Reflicta e depois tire a conclusão. (Lê.) Ao idolo da minha alma, á celeste Ophelia, á belleza personificada… É uma desgraçada e estulta expressão. Conserva preciosamente estas linhas, no teu seio alabastrino…

A RAINHA

É de Hamlet a Ophelia.

POLONIO

Espere um momento, senhora, cito textualmente. (Lê)

 
Duvida que do céu a abobada azulada
Tenha espheras de luz de um magico esplendor,
Duvida seja o sol o facho da alvorada,
Duvida da verdade em tua alma gravada,
Mas não duvides nunca, oh! nunca, d'este amor.
 

Querida Ophelia, não sou poeta, não sei modular suspiros com arte, mas podes acreditar que te amo, mais que tudo n'este mundo. Adeus, a ti, para sempre minha vida, a ti emquanto esta machina mortal me pertencer.==Hamlet.==Eis-ahi o que, por obediencia, minha filha me entregou. Já antes ella me tinha confiado as tentativas de Hamlet, á proporção que renovava as suas instancias amorosas.

O REI

Como pôde ella acolher este amor?

POLONIO

Em que conta me tem, senhor?

O REI

Na de um homem leal e honrado.

POLONIO

Farei por merecer sempre esse conceito a vossa magestade; mas que pensaria o rei de mim, se vendo despontar esse amor, e já o tinha adivinhado antes da confissão de minha filha, que pensariam o rei e a rainha, se me calasse, e me tornasse mudo confidente do seu amor; se, testemunha da sua paixão, tivesse imposto silencio ao meu coração, ou se a considerasse com indifferença? má idéa por certo fariam de mim. Não perdi um momento, disse a minha filha: O senhor Hamlet é um principe collocado fóra da tua esphera; isto não póde ser.– Ordenei-lhe então que evitasse a sua convivencia, e que nunca mais recebesse nem mensagens nem dadivas. Seguiu o meu conselho, e para abreviar a minha narração, o principe, vendo-se assim repellido, caíu primeiro n'uma profunda tristeza, em seguida repugnaram-lhe os alimentos, mais tarde teve insomnias, depois abatimentos e fraqueza intellectual, finalmente, e sempre gradualmente, chegou á demencia e ao delirio. Deplorâmol-o todos.

O REI

E pensas ser essa a causa?

A RAINHA

É muito provavel.

POLONIO

Quizera me dissessem, se aconteceu alguma vez affirmar eu alguma cousa que não fosse certa.

O REI

Nunca que eu saiba.

POLONIO

Se não é verdade o que disse (mostrando a cabeça), que esta role a seus pés. Basta-me a mais simples circumstancia para descobrir a verdade, aindaque estivesse occulta nas entranhas da terra.

O REI

Por que modo nol-o poderás tu provar.

POLONIO

Vossa magestade não ignora que o sr. Hamlet algumas vezes passeia quatro horas consecutivas n'esta galeria.

A RAINHA

É certo.

POLONIO

Quando ali estiver, enviar-lhe-hei minha filha, e nós, occultos por detrás d'esta cortina, seremos testemunhas da entrevista. Se não a ama, se não foi o amor a causa da sua loucura, deixe eu de pertencer aos conselhos de vossa magestade, e faça de mim um quinteiro, um hortelão ou um abegão.

O REI

Tentemos a experiencia.

HAMLET entra lendo
A RAINHA

A leitura é a unica distracção d'este infeliz.

POLONIO

Retirem-se ambos por piedade. Vou fallar-lhe. Confiem em mim. (O rei e a rainha sáem) Como se sente o sr. Hamlet?

HAMLET

Bem, Deus louvado.

POLONIO

Conhece-me, principe?

HAMLET

Se conheço, és um vendilhão de peixe.

POLONIO

Engana-se, senhor.

HAMLET

N'esse caso, queria que ao menos fosses tão honrado.

POLONIO

Honrado?

HAMLET

Sim; pelo caminho em que vae o mundo, custa achar um homem honrado entre dez mil.

POLONIO

É uma triste verdade.

HAMLET

Ora o sol gera vermes no animal putrefacto, e embora divindade, acaricia o cadaver. Tens uma filha, não é verdade?

POLONIO

Sim, meu senhor.

HAMLET

Não a deixes caminhar ao sol, a concepção é um beneficio do céu, mas como tua filha póde conceber, cuidado… meu caro.

POLONIO

Que quer dizer, principe? (á parte) minha filha é a sua constante preoccupação, mas não me reconheceu logo, tomou-me por um vendilhão de peixe. O seu cerebro está gravemente atacado; verdade é, que na minha mocidade o amor algumas vezes me reduziu a um estado similhante a este. Dirijâmos-lhe de novo a palavra. Que está lendo, senhor?

HAMLET

Palavras e mais palavras, só palavras.

POLONIO

De que se trata, senhor?

HAMLET

Quem, o que?

POLONIO

Pergunto o que contém o livro que está lendo.

HAMLET

Calumnias, nada mais. O satyrico auctor tem a impudencia de dizer que nos velhos a barba é grisalha, a pelle rugosa, e que seus olhos distillam ambar e gomma em fusão; que o espirito está caduco, as pernas não os sustêem; tudo cousas que creio em minha consciencia, mas que se não devem escrever. Quanto ao senhor, poderia ter a minha idade, se podesse andar para trás como os caranguejos.

POLONIO (á parte)

Aindaque louco póde coordenar as idéas. (Alto.) Quer vir tomar ar, meu senhor?

HAMLET

Que ar? o do tumulo?

POLONIO (á parte)

Que agudeza e que verdade na replica. Ás vezes as palavras dos loucos têem mais conceito que as dos sãos. Vou deixal-o, e preparar a sua entrevista com minha filha. Senhor, tomo a liberdade de me retirar.

HAMLET

Nada podia tomar, que eu désse com mais gosto; excepto a vida, excepto a vida, excepto a vida.

POLONIO

Adeus, meu senhor.

HAMLET (á parte)

Que imbecil e fastidioso velho.

Entram ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN
POLONIO

Procuram o sr. Hamlet, eil-o.

ROSENCRANTZ (a Hamlet)

Deus seja comvosco, senhor. (Polonio sáe)

GUILDENSTERN

Meu nobre senhor.

ROSENCRANTZ

Querido principe.

HAMLET

Meus bons e queridos amigos, como estão, tu Guildenstern e tu tambem Rosencrantz, meus caros, como passam.

ROSENCRANTZ

Nem bem, nem mal.

GUILDENSTERN

Não nos peza demasiado a nossa felicidade, e não tocâmos o ponto culminante da fortuna.

ROSENCRANTZ

Nem temos tambem rasões de queixa.

HAMLET

No meio está a virtude, é quando chovem as graças.

GUILDENSTERN

Vivemos familiarmente com ella.

HAMLET

Estão pois na intimidade da fortuna; não me admira, é uma cortezã. Que novas ha?

ROSENCRANTZ

Nenhumas, senhor, a não ser que este mundo se tornou virtuoso.

HAMLET

Em tal caso o seu fim está mui proximo, mas o que dizes é falso. Permittam-me uma pergunta que lhes diz respeito. Digam-me, que mal fizeram á fortuna para ella os enviar para este carcere?

GUILDENSTERN

Carcere, senhor?

HAMLET

A Dinamarca tambem é carcere.

ROSENCRANTZ

Então é-o o mundo todo.

HAMLET

Sim, uma vasta prisão que em si encerra um grande numero de carceres, dos quaes o peior é de certo a Dinamarca.

ROSENCRANTZ

Não somos da mesma opinião, principe.

HAMLET

Para os senhores não será uma prisão a Dinamarca, porque o bem ou o mal não existem senão quando assim o julgâmos. Para mim é.

ROSENCRANTZ

A ambição faz parecer a Dinamarca uma prisão a vossa alteza, não cabe n'ella a sua alma.

HAMLET

Acharia vasto reino uma casca de noz, se não fossem os meus terriveis sonhos.

ROSENCRANTZ

São justamente esses sonhos que constituem a ambição, porque toda a substancia do ambicioso é a sombra de um sonho.

HAMLET

Assim os mendigos são corpos, e os monarchas e os heroes ambiciosos não são senão a sua sombra. Querem que vamos á côrte? porque sinceramente não me sinto disposto a discutir.

AMBOS

Estamos ás suas ordens, principe.

HAMLET

Não o comprehendo eu assim, não o quero confundir com o resto dos meus creados; porque, para lhes dizer a verdade, sou pessimamente servido. Mas, com franqueza, amigos, o que os trouxe a Elsenor.

ROSENCRANTZ

Unicamente visitar a vossa alteza, nenhum outro motivo.

HAMLET

Estou tão pobre, tão alheio ao reconhecimento! mas recebam os meus agradecimentos pelo preço que valem. Não os mandaram chamar? Foi por motu proprio que vieram? É a affeição que aqui os trouxe? Vamos, sejam francos, vamos, fallem.

ROSENCRANTZ

Que quer que digâmos, senhor?

HAMLET

Tudo quanto lhes aprouver, mas respondam á minha pergunta. Mandaram-os chamar? Leio nos seus olhos uma confissão, que a sua candura não sabe dissimular. Sei que o nosso bom rei e a nossa excellente rainha os mandaram chamar.

ROSENCRANTZ

Com que fim, senhor?

HAMLET

Os senhores é que o poderão dizer; mas imploro-lhes, pelos direitos da nossa amisade, pelas sympathias da nossa idade, pelos deveres que nos impõe a nossa verdadeira affeição, emfim por todas as rasões as mais convincentes que podesse allegar o mais habil orador, sejam francos e sinceros commigo; mandaram-os chamar? Sim ou não.

ROSENCRANTZ (a Guildenstern)

Que devemos responder?

HAMLET (á parte)

Não os perderei de vista. (Alto.) Se devéras me têem affeição, expliquem-se com franqueza.

GUILDENSTERN

Pois bem, senhor, mandaram-nos chamar.

HAMLET

E eu dir-lhes-hei porque; d'est'arte a minha confissão precederá as suas investigações, e o segredo promettido ao rei e á rainha, não será nem de leve violado. Ultimamente, nem sei por que, perdi toda a minha alegria, renunciei a toda a especie de exercicio; e sinto na alma uma tal tristeza, que esta maravilhosa machina, a terra, me parece um esteril promontorio, este esplendido docel, o céu, esse magnifico firmamento suspenso sobre nossas cabeças, essa abobada sumptuosa, onde brilha o oiro de innumeras estrellas, tudo me parece um infecto monturo de vapores pestilentes. Que obra prima dos homens! que elevação na sua intelligencia! quanto são infinitas as suas faculdades! como a sua fórma é imponente e admiravel, como os seus actos approximam os homens dos anjos, e a sua rasão os approxima de Deus! são a maravilha do mundo, os reis da creação animada, e comtudo o que vale a meus olhos essa quinta essencia do pó? Aborreço os homens e as mulheres, embora os seus sorrisos incredulos, senhores, digam o contrario.

ROSENCRANTZ

Não tinhamos em nosso pensamento tal intenção.

HAMLET

Então porque se riram quando disse que aborrecia os homens?

ROSENCRANTZ

É que eu pensava que, se os homens lhe são odiosos, triste acolhimento receberiam os actores que encontrámos no caminho e que vem offerecer a vossa alteza os seus serviços.

HAMLET

Bemvindo será o que representa os reis; tributarei a sua magestade as minhas homenagens; o cavalleiro andante manejará adaga e escudo, debalde não suspirará o namorado, o comico declamará em paz a sua parte; o bobo provocará o riso aos mais hypocondriacos, emfim a namorada estropiará os versos para não deixar de dizer o que cumpre sinta no coração. Que actores são?

ROSENCRANTZ

São os tragicos da cidade, que lhe agradavam tanto.

HAMLET

Porque se tornaram actores ambulantes? Com a permanencia na cidade, auferiam de certo maior honra e lucros.

ROSENCRANTZ

Innovações recentes foram a causa d'isso.

HAMLET

Ainda gosam da mesma reputação que tinham quando eu habitava a cidade? As suas representações ainda são muito concorridas?

ROSENCRANTZ

Pouco, senhor.

HAMLET

Porque será? Terão elles desmerecido no seu modo de representar?

ROSENCRANTZ

Não, meu senhor; o seu zêlo não arrefece: mas vossa alteza de certo saberá, que appareceu um enxame de creanças, apenas saídas da primeira infancia, que declamam o dialogo o mais simples, no tom o mais elevado, e por isso são calorosamente applaudidas. São moda, e lançaram um tal desfavor sobre os actores ordinarios, como ellas lhe chamam, que muitos homens valentes no campo da batalha, mas que temem as pennas aguçadas, não ousam frequentar o verdadeiro theatro.

HAMLET

Como? pois são creanças? Quem as protege? quem lhes paga? quererão unicamente seguir a sua profissão emquanto conservarem a sua voz aflautada? E se um dia pela força das circumstancias se tornarem actores ordinarios, não terão direito então de se arrependerem, de terem acceitado os encomios das pennas que bem mau serviço lhes prestaram, quando se voltarem contra elles as armas de que se serviram para mal dos outros.

ROSENCRANTZ

Não luctaram pouco entre si, e a nação inteira animou a contenda. Houve um momento em que a receita do emprezario dependia de brigarem os actores e auctores.

HAMLET

Será crivel?

ROSENCRANTZ

Houve mais de uma cabeça quebrada.

HAMLET

E foram as creanças que venceram?

ROSENCRANTZ

Sim, meu senhor. Venceram o proprio Hercules com o seu globo.

HAMLET

Nada me admira, sendo meu tio rei de Dinamarca. Os que o evitavam em vida de meu pae, pagam agora o seu retrato em miniatura, por vinte, cincoenta e cem ducados. Por vida minha que ha alguma cousa sobrenatural em tudo quanto presenceâmos, e que em verdade a philosophia devia esmerar-se por descobrir. (Ouve-se o som de uma musica de clarins ao longe.)

GUILDENSTERN

Chegam os actores.

HAMLET

Senhores, bemvindos sejam em Elsenor. As suas mãos que eu as aperte. O que distingue um bom acolhimento são os cuidados e as attenções polidas; deixem-me recebel-os assim para não parecer que a cortezia para com os actores, com os quaes é minha intenção ter a maior, ultrapassa a que lhes testemunho pessoalmente aos senhores. Bemvindos sejam, mas o tio que tenho por padrasto, e a mãe que tenho por tia estão completamente enganados a meu respeito.

GUILDENSTERN

Em que se enganam elles?

HAMLET

Só estou louco quando o vento sopra do nor-noroeste, em soprando do sul, distingo uma garça de um falcão.

Entra POLONIO
POLONIO

Saudo os senhores.

HAMLET

Escuta, Guildenstern, (a Rosencrantz) e tu tambem: a bom entendedor meia palavra basta; esta creança que vêem ainda usa coeiros.

ROSENCRANTZ

Talvez que os torne a usar; a velhice é, segundo dizem, uma segunda infancia.

HAMLET

Aposto que me vem fallar nos actores; vão ver. Tem rasão, senhor, foi effectivamente na manhã de segunda feira.

POLONIO

Trago uma nova para vossa alteza.

HAMLET

Tenho tambem uma para o senhor. Quando Roscio era actor em Roma…

POLONIO

Os actores acabam de chegar.

HAMLET

Não é verdade.

POLONIO

Palavra de honra.

HAMLET

Cada actor virá montado n'um jumento.

POLONIO

São os melhores actores do mundo para a tragedia, comedia, drama historico e pastoril, pastoral comica e historica, pastoral tragico-comico-historica, com ou sem unidade do logar da acção. Para elles não ha difficuldades, são tristes com Seneca, folgasãos com Plauto. Não têem rivaes quanto ao estylo e á expressão.

HAMLET

Ó Jephthé, juiz em Israel, que thesouro possuias!

POLONIO

Que thesouro possuia elle, senhor?

HAMLET

Mas…

 
Uma filha, uma só, mas essa encantadora
Que era da noite sua a celestial aurora.
 
POLONIO (á parte)

Ainda minha filha.

HAMLET

Não tenho eu rasão, velho Jephthé?

POLONIO

Se me chama Jephthé, é porque tenho uma filha que estremeço.

HAMLET

Não é consequencia.

POLONIO

Então qual é a consequencia?

HAMLET

Eil-o.

Mas Deus sabe porque o conto é memoravel!

Conhece o seguimento?

Um dia aconteceu… o que era mais provavel.

Para o final recorde-se da primeira parte d'estas trovas, porque eis quem me obriga a terminar.

Entram tres ou quatro ACTORES
HAMLET (continuando)

Bemvindos todos, bemvindos sejam. Estou encantado de te ver de boa saude, bemvindos sejam, amigos. Ah, meu amigo, que mudança! já com barba! Quererás tu fazer-me sombra em Dinamarca? Ah eis-vos tambem aqui, minha menina! Por nosso senhor, depois que vos vi, subistes apenas um degrau para o céu. Deus queira que a vossa voz, moeda de liga mutavel, não se deprecie de mais com o tempo. Senhores, para mim são todos bemvindos; mas vamos direitos ao assumpto, como os falcoeiros francezes, que largam o falcão á primeira peça de caça que se apresenta, mostrem-me a sua pericia; vamos, um trecho bem pathetico.

PRIMEIRO ACTOR

Que trecho preferis, senhor?

HAMLET

Ouvi-te um dia declamar um trecho de uma peça nunca representada em scena, ou quando muito uma unica vez, porque, se bem me lembro, a peça não agradou a todos; era caviar para o geral do publico: mas, segundo a minha opinião e das pessoas que n'este assumpto têem voz mais auctorisada do que a minha, era uma peça excellente, bem conduzida e escripta com tanta decencia como arte. Pelo que me lembro, diziam que os versos não eram bastante picantes para compensar a insipidez da acção, seu estylo na verdade nada tinha de affectado, mas que quanto ao resto a peça, escripta com tanta simplicidade como methodo, era natural, agradavel, e sem pretensão. Havia sobretudo um trecho que me agradou, era, na falla de Eneas a Dido, o ponto em que lhe refere a morte de Priamo. Se ainda te recordas, começa n'esta phrase, espera, deixa-me ver se me lembro.

Pyrrho, Pyrrho feroz como o tigre da Hyreania

Não é isso – começa por Pyrrho.

 
Este ouriçado Pyrrho havia uma armadura
Que, bem como a alma, tinha a côr da noite escura
Quando elle era a dormir no cavallo sinistro.
Mensageiro do mal, de Belzebut ministro,
No corpo traz agora, em rubros caracteres,
Mais sinistro brazão; da fronte aos pés o cora
O sangue d'anciãos, d'infantes, de mulheres,
E por mil bôcas, mata a sêde que o devora
No sangue recosido aos raios d'essa chamma
Que Troia, em fogo ardendo, em torno a si derrama.
Tisnado pelo fogo e pela raiva ardente
Após Priamo corre…
 

Continúa tu agora.

POLONIO

Boa declamação na verdade, com as medidas e intonações proprias.

PRIMEIRO ACTOR
 
O velho, já cansado,
Mal vibra um frouxo golpe; aquella espada, outr'ora
Como o raio veloz, lá onde cae descansa,
Indocil á vontade, e á mão rebelde agora,
Oh lucta desigual! lucta sem esperança,
Pyrrho de raiva acceso, investe em frente e ao lado!
E, só do gladio ao sôpro eil-o no chão prostrado
O guerreiro senil! Então, Troia abatida
Parece haver sentido, os golpes derradeiros:
Ao ver prostrado o rei exhaure-se-lhe a vida,
Desabam sobre a base em chammas os outeiros,
E o som cavo e profundo a Pyrrho fere o ouvido.
Eis de repente o gladio, a grande altura erguido,
Já prestes a immolar a fronte alva, nevada,
Do venerando rei, detem-se lá na altura.
E Pyrrho assim parece um tyranno em pintura,
Suspenso entre a vontade e a obra começada!
Mas como, muita vez, pouco antes da procella
Se faz como que ouvir um silencio que gela,
Pára a nuvem no céu, o vento não retumba,
E a terra a nossos pés é muda como a tumba;
Subitamente após se vê no fundo baço
Um raio que illumina e rasga o immenso espaço,
Assim de Pyrrho a furia, instantes mal contida,
Irrompe a completar a obra interrompida.
Dos Cyclopes jamais caíram retumbantes
Com remorso menor os malhos flammejantes
Para forjar de Marte a gravida armadura,
Que sobre o nobre velho, ensanguentada, impura,
De Pyrrho a espada ardente!.. É finda a horrenda lucta!
Atrás, fortuna, atrás, atrás, vil prostituta!
Vós, deuses immortaes, em synodo sagrado,
Roubae-lhe o audaz poder, quebrae todos os raios
Ás rodas do seu carro, e lá do céu lançae-os
Tão baixo que o demonio os veja sempre ao lado.
 
POLONIO

Parece-me demasiado longo.

HAMLET

Para o encurtar manda-se a um barbeiro ao mesmo tempo que a tua barba. (Ao actor.) Continúa, peço-to eu; se não lhe apresentam um bailado grutesco, ou uma scena immoral adormece logo. Continúa, pois, chegámos a Hecuba.

PRIMEIRO ACTOR

Mas quem visse, oh, quem visse a rainha embuçada!

HAMLET

A rainha embuçada.

POLONIO

Optimo, embuçada é bom.

PRIMEIRO ACTOR
 
Correndo, nus os pés; com lagrimas que chora
As chammas, apagando; a fronte coroada
Por um farrapo vil, a fronte onde ainda agora
Brilhava um diadema; apenas mal vestida
Por coberta alcançada á pressa na fugida;
Quem visse tanto horror, acaso concebêra
Que a fortuna só tem entranhas de uma fera;
Mas se os deuses do Olympo houvessem escutado,
Quando ella vira Pyrrho entregue ao estranho goso
De cortar membro a membro, o corpo ao morto esposo,
De seu peito fremente, o grito amargurado
A não ser que da terra ao céu não suba a magua
Sentiriam como ella os olhos rasos d'agua!
 
POLONIO

Vejam, empallidece, o pranto inunda-lhe os olhos. Basta, peço-to.

HAMLET

Está bem, o resto m'o recitarás n'outra occasião; (a Polonio) queira prover que estes actores sejam bem tratados, percebeu? que nada lhes falte, porque são a chronica resumida e viva da epocha. Mais lhe valeria, Polonio, um mau epitaphio depois da sua morte, do que o seu vituperio em vida.

POLONIO

Tratal-os-hei segundo os seus merecimentos.

HAMLET

Melhor, meu caro, melhor; se se tratasse cada um segundo os seus merecimentos, de poucos se faria caso. Trate-os como o deve á jerarchia e á sua propria dignidade. Quantos menos titulos tiverem á sua benevolencia, mais se deve esmerar no seu tratamento. Agora póde-se retirar com elles.

POLONIO

Venham, senhores.

HAMLET

Sigam-o, meus amigos, ámanhã teremos a representação, (Polonio sáe com os actores, menos um a quem Hamlet faz signal que fique.)

HAMLET (continuando)

Dize-me, meu caro amigo, poderias representar a morte de Gonzaga?

PRIMEIRO ACTOR

Com mil vontades, senhor.

HAMLET

Então ámanhã. Dize-me mais, poderias tu aprender de cór, sendo preciso, doze ou dezeseis linhas que eu desejava intercalar na peça? pódes, não é verdade?

PRIMEIRO ACTOR

Posso perfeitamente, meu senhor.

HAMLET

Fica pois ajustado, segue aquelle senhor, e só te peço que não zombes d'elle. (O actor sáe.)

HAMLET (a Rosencrantz e Guildenstern)

Meus bons amigos, até á noite, estimei vel-os em Elsenor.

ROSENCRANTZ

Meu senhor. (Sáe com Guildenstern.)

HAMLET

Finalmente estou só. Que miseravel eu sou! Pois não será monstruoso que este actor, n'uma ficção, na expressão de uma dor simulada, podesse elevar a sua alma, identificando-se com a sua parte, exaltando-se a ponto de empallidecer, de lhe borbulhar o pranto nos olhos, de se lhe pintar o desespero nas feições, entrecortada está a sua voz, e o seu todo faz uma verdade, de que não é senão uma situação fingida! E tudo, por quem? por Hecuba; que é Hecuba para elle, ou elle para Hecuba, para que a sua memoria lhe arranque lagrimas tão sentidas? Que faria elle no meu logar, se tivesse tantos motivos de dor, quantos eu tenho. Inundava de pranto a scena, aterrava os espectadores pela sua expressão terrivel, fulminava o culpado, atemorisava o innocente; attonitas ficavam as almas simples, e a commoção aos sentidos da vista e do ouvido seria geral. E eu, alma tibia, intelligencia confusa, fico n'uma estupida inacção, indifferente á minha propria causa, e nada acho que dizer, nada, mesmo nada a favor de um rei que perdeu a corôa e a vida pelo mais inaudito attentado! Ah como sou cobarde! Infame me deveriam chamar, esbofetear-me, arrancar-me as barbas, lançar-m'as ao rosto com o desprezo; insultar-me deveriam todos, dizer-me que pela gorja menti, e obrigar-me a soffrer calado todos os vilipendios possiveis. Quem quer fazel-o. Por vida minha que era justo; é forçoso que eu seja inoffensivo como uma pomba sem fel, para levantar uma offensa, para não ter feito pasto dos abutres as entranhas d'esse miseravel, sanguinario e impudico scelerado. Monstro de perfidia, juntas ao assassinio o adulterio! Como sou estupido! É bello na verdade ver-me, a mim, o filho de um rei e pae assassinado, a quem céus e terra instigam á vingança, gastar a minha indignação em palavras e vãs imprecações, como a mais vil e desprezivel prostituta. Que vergonha!! Procuremos Uma idéa… (depois de uma pausa prolongada) Eil-a, achei. Ouvi dizer que criminosos, assistindo a representações dramaticas, de tal modo se perturbaram vendo a sua culpa em scena, que espontanea e immediatamente fizeram confissão do seu crime, porque o assassino embora mudo trahe-se e falla. Quero que os actores representem, na presença de meu tio, a morte de meu pae, observarei as suas feições, sondarei as suas impressões; se se perturbar, sei o que me cumpre fazer. O espirito que me appareceu talvez seja um demonio, porque póde revestir-se da fórma de um objecto amado, tem poder sobre as almas melancholicas, e quem sabe se na minha fraqueza e dor acha os meios para me perder, condemnando-me para sempre. Quero ter a certeza completa; o drama em questão será o laço armado á consciencia do rei. (Sáe.)

Fim do acto segundo