Kitabı oku: «Contos Phantasticos», sayfa 4
– Oh meu pae! eu não sei o que me faz tão cedo aborrecer as galas, as seducções do mundo, e me mostra a vida como um dezerto invio, intransitavel. A alma sente um vacuo que ninguem pode encher. É o christianismo que me faz germinar no espirito este sentimento vago, uma sêde d'esse goso sem limites da visão beatifica, uma aspiração, um desejo ardente de regressar á eterna patria, de me confundir nos córos archangelicos, ao som do trissagio perenne. A natureza por mais esplendida e vicejante, as flores de aromas mais exquisitos, o céo mais admiravelmente cravejado de estrellas, o azul, o espaço aberto, causam-me o desgosto que havia sentir Moysés do alto da montanha vendo ao longe a terra promettida e sem poder attingil-a. Quanto mais me sinto enleada n'este encanto divino da contemplação interior, torna-se-me mais intenso o desejo de abandonar o desterro d'este valle de lagrimas, quebrar os vinculos da carne, e acordar no empyreo. Este corpo que me déste é a prisão em que a alma suspira e anceia por soltar-se; ella é a escrava da Escriptura que vaga á mingua de uma gôta de agoa no dezerto: ella tem diante de si um abysmo, que precisa transpôr sem o fitar. Eu senti em sonho este hymeneu recondito e incomprehensivel do amor divino. O Amado erra pelas brenhas, chamando a Esposa perdida. Eu não me posso elevar até Deus, o Deus absconditus, pela intelligencia, como os doutores; deixae que a alma vulgar e humilde, desconhecendo essa vereda intrincada, caminhe conduzida pela intensidade do seu desejo á eterna fonte suprema do bem. Eu quero professar em um mosteiro, seguir a regra da penitencia austera, voltar para a arca santa, como a pomba do diluvio. Quero envolver-me no burel, mergulhar-me na escuridão de uma cella, e scismar embalada nas musicas do extasis.
– Marcella! para que vaes tornar assim a minha solidão mais dolorosa? Teu irmão, perdi-o ainda tão criança! Eras só tu que me restavas no mundo. Sem ti, de que serve a vida que levo devorada pelas recordações do passado. Eu perdi uma esposa, que asserenava em meu coração as tempestades do amor. Tinha em ti meu unico refrigerio, e desamparas-me quando me vejo mais só! Pobre filha! Terá ella vergonha do mundo? do seu nascimento illegitimo? Que provação tão dura e repentina me estava reservada em castigo de uma mocidade turbulenta! Vae, filha, corre aos braços do divino Esposo: elle só póde dar-te a grinalda immarcessivel, servir-te com uma legião de anjos. És o ultimo ramo virente que o destino arranca de um tronco carcomido pelos annos. Vae, vae. – E apertou-a nos braços a chorar como uma criança.
Tempo depois, a engraçada filha do maior e mais fecundo poeta de Hespanha entrou para o convento das Carmelitas descalças, em Madrid. Lope de Vega descreve esse abandono do mundo com expressões sentidissimas:
«Marcella, o primeiro pensamento do meu amor paternal, cuidava em casar-se, e uma noite me disse o nome d'aquelle que desejava para esposo.
«E eu, que sabia quanto é prudente deixar amadurecer um tal pensamento, porque ha decisões que provêm de causas accidentaes, fiz minhas excusas, esperando sempre não contrariar seus desejos, se elles se fundassem na verdade de sua alma. Mas vendo cada dia esse desejo a augmentar-se, determinei-me dar-lhe esse esposo, que sollicitava seu amor. Esse esposo é bello, é rico, é sabio, e de uma estirpe illustre, e seu pae é nada menos do que todo poderoso. Eu juro que por parte de sua mãe é de sangue real, e que ella é tão boa, que não ha attractivos, nem virtudes que não possua. É uma mãe tão cheia de graça, que pelas suas mãos Deus a dispensa ao mundo. Ella é juntamente rosa e lirio, cypreste e palmeira.»
A egreja estava ornada como o thalamo de um noivado. Então, o poeta viu sua filha n'esse dia com uma graça, uma belleza, uma perfeição inexcedivel, que a alegria fazia realçar sobre os dons da natureza, que o contentamento animava de vivacidade e elegancia. O esposo recebia-a nos seus braços carinhosos. O amor divino transfigura-se sempre na infancia. Myriades de luzes, damascos e brocados enfeitavam o aposento nupcial.
«Marcella, – continua o poeta – as faces coloridas como duas rosas, e os labios como banhados por um sorriso honesto, fitou-me: o ultimo adeus que separava duas existencias.
«Sua alma trasbordava de felicidade com esta vocação; e por um ultimo adeus de seu corpo, ella voltou costas a tudo que o mundo chama festas e prazeres.
«Depois, offerecendo ao joven esposo sua casta grinalda de virgem, ella estreitou-o a si, cobrindo de beijos seus olhos de esmeralda.
«O céo fechou a porta ao meu coração cheio de amor paternal; arrebatava-me a melhor parte da minha alma; e eu era o unico a lamentar n'esta multidão de espectadores. Tornámos á egreja; a desposada deixara seus habitos de festa, os enfeites, para envolver-se no burel grosseiro. Suas tranças foram cortadas, porque, como as outras virgens que povoavam o côro, ella não devia ter para ser bella, mais do que a sua belleza.»
Sente-se n'estas palavras do poeta a dôr do coração de um pae, a quem todo o sentimento e uncção religiosa não podem consolar. Verga diante d'essa agonia, resigna-se. Passado o anno do noviciado ainda o coração virginal de Marcella palpitava com o amor divino. Pronunciou os votos, e professou.
«Ella dormia sobre a palha fria e dura, e andava descalça; o corpo andava occulto em uma vestimenta humilde; só os olhos eram a expressão de sua alma. Oh bemaventurado desengano das cousas da terra! – exclama o poeta na solidão do seu amor. – Esta virgem tão bella, tão casta, tão pura, consagrou a Deus os seus dezesete annos!»
Estes desgostos da vida foram-o levando á sepultura; Lope de Vega succumbiu no auge da admiração. O seu funeral foi imponentissimo, como o de Miguel Angelo. Marcella, a intelligente filha do poeta, pediu para o cortejo passar pelo convento das Trinitarias descalças. No momento em que o préstito parou diante do mosteiro, viu-se apparecer por entre as grades avaras um semblante macerado por uma dôr lenta. Era Marcella chorando a morte do pae, talvez pungida pelo abandono em que o tinha deixado. Instantes depois, sumiu-se na escuridão da cella, e ninguem soube o que a levara na candura dos dezesete annos a abandonar seu pae na desconfortada velhice.
A Ogiva sombria
Sem duvida, no tempo da mais bella flôr da architectura gotica, quando foi construida a cathedral de Colonia, ligava-se uma grande importancia a estes numeros symbolicos, porque a concepção ainda confusa das idéas racionaes, contenta-se facilmente com estes signaes exteriores.
HEGEL —Esthetica.
A Cathedral! a creação suprema da Edade média, em que a arte, pelo sentimento, em uma strophe de pedra, sabe concentrar o espirito radiante do christianismo, pela força audaciosa do symbolo! Ella representa a aspiração incessante da alma que se eleva para o céo; é ella como a Esposa dos Cantares, que espera em silencio a visita do Amado, e se veste de suas galas e realça de encantos. A curva suave da Ogiva imita uns párpados languidos, uma pupilla scismadora, enleiada n'aquelle extasis sensual do amor divino, que Thereza de Jesus sentia nos seus delirios mysticos; as flexas atrevidas, atiradas para os áres, a linha a infinitivar-se, a perder-se no espaço, as agulhas bordadas, rendilhadas, são os cabellos dispersos, fluctuantes da donzellinha, que se assenta cansada de errar pelas brenhas e em volta da cabana dos pastores á busca do amado. A cupula altiva, representando aquelle momento em que a alma se desprende dos limos terrenos e se absorve toda na mystica unitiva, é o collo, que o poeta dos Cantares comparava á torre de marfim que olha para o occidente, e cuja magestade é similhante á da lua que se alevanta. Miguel Angelo chama tambem a uma egreja, nas effusões do seu pantheismo artistico, mia sposa.
Cada monumento antigo é como uma fronte veneranda, enrugada pelos seculos, animada por uma expressão profunda. Essa expressão é a linguagem dos évos, creada pelo espirito que não póde contemplar um facto, acreditar na sua existencia independentemente de uma idéa, de uma razão de ser que procura achar n'elle. É a fatalidade do enigma do sphinge. As Cathedraes goticas reunem quasi sempre a lenda piedosa com a lenda grotesca e diabolica; ellas são como a incerteza da alma que paira duvidosa entre a possessão e o extasis. Umas vezes, são os anjos que vêm de noite trazer de longe grandes blocos para a edificação da fabrica, que lavram a pedra, que alevantam o mosteiro. É a inspiração do anonymo nas obras grandiosas. Ás vezes, é o diabo, que com a mira em dilatar o seu imperio faz tudo, e transporta para a construcção as melhores peças que rouba de outros monumentos, como uma columna do templo de Diana em Epheso para o templo de S. Zenão em Verona. A alma do architecto está retratada na sua concepção; receiando de suas forças para realisar o ideal sublime dos sentimentos do christianismo nos monolithos de marmore para que cria uma fórma, não teme evocar a potencia das trevas. Nas Ogivas escuras, soturnas das Cathedraes goticas, nos arabescos extravagantes das janellas esguias, nos monstros boqui-abertos que servem de goteiras, nos basiliscos informes dos pedestaes, reflecte-se esta alliança do mysticismo poetico com o mysticismo divino. Muitas vezes a Cathedral tem o mysterio de um symbolo que se mobilisa para exprimir os sentimentos da humanidade; com as invasões e descobrimentos maritimos ella toma a fórma de um navio voltado para o Oriente, d'onde lhe vem a luz; tambem imita uma cruz estendida ao longo, como na nossa maravilha de architectura, a Batalha, o poema da crença e do heroismo de um seculo.
Estamos em plena Edade média. A noite era caliginosa e tetrica; o coriscar frequente dos relampagos, o ribombo estridente dos trovões repercutindo-se distante, e o restrugir medonho da floresta, completavam as harmonias intraduziveis da tempestade. A alma, diante d'este espectaculo estupendo da natureza, sentia uma pressão que a fazia concentrar-se possuida do sentimento do infinito, a que os homens que tudo indagam e submettem ás formulas metaphysicas chamam – o sublime.
Via-se através da escuridade absoluta das horas mortas um clarão incerto, como de alampada veladora. Seria algum discipulo de Flamel ou de Lullo absorvido pelos mysterios da alchimia, submettendo a materia, interrogando este Proteo eterno, que, a cada pergunta ostenta uma fórma diversa, e responde de mil modos differentes, sem que cheguem a surprehender-lhe o segredo de sua simplicidade? Seria um monge solitario enlevado na paz ignota da vigilia, procurando, no silencio da noite, elevar-se pelo coração até Deus? A luz jorrava da janella do aposento humilde e sombrio. Dentro, sentia-se o respirar cansado de um peito oppresso; a alampada espalhava em tôrno uma penumbra em que fluctuavam as visagens caprichosas de uma mente tresvariada, e vinha reflectir-se pallida, descorada sobre o rosto macilento, em que os gestos davam uma expressão incomprehensivel como os pensamentos que o agitam. Via-se n'aquelle rosto impressa a anciedade dos que penetram pela intuição a verdade de um problema insoluvel, e uma distracção leve lh'a fez esquecer. Sobre uma mesa estavam pergaminhos extensos, desenrolados, cobertos de linhas cabalisticas, com que se evocam os espiritos nocturnos, compassos e astrolabios, espheras e mappas.
Era alli que morava mestre Gerardo, o architecto da Cathedral de Colonia. Estava contemplando o traçado da sua obra; a physionomia animava-se-lhe de quando em quando com uma luz, um resplendor vivo de transfiguração, como n'um extasis em que o ideal se deixava tocar, determinar em uma fórma só concebida pela mente do homem. Os cabellos andavam-lhe revoltos, espalhados sobre a fronte, como nas convulsões de uma sibylla quando entrevê o futuro, e sente o influxo vertiginoso que lhe dicta o vaticinio. Depois, uma sombra espessa, como de um desgosto repentino, veiu offuscar-lhe a serenidade que se lhe espelhára na fronte, em que os annos redobravam a magestade. N'isto, levou a mão á cabeça, como para suster o impulso de uma idéa que lhe occorrêra:
– A arte! a arte! é ella que me vem descobrir estas linhas que eu fixo no marmore, e que hão de ser a admiração dos seculos. Ella vem-me ensinar este segredo do ornato, a variedade disposta de modo, que leva o espirito á unidade do pensamento. A arte é uma religião que inspira tambem uma fé viva, ardente, intensa, e dá forças para affrontar a duvida, que cerca e punge o espirito creador. Um dia duvidaram de mim; não imaginavam que eu podesse levantar essa mole de pedras, uma Cathedral representando o vôo mystico da alma! Riram-se do plano da minha obra! Eu tenho pensado dias e noites, como na virgem eleita dos sonhos da mocidade. A Cathedral! ella apparece-me na phantasia, illuminada por um sol fulgurante, trasbordando de musicas e harmonias suaves, perfumada de incenso, revestida de purpura, recamada de ouro, como a noiva que se veste para entrar no aposento do real esposo. Cada pedra que se vae dispondo, cada arco, cada pilastra erguida, é a ponta de um véo que se alevanta e me deixa vêl-a, sonhal-a, idealisal-a sobre essa realidade incompleta. É como a terra que vae apparecendo vagarosamente ao nauta cansado das tormentas, á medida que se esvaece o nevoeiro da madrugada. A Cathedral! a Cathedral! eu scismo e estremeço diante d'ella, quando a contemplo; sinto o delirio do artista grego apaixonado pela carnalidade que ia descobrindo o seu escôpro. Ella parece-me uma fada escondida, e que a arte me descobre o segredo para quebrar-lhe o encantamento, e mostral-a excelsa, bella, radiante elevando-se para o alto n'uma ascenção divina. Eu queria vêl-a suspensa nos ares, servindo-lhe as nuvens e os cumulos alvacentos de pedestal! Agora já me não inspira terror o desdem dos meus inimigos: descobri a ultima strophe do poema da minha vida, hei de confundil-os, fazel-os curvar-se adorando-a: é o zimborio, a cupula arrojada ás alturas, similhante ao vôo extatico da alma até á absorpção em Deus.
Havia n'estas palavras a vibração frenetica do delirio; mestre Gerardo de Colonia ficou silencioso como na prostração dos fortes impulsos que lhe déra a alegria. Os olhos brilhavam humedecidos, scintilantes, exprimindo o regosijo intimo da contemplação da sua alma. E tornou a inclinar-se sobre a folha de pergaminho, a recompôr na mente as linhas que alli traçara n'um momento de inspiração. Depois, accometido por um novo accesso de enthusiasmo, arremessou de si o traçado; os olhos flammejaram coruscantes, parecia que estava doido:
– Eu quero mostrar assim, que essas Confrarias dos obreiros constructores de Strasburg, de Vienna, de Zurich e Magdeburg não podem disputar a proeminencia a Colonia. Todos os obreiros e artifices da Baixa-Allemanha hãode reconhecer em mim a supremacia do chefe. Que importa que Strasburg queira ser a séde da grande mestria? De que vale a homenagem prestada pelas confraternidades maçonicas da Alta-Allemanha, de uma parte de França, da Hesse, da Suabia, de Thuringe, da Franconia e da Baviera? O zimborio da Cathedral ha de erguer-se bem alto para a admiração de todos.
E calou-se de repente, como envergonhando-se diante de si mesmo, de se haver deixado possuir d'aquella vaidade. Depois continuou com dor:
– Quantos monumentos estupendos, quantos obeliscos gigantes, que assombram as edades, e que mostram o poder creador do homem, competindo com as creações de Deus, quantas maravilhas espalhadas pela superficie da terra, e que o architecto não quiz que se soubesse o seu nome, com uma abnegação sublime da gloria do mundo! Eu que ainda não completei a minha obra, que a tenho aqui na cabeça, nem sei mesmo se chegarei a realisar este sonho, se terei a força de Atlante para suster nos ares a cupula audaciosa, eu, mesquinho, ufano-me, ensoberbeço-me! O genio não tem consciencia de si, não conhece o poder magico de que dispõe, por isso não se infatua. O que é a gloria do mundo ante a gloria celeste! Illusão que nunca chega a ter um momento só de realidade; é uma nuvem tenuissima que tolda o azul diaphano do empyreo. Para a alma do que preliba os encantos do céo, a gloria do mundo é uma tentação dolorosa, um martyrio incessante; porque então para ella a vida é como a luz vivida da alampada, que se consome no silencio da noite diante da imagem veneranda; assim, a alma procura envolver-se no olvido, no esquecimento de si para resplandecer mais pura.
Os legendarios estão cheios d'estas luctas violentas com os sentimentos mais profundos do coração do homem. Um dia Rubens estremeceu attonito diante de um quadro escondido na penumbra de um côro em uma egreja hespanhola; o quadro era um mysterio quasi impossivel de ser traduzido, divulgado pelas côres sobre a tella. Era a morte do justo. A morbida expressão do rosto macilento, uma auréola divina diffundindo-se em roda, a alma anciosa pelo jubilo do céo a exhalar-se docemente, como o ultimo raio do sol da tarde, e por sobre a cabeça os anjos debruçando-se das alturas a contemplarem o monge na hora do passamento! Era uma transfiguração sublime, a idéa mais bella, a que resume todo o christianismo, revelada pela arte. Quando o grande pintor voltou a si d'aquelle extasis imprevisto, sentiu-se pequeno ao pé de uma creação tão perfeita. Perguntou ao monge que o conduzia, que pincel realisára tamanha obra, para confessar-se seu discipulo, e proclamal-o á admiração do mundo. O monge sentiu um estremecimento convulsivo, e respondeu-lhe apenas: – «Não é já do mundo!» e quando elle voltou á sua cella, juntou os pinceis, a palheta e lançou-os na corrente de um ribeiro que deslisava manso á falda da janella; e para esconder as lagrimas que ainda uma vez lhe escaldaram as faces retinctas na palidez da penitencia, foi procurar conforto na oração fervorosa. Como não teria tambem esta energia para luctar comsigo aquelle que escreveu na mudez da cella um livro de resignação e conforto, a Imitação de Christo, e que abnegou d'essa gloria para não tornal-o uma mentira!
Mestre Gerardo de Colonia ficára absorvido em uma meditação profunda. A tempestade continuava solemne e grandiosa na mudez da noite. Sentiu um leve rumor no aposento, que a contenção de espirito em que estava mal deixou perceber. Prestou ouvidos. Batiam á porta.
– Quem será? assim tão fóra de horas! – e correu os ferrolhos. Entrou uma figura alta, embuçada em um gabinardo longo, o rosto assombreado pelas abas de um largo chapeirão. – Quem sois? – inquiriu o architecto, preoccupado ainda na sua abstracção.
– Sou um irmão da Confraria dos obreiros constructores de Strasburg; – tornou o desconhecido com uma voz cava.
– Entrae.
Sentaram-se, contemplando-se um instante silenciosos.
– A que vindes?
– O que me traz? – redarguiu o desconhecido com um tom de ironia acerba, – deves sabel-o melhor do que ninguem. Confias no zimborio da Cathedral de Colonia, para quereres assim submetter á tua supremacia a mestria central de Strasburg. É impossivel e chimerica essa tua loucura. As grandes lojas querem todas a independencia. Demais o zimborio, a obra que é o teu orgulho, não está prompta e talvez nunca a possas levar ao cabo.
Mestre Gerardo ficou espantado, hirto de raiva diante da audacia do desconhecido. Depois, volveu-lhe com uma severidade que lhe abafava a voz:
– Ainda sou architecto! e o zimborio ha de ser o primeiro a saudar no alto os alvores do sol quando se alevanta. Juro pela minha alma.
– Aposto em como te enganas!
– Aposto em como te hei de confundir, e a todas as mestrias rebeldes da Allemanha! – insistiu o architecto.
– Pois bem! Eu comecei ha dias a obra do Aqueducto de Treves, e espero ainda vel-o acabado antes de teres prompta a Cathedral. Se assim não for, no dia em que deres por acabada a tua obra, despenho-me do Aqueducto. Tu precipitas-te tambem dos coruchéos da Cathedral se eu vier reclamar primeiro? Acceitas a aposta?
– Acceito.
– Juras?
– Juro.
A este instante ouviu-se longe o canto do gallo. O interlocutor mysterioso desappareceu subitamente ás primeiras notas do nuncio da alvorada. Foi então que o architecto reconheceu o – diabo; não quiz acreditar na realidade d'aquelle pesadello. O canto do gallo é celebrado nos hymnos da egreja, principalmente nos de Santo Ambrosio. Gallo canente vigilemus omnes. Elle symbolisa a voz interior que desperta a alma do somno da tentação; foi o canto do gallo que despertou tambem a Pedro no atrio do Pretorio, quando renegou o Mestre. No mysticismo poetico elle representa uma parte importante. A imaginação exaltada pelos sonhos da noite não podia deixar de revestil-o de mysterio. Já a Grecia lhe havia formado o mytho: é o castigo de Alectrião. A sombra que reclama de Hamlet uma vingança, o côro das feiticeiras de Macbeth, desapparecem com a magia d'esse canto.
Um dia o architecto subira á Cathedral; estava prestes a terminar-se a cupula. A alegria hallucinava-o. Appareceu-lhe então uma cabeça disforme, rindo, confrangendo-se em esgares satanicos por entre as sombras profundas de uma ogiva. Disse-lhe que estava prompto o Aqueducto de Treves. Mestre Gerardo empallideceu e voltou o rosto á pressa! Aquella nova enterrava-o. Baixou os olhos como para suspender uma vertigem instantanea, fatalmente o relance mediu a altura da Cathedral; o angulo visual dilatou-se de modo que lhe produziu a attracção do abysmo. Resistiu debalde, vacillou um instante e despenhou-se por fim. Disseram que fôra a alegria explosiva de vêr a sua obra, que lhe causara o desvario que o precipitou.
Assim conseguiu estabelecer o seu predominio a Mestria central de Strasburg.