Kitabı oku: «Carlota Angela», sayfa 10

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XVII

Dans le monde tout est confondu. Les juges ne sont plus que des bourreaux, qui offrent des victimes humaines á ce Dieu mensonger qu'on appelle le Droit et la Justice. L'homme sans foi devient un sage et le sage une dupe. Le héros qui donne sa vie pour la vérité n'est qu'un malheureux fou, qui s'est sacrifié pour une chimère. Qu'il meure désespéré sur les pavés sanglants, objet de l'indifférence de Dieu et de la raillerie des hommes!

Jules Simon. (Le Devoir.)

«Carlota.

«O destino esmaga-nos, se succumbirmos. Coragem, intrepidez de desesperados, é a nossa salvação… A sociedade pôz-nos um pé sobre o peito: o coração geme nas agonias da morte violenta; mas não morrerá. Affrontemos os assassinos. Vamos direitos ao encontro da infamia. A nossa vingança é viver. A nossa vingança é enxugar as lagrimas, e suffocar os gemidos. A nossa vingança é fazer a sociedade responsavel perante a sua propria consciencia do crime que ella propria ha de condemnar, depois que nos queimou na alma o germen da virtude.

«És freira, Carlota Angela. Forçaram-te a violar a palavra jurada, cujo cumprimento vinha pedir. Disseram-te que eu te atraiçoara e morrera. Tinhas obrigação de defender a minha honra, emquanto eu não viesse da sepultura pedir-te perdão da perfidia. Não te condemno, nem sequer me queixo. Entre a perversidade dos que te rodearam e a tua innocencia, a lucta era desigual. Fraqueaste, porque a desgraça exigia que eu bebesse o ultimo trago do meu calix. Eu não podia deixar de ser infeliz até á extrema d'este inferno. Aqui deve ser o termo final da minha condemnação. Não se póde ir mais além. Suicidar-me seria desmentir a fortaleza com que tenho arrostado a desventura até hoje. Chorar comtigo, devorar em silencio um dia e outro dia, na escuridade da desesperação, o resto de duas vidas tão miseraveis como as nossas, seria escolher a peior das mortes, o paroxismo prolongado, sem desafôgo nas crenças, sem refugio na esperança de outro mundo.

«Não creio, nem espero nada além d'esta vida, Carlota.

«Se te sentes arrebatada para a grandeza do Creador, repara na miseria das creaturas. D'este asqueroso lamaçal de sangue e lagrimas, para onde nos empurrou a mão humana, como queres tu que o espirito possa levantar-se para Deus?! Não ha justiça na terra, nem providencia no céo. O summo bem é um sonho dos corações opprimidos, quando a oppressão não estala os ultimos filamentos da fé, quando a angustia não é tamanha que cerre todos os respiradouros da alma. Se ha Deus, a sua inercia, á vista das atrocidades que soffremos, é igual á indifferença, á impotencia, ao nada. Nas minhas e nas tuas dores, a justiça eterna permaneceu insensivel, como se temesse ou approvasse a infamia dos homens.

«Não baixou do céo um anjo que te dissesse:

«Aquelle que te ama, vive em torturas, arcou já triumphante com a morte, esmagará por fim o preconceito da honra, e virá buscar-te. Não dês a Deus um coração que não podes dar. Não jures ante o altar um voto que implica a morte do homem que a estas horas, sobre o mar, me está pedindo que te dê forças para o soffrimento, que te illumine com um clarão de esperança, que te povôe os sonhos com a imagem d'elle.»

«Fallou-te assim um anjo, Carlota? Não. Em redor de ti estava o terror do desconforto, o silencio da desesperação, o desamparo, e as piedosas lamentações de algumas almas boas que te mostravam o céo, porque a vida se te havia convertido em inferno.

«Eu gemi n'um carcere longos mezes. Visitou-me a fome, a sêde, o frenesi da loucura, o terrivel nunca mais, essas duas palavras malditas que encerram todo o fel das amarguras humanas. E, no tumultuar de tantas penas injustas, nunca a justiça divina me disse que esperasse o dia do resgate, a corôa do martyrio immerecido, a vista da mulher chorada que me vinha consolar nos instantes do lethargo, e fazer suave a pedra em que eu encostava a cabeça abrasada. Nunca. Gemi no desamparo, como o malfeitor repulsivo, que a sociedade lançou de si maldito, e maldito de Deus nem sequer podia esperar a purificação do remorso.

«Que mal fizeras tu, pobre mulher? Por que te mortificaram os homens, e como consentiu um Deus justiceiro o tormento que te deram?

«Que mal fizera eu, homem de consciencia pura, que passei os annos da minha mocidade estudando os raros exemplos de virtude que me encantavam o coração?

«Padecemos, porque fomos escravos da honra, Carlota Angela.

«Se eu passasse por cima dos respeitos humanos, terias sido minha amante, serias hoje minha esposa, e a sociedade apontar-nos-hia como modelo de amor fiel e devotado a todos os sacrificios. Faltou a culpa, para que a fortuna nos não ludibriasse. Era necessario o crime para sermos hoje felizes. A virtude o que é?

«A minha honra reduziu-me a isto que eu sou. Sacrifiquei-te aos deveres que a minha probidade me impunha, e fiz-te a desgraçada que hoje és.

«Quero salvar-te, Carlota, e quero que me salves.

«Apparece-me, filha da minha alma; vem ouvir-me, porque a nossa época de felicidade começa hoje. Não ha para nós n'este mundo mais que nós mesmos. Tudo que se oppozer ao destino que vamos seguir, é mentira, é perfidia, é uma nova traição que te armam, Carlota.

«Sorri á esperança, martyr! Irradie em volta de ti o sol de esperança que me está abrilhantando o futuro. O coração delira-me de alegria no peito, onde não cabe. Agora conheço que me pertences, que te não perdi, que és mais minha por um direito de torturas, que valem mais que todos os juramentos. Sacode as algemas que a hypocrisia te encadeiou nos pulsos. Deixa voar o coração, que um voto sacrilego ou impostor te assellou ao nada da uma esperança estupida ou fementida. És livre, Carlota. A tua alma não podia obedecer ás suggestões de malvados, porque era minha.

«Agora te digo que venho pedir contas do teu juramento.

«Carlota Angela, estou aqui! Pertences-me.»

A freira acabava de ler esta carta, e correra á grade, onde a esperava Mendonça.

Não dizem os nossos apontamentos o que se passou na grade. Se escrevessemos de imaginação, dava-se aqui um dialogo plangente, travado de exclamações, umas de expansão maviosa, outras de frenesi insano. O mais natural, na situação dos dois infelizes, é chorarem longo tempo silenciosos. Devia a sua dor ser uma das que suffocam e entalam na garganta o gemido. A desesperação mataria n'elles o jubilo de se verem: a freira não poderia dizer a Mendonça: «sou tua». N'aquellas grades, duras e inflexiveis como o «cumpra-se» terrivel do destino, estava escripto o impossivel. Entalal-as, espedaçal-as, só a mão sacrilega do crime poderia. Carlota ha de rasgar o véo, ha de calcar o habito, ha de passar por cima da sua virtude, da sua religião, do seu esposo celestial, se quizer dizer a Mendonça: «sou tua».

Devia, pois, ser melancolico além do exprimivel o que ahi se passou n'essa grade; triste, e desgraçado direi, a julgal-o pelas consequencias, que se vão descrever, com um certo pezar em que esperamos tomem os leitores o seu quinhão de pena, se não todos, ao menos aquelles que não dão nada pela felicidade da terra, quando ella implica offensa ao Senhor do céo.

Se as calamidades que promanarem d'esse encontro não forem das que matam os agentes da sua propria desgraça, e, ao mesmo tempo, escandalisam a moral, a quem ha de a moral condemnar? em que ponto d'esta escabrosa senda da vida quereis que se levante o signal de aviso para acautelar os ignorantes do abysmo que as flores escondem?

Nao sabemos, não o sabem os que teem a experiencia das quédas, e vão caíndo sempre no golfão, para onde os allicia com blandicias uma attracção satanica. Estamos fartos até ao tedio de ouvir dizer que o homem é bom, que o homem é mau. O homem não é bom nem mau de seu natural: é aquillo que o fazem ser; é o que realmente deve ser n'este mundo, segundo a organisação d'este mundo, organisação viciosa, aleijada, falsa, peccaminosa, quer o defeito começasse no paraizo terreal, quer nos multiplicados infernos que as idades se foram inventando através das civilisações.

O leitor tem o juizo necessario para se não dar á canceira de interpretar essas linhas assim com assomos de dogmaticas. Este romance pecca por acaso em divagações philosophicas, e n'isso está cifrado o merito não vulgar de um livro que sustenta o caracter singelo e lhano desde a primeira pagina, para que aos mais myopes se não esconda a luz debaixo do alqueire.

Reparou soror Rufina em sua sobrinha, na volta da grade; achou-a serena de mais, risonha até; um lampejo de alegria interior que lhe reaccendia nos olhos a luz que as lagrimas haviam apagado. A velha freira, já apalpada por infortunios de amor, não conjecturou d'aquella inesperada alegria tão innocentemente como Carlota cuidava. O temor que a sobresaltou presagiava a verdade, mas tão desgraçada era a verdade, que a freira antes quiz desmentir o proprio presentimento, do que interrogar a sobrinha, innocente talvez.

–Como vens alegre, Carlota!—disse ella.

–Fiquei mais desopprimida, minha tia; o muito chorar faz bem… estou muito melhor, e agora espero vencer o infortunio.

–Com que armas, filha?

–Com que armas?… Com as da resignação… A maldade, a guerra que o mundo faz a fracas mulheres como eu, só com a paciencia se sustenta.

–E Mendonça aconselhou-te a resignação?—disse a freira com suspeitoso intento.

–Elle? tomara o infeliz quem lhe ensinasse o remedio das suas afflicções… Nenhum de nós é forte; somos ambos por igual desgraçados e fracos para luctar com as perfidias que nos fazem, ou que nos fizeram. O remedio unico é gemer até á morte, dar á sociedade o regalo de nos esmagar, soffrer-lhe na garganta o pé com evangelica submissão. Entende-o assim, minha tia?

–Que modo de perguntar é esse, Carlota?! Eu estranho-te…

–Estranha-me!? Pois queria que eu voltasse da grade mais afflicta do que fui?

–Não; esperava que as tuas palavras fossem mais sinceras, filha.

–Pois não são?!

–Ha ironia n'esse elogio que fazes á tua paciencia. O coração de uma mulher não é assim. Concilias-te muito depressa com o sacrificio. A virtude não se alcança assim tão rapida, e essa paciencia, que te impões, é a virtude suprema. Não, Carlota, não. Tu… Tremo dizer-t'o…

–Diga, minha tia.

–Tu, filha, meditas um desatino.

–Um desatino!…

–Sim, Carlota; tu intentas fugir do convento—disse a freira com pavor.

–Não, tia…—balbuciou a trémula religiosa, mudando subitamente do semblante sereno para os gestos alvoroçados da surpreza, do mêdo, reflexivos da agitação interior que fizera n'ella o ar assombrado da tia.

–Não balbucies, desgraçada. O teu rosto está confessando o desvario do coração. Diz com animo, filha, confia á tua amiga essa resolução funesta, que não executarás, sem que as minhas lagrimas te demovam de tal desgraça. Oh! não faças tal, infeliz, que te deshonras para o mundo, e te perdes para Deus.

–Minha tia!—exclamou Carlota, abraçando-a, e soluçando palavras inarticuladas.

–É pois certo?—tornou a freira.

–É certo, minha tia, é certo que ou Deus me mata, ou eu fujo.

–Jesus! Maria Santissima! Que dizes, Carlota!

–Não posso desdizer-me, minha querida tia. Eu sou do homem que amo. Não vejo nada n'este mundo senão elle, e as suas lagrimas. Mas as suas lagrimas são-me menos preciosas que a vida de Francisco. Soffreu muito o meu desgraçado amigo, soffreu muito; é preciso que eu o indemnise com a minha reputação, com a vida, com os soffrimentos de todas as pessoas que me estimam. Eu hei de ser menos infeliz, e elle será feliz quanto se póde ser…

–Á custa de um crime… Carlota!

–De um crime que é o resultado de muitas infamias urdidas contra a nossa felicidade. É um crime só o nosso, um só; Deus perdôa, e, se não perdôa, aceito o inferno, se ha inferno, aceito…

–Cala-te, desgraçada, que insultas a religião; cala-te ahi, que enlouqueceste, Carlota, e Deus bem sabe que a tua razão desvaria!

–Não, minha tia. Eu sinto-me no meu perfeito juizo: a desesperação enlouquecia-me de antes algumas vezes; mas a esperança restituiu-me hoje o vigor da minha antiga razão; com a differença que de antes assustal-a-hiam os juizos do mundo, que a subornavam, e hoje a minha razão vê tudo como tudo é, sente-se livre, e capaz de destruir todos os obstaculos que uma falsa piedade me pozer.

–Mas tu não és já senhora de tuas acções, Carlota!—bradou a tia com azedume.

–Sou. Emancipou-me o infortunio. Se me cortarem todos os meios da fuga, resta-me o recurso do suicidio; apparecerei morta no pateo do convento.

Soror Rufina ficou tranzida. Carlota contemplou-a com pezar n'aquelle quietismo terrivel. Estava a pobre senhora com a face apoiada sobre os joelhos, e as mãos erguidas. A filha de Norberto quiz divertil-a da lethargia; mas a gélida face da freira parecia de pedra, apenas as lagrimas borbulhavam incessantes nas mãos da sobrinha.

Ao lado, porém, da consternada anciã estava a imagem de Francisco Salter. Carlota queria consolar, promettendo o impossivel; mas o coração recusava-se á mentira.

A freira benedictina promettera fugir n'aquelle dia. Se não soubera esconder a traição, tambem não seria capaz de revogal-a, ou differil-a para mais tarde.

XVIII

Venite ad me omnes qui laboratis, et onerati estis, et ego reficiam vos.

Jesus Christo.

Soror Rufina comprehendeu mal a exaltação de Carlota. No conceito da ingenua religiosa, sua sobrinha, posto que tentada pelo espirito das trevas a dar um passo de desesperada, um passo do altar para o abysmo, do limbo de esperanças celestiaes para o inferno das eternas dores, não chegaria a deixar-se vencer, caíria contrita aos pés da cruz antes de infamar-se e infamar o mosteiro com a fuga.

Carlota, por sua parte, não desmentiu a conjectura da freira, por isso que, por espaço de dois dias, esteve reclusa na sua cella, orando e chorando, quasi sempre sósinha, porque tanto a Cecilia como a Rufina pedia que a deixassem desafogar a sua angustia a sós com a imagem do Senhor, sua consolação extrema e unica.

Não podemos, porém, asseverar que as lagrimas e orações fossem o constante exercicio da freira benedictina. Duas ou tres cartas, que Francisco Salter de Mendonça recebeu, foram de certo escriptas em intervallos pouco edificantes d'esses dois dias, se devemos, do que aconteceu ao terceiro dia, avaliar o conteúdo d'ellas.

Ás tres horas da madrugada d'esse terceiro dia, que era o setimo do mez de setembro de 1811, Francisco Salter de Mendonça estava já desde a meia noite, encostado ao muro da cêrca do mosteiro, n'aquelle angulo que confina com a ultima casa da rua do Loureiro, hoje bem conhecida pela «Estalagem do Cantinho». Não averiguamos como elle conseguiu do locatario d'essa casa, que devia ser um sujeito de maus costumes, licença para engatinhar através do telhado, até alcançar o muro na parte onde é facil o salto para a cêrca.

Ao dar das tres horas no campanario do mosteiro, branquejou rente com o angulo do muro, que fórma a especie de fortim de ameias sobranceira á Porta de Carros, um vulto que desceu ao pomar, e ahi se sumiu por alguns minutos á vista do anciado Francisco Salter.

Era Carlota Angela, a professa benedictina, que fugira do thalamo do divino esposo, e a cada passo que dava comprimia no peito o coração que o phantasma do seu crime apavorava. Os minutos que se demorou no pomar, cerrado, por cuja copa o clarão da lua, já desmaiado pelos alvores matutinos, se coava, traçando sombras movediças, foram uma demora causada por uma syncope.

Francisco Salter, suspeitando isto mesmo, ou receiando o arrependimento, saltou o muro, deixando içada a escada de corda por onde Carlota devia subir, e foi direito ao pomar. A freira soltou um grito de terror quando viu ao pé de si um vulto. Salter proferiu o nome d'ella com amorosa angustia.

Mendonça tremia.

Não ha coragem de homem que vença a commoção d'estes lances. O silencio religioso que reinava alli; os trajos da religiosa, ainda os mesmos com que horas antes assistira á sua ultima oração em communidade, excepto a touca e o escapulario; esse intimo abalo com que a Providencia se denuncia nos corações mais endurecidos pela negação da falsa consciencia do irreligioso; e, sobretudo, a lucta de todos esses sentimentos com a paixão imperiosa, e o plano irrevogavel d'esses dois infelizes, fora, talvez, a causa do quebranto, e quasi desfalecimento de espirito em que ficou Mendonça ao apertar nos braços, pela primeira vez, Carlota Angela.

–Não posso!—exclamou ella—não posso dar um passo… Começo a sentir o castigo do céo… Receio morrer aqui.

–Não morrerás, Carlota…—acudiu Mendonça, apertando-a ao seio com vehemente ternura misturada de supersticioso sobresalto—Deus só castiga o crime das que abjuram os votos que faz o coração. Vem, Carlota, mais alguns passos, pouco nos falta já; d'aqui a momentos verás fugir esse terror, que me está opprimindo tambem a mim. Vem, amiga da minha alma…

–Não posso, Francisco… não posso…—tornou ella, soluçando, pendurando-se-lhe dos hombros com afflictivo modo, e olhando em redor com a vista assombrada de visões medonhas—Vae tu, que eu torno para o meu supplicio… Vae, meu amigo, que não póde haver felicidade sem Deus. Não queiras ser cumplice do meu crime, porque o has de expiar commigo. O melhor, na minha desgraça, é morrer, Francisco; morrer martyr, morrer digna de pedir ao Senhor por ti…

Francisco Salter balbuciava apenas monosyllabos. As palavras da freira calaram-lhe na alma um spasmo atribulado. Carlota sentia-o tremer como ella, ou mais ainda: o seu terror augmentava, com o silencio de Mendonça, com aquella especie de assentimento que elle dava aos presagios d'ella.

Por um momento se afigurou ao amante da religiosa que a desgraça era inevitavel. Calara-se o coração. Era o espirito religioso que sobrepujava o animo robusto do capitão de marinha. Tinham-o, talvez, debilitado os infortunios. Fizera-o, talvez, supersticioso a desgraça, se não quereis que possa chamar-se influxo providencial este mêdo. Por que não dizemos antes que a desgraça o fizera crente? Por que não estaria entre ambos o anjo do Senhor, o anjo Custodio que pedira ao Altissimo um raio da sua divina graça com que alumiar, a dois corações que se despenhavam, a profundeza do abysmo?

Carlota parecia banhada d'esse raio celestial, quando se lançou aos pés de Mendonça de mãos erguidas, orando, póde dizer-se, orando assim:

–Não me leves d'aqui, meu amigo. Não me queiras fóra do amparo divino que me deu esperanças de te encontrar no céo. Guardemos para lá os nossos amores felizes, amores bemaventurados por uma eternidade. Temos merecido tanto com os nossos martyrios, Francisco… deviamos de ser tão caros á piedade de Deus… não sejamos agora indignos da sua misericordia, e crueis para comnosco… A minha vida será curta no convento, e fóra do convento. Deixa-me morrer aqui; serás menos infeliz. Eu não me importa a deshonra do mundo: a infamação não poderia matar-me; mas, lá fóra, espera-me uma dor maior que todas, a do remorso, a da contrição impossivel sem a emenda.

Carlota proseguiu soluçando no seio do amante palavras inarticuladas, ás quaes responderam por fim as lagrimas copiosas de Mendonça, as primeiras que elle chorava doces e suavissimas, quaes se o Senhor lh'as désse como prelibação aprazivel das alegrias que sua alma teria em galardão do sacrificio.

Era já quasi dia claro, quando a freira benedictina, encostada ao braço de Mendonça, foi sentar-se no degrau da porta por onde uma hora antes saíra com a resolução de não mais entrar. Ahi, d'esse abraço derradeiro que se deram silenciosos, arquejantes, convulsivos, não saberemos dizer qual fosse a infinita angustia.

É certo que Francisco Salter, ao desapertal-a dos braços estremecidos em que ella proferia n'um gemido o ultimo adeus, cruzou os braços e disse:

–Vae, Carlota, que eu não posso disputar-te a Deus. Vae, filha da minha alma, que eu alimentei com lagrimas, que eu mereci a preço dos tormentos que nenhum homem supportou, para finalmente te ceder a um phantasma que me diz que não pódes ser minha. Recorda-te… olha para mim, Carlota, e assombra-te da grandeza da minha angustia e da minha paciencia. O homem que tanto padeceu para merecer-te, vae, sem ti, procurar a morte do corpo onde Deus quer que ella o espere depois da morte da alma, do assassinio lento de um coração que se teria salvado se ha tres annos te arrancasse aos braços de teu pae. Fui demasiadamente honrado para este mundo e para esta sociedade. Não quiz respirar este ar corrompido em que vivem os felizes… devia morrer. Por fim, devias ser tu a que me apontasses o teu remorso como estorvo a pertenceres-me. Fica, minha amiga, com a tranquillidade do teu espirito. Por ti soffri muito; mas não era o teu soffrimento o premio que eu vinha pedir-te agora. Quiz dar-te a felicidade, e cuidei que t'a dava. Quiz levar-te commigo aos pés do representante do Eterno na terra, para lhe supplicarmos que houvesse de Deus perdão para ti, que não poderas ser o que a desgraça te aconselhara que fosses. Diz-te o coração que o teu crime não póde ter reparação: é Deus que t'o segreda, Carlota, e eu não ouso argumentar contra as inspirações que te baixam do céo. Vae, pois, esposa de Christo, vae para o teu santuario, e chora-me ahi, chora-me emquanto eu viver; depois, ora por mim, porque a minha alma só as tuas orações podem purifical-a, e erguel-a á presença do divino Juiz. Adeus, Carlota.

A freira, do limiar da porta estendera ainda os braços para Mendonça, exclamando:

–Vem cá, Francisco, vem cá… escuta-me, por piedade!

–Carlota! Carlota!—disse uma voz, que os fizera estremecer a ambos.

Era soror Rufina, que surgira no angulo do muro, entre as ameias que cercam o terraço por onde a freira conseguira evadir-se.

Francisco Salter de Mendonça, admiravel de dignidade, retrocedeu, aproximou-se de Rufina, baixou ligeiramente a cabeça, e tomando Carlota pela mão, disse:

–Deus sabe que ella é cada vez mais digna d'elle. Assista com piedade ás agonias d'este anjo. Sua sobrinha, senhora, veio aqui buscar coragem para a morte, e ensinar-me a morrer com honra. A vida honrada já ella m'a tinha ensinado: faltava-me a morte, que devia ser de desesperança impia, se esta santa me ensinasse o segredo de expirar abençoando a desgraça.

Foram as ultimas palavras de Salter, palavras que a joven freira já não ouvira, porque os braços de sua tia lhe estavam sendo amparo na perda dos sentidos.