Kitabı oku: «Carlota Angela», sayfa 9

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A freira não pôde deixar de sorrir ao titulo de Madre que pela primeira vez lhe fora dado.

–An?—tornou elle—está-se a rir?! então que quer dizer lá essa risadita?! Isto parece-me casa de doudos, por mais que me digam.

–Não deve aqui voltar, snr. Antonio,—replicou a freira com muita brandura e graça—porque seria pena que o seu juizo perigasse n'esta casa de doudos.

–E olhe que a fallar a verdade já me lembrou isso, e essa cousa que a senhora Madre acaba de propôr não me cáe em cesto roto. Isso leva agua no bico. A senhora Madre lá lhe parece que a sua sobrinha é capaz de me fazer dar volta ó miôlo? Não tenha pena do rapaz, que eu tambem a não tenho! (O snr. Antonio José da Silva tinha por esse tempo os seus quarenta annos.) Quem chegou á idade adultera (emende adulta) sem dar com as ventas no sedeiro, tambem já não cáe na arriola de se apaixonar por quem lhe não sabe agradecer os affectos do seu peito; é como lhe digo, senhora Madre, e póde dizel-o tal e qual á sua sobrinha, que não vá ella cuidar que eu perco a vontade de comer. De tolas como ella está cheio o Porto. Tomara eu boa vontade de casar, que mulheres andam-se-me a metter pelos olhos com um palmo de cara soffrivel, e bons dotes… cuida que não, senhora freira!?

–Cuido que sim, snr. Antonio,—disse com a mais comica paciencia soror Rufina—cuido que v. m. merece uma menina de merecimentos muito superiores aos da minha pobre sobrinha. Se ella o não sabe avaliar ao justo, é porque está inclinada para a religião, onde nem todas as pessoas são doudas, snr. Antonio. Vá v. m. na graça de Deus, escolha entre tantas meninas que se lhe offerecem a melhor, e seja muito feliz. As minhas obrigações não consentem que eu me demore.

–Sempre lhe quero dizer mais uma palavra, se está para isso, snr.ª Madre.

–Com tanto que seja breve…

–Olhe lá… A senhora quer fazer um contracto commigo?

–Um contracto! Nós as religiosas não podemos fazer contractos, nem supponho que genero de contracto possamos fazer.

–Eu lhe digo. Se a senhora fizer com que sua sobrinha queira casar commigo, eu obrigo-me a dar á senhora cem mil réis cada anno emquanto a snr.ª Madre for viva…

–Emquanto eu for viva?—atalhou a freira, sustendo com difficuldade o impeto do riso.

–Sim, senhora—tem cem mil réis em metal, pagos no principio do anno, emquanto a senhora for viva.

–Não aceito.

–Então quanto quer? diga lá, que me pilha em boa maré!

–Se me dá os cem mil réis por mais alguns annos…

–Que é? não entendo isso.

–V. m. diz que me dá cem mil réis annuaes; mas tira a condição de m'os não dar logo que eu morra, não é assim?

–Podera não! Dou-lh'os emquanto a snr.ª Madre for viva.

–Pois eu quero que m'os continue a pagar por mais alguns annos.

–A senhora por mais que me digam está a mangar commigo! Então é douda ou não é?! E o caso é que já pegou á moça a toleima…

Soror Rufina arquejava em gargalhadas indomitas, quando o lôrpa lhe dirigia os ultimos insultos.

Não podendo mais sustentar-se na grade, a freira deixou o mercador a resmungar, e lançou-se a rir nos braços de Carlota, que a esperava chorando.

Acabou-se o ignobil episodio de Antonio José da Silva.

Aos que não conhecem esta raça inextinguivel no Porto, aos que reputam desnaturada a linguagem que o romancista saccou da lingua d'este Antonio, emprasamos para que estudem, e observem, hoje, n'este anno de 1858, já passado quasi meio seculo, os Antonios existentes, se é possivel encontrar-se um Antonio assim que não seja um lustre da nobreza coeva do gaz e do telegrapho electrico.

XVI

Quem quizer saber quantos são ao todo os filhos de Adão, conte primeiro quantos são os afflictos e atribulados.

Bernardes. (Nova Floresta.)

A filha de Norberto de Meirelles esperava em vão que sua mãe com supplicas incessantes alcançasse do marido o dote para a profissão. O negociante poderia com algum sacrificio acceder ás instancias de D. Rosalia; mas a pertinacia de Carlota em rejeitar a proposta de Antonio José da Silva irritou-o de tal modo, que não houve convencel-o a aceitar, a titulo de emprestimo, a dadiva do patrimonio que os paes da noviça Dorothea queriam dar á intima amiga de sua filha. Ia mais por diante a brutalidade do arrozeiro, negando-lhe o consentimento. Ora, contra esta tyrannia nova, entre as tyrannias de paes crueis e barbaros tutores, como se diz nos romances não menos barbaros e crueis, contra esta nova tyrannia trabalhavam na côrte pessoas empenhadas a favor da noviça por intervenção de algumas freiras.

Obtida a licença regia, graças á pouca actividade de Norberto, e talvez á diversão em que o traziam os cuidados e afflicções de pagar as letras do snr. Antonio José da rua das Flores, Carlota Angela soube que seria freira sem dote, freira de prenda, como se chamam as meninas que tocam ou cantam, e dão a sua habilidade como equivalente de patrimonio.

Foi um dia de jubilo no mosteiro de S. Bento da Avè Maria o da chegada da licença. A profissão de Carlota era uma festa, em que todas as freiras tomavam parte. Os fartos meios, que lhes sobejavam, permittiam solemnisar com todas as galas e magestade o acto augusto, que a noviça anciava, chorando de alegria, e esperando com susto, como se temesse algum imprevisto obstaculo á sua felicidade. Chegou o fausto dia.

Se entendem que não é impertinencia descriptiva debuxar á pressa os promenores da profissão de uma religiosa benedictina, acompanharemos Carlota Angela desde que a mestra, avisada pelo dobre do sino, a foi buscar da casa do noviciado para o côro. A noviça ajoelhou aos pés da prelada, proferindo as palavras do rito, que são uma supplica de misericordia a Deus e á abbadessa, que a interroga ácerca do que pretende. Entre as mãos de Carlota estava a regra do patriarcha S. Bento, e n'essa postura devota e humilhada profere os votos. Á grade do côro, onde se passa esta scena quasi silenciosa, chega um sacerdote com a cruz processional entre dois candelabros, e após elle os paramentos.

A noviça cantou com a voz tremida a carta da sua profissão. As ultimas palavras mais as dissereis gemidos desatados de uma suffocante angustia. Lida a carta, o som melancolico do orgão parecia chorar com ella, cuja voz, em terceto com a da cantora e da mestra de noviças, entoou, tres vezes, o seguinte verso:

Suscipe, Domine, secundum eloquium tuum, et vivam, et non confundas me ab expectatione mea.

Carlota foi ajoelhar ante o altar da Virgem, e depôz no respaldo do altar a carta da profissão. O côro cantava, entretanto, um Gloria de tristissima toada.

D'alli, foi ao meio do côro a professante, e ajoelhou sobre uma alcatifa entre quatro candelabros; ajoelharam todos, e entoaram uma ladainha, acompanhada a orgão, e instrumental.

As freiras assistentes ergueram nos braços a noviça, emquanto se cantava o Veni, creator Spiritus, invocação de tanta religiosidade e compunção, que as lagrimas saltaram a um tempo de todos os olhos.

Carlota foi prostrar-se diante da abbadessa, que a despiu, ao passo que a trança dos cabellos era deposta n'uma salva de prata. Cingiram-lhe depois a touca e o véo, que o celebrante aspergira e incensara, e ajoelharam com ella. «Recebe, donzella, o véo sagrado—disse a abbadessa, impondo-lh'o na cabeça—para que chegues sem mácula ao tribunal de nosso Senhor Jesus Christo, ao qual se dobram os joelhos no céo, na terra, e no inferno por toda a eternidade.» Sobre o hombro direito lhe collocaram em seguida umas disciplinas, acompanhando a acção com estas palavras: «Recebe, ó cara irmã, as armas da tua milicia».

O celebrante entoou uma oração, durante a qual as lagrimas da professante manavam copiosamente sobre as mãos de soror Rufina, que lhe amparava o rosto.

A prelada proferia as ultimas palavras da benção final, o orgão acompanhava Benedictio Dei Patris, esse hymno de acção de graças, que os anjos parecia sublimarem em accordes de celestial melodia, quando entrou na igreja um mancebo com tal impeto, que se fez reparado ás pessoas por entre as quaes rompeu com precipitada vehemencia.

–Já professou?—perguntou o individuo machinalmente a um rosto conhecido que proferira o seu nome,

–Agora mesmo.

–Professa!—exclamou Francisco Salter de Mendonça, correndo para as grades do côro—Professa! Tudo perdido, tudo perdido!

Encostado aos ferros do côro, com a fronte banhada de suor frio, e a luz dos olhos turvada, Francisco Salter estava já amparado entre os braços das pessoas que o reconheceram.

Fez-se um grande reboliço na igreja. A multidão agglomerava-se em redor do official de marinha, sem poder averiguar a causa dos gemidos que se ouviam no côro.

Não eram de Carlota Angela esses gemidos. A infeliz dirieis que adivinhou a entrada de Salter na igreja, porque, erguendo-se de repente, antes que a prelada pronunciasse as ultimas palavras da benção final, correu á grade, soltou um ai suffocado, como se outro não podésse já soltar do coração expirante, e caiu desmaiada nos braços de algumas freiras, que lhe tinham seguido o movimento arrebatado.

Soror Carlota foi transportada á sua cella, sem sentidos. Francisco Salter de Mendonça recobrou alento e razão, quando se viu espectaculo de tanta gente, e pediu licença para sair.

A serenidade que de repente lhe assomou ao rosto causava novo espanto aos amigos ou conhecidos que se empenhavam em o levar d'alli. Entre esses havia um que tinha o segredo d'aquella grande desventura, e lhe pediu mui encarecidamente que o acompanhasse para sua casa. Mendonça rejeitou com tranquilla urbanidade os offerecimentos, e parecia surdo ás consolações. O sorriso contrafeito, com que desmentia as lagrimas que lhe aguavam os olhos, presagiava alguma grande desgraça. Um suicidio foi o receio das pessoas a quem o mysterioso acontecimento foi de bôca em bôca revelado.

Por fim, Mendonça desopprimido do concurso que o rodeava ainda no adro da igreja, entrou no pateo do mosteiro, foi com sereno aspecto á portaria, e pediu á madre porteira o favor de o annunciar á senhora religiosa que acabava de professar. Concorreram algumas freiras a ouvir este recado, e todas á uma balbuciaram não sabemos que palavras de consolação religiosa que Francisco Salter parecia não ouvir.

Immovel permanecia elle, esperando a apparição de Carlota, quando lhe indicaram a grade onde elle devia esperar que lhe fallassem.

–É a snr.ª D. Carlota Angela que eu procuro—disse elle com imperturbavel firmeza.

–Pois suba para a grade, que o estão lá esperando.

–Mas quem é que me espera, senhoras?

–Alguem é…—responderam as freiras.

–Quem eu procuro, e com quem preciso fallar, é a senhora que professou ha pouco. Não conheço mais alguem n'esta casa.

–Pois queira subir…—disse o padre capellão do mosteiro, que n'este momento viera collocar-se ao pé de Francisco Salter—Eu acompanho v. s.ª á grade onde o esperam—continuou o padre, dando-lhe o braço, e guiando-o automaticamente para a grade, onde o estavam esperando.

Mendonça encontrou na grade uma freira desconhecida: era soror Rufina.

–Creio que não lhe será desagradavel—disse ella—encontrar uma tia de Carlota.

–Quizera antes, minha senhora, encontrar sua sobrinha.

–É impossivel; minha sobrinha não dá accordo de si, nem dará tão cêdo. V. s.ª devia presumir isto mesmo, antes que lh'o dissessem.

–Por que, minha senhora?!

–Porque minha pobre sobrinha o julgava morto, todas nós as amigas da infeliz o julgavamos como ella: eu mesmo agradeço a Deus as forças que me dispensa para poder vir a esta grade rogar de mãos erguidas ao snr. Mendonça que não diga á desgraçada uma palavra que a póde matar; não lhe lance em rosto a falta de palavra, que seria affrontal-a e dar-lhe o ultimo empurrão para a sepultura.

–E disse eu já que vinha lançar em rosto a Carlota alguma falta? Não venho, minha senhora, não. Eu vim a querer enxugar-lhe as lagrimas que a minha apparição lhe fez chorar.

–Carlota por ora não póde chorar, snr. Mendonça. Para tamanha dor não ha tal desafôgo por emquanto, e Deus sabe se alguma vez o haverá… Eu não conto já com a vida de minha sobrinha. Vamos ser n'este convento testimunhas de uma agonia muito atribulada. Deus lh'a dê curta, ou me leve a mim primeiro, por misericordia. Duas horas antes, snr. Mendonça, têl-a-hia talvez matado de alegria com a sua presença. Assim, matou-a, ha de matal-a de pena, de desespero, de dores infernaes, que não hão de obedecer aos confortos da religião.

–Que são confortos da religião?!—interrompeu Mendonça, carregando o sobre-olho com a turvação da blasphemia.

–Aterra-me essa pergunta, snr. Mendonça!

–Não se aterre, minha senhora: responda-me antes a uma pergunta: o Deus que ha de consolar Carlota é o mesmo que viu impassivel até este momento a minha desgraça e a d'ella?

–Altos juizos do Senhor! Por quem é não lhe falle essa linguagem á pobre Carlota! Ajude-a a supportar o peso da sua dor, com os olhos postos no céo. A impiedade não serve de nada, snr. Mendonça. A respiração da blasphemia traz para o interior do coração o fogo do desespero. Se a vir succumbida, dê-lhe animo para a paciencia, venha aqui todos os dias, dê-lhe a felicidade que a religião dos infelizes não condemna; amigo, seja o irmão extremoso da minha pobre sobrinha. Prometta-me isto, que eu vou prevenil-a pouco e pouco, até que ella possa encaral-o com firmeza e confiança. Se a accusar de inconstante, snr. Mendonça, olhe que a calumnia cruelmente. Ha de saber da bôca de Carlota que dois annos de martyrio ella tem amargurado n'este convento.

–Sei, senhora.

–Que desenganos, que torturas, que repetidas luctas com a desesperação, e que ferventes supplicas ella fazia a Deus para que a levasse, desde que lhe deram como certa a sua morte!

–Tudo sei, minha senhora. Já vê que a não posso condemnar. Eu venho pedir-lhe consolações, venho aprender a paciencia, venho pedir-lhe coragem para não tentar contra a minha vida.

–Peça, peça, e verá que a minha santa sobrinha lhe ensina a consolação do soffrimento, o bálsamo divino da paciencia, e o segredo de achar a alegria na vida que tão desgraçada lhe parece. Hoje não, snr. Mendonça; Carlota a esta hora precisa de que a animem, se é que Deus não quer que este golpe seja o ultimo no debil fio da sua existencia. Eu vou para junto d'ella, parece-me que a estou ouvindo pronunciar o seu nome, e eu corro a dizer-lhe que encontrei no snr. Mendonça o irmão, o amigo carinhoso da nossa Carlota. Deixa-me dizer-lhe isto, snr. Mendonça?

–Diga, diga, que é preciso salvarmol-a, ainda mesmo que ella me não torne a ver.

–Por que não ha de ella tornar a vel-o?! Então quer que a infeliz morra atormentada? Tenha compaixão de nós, snr. Mendonça! Outra freira d'esta casa talvez lhe pedisse que não voltasse aqui mais. Eu, pelo contrario, lhe rogo que venha todos os dias, que seja testimunha de todas as lagrimas salvadoras que ella chorar, que lhe prometta uma affeição pura sem manchar a santidade das obrigações religiosas de Carlota. Pois a amizade immaculada não é o reflexo do amor divino? O Altissimo não condemna o coração de minha sobrinha, cheio de um amor que ha de entrar com a alma na bemaventurança. Eu tenho presenciado n'esta casa affeições de muitos annos, de longas vidas dedicadas ao amor do coração, sem comtudo macularem a religiosidade dos deveres. Todo o mundo tem obrigação de respeitar o amor de minha sobrinha ao homem que ella chorou dois annos, chorava ainda no instante em que lhe appareceu. Venha, snr. Mendonça, venha aqui todos os dias, e verá como o tempo amacia os espinhos que o mortificam. Ha de chegar a esquecer-se das dores que soffre n'este momento, e a sentir as lagrimas de uma amizade santa e pura.

O dialogo foi cortado por uma pressurosa chamada a soror Rufina. Carlota recuperando os sentidos, chamava Francisco Salter de Mendonça, e forcejava por evadir-se dos braços que a sustinham. Algumas religiosas estavam passadas de religioso terror, vendo-a, ainda vestida com os hábitos da profissão, invocar tão afflicta e descomposta o nome profano de um homem que, no entender das servas de Deus, devia considerar-se de direito morto, quando o não estivesse de facto. Algumas escrupulisaram de assistirem ao debate da professa nos braços das mais novas, e congregaram-se na cella da escrivã para decidirem que o demonio entrara no corpo de Carlota. O voto da mais auctorisada era que se chamasse o capellão para exorcismar a energumena. Outra acrescentava que, no caso infausto de contumacia diabolica, seria util e piedoso dar parte do successo ao bispo, para que este obrigasse Francisco Salter a sair do Porto, como perturbador d'aquella casa.

Entretanto, soror Rufina, chamada da grade, onde deixara Mendonça esperando saber o estado de Carlota, pedira ás amigas menos escrupulosas de sua sobrinha que a deixassem só com ella.

–Francisco desejava ver-te—disse Rufina.—Logo que tenhas força e vontade irás ver o que é um amigo do coração, um anjo de paz que Deus te envia, assegurando-te que a felicidade do espirito não destroe a felicidade do claustro, que a esposa do Senhor póde ser a irmã estremosa do homem a quem amou.

Carlota cravava os seus grandes olhos no rosto risonho da tia, como se não comprehendesse. A freira continuou:

–Esperavas que Mendonça te viesse lançar em rosto a tua impersistencia, minha filha? Não, Carlota. Mendonça sabe tudo. Diz que vem procurar as tuas consolações, a fim de não tentar contra a propria vida. Vês tu, menina, que sublime encargo Deus te confia no momento em que as tuas angustias tocam o extremo? Tens de amparar a vida do nobre moço, de lhe dares consolações…

–Eu, meu Deusl eu consolal-o!—exclamou Carlota, arrancando impetuosamente o véo—Ha uma só consolação possivel para nós. Annullem-me os votos que fiz. Não posso ser freira, não quero ser freira. Deus sabe que fui atraiçoada, que professei, porque me mentiram, e eu não minto a Deus. Minha querida tia, eu sou agora mais desgraçada que nunca. Morro impenitente, se me não dizem que é possivel annullar um juramento falso que me obrigaram a dar.

–Carlota! tu não comprehendes a felicidade n'este mundo sem o crime?

–Crime! qual foi o meu crime? que fiz eu para merecer este castigo? Onde está Deus, que me não amparou antes d'este desgraçado passo que dei hoje, e me não mata agora, se não posso remedial-o?

–Isso é uma blasphemia, filha! o demonio da tentação não quer deixar-te gosar as alegrias puras que Deus te permitte.

–Alegrias, minha tia! Pois cuida que se engana assim a afflicção? Alegrias para mim, que estou condemnada a um carcere perpetuo, que hei de ver sempre entre mim e o esposo da minha alma uma barreira de ferro, que nem posso sequer esperar que elle venha recolher o meu ultimo suspiro?! Vel-o todos os dias… oh! esse é o mais horrivel de quantos padecimentos podia antever a minha imaginação! Antes acabar no desespero, sem vel-o! Antes morrer aqui abafada sem que elle seja a desgraçada testimunha das minhas agonias! Que hei de eu dizer-lhe, ou que ha de elle dizer-me a mim? Se elle me pedir contas dos meus juramentos, se me lançar na rosto a minha falta de fé, se me perguntar como pude eu sobreviver á certeza de que elle tinha morrido, que hei de eu responder?

–Diz-lhe que vestiste o habito de eterna viuvez, que escolheste a vida mais pura, para que as orações por alma d'elle fossem mais gratas ao Senhor. Diz-lhe antes que escolheste o mais longo paroxismo de uma morte atribulada; que podeste acreditar que elle violara o seu juramento; conta-lhe tudo quanto a traição inventou em teu damno; diz-lhe que ainda convencida de que elle morrera, depois de atraiçoar-te, lhe perdoaste, e caíste de joelhos aos pés da cruz, pedindo á misericordia infinita que lhe perdoasse o perjurio. Que mulher houve n'este mundo tão forte da sua innocencia como tu para poder apresentar-se com o rosto immaculado na presença do homem que lhe vem pedir contas? Qual é o teu crime, infeliz? Não te disseram a ti que Francisco esposara outra mulher no Rio de Janeiro? Não te affirmaram que elle morrera depois? O silencio de dois annos não estava sempre confirmando o cruel desengano das tuas esperanças? Quem te ha de accusar, Carlota?

–Elle, minha tia. Eu tinha obrigação de não acreditar a calumnia! Eu fui mais vil e miseravel que os infames que urdiram a minha desgraça! Não tenho animo de lhe apparecer, não sei como possa defender-se a minha fraqueza, nem quero defender-me, porque sou eu a que me accuso de indigna do perdão d'este homem, que eu fiz tão infeliz… Ha um só remedio, minha tia… Se m'o não dão, nem quero mais vel-o, nem prometto respeitar a religião que nos manda supportar com paciencia o peso da vida… e que vida, meu Deus!… que vida de inferno me seria esta, se eu não podesse arrancar do coração esta braza viva que me está atormentando!

–Pois que queres tu, Carlota! Valha-me a Virgem Santissima! que se ha de fazer, infeliz creatura?

–Annullem-me os votos, deixem-me ir lançar aos pés de quem póde restituir-me a minha liberdade. Não posso ser freira, declaro bem alto para que todos me ouçam n'esta casa, e me desculpem do mal que eu fizer; não posso ser freira, sem dar grandes escandalos, sem insultar a virtude das pessoas que me rodeiam, sem amaldiçoar a hora em que professei, e a religião que me manda morrer sem desabafo.

–Carlota! pelo amor de Deus!—exclamou soror Rufina, tapando-lhe a bôca, e abraçando-a com convulsivo terror. Teme o castigo do céo, minha filha. Arrepende-te d'essas blasphemias, e Deus não permittirá que tu comeces a expial-as n'este mundo com a deshonra… Tu não sabes o que disseste, Carlota. Foi a desesperação que a fez assim fallar, minha Mãe Santissima; não consintaes que ella seja castigada! Alcançae de vosso Filho um bocadinho de refrigerio para esta desgraçada que a dor enlouqueceu.

A freira continuou uma supplica assim afflictiva diante da imagem da Mãe de Deus. Carlota Angela correra impetuosamente para o mais escuro da casa, e lá prorompera, sósinha, em prantos, que não eram de contrição, nem sequer de desafôgo á sua grande angustia. Apertavam-a ainda os frenesis da desesperação enraivecida e impia. Rebatia com gestos furiosos as timidas consolações da tia e da meiga Dorothea, cujas palavras mais suavemente lhe deviam fallar ao coração, se a quasi demencia a não tivesse assaltado com vertigens de quarto em quarto de hora.

Francisco Salter recebeu, ainda na grade, a triste informação do estado de Carlota. Perguntou elle a soror Rufina, se teria duvida em entregar-lhe uma carta. A freira hesitou emquanto Mendonça lhe não disse que a carta seria um lenitivo para Carlota, e talvez um balsamo de completa cura.

Qual deva ser a efficacia d'esse balsamo infere-se da carta que se copia textualmente no capitulo immediato.