Kitabı oku: «Cian», sayfa 4
Capítulo Nove
O capitão Sinawey sempre fazia questão de estar presente na refeição da noite com seus passageiros e tripulação, talvez ele visse aquilo como uma convenção, um dever a ser cumprido, porque estava claro que não apreciava de fato o momento. O capitão era um homem quieto, sempre preferindo ficar em sua cabine quando não estava na ponte. Um livro sempre o acompanhava no jantar, ele o mantinha aberto ao lado do prato durante toda a refeição. Na verdade, ele nunca lia uma só palavra, apenas usava essa pretensão de concentração estudiosa como um meio de impedir as pessoas de falarem com ele. Esse hábito de evitar conversas provavelmente explicava sua falta de habilidades sociais.
Naquela noite, a mesa do capitão estava posta com sua variedade habitual de talheres incompatíveis e xícaras lascadas, arrumada com antecedência pelos auxiliares de cozinha. Ao longo da mesa, havia saleiros e pimenteiros, condimentos, vinagre, açúcar e, naquela noite em particular, o molho especial St. Elmo de Kaitlin, a presença desse tempero picante significava que provavelmente teríamos bife no jantar.
Nosso capitão tinha sobrancelhas negras e grossas, combinando com seu bigode, igualmente preto. Seus cabelos, mais grisalhos que pretos, mantinham o formato do boné, que estava pendia em uma aresta da cadeira. Na ponte em uma tempestade, ou em qualquer lugar no convés, suas instruções suaves eram executadas como comandos, sem questionamentos, mas ali, naquela confusa cabine, com um grupo que não estava sob seu comando, ele era um náufrago social à deriva boiando em direção a um recife de rochas ígneas em torno da mesa.
Dortworthy, um comerciante de fragrâncias exóticas e peles de animais, abriu a conversa da noite.
–Ah, capitão Sinawey – disse Dortworthy, limpando o canto da boca com o guardanapo – Qual é o corte de carne que nos proporcionou hoje à noite?
Ele me deu uma piscadela tentando, suponho, atrair-me para seu joguinho com o capitão. A estatura e o rosto de Dortworthy exibiam traços animalescos brutos, exceto pelo absurdo topete e pela ridícula vassoura preta no lábio superior a que chamava bigode. Apesar de suas muitas falhas, ele falava um português perfeito.
Nosso pobre capitão ficou estatelado no meio de sua garfada e olhou para o naco de carne empalada no garfo. Eu podia ver as bordas inferiores de suas bochechas enrubescerem.
– Hmm – começou o capitão – é um… – Hesitante, seus olhos encararam o bife no prato – Deve ser de algum tipo de…
Ele pegou o guardanapo, seus olhos trepidavam em um desespero silencioso. Me parecia que ele estava prestes a perder o pequeno jantar que foi capaz de consumir antes do sociável Sr. Dortworthy abrir a boca.
Nesse momento, Doki se sentou ao seu lado.
– Contrafilé – ele sussurrou.
Olhei para o nosso hóspede recém-chegado ao jantar, no momento em que ele esfarelava alguns biscoitos em sua refeição fumegante. O homem não poderia sequer sonhar com bife no jantar devido à sua deficiência dentária, no entanto, ele provavelmente estava familiarizado com cada pedaço de carne na despensa, ao contrário do nosso capitão, que só via tudo como carne.
– Acredito que havia me informado, quando estávamos tomando nosso chá na cozinha – disse ao capitão Sinawey enquanto piscava para Dortworthy – que a carne a ser preparada para a refeição da noite era um corte de contrafilé do quarto traseiro de um fino gado argentino.
Sorrindo, o capitão pegou seu copo de chá gelado
– Precisamente, Sr. Lostasia, contrafilé da melhor carne argentina.
Dona Lilian sussurrou uma palavra afiada que eu não consegui entender do outro lado da mesa, em direção a Dortworthy.
– Ah – disse Dortworthy, ignorando o comentário de dona Lilian – pois muito bem. – Ele sorriu para a xícara, piscou os olhos furtivos e continuou – E a rebelião dos condenados na Austrália, o que acha de tudo isso, capitão?
Aparentemente, o homem ainda não estava satisfeito com seu entretenimento.
– Condenados? – o capitão começou – Bem, eu…
– Capitão Sinawey – decidi brincar um pouco com o Sr. Petulante – você já navegou pelo Pacífico Sul?
– Sim, Saxon – ele respondeu rapidamente – Muitas vezes.
– E não acha difícil navegar quando está ao sul do equador e fora de vista das Estrelas do Norte?
– Ah, não senhor. O capitão voltou para a refeição quando começou a falar – Quando tenho as sete irmãs estreladas do Cruzeiro do Sul sorrindo ao meu ombro e os ventos alísios sopram o dia inteiro ao verdadeiro sudeste, não há nenhum problema em navegar diretamente para Porto de Sydney, mesmo no escuro da noite.
Eu teria jurado que a voz do homem caiu uma oitava, e podia-se ver um ar definido de confiança sobre ele que não estava lá um momento antes. Ele olhou rapidamente para Dortworthy e continuou.
– Qualquer criança poderia fazer isso, é bem verdade, sem nem meia-lua para iluminar o caminho – disse ele com um sorriso.
– E onde você aprendeu navegação? – Kaitlin perguntou.
Minha irmã estava sentada do outro lado da mesa, à direita do capitão, à minha esquerda, uma conversa tranquila entre Lillian e Cian, com a ajuda de Rachel, que estava sentada entre elas.
– Bem – disse o capitão, virando-se para minha irmã e se interessando pelo assunto – o sextante em si aprendi quando não passava de um rapaz, com capitão Hampton. Um pouco mais tarde, a bordo do Rainha das Neves, com destino a Alexandria, no Egito, o capitão Lasiter me deu lições no astrolábio. Você conhece o astrolábio, senhorita Kaitlin?
Ela balançou a cabeça.
–Nem um pouco, capitão. Como funciona?
Na verdade, Kaitlin conhecia o funcionamento de um astrolábio, bem como do sextante, mas ela obviamente queria manter a conversa com o capitão em rota náutica. Ela sabia que eu queria me preparar para minha licença de mestre para poder capitanear meu próprio navio algum dia e aprenderia muito com o capitão Sinawey. Ao mesmo tempo, ela gostava do homem, como eu, e queria afastá-lo das águas bravias.
Kaitlin sentou-se conosco no jantar desta noite porque Cleópatra estava na cozinha, as duas se revezavam a cada noite, para que ambas pudessem ter um tempo social justo com a tripulação e os passageiros. Assim sendo, na noite seguinte seríamos agraciados pelos encantos da senhora rouca do Egito.
O capitão Sinawey poderia ser um péssimo candidato a incitar galhofas sociais, mas era um marinheiro talentoso, especialista em vela e navios, com conhecimento de todos os mares do mundo. Ele não apenas conhecia profundamente sua profissão, mas também podia comunicar suas informações em um fluxo suave, entretendo confortavelmente a maioria das pessoas na mesa por horas.
Doki fez uma pergunta sobre o Extremo Oriente e foi então que percebi, para minha surpresa, que quase uma hora havia se passado e as mulheres não estavam mais presentes. O Sr. Dortworthy havia se retirado para seus aposentos para cheirar perfumes e deitar-se sobre algumas peles mortas, enquanto isso, o capitão Sinawey havia levado eu e Doki de volta à Índia pelo Sri Lanka e explicado como o comércio de especiarias mudara o curso da navegação em mar aberto, finalmente, lançando as bases para a descoberta do Novo Mundo.
Foi nesse momento que entendi a principal diferença entre o capitão Sinawey e Dortworthy; Stanley Dortworthy não tinha caráter algum, e o capitão era o mais honrado dos homens. Seu principal traço de personalidade repousava em sua quietude e despretensão, na verdade seu maior patrimônio. Quando ele escolhia falar, certamente alguém aprenderia algo de valor. Dortworthy falou apenas para ouvir o som de sua própria voz, em vez de se envolver em uma conversa real.
Depois de me prometer um passeio pelo leme do Borboleta em meu próximo turno, o capitão Sinawey acendeu seu charuto e soprou uma nuvem de fumaça na direção do teto. Eu estava prestes a perguntar como era contornar o Cabo das Tormentas durante o inverno das extremidades Sul-americanas, quando as damas retornaram. Eu ainda não tinha acendido meu cachimbo e o capitão rapidamente apagou seu charuto, colocando-o cuidadosamente no bolso do paletó.
–Ah, capitão, você não precisa deixar de fumar – disse Dona Lilian – Meu marido aproveitava um bom charuto depois do jantar em todas as noites de sua vida e isso nunca me incomodou.
– Está tudo bem, dona Lilian, guardarei este para a próxima vigia na ponte.
– Esta seria a da meia-noite … – pausa – capitão Sinawey?
– Esta seria… – uma pausa igualmente perceptível – Dona Lilian.
– Vimos a perna da dona Lilian – Rachel disse animadamente – É linda.
–É mesmo? – Eu perguntei a minha sobrinha enquanto a levava no meu colo.
– Parece exatamente como uma de verdade, ela pode dobrar, virar e tudo! – Ela pegou meu cachimbo e começou a prepará-lo com tabaco demais – E tem até mesmo tornozelo e pé!
– É mesmo? – Eu olhei para Cian, que assentiu, depois olhei para Kaitlin.
– Sim, é verdade – disse Kaitlin – é totalmente articulada e coberto com um vinil macio que a torna muito realista.
– Onde você a conseguiu? – Eu perguntei à dona Lilian, pegando meu cachimbo de Rachel enquanto ela derramava mais tabaco da minha bolsa.
– Em Nova York, o Dr. Cooper fez para mim, a clínica dele fica a apenas duas quadras do Central Park.
Cidade de Nova York, infelizmente, esse era o último lugar do mundo que gostaria de visitar novamente.
Kaitlin perguntou a dona Lilian o que ela pensava sobre voltar a Madri depois de quarenta anos na Argentina. Quando a senhora idosa disse que não tinha ideia do que esperar, o Capitão Sinawey a havia contado que depois da morte de Francisco Franco em 1975, a cidade de Madri, assim como toda a Espanha, passara por grandes mudanças. Segundo ele, a transição da ditadura para a democracia foi lenta e dolorosa, mas desde então o país desfrutava uma recuperação econômica e Madri era uma metrópole movimentada e feliz, garantiu que a cidade a receberia calorosamente e ela se sentiria em casa.
Enquanto os três conversavam sobre o retorno de dona Lilian à Espanha, bem como sobre suas frequentes viagens à cidade de Nova York, Cian e eu nos afastamos.
* * * * * *
Inclinamo-nos ao parapeito da circular varanda de popa, observando a luz prateada da lua iluminando o rastro da embarcação. Raramente tínhamos tempo para ficar a sós no navio, era bom poder estar na companhia um do outro agora. Não sei quanto tempo se passou sem uma palavra entre nós, talvez quinze ou vinte minutos.
– Cian – eu disse.
Ela se virou para mim sorrindo e levantou uma sobrancelha.
– O que aconteceu com sua mãe?
Ela olhou para o mar, alcançando minha mão e envolvendo-a nas suas. Vários momentos se passaram antes que ela falasse.
– Quando você me levou para casa em minha aldeia, flutuamos naquele riacho de águas tranquilas. Ela olhou para mim —Lembra?
– Sim.
Na verdade, ela não falou tão claramente assim. Ela usava uma mistura de duas línguas, além de suas mãos, para expressar suas sensações, mas o que se segue é uma tradução bastante próxima do que ela disse.
–Tive um pequeno vislumbre da mãe, ela comigo no barco árvore, naquele mesmo rio. Brincávamos e ríamos juntas.
Ela olhou através das ondas para o horizonte e além. Eu a esperei organizar seus pensamentos.
– Por muitas temporadas, eu não tive lembranças do tempo de criança, de minha mãe e nem da aldeia. Depois que você me levou para minha antiga vila, um pouco do meu passado voltou para mim. Algumas lembranças que haviam desaparecido com facilidade, voltaram-me alegremente, como aquele barco de árvore no riacho. Eu tinha um pouco mais que a idade de Rachel, talvez doze temporadas, e ainda corria sobre as duas boas pernas. Outros me atacaram com força, quase me esmagando com o peso deles. Mais tarde, em nossa viagem pelo rio Mãe até o oceano, muitas coisas ruins vieram até mim.
– Cian – eu disse – deixe estar por enquanto.
Eu tinha medo que pudesse ser traumático demais para ela.
– Não – ela disse – há coisas que você deve saber. Quando você me levou na minha antiga aldeia…
Ela sempre dizia que eu a levava para a vila, mas o tempo todo eu estava convencido de que ela estava nos levando para Alichapon-tupec. Subindo o rio Negro e depois entrando nas profundezas da mata, procurava a orientação dela, mas aparentemente, pensou que eu a estava levando a algum lugar.
– Quando pousamos naquele lugar antigo, entrei na vila, no topo da margem do rio, e o pesadelo que me aterrorizava nas noites de todos os meus anos voltou à vida, diante dos meus olhos. Era o que deveria ser, eu, vendo aquele lugar com os velhos shabonas caídas, redes apodrecidas entre as árvores, pedras de fogo ainda em torno dos locais das fogueiras de muito mortos, mas ainda era o lar da infância. Logo que percebi aquele lugar, ele ganhou vida com pessoas, cães, pássaros e todos os sons felizes e cheiros bonitos das refeições da noite cozinhando no fogo.Vi Sharbandar, minha mãe, de joelhos junto ao fogo, fazendo ocumo.
Cian me soltou e fez movimentos com as mãos como se estivesse mexendo uma panela ao fogo.
– Eu era uma garotinha ao lado dela, cortando mamão e manga e colocando-os em uma folha fresca da bananeira.
Ela fez movimentos para estender a fruta fresca.
– A alça da minha bolsa de remédios estava sobre meu ombro, como sempre. Eu tinha orgulho de ser assistente de mamãe, que havia sido curandeira da vila por muitas temporadas. Fiquei feliz com a nova bolsa de remédios que continha um pouco de todas as coisas da bolsa dela. Sempre me acompanhava, como a dela estava com ela. Empurrei-a nas minhas costas para mantê-lo fora do meu caminho enquanto eu trabalhava com a comida. Eu era um pouco mais alta que Rachel naquele momento, meu pai estava dormindo na rede ali perto.
Usando as mãos, Cian fez um formato para a rede do pai e balançou-a para frente e para trás.
– Meu irmãozinho brincava na terra por perto, A vila estava tranquila com a última hora de luz do dia. – Ela engoliu em seco e roçou a bochecha com as pontas dos dedos. —De repente, veio um barulho alto da floresta para além dos limites da aldeia, e muitos homens correram para cima de nós, gritando e gritando, balançando suas armas.
– CORRA, CIANTAS! – A Mãe gritou pra mim. Ela pegou um graveto em chamas do fogo e correu para meu irmãozinho. —CORRA PARA SELVA! CORRE AGORA! NUNCA OLHE PARA TRÁS! Eles vêm nos matar. FOGE!
– Os atacantes corriam por todo lugar, ferindo e cortando minha gente. Meu pai pegou sua lança. – Cian segurou a lança imaginária e a ergueu em um movimento de arremesso – Então ele correu com nossos outros homens para levar a luta aos atacantes. Ele foi abatido imediatamente, e dois o atingiram com seus machados, mesmo depois de morto no chão.
Não fugi como minha mãe me disse, mas peguei um pedaço de pau do fogo, como ela. Eu não sabia o que fazer com isso, apenas fiquei de pé e assisti o massacre ao meu redor. Mãe ficou em cima do bebê. Ela bateu em um dos homens com o bastão em chamas quando ele veio até ela. Foi então que vi que não eram estranhos, nem brancos como você, Saxon. Eles não tinham roupas e seus corpos estavam pintados com padrões da morte, com pontos vermelhos, amarelos e pretos em toda parte. E cada homem tinha, enfiando através de um ou outro lóbulo da orelha, bem aqui, pequenas penas verdes e vermelhas do papagaio. Esse recurso único que eu conhecia das muitas histórias da minha tribo; eles eram os Xapori, às vezes chamados de Comedores de Serpentes Yanomami. Eles vieram do outro lado do rio Mãe. Nós sempre temíamos ver essas pessoas mais do que tudo.
Corri para ajudar a mãe, mas fui atingida por um Xapori. Acho que fiquei desacordada por apenas um minuto ou dois, depois acordei com sangue caindo em mim, e também ouvi rosnados, não palavras, mas mais como rosnados de animais e gritos também. Eu rolei para o lado e vi os Comedores de cobras vermelhos e amarelos cortando e cortando meu povo com suas facas finas. Eles pegaram minha mãe e a jogaram em sua própria rede, dois deles a seguram lá enquanto outro pulou em cima dela. Todo o tempo eles gritavam e gritavam com todo mundo. Eu cheguei entre minhas mãos e joelhos para ir até a mãe, mas algo acertou minhas costas. Eu gritei e virei. Um velho e feio Xapori estava em cima de mim, e quando vi o machado de pedra chegando, puxei minhas pernas para o peito, tentando me proteger. Ele bateu na perna, logo abaixo do joelho, depois segurou minha perna quebrada, e eu pude ouvir meus próprios gritos quando ele me acertou. Então outro golpe atingiu o lado da minha cabeça, bem aqui.
Quando acordei, vi através de uma névoa vermelha de sangue, os Comedores de Cobras começarem a se alimentar do meu povo e a beber seu sangue. Eles dançavam como animais loucos. Eu lentamente rolei de barriga para baixo, tentando não gritar, e comecei a me arrastar em direção à selva. Arrastava um pouco, depois descansava e arrastava um pouco mais, uma perna não servia mais. Sussurrei aquelas palavras da mãe “Corra para a selva, Ciantas. Corre agora. Nunca olhe para trás.” Tentei fazer o que a mãe disse.
Eu estava quase na selva quando ouvi um grito estrondoso e apenas tive tempo de me virar para encontrar um deles correndo em minha direção. Com minhas últimas forças, me apoiei entre mãos e joelhos novamente e tentei subir os últimos metros até a selva. Mas minha perna quebrada estava doendo muito, minhas costas e minha cabeça também. Então, tudo escureceu.
Cian ficou em silêncio por um momento, depois disse:
–De alguma forma, não me lembro de mais nada.
Jesus Cristo! Que provação terrível para uma menina.
Nenhuma palavra, na minha língua ou na dela, poderia ter qualquer significado neste momento. “Sinto muito” era a única coisa em que eu conseguia pensar, e era tão inadequado quanto inútil.
Envolvi ela em meus braços. Meu coração sentia sua dor ao perder sua família e, na verdade, toda a sua tribo. Aparentemente, ela era a única sobrevivente do massacre. Ela tinha doze anos, a perna estava quebrada e ainda tinha outros ferimentos, como é possível que tenha sobrevivido na selva, sozinha, por todos esses anos?
Capítulo Dez
– Eu acredito – disse Dortworthy – que isso é o que vocês chamam de um bom garfo.
– Chamamos – eu assobiei através do tabuleiro de xadrez quando percebi que estava prestes a perder minha rainha – isso de uma posição de sorte da sua parte.
Eu já tinha perdido meus dois cavalos nos quatro movimentos anteriores.
– Mate em três – disse o capitão, estudando o tabuleiro sobre meu ombro e aguardando ansiosamente sua chance de dar uma surra em Dortworthy.
Ele não disse isso de maneira maldosa ou sarcástica, era apenas uma afirmação, uma certeza que, de fato, um momento depois reconheci, colocando meu rei ao seu lado.
Cian sentou ao meu lado, observando atentamente. Ela sabia que eu não gostava de responder perguntas sobre xadrez enquanto jogava contra outra pessoa, então permaneceu em silêncio, embora eu soubesse que estava bastante entusiasmada para saber o que era um garfo e por que deveria levar ao final do jogo tão rapidamente.
O capitão tomou o meu lugar quando concedi o jogo ao homem. O capitão Sinawey durou um pouco mais que eu, mas, ainda assim, naufragou em menos de vinte minutos.
Eu me perguntava, como poderia esse traficante de couros e perfumes rude e vulgar jogar um xadrez tão devastador?
* * * * * *
Naquela tarde, sentamo-nos, empoleirados em banquinhos de três pernas, encarando o vento, para que os fios de cabelo se afastassem de nós. Estávamos no topo da casa de leme, a estibordo, o lugar favorito de Rachel no Borboleta, pelo menos entre os lugares que ela podia ir. Eu esperava um dia sair do convés e ouvi-la me chamando e rindo do cesto no alto da gávea. Ela adorava o teto da casa de leme porque podia ver quilômetros ao redor. Convencida de que seria capaz de ver a Europa à frente e a América do Sul atrás de nós da Gávea, ela sempre implorou para ir até lá. Eu ainda não havia desistido e proibi Cian de ceder aos modos inteligentes de persuasão da criança. Mas eu sabia que era apenas uma questão de tempo até que as duas subissem lá, nem que fosse apenas pela diversão boba de me aflorar os nervos.
Com um pedaço de pano de vela em volta do pescoço e cobrindo meus ombros, Cian cortou meu cabelo. Depois de muitos meses sem um corte de cabelo real, fiquei feliz por me livrar dele. Eu nunca gostei de ir ao barbeiro, mas me pareceu que havia algo muito sensual em uma mulher aparando os cabelos de um homem. Não estava apenas sentindo as mãos dela no meu cabelo, mas a carícia ocasional em meu pescoço enquanto ela trabalhava, bem como o calor dela tão perto das minhas costas. O banco, sem encosto, tornava o contato de nossos corpos muito mais íntimo do que uma cadeira comum.
Kaitlin tinha apresentado as tesouras à Cian quando ainda estávamos na Amazônia, minha irmã guardava uma tesoura em um de seus muitos bolsos, além de vários outros instrumentos e apetrechos. Quando ela notou o fascínio de Cian pela ferramenta de corte, ela deu de presente a tesoura a ela e mostrou como usá-la.
As três crianças sentaram-se de pernas cruzadas aos meus pés e ouviram com muita atenção enquanto Cian contava uma de suas histórias enquanto aparava meus cabelos. Billy Kane, também necessitando de um corte de cabelo, sentava-se com o queixo em concha, quase sem piscar enquanto aproveitava cada sílaba. Magnalana MeCinco, uma garotinha adorável que, já tendo desfrutado de umas cem escovadas nos cabelos ruivos, parava Cian com perguntas a cada momento, assim como Rachel. Billy e Magnalana tinham a idade de Rachel e os três haviam se tornado grandes camaradas. Eles brincavam o dia inteiro do convés ao porão, onde encontraram esconderijos maravilhosos e muitas coisas curiosas entre a carga.
Cian falava e eu, com correções ocasionais de Rachel, traduzíamos para Billy e Magnalana, que entendiam francês muito bem. Ela usava uma mistura de Yanomami e português, enquanto eu aliviava a história em língua francesa pelo bem das crianças.
– Estava no meio da estação seca nas profundezas da floresta tropical – disse Cian enquanto cortava e penteava meu cabelo – quando a velha Miki-Leya estava ofegante nas margens verdes e quebradiças do rio Mãe. As piscadas de seus olhos foram ficando cada vez mais longas enquanto o sol ia se pondo na floresta, na margem oposta do canal de água verde e preta. O som de pássaros brigando levantou sua cabeça, e ela se esforçou para se concentrar nos galhos de uma andiroba morta, pendurada sobre o rio. Agora havia mais urubus do que antes, e um recém-chegado estava repreendendo e bicando seu irmão por um lugar no galho onde cravar suas garras e esperar.
– O que são urubus, afinal? – perguntou Magnalana.
– Urubus são pássaros – explicou Cian – que vêm comer a carne dos animais quando morrem.
– Eles comem pessoas mortas também? – perguntou Rachel.
– Sim, pessoas também.
– Ei, espere um pouco – disse Magnalana – As pessoas morrem?
Bem, essa era uma pergunta inesperada da garota. Obviamente, pelo tom de sua voz e expressão, ela não tinha sido informada acerca da finitude humana. É claro que ela tinha apenas nove anos de idade, então poderia ser que ninguém próximo a ela tivesse falecido ainda.
Eu acho que a taxa de mortalidade na selva deve ser bem maior do que a que conhecemos, devido à falta de hospitais e organizações de apoio social, além de estar mais perto do limite da incerteza. Eu me perguntava como Cian lidaria com a questão. Ela responderia de maneira grosseira e prosaica como eu imaginava que faria a uma criança Yanomami, que provavelmente já havia testemunhado a morte muitas vezes, ou mostraria compaixão por uma menininha que pode ter levado uma vida protegida até esse ponto e pode não estar totalmente preparada para a ideia de perder a mãe ou o pai para a morte? Mas eu precisava ter me preocupado menos.
– Na primavera —começou Cian – flores amarelas e vermelhas, como crianças, crescem a partir das sementes que seus pais plantaram amorosamente no solo próximo. A mãe e o pai assistem orgulhosamente seus filhos crescerem durante o verão, enquanto os protegem da melhor maneira possível do sol brilhante.
As três crianças ouviram atentamente sem interromper.
–Pouco antes do início da estação das chuvas, quando os filhos das flores crescem até a altura dos pais e estão prontos para fazer sementes e produzir suas próprias pequenas flores, o corpo dos pais retorna à terra. Feliz em saber que eles completaram suas tarefas aqui neste mundo, seus espíritos voam longe para estar com seus… – Cian hesitou e olhou para mim.
– Deus? – eu perguntei.
– Sim – ela disse – os espíritos voam para ficar com o Deus deles.
– Você quer dizer – disse Magnalana e piscou antes de continuar – que mamãe e papai vão morrer?
Antes que Cian pudesse dizer alguma coisa, Rachel respondeu por ela
– Todo mundo morre. Mesmo nós, crianças.
– Todo mundo morre?! – Magnalana exclamou – Mas que plano estúpido, quem pensou nisso?
– E se nenhuma das flores morresse, como seria? – Cian perguntou – Ou suponha que todos os animais pudessem viver para sempre? Em breve, estaríamos todos cobertos por camadas e camadas de animais famintos, se mordendo em meio a pilhas de flores murchas. Por isso, Magnalana, todos os antigos devem morrer para dar espaço aos novos, como vocês três. – Ela acenou com o pente na direção das crianças —Em breve, vocês tomarão nossos lugares quando nossos espíritos retornarem à terra. A morte não é uma coisa ruim, é necessário que a terra tenha espaço para gerar nova vida e é por isso que precisamos que os urubus comam os mortos.
– Mas que coisa feia para eles fazerem.
– Feio, sim, mas você sabe, se ninguém aparecesse para comer todos os animais mortos, logo o chão da floresta seria coberto de corpos apodrecidos e ninguém ia querer morar lá.
– Sua mãe e seu pai estão mortos? – Perguntou Magnalana.
Nesse momento eu senti as mãos de Cian descansarem em meus ombros. Busquei com a minha mão as dela.
– Sim – ela disse finalmente.
– Então, onde você já plantou suas pequenas flores?
As pontas dos dedos de Cian apertaram meus ombros, e eu sabia que ela estava sorrindo. Minhas flores vão florescer em breve, minha querida, muito em breve. Ela voltou a trabalhar no meu cabelo.
– Miki-Leya é um gato? – perguntou Rachel.
– Sim, um gato bem grande.
– Que tipo de gato? – perguntou Magnalana.
– Ela é chamada onça-pintada e é o maior e mais feroz animal da floresta tropical. Sua pele tem uma bela coleção de amarelos, marrons e pretos, de modo que, quando ela se deita perfeitamente imóvel, é possível dar um passo a poucos metros de distância e nunca a ver.
– Mas os urubus a viram – disse Magnalana.
– Os urubus podem sentir a morte a muitos quilômetros de distância, mesmo antes que a vítima tenha consciência de seu próprio fim.
– E depois, o que aconteceu? – Rachel estava ansiosa para que Cian continuasse sua história.
–À medida que a escuridão se aproximava de Miki-Leya, seu filhote veio, mas já não havia leite para ele.
– Ah – Rachel e Magnalana disseram juntas.
– Miki-Leya não comia há muitos dias, e seu leite estava agora seco. Fraca demais para caçar, e sem carne, nunca mais conseguiria produzir leite para o seu filhote.
– O gatinho é amarelo, marrom e preto também? —perguntou Magnalana.
– Não – disse Cian. Ele é escuro durante o dia como à meia-noite, assim como seu pai pantera.
– Agora, onde está esse pai? – perguntou Rachel —Ele deveria estar lá para cuidar de sua família, os homens são sempre assim – disse ela a Magnalana.
Magnalana assentiu vigorosamente em concordância, balançando os cachos vermelhos por toda parte.
– As famílias de felinos selvagens são diferentes —disse Cian – Depois que o macho e a fêmea se acasalam, a fêmea afugenta o macho, ela prefere criar seus filhos sozinha. Miki-Leya sabia o que era melhor para o seu filhote, e se ela não tivesse ficado doente pela flecha do caçador que mordeu seu quadril, ela seria capaz de cuidar dele muito bem.
– Provavelmente um caçador HOMEM – disse Magnalana com nojo enquanto ela e Rachel olhavam primeiro para o pobre Billy, depois para mim como se Billy e eu tivéssemos conspirado para atirar a flecha letal.
Cian não comentou o sexo do caçador, apenas só continuou com sua história.
–Miki-Leya fechou os olhos, querendo descansar por um momento, então ela invocaria alguma reserva de força escondida no fundo de sua alma felina e tentaria despertar, mesmo que para uma última caçada, apenas a fim de alimentar seu filhote novamente antes de morrer.
– Qual é o nome do gatinho dela? – perguntou Magnalana.
– O nome dele é Tribi-Leya.
– Aposto que Miki-Leya nunca abrirá os olhos novamente – disse Rachel, com seu lábio inferior começando a fazer beicinho.
– Miki-Leya abriu os olhos novamente. Poderiam ter se passado alguns momentos, ou horas, mas o miado suave de seu filhote a acordou de um sono profundo. Enquanto ela se esforçava para levantar a cabeça e olhar em volta na escuridão, ela viu seu filhote por perto. E adivinhem onde ele estava?
– Onde, onde? – as duas garotas exclamaram juntas.
– O filhote dela estava nos braços de uma garota humana, sentada de pernas cruzadas, assim como você, a apenas alguns metros de distância.
– Caramba! – Rachel gritou.
– Sim, caramba mesmo. – disse Cian —Quando Miki-Leya viu seu bebê nas mãos de uma humana, ela encontrou aquela reserva escondida de força e ficou de pé. Ela odiava todos os humanos, e se algum deles tentasse levar seu gatinho… bem, seria o fim dessa pessoa, seja criança ou não. Ela estava preparada para rasgar a garota em pedaços mesmo que fosse apenas para tocar uma última vez em sua cria. Quando ela rosnou e deu um passo à frente, a garota gritou de terror e puxou o gatinho para perto do peito. Ao som do grito da menina, os urubus voaram para longe sobre as águas escuras.
Miki-Leya levantou lentamente a pata da frente, com as garras afiadas estendidas, pronta para arrancar o coração da garota. A menina recuou, tentando evitar o alcance da mãe felina furiosa.
– Não, não – Rachel e Magnalana choraram quando suas mãos se agarravam.
– Mas, quando Miki-Leya estava prestes a atacar a garota, o grande gato caiu na grama, ofegante. Ela não conseguiu mais se mexer, apenas seus olhos se mexeram quando ela olhou com ódio cruel para a pequena menina.