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Kitabı oku: «Fanny: estudo», sayfa 8

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LXVI

Incutiram-se-me suspeitas novas, e estas, mais crueis mil vezes que quantas me haviam suppliciado. Desta vez, porém, o acceital-as docilmente, não me foi facil. Intranhara-se-me a desconfiança como vibora no coração, e o germen da peçonha, que ella ahi revessara, circulava-me nas veias.

O ciume resurgiu mais abrasado. A só escusa, que podia mitigal-o, era imposssivel. Não era já da partilha que eu accusava Fanny; mas sim da mais rasteira traição. Resolvi esclarecer a incerteza, por todo o preço. Nada disse a Fanny, fingi-me longe de suspeitas. Menti no rosto como nas palavras. Affectei consummado comico, a maior liberdade de espirito, quando me estava a morte no coração.

Pela primeira vez na minha vida, fui homem. Por mim, e só commigo, fiz quanto cumpria para descobrir a verdade. Comprei, com um pseudonimo, a casa contigua á de Fanny. Instalei-me secretamente lá. Todo o dia, cosido com as portadas das janellas, escutava os menores rumores da casa visinha, e via tudo que lá entrava, como se estivesse á espera de vêr algum estranho entrar ahi a roubar-me a mulher que me era a vida. De noite, escoava-me através da sebe de arbustos que separavam os nossos quintaes, e andava debaixo das janellas de Fanny, como ladrão que estuda o edificio que quer assaltar. Assim apprendi os costumes da familia que eu espionava. O erguer, o comer, o deitar, sabia tudo. Via de manhã os creados abrirem portas e janellas, e ouvia o roedôr dos moveis, deslocados na limpeza dos quartos e da sala. Ás oito horas, o dono da casa descia ao jardim, onde encontrava os filhos. Ás nove apparecia Fanny em desalinho campestre. Dava com elle alguns passeios. Ás onze horas chamava a campainha ao almoço. Ao meio dia, esperava o coupé á porta. O marido sahia, e só voltava ás sete horas para jantar. Muitas vezes, depois do meio dia, vi Fanny assentada na raiz d'uma arvore enorme, que assombrava largo ambito, conversar com os filhos, lêr, ou occupada em algum trabalho de agulha. As visitas eram numerosas. Das tres ás seis horas, quando estava bonito o tempo, circuitava o grande taboleiro de relva, longa fileira de trens, cujos cavallos escarvavam na areia, á sombra das arvores, sacudindo os freios, a tempo que os bandos de senhoras e cavalheiros, assentados em cadeiras de bambu, riam, e bebiam gelados. Ao intardecer sahiam todos, e os homens faziam caracolar os cavallos á portinhola das carruagens, ou reunidos atraz dos trens, caminhavam lentamente fumando os seus charutos. Fanny recebia-as com uma graça incantadora: variava muito de vestidos, e da minha janella via eu que as mulheres examinavam detidamente os seus deliciosos enfeites, ao passo que ella, parecia descuriosa de si, como se sempre estivesse adornada, sem o saber. Raro sahia de noite, se o calôr não era ardente. O marido passeava então com ella; mas ordinariamente tornava para Pariz ás oito horas, e quando tornava, era por alta noite.

Nos dias em que nos uniamos em Pariz, Fanny entrava no coupé com o marido. – Qual de nós é o enganado? – dizia eu commigo. Eu montava, e por travessas, e a galope, chegava a minha casa primeiro, e ahi era tão pouco preguntador quanto ella era meditativa. Era-o em toda a parte, em sua casa como na minha. Ao mesmo tempo, os passos do marido, mandava-os eu espiar. Nunca ia senão ao club, e a casa da amante. Aqui pernoitava algumas vezes. Fallava n'isso francamente aos seus amigos, e continuava a mostrar-se prodigo com ella em demasia. Era um homem prefeitamente feliz. Não o attribulavam suspeitas nem inquietações: rico, pae de galantes filhos, uma mulher adoravel. Que lhe faltava? Eu invejava-o.

Mas não me bastava assistir á vida exterior da familia, cujos segredos eu queria conhecer. Ao cabo de quinze dias, vendo esteril a minha espionagem, cancei-me da futilidade d'ella. Obtivera apenas o direito de suppor que Fanny cumpria a palavra, por que o marido, passeando com ella, parecia exclusivamente entretido com os filhos. Além disso, a frequencia das visitas que ella recebia, estorvava-me de vêl-a concentrada em si, tanto quanto eu queria. Resolvi introduzir-me em sua casa, sem o ella saber. A frieza, com que me estava tractando, era assustadora. Distrahida sempre. Muitas vezes, com terrivel commoção, de longe a via, quando se julgava sósinha, cahir sobre um banco, e esconder n'um lenço, o rosto lavado de lagrimas. Em oito dias, centuplicaram as minhas suspeitas.

LXVII

Por uma bella noite de agosto é que eu executei o horrivel designio, cujo exito devia decidir do meu destino. Não sei que hora era; mas, havia muito que as estrellas radiavam na face do céo a sua suave claridade. Abri a ultima janella do primeiro andar da minha casa contigua á de Fanny, fixei a persiana contra a parede, e resvallei pela rampa; pendurei-me do varão sutoposto á baranda da casa visinha; fixei um pé na goteira da sacada, depois o outro pé, e saltei. Estava em casa d'elles.

Fiquei immovel a escutar o silencio, interrompido apenas pelas precipitadas pulsações do coração. Perto de mim, uma janella alumiada como um grande quadrado de luz, branqueava de clarão baço, a parede innegrecida da casa. Baixando-me sobre os joelhos, enxerguei que esta janella não estava de toda fechada. As beiras das portadas tocavam-se, mas deixavam coar uma resteasinha de luz. Duas cortinas de cassa branca, pendentes diante das vidraças, deixavam-me vêr todo o quarto através d'um alvadio de leite que esfumava um pouco os objectos.

Lembra-me tudo isto. No fundo do quarto havia um grande leito, e sobre este, uma corôa de ebano lavrado donde pendiam cortinas de estofo escuro que contrastavam com a brancura dos lençoes. Á esquerda da cama, um tapete estreito, á direita, uma commoda; ao pé da chaminé uma poltrona de espaldar muito alto. Que sei eu? Creio que outros moveis estavam lá, mas eu não reparei. Ao principio, não vi ninguem no quarto, alumiado desigualmente, por um grande candieiro de cobre, coberto de quebra-luz, que dardejava sobre o pavimento os raios, deixando o tecto escuro. O leito ficava assim cortado longitudinalmente pela zona luminosa. Como quer que eu me chegasse á vidraça para examinar se elle estava occupado, uma sombra passou lenta entre o candieiro e a janella, desenhando-se nas cortinas brancas. Pulsou-me o coração mais rijo. Agachei-me rente com a sala, recuando um pouco.

Reconhecio-o. Era elle. Ainda o vejo. A viração tepida da noite de agosto, suspirava á volta de mim na folhagem; cantava um passaro entre os arbustos; a terra vaporava odores balsamicos; mas eu não via, não sentia, não investigava senão elle. Alongando o pescoço para ajustar os olhos á entre-aberta da janella, vi-o, com espasmo mudo, como se fosse para mim coisa extraordinaria vêl-o de pé n'um quarto de sua casa. Tinha os pés nus em amplas moiras de marroquim amarello; afivellava nos encontros uma larga calça branca de flanella. Despeitorado, arregaçado o colleirinho, arremangada a camiza, ia e vinha pelo quarto, fumando um charuto, dando corda ao relogio, mirando-se ao espelho, e esticando os braços. Assentou-se depois na grande cadeira encoirada, cruzou uma perna sobre o joelho da outra, e bamboando-a deixou cahir a chinela. D'onde eu estava, via-lhe perfeitamente a sola do pé nú levantada ao nivel dos meus olhos, e o braço carnudo descançado sobre o encosto da cadeira. O outro braço subia e baixava do joelho para o rosto, quando levava aos beiços o charuto, cujo fumo odorifero se exhalava até mim.

De repente, voltou a cara para uma porta que eu não tinha devisado, collocada ao pé do leito. Esta porta estava aberta, e no inquadramento obscuro que ella cortava no fundo do quarto, vi, duvidoso da minha razão, uma fórma vaga alumiada em rosto por um castiçal que ella trazia.

Potestades do céo! Era ella! Oh Deus! por que me não fulminaste n'aquelle momento!

Entrou vagarosamente, depoz o castiçal sobre a commoda, e, atravessando longitudinalmente o recinto, foi direita a elle, que a observava tranquillo, e sem levantar-se.

Fanny estava meio vestida com aquelle desleixado traje que eu lhe vira algumas vezes pelas manhãs, quando, ao sahir da cama, passeava no jardim com os filhos. Era um chambrão muito farto de cachemira azul aberta no peito, entre flocos de cambraia, deixando vêr o começo dos seios. Sahiam-lhe das largas mangas os braços nús. Trazia desmanchados negligentemente os cabellos, apanhados sobre as faces lizas, e apertados por grossos tufos sobre a nuca. Aquelle eterno porte de placido pudor, lá o apparentava no semblante.

Mas que vinha ella fazer alli a tal hora? quem lhe pedira isso? Não póde a recordação do amante retêl-a no limiar d'aquella porta? Dir-se-hia que ella nem se quer se lembrava de ter jurado, nem lhe passava pela mente a existencia d'algum homem para ella, senão aquelle que alli estava sentado, encarando-a, sereno como ella.

Fuzilou-me na alma um relampago de esperança, mas foi relampago. Abaixado sobre os joelhos e as mãos, embaciado o vidro pelo meu bafo, senti oscillar-me os braços como se o balcão estremecesse debaixo de mim. Suor de agonia, acre e frio, me banhava a face e os membros; rangiam-me os dentes, cahi, desfallecido, como arvore tombada ao ultimo golpe do machado. Mas ouvi palavras; e, repuchando quantas forças tinha, ergui-me sobre os joelhos e punhos.

Via-a andar mansamente d'um para o outro lado do quarto. Tocava, vagamente, e como em distracção nos objectos de sobre os moveis, tal qual costumava fazer em minha casa. E o marido tendo-a sempre d'olho. Fallavam; mas a minha commoção só me deixava ouvir um murmurinho. Rodeava-o ella, socegada e perfida, com os seus azues e suaves olhos, e apparencias de simpleza vaga. A instantes, sorria um sorriso melancolico. Quiz vêr n'esse rir, que lhe dilatava os labios sem illuminar-lhe o olhar, alguma coisa forçada. Não se mostrava pensativa, nem contemplativa, nem commovida. Estava perfeitamente á sua vontade, natural e tranquilla. Bem sabia ella que a sua grande magia era a irritadora tranquillidade.

O marido riu tambem, por sua vez. Vi-lhe o brilho dos seus alvos dentes. Dava mostras de defender-se ingenuamente d'uma accusação que ella fazia, sem cólera, mas como uma malignidade gracejadora, que não era isempta de desdem e altivez. Discutiam tão pacificamente que pareciam nenhum acreditar na realidade da sua disputa familiar. A final, debaixo da testa quadrada do marido, brilharam mortiços os olhos; e, quando ella perpassava diante d'elle, rossando-lhe com o vestido o pé, a decisão foi prompta; calçou a moira; e tirando brandamente pela cintura da mulher, sem resistencia, fêl-a assentar no seu joelho.

Saltaram-me as lagrimas então, lagrimas ardentes, que as palpebras não podiam reprezar, e desceram silenciosas pelas faces até aos labios. Emfim, comprehendia tudo; via a profanação, posto que a não quizesse vêr; affirmava que não era sonho aquillo, e queria duvidar. Não posso exprimir o que então se apartava de mim, o melhor de minha essencia, e o mal que me fazia vêr aquella mulher, que eu adorava, nos braços d'outro.

Fanny continuava sentada com as mãos cruzadas sobre os joelhos, e com os olhos no marido, conversava serenamente. Nada ha ahi mais casto que a simplicidade da sua attitude, a pureza do seu perfil, e aquella expressão dos olhos azues. No entanto elle, comprimindo-a cingida pela cinta, amimava-lhe a face com a mão livre. A final, Fanny lançou-lhe por sobre o hombro o braço esquerdo, e pendeu para elle langorosamente. Vi-lhe então as costas, cobertas de tranças dos cabellos, e o vestido fazia roda por largo espaço com impudor esplendido. Oh! como a abominavel creatura cheia de graça e lascivia se aconchegava d'aquella espadua robusta!

– É impossivel aquillo! – gritei eu em minha consciencia. – Não ha-de ser assim! – Mas elle abraçou-a, collando a boca espessa ás puras faces d'ella, e não sei o que lhe disse a meia voz. Fanny fez um gesto negativo com a cabeça, muitas vezes, sem córar. Elle, por cortezia, insistiu sorrindo, e ella, resistindo, pouco e pouco se rendia! Mulher scelerada! como ella prolongava o meu supplicio! O debate mudo, durou algum tempo. Não sei como foi que o sinto se lhe despregou, e rolou nas dobras do vestido. E eu chorava sempre. Levantou-se ella em fim, aquella mulher de resplendores e flôres, e, por um só movimento de braços e hombros, fez escorregar o chambre até aos pés. Eu cahi de joelhos, e ergui as mãos, como a exorar piedade. Ella tirou com afan, os pés do monte de estofos, e, um tanto pallida, mas em silencio, caminhou para o leito, achegando ao peito as ultimas coberturas. Quantas vezes a vira eu assim impallidecer! Cravei as unhas no rosto. O marido ia depós ella, vagarosamente.

E eu sem uma arma! Eu queria immediatamente estrangulal-a, espedaçal-a, ingolphar meus braços nas entranhas d'aquella mulher estupida. Com todo o sangue d'ella, não se apagaria o ardôr da minha tortura. Arquejante como o tigre, que vê a garra do leão cravada na sua preza, ergui-me a prumo, ferrei as unhas contra os dentes, escorria-me o suor da face, soluçava, como em arrancos de morte, estrebuchava, e via os horrores d'aquelle quarto. – Piedade! piedade! – foi o meu grito! E furioso, e perdido, avançara um passo! mas os cabellos heriçaram-se-me, e os olhos saltavam-me das orbitas, e a minha vista acerada entrou como um punhal nos cortinados sombrios, e vi… vi tudo! Quiz ir ávante, e não pude. A punição pregava-me os pés á balaustrada, e de minha bôca sahiam gargalhadas de demonio. Que horror! Eu testemunha d'aquelle espectaculo, a rir, como um doudo, a comprazer-me d'um jubilo que não tem nome nas linguas humanas! Tentei de novo avançar, por que ouvira suspiros, e queria saber qual das duas bôcas os exhalavam. Por um esforço prodigioso dos meus musculos todos, cheguei a despregar o hombro da parede, e dei ainda um passo; mas por que ao coração intumecido me refluira todo o sangue, perdi o equilibrio, e cahi como um pezo inerte sobre o balcão.

LXVIII

Quando cobrei o alento, estava a janella fechada e apagada a luz. Corri as mãos sobre os vidros impenetraveis. Corri a baranda em toda a sua extenção; tudo apagado, tudo fechado, dormia tudo. Dominava-me uma raiva glacial. Á custa de tudo, eu queria remirar esta mulher que eu detestava com o coração, com a alma, com os sentidos, com todo o meu ser. Mas ir até ella, como? Pendurei-me na rampa, e deixei-me cahir ao jardim. Rodiei vinte vezes a casa, empurrando todas as portas; mas a minha fraqueza não podia com ellas. Finalmente, atirei-me ao chão, e ahi, com o rosto entre as mãos, desafoguei-me em soluços.

– Trahido! trahido! – bramia eu, com monotonia desesperadora. – E o céo impassivel! – De subito ergui-me, e, sem idéa fixa, atravessei as trévas, rapido como se me viessem perseguindo assassinos. Precorri a tapada; saltei o muro, atravessei a estrada, entrei nos campos, e a correr sempre, com a cabeça nua, chorando e fallando sósinho, atirei-me como um attribulado gamo, que foge com os dentes de matilha feroz incravados nos flancos.

Onde ia eu? não sabia. Fugia áquelle espectaculo. Salvava-me a todo o correr, para o mais longe possivel, para não vêr a imagem horrenda que me ficara nos olhos. Trahido! Trahido! era o grito que me esporeava, e excitava a fuga. Despenhei-me em barrancos. Levantava-me ferido, coberto de suor e lama, e corria de novo, sem destino, por escuridade pavorosa. Lancei-me desamparadamente em cancellos insilveirados; deixava-lhes os meus vestidos a pedaços, e caminhava. Esgalhos de arvores batiam-me no peito, raspavam-me a face e os hombros os tojos lacerantes; parava a chorar e depois caminhava. Atravessei as ruas dezertas das aldeias, que resoavam sob os meus passos; campos cultivados, cujas searas me ondulavam nas pernas como vagas; collinas, bosques, regatos, atalhos, estradas que desfilavam á roda de mim, como se o solo fosse arrastado commigo no arremeço d'um sorvedouro immenso. Faltava-me a respiração, e eu corria ainda, chorando, chorando sempre.

– Ó minha mãe! – bradei eu. – Se soubesses quanto eu soffro!

De repente, achei-me com os pés em agua. Ante mim, distendia-se um vasto espaço negro, uniforme, entranhado nas trevas, d'um lado e d'outro, com grandes e mysteriosos zunidos. A lua dardejando de viez o seu reflexo argentino, sobre esta superficie luzente, parecia serpente enorme assanhada contra mim, para engulir-me. Involvia-me o nevoeiro. Avancei tropeçando nas pedras, mas os jactos d'agua da torrente rapida, embargavam-me o passo. Horrida tentação me assaltou. Contemplei o céo sereno, onde brilhava, entre nuvens immoveis, o dôce astro dos amantes; puz a mão sobre o coração, e caminhei. Dava-me a agua pelos joelhos, mas sentia sempre o chão lodento em redor dos meus pés que escorregavam. Não podia mais. Vergado á fadiga e á commoção, soluçando como as mulheres, cahi, e fui arrastado na torrente que marulhava em sua marcha obscura.

LXIX

O que decorreu depois d'isto, não sei.

Atrophiara-me um frio horrivel. Era nos ouvidos o sibilar lacerante. Sentia abafar. Muitas vezes cheguei a ajoelhar, impellido sempre pelo peso das aguas. Por fim, esqueci tudo; entendi que morria.

Quando me senti viver, estava na minha cama, com a cabeça em fogo. Abri os olhos esgazeados. Tremia em todas as fibras. Sacudia-me o corpo, desde a cabeça aos pés, uma horrivel febre. Ao meu lado, estavam dois amigos observando-me. Fallei, e elles abanaram a cabeça. Veio um homem, e tomou-me o pulso: encolheu os hombros, e partiu. Continuei a tremer. Isto durou muitos dias.

Depois soube que uns pescadores me tinham, de madrugada, encontrado sem sentidos, nas margens do Sena, com a cabeça envazada no lôdo. Buscaram-me as algibeiras, e acharam na minha carteira uma carta, e, guiados por ella, me trouxeram a minha casa. Delirei no caminho, e tiveram-me em conta de doido. Estava-o, realmente.

Fanny, porém, ignorante de tudo, admirada de me não vêr, veio uma manhã; mas o meu creado, a chorar, impediu-lhe a entrada no quarto, e contou-lhe o que sabia. «Quiz afogar-se – disse elle – e agora está doido» – Ella, porém, não quiz crêr no suicidio, e supplicou a entrada. N'esse dia, um abatimento sem nome, semelhante ao dos cadaveres prostrados em seus sepulchros, me tinha como pregado pelas costas ao leito, com os braços alquebrados e os olhos abertos. De repente, devisei na porta, que se abriu ao pé do meu leito, uma fórma humana, de pé e quieta.

Não atinei logo com quem fosse aquella mulher que me vinha vêr moribundo, adornada de trajos de estio tão elegantes e frescos, com braceletes nos braços e flôres no chapéo: tambem não entendi por que chegava com ambas as mãos o seu véo branco ao rosto. Os meus amigos tinham-se retirado para o fundo do quarto, afim de respeitar, quanto fosse possivel, um segredo que não queria ser penetrado. A mulher adiantou-se até á minha cama, e eu ouvi-lhe o fremito do vestido. Curvou-se-me sobre o leito, e levantou o véo. Como que senti refrigerar-se-me a alma, de vêr sobre o meu rosto aquella face viçosa cheia de graça, e como perfumada de saude.

Fanny! exclamei subitamente, erguendo os braços. Fanny abaixou-se a soluçar sobre o meu peito. Mas a memoria restaurara-se com o conhecêl-a; levei-lhe á face os punhos fechados, e repelli-a de mim, gritando furioso «sai d'aqui!» Ella acreditou que eu estava doido, e arredou-se chorando; mas com um resto de força que a raiva me déra, bati-lhe no hombro, e, ao lançar-me fora da cama, cahi por terra aos pés d'ella.

LXX

Quando sahi do lethargo, suppliquei, de mãos postas, aos meus enfermeiros, que não deixassem entrar em minha casa aquella mulher.

Ella, porém, que não podia suspeitar o succedido, e continuava a crêr na minha demencia, vinha todos os dias – disseram-m'o depois, e todos os dias com gestos afflictivos, sollicitava vêr-me. – O medico não consente – respondia inflexivel o meu creado. Fanny offerecia dinheiro e prendas; mas comprehendendo a final que a sua presença podia matar-me, retirou-se, pedindo a Deus a minha cura, e offerecendo-lhe, em troca da minha, a sua vida. D'isto não sabia eu nada então. Decorriam os dias, e, por desgraça minha, graças aos disvellos que me rodeavam, a vida pouco a pouco affluiu apagando a febre.

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Litres'teki yayın tarihi:
28 eylül 2017
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