Kitabı oku: «Fanny: estudo», sayfa 7
LVIII
Estas palavras nem me espantaram nem indignaram. Esperava-as. Sorri com amargura, ouvindo-as dos labios da mulher estremecida. Eu passeava d'um para o outro lado no meu quarto, e ella seguia-me com a vista.
– É a derradeira illusão que morre! – exclamei eu.
Fanny pediu-me a significação d'estas palavras, e eu recusei dar-lh'a, e disse:
– Já são que farte as questões que temos ha um anno; por minha vez, te rogo que não te importe saber o que se passa em mim. Amemo-n'os taes quaes somos. Por mais que desesperemos e resistamos nunca se mudará a nossa indole.
LIX
Durante a ausencia do marido, que foi de mais de seis mezes, houveram grandes alterações na nossa vida. Eu via Fanny quasi todos os dias. Ambos abusavamos da liberdade d'ella! Vinha passar commigo todo o tempo disponivel. Frequentes vezes jantavamos juntos. Encontravamo-nos nos passeios e no theatro, e nas lojas. Aqui, sem nos mostrarmos conhecidos, trocavamos olhares furtivos, e, perpassando ao longo dos balcões, sentiamos as delicias instantaneas do contacto. Escreviamos, além d'isso tudo, cartas infinitas, e trocavamos flôres.
Fanny esmerava-se em attenções, para compensar-me do mal que me fazia. Liberalisava-me aquelles delicados disvellos que as mulheres aguardam dos homens, e dos quaes disvellos são tão economicas, quando se dignam conceder-lh'os. Beijava-me a mão, chamava-me seu querido filho, mostrava-se submissa, e esmerava-se por que não houvesse coisa que turvasse a serenidade da minha vida. Nunca, porém, tratando-me como dominador, se rebaixava. Ajoelhada deante de mim, tinha a inteira dignidade d'uma rainha.
Ás vezes, quando as bellas noites do outono eram mais balsamicas e suaves que as do estio, fugiamos da cidade, como aves cansadas do calôr do dia. Hombro com hombro, recostados ao respaldo d'uma carruagem fechada, com as mãos inlaçadas silenciosos, iamos ao bosque buscar um pouco de ar, de silencio, e de solidão. Rentes comnosco passavam fogosas parelhas tirando por grandes calexes descobertos, cheios de mulheres risonhas cujos véos fluctuavam ao vento. Ouviamos o fremito das rodas na areia, o resfolgar dos cavallos, e o estalido dos chicotes. Viamos agitarem-se entre as arvores as luzes das lanternas, e mirarem-se na agua morta dos lagos as sombras espessas dos bosquesinhos de pinheiros. A lua, ás vezes tão melancolicamente ingastada no céo como nodoa de prata, alumiava grandes moutas de espinheiros, donde subiam, razando as hervas, nuvens alvas de vapor. Ebrios do aroma das carvalheiras, e da mollidão dos nevoeiros luminosos, apeavamos no angulo d'algum caminho estreito, e nos intranhavamos por debaixo da arcaria de immoveis arvores, passeando vagarosamente, mais perdidos em nosso scismar do que o estava a verde folhagem á sombra da noite linda. Era delicioso aquelle momento em que Fanny, infadada, se me pendia do braço, e justapunha a sua espadua á minha! Não fallavamos, sentia-se ali o viver, ouviamos as nossas respirações; e, assim unidos, achavamos doçura estranha n'aquelle nosso silencio e na incerteza de nossos passos.
Algumas vezes, com tudo, suscitavam-se ligeiras discussões, remeniscencias attenuadas de antigas discordias. Fanny, porém, tomando-me, a rir, pelo que eu era, uma creança, ou fazia que me não intendia, ou, sacudindo-me o braço em ar de gracejo, dizia:
– Ora vamos, não se falla aqui do que já lá vae.
Todos os lados accessiveis da minha vida ia-os ella penetrando cada vez mais. Como queria tudo saber, imperiosamente se senhoreava de tudo, passado, presente, e dispunha de tudo, a bel-prazer do futuro. Eu pensava em tudo como ella. Se me dava conselhos eu seguia-os como ordens. Em minha casa era ella que dirigia tudo. Os moveis como que se moviam espontaneamente para se collocarem nos logares designados por ella; os quadros entravam n'outras molduras; os espelhos inclinavam-se á vontade d'ella para lhe espelharem por toda a parte a imagem. Era-me prazer grande o vêl-a assim dispôr do que era meu. A minha casa, tornada sua, parecia afeminada. Já lá se não viam por sobre as mezas esporas, chicotes, caixas de charutos; nem junto das paredes tropheus de armas quarteadas; mas, em logar d'isto, estavam bocetas de flôres, alvissimas caças rojando sobre os tapetes, mobilia colorida a lacca e incrustações de Boule, e caixas de perfumarias. Levantavam-se do tapete agulhas e fios de seda e lã: no rebordo da chaminé brilhavam o dedal e as thesouras.
Foram, no drama da nossa vida, esses seis mezes uma especie de entre-acto. Nada nos faltava para a felicidade, excepto a confiança. Fanny estava sempre sobre-rolda receando ataque improviso, e eu conservava no coração um certo azedume. Não havia consolar-me de não ter podido vencer os escrupulos da mulher que eu tanto amava.
Cheguei á fraqueza piegas de pedir-lhe conselhos para a direcção dos meus bens. Fanny não entendia nada de negocios, mas dava aproveitaveis pareceres, porque eram sempre dictados por um espirito de desconfiança feminil. Pois não a consultava eu até em compras de cavallos? No tocante ao vestir era ella quem decidia soberanamente dos feitios e das côres. Arranjava a minha roupa branca, a rir, erguida em pontas dos pés para chegar aos lotes dos armarios, e intromettia-lhe bolsinhas odoriferas que trazia comsigo, e nunca pude encontrar n'outra parte. Todos os instantes dos meus dias estavam, em fim, contados. Não dava um passo sem sua approvação; não comprava luvas ou gravatas que ella não elegesse. O numero dos meus amigos fixou-o ella. Desprezei tres, porque tinham nomes que não agradavam a Fanny. Tudo isto me parecia delicioso. Viver sem ella é que eu não podia por mais que fizesse. Estava enfeitiçado.
LX
Mas o meu ciume, esse não estava morto, nem se quer entorpecido: apenas tinha variado um pouco de objecto. Desde que o marido estava auzente, já não podia soffrer por causa de uma partilha que não existia; mas os menores sentimentos que Fanny me deixava adivinhar, inquietavam-me. Afóra os filhos, e a mãe que ella via ás escondidas, eu não lhe consentia amar ninguem. Fanny sorria, encolhendo os hombros. D'este modo nos tyrannisavamos mutuamente.
Um dia, quando eu lhe tirava o «corpete», uma carta grande e quadrada – lhe fôra entregue quando saía de sua casa – escorregou-lhe do peito e caiu aos meus pés. Levantei-a. Tinha o sêllo de Londres. Encarei Fanny, que, pallida, estendia a mão tremula a tomal-a.
«Teu marido escreve-te?» disse-lhe eu, entregando-lh'a.
– Que pergunta! – disse ella.
– Escreve-te regularmente? – ajuntei eu, depois d'um momento de silencio, durante o qual eu sentia as garras do meu antigo furor atassalhar-me o espirito.
– Pois então!.. disse ella – todas as semanas.
«Porque te escreve elle?.. Separados por tão violenta discussão, parecia que os corações deviam separar-se para sempre.
Fanny olhou-me com espanto e ficou pensativa. Mas, como eu esperasse resposta, replicou:
– Espantam-te sempre as mais singelas coisas. Não é natural que meu marido me diga dos seus negocios, e me falle dos seus filhos?
«É justo… Eu não tinha pensado n'isso – murmurei.
Fallou-se de muitas coisas; mas, a sós commigo, reflexionei immenso.
«Respondes ás cartas de teu marido?
Fanny fez-se livida, hesitou, e deu signaes de impaciencia. Depois simulou um ar de indifferença, respondendo:
– Escrevo-lhe raras vezes;
– Sim? e, diz-me cá, que lhe escreves?
– Não sei. Escrevo-lhe friamente. Falla-se de negocios. Isto não te interessa nada.
Fiquei um tanto inleado; mas não pude reprimir-me.
– Como é que nunca tiveste a idéa de mostrar-me as cartas de teu marido?
Roger! Roger! – exclamou sorrindo contrafeita – eu creio que estás louco! Uma mulher póde por ventura confiar a alguem, principalmente áquelle que ama, o segredo dos negocios de seu marido?
– Tambem é verdade – murmurei eu.
Fanny quiz logo aproveitar a vantagem que obtivera.
– Feliz seria eu, disse ella, podendo mostrar-te essas cartas que te dão tanto que pensar. Provar-te-iam que é uma sem-razão recear alguma coisa. Sabe, pois, espirito desconfiado, que não se póde viver em menos união do que eu vivo com meu marido.
– De certo!
– Como podes suspeitar o contrario depois que te confiei as minhas amarguras?
– D'antes, tambem me confiavas o segredo dos negocios domesticos: não esqueças isto, Fanny.
– Oh! hoje é muito differente.
– Porque?
– Porque… cá me entendo.
Isto fez-me reflectir novamente. Fanny levou as mãos ao céo com piedosa expressão; eu estava como involto nas sombras da morte. E assim nos contemplavamos. Era-me impossivel a quietação. Agitava-me d'um para outro lado.
– Se dizes a verdade, Fanny, por que me não mostras as cartas que lhe mandas?
– Não é possivel. Quem lêsse uma, comprehenderia as outras.
– Não obstante, eu bem quizera conhecer o tom das tuas cartas. Porque lhe não escreves agora, mesmo aqui? Falla-lhe de tudo menos do que não quizeres que eu comprehenda. Eu mesmo levo a carta ao correio. Supplico-te, Fanny… Se nada temes de ti, dá-me esta prova de confiança, para me tranquillisar que eu soffro muito.
– Não é possivel – redarguiu ella, com signaes de offendida.
A raiva que me devorava o coração estalou desassombrada:
– Que lhe escreves tu que não queres que eu saiba? Juraste matar-me? Falla, se tens na alma sombra de piedade! Torturas-me barbaramente como um algoz!
Fanny ergueu-se, pegou-me da mão e disse brandamente:
– Roger, eu não queria magoar-te.
– Pois que! que mais querias tu fazer-me? Vae! Tu és mulher de duas caras; eu nunca fui amado por ti!
A esta phrase injusta, lançou-se-me ao pescoço, abafando-me com beijos as palavras. Eu continuei:
«Como podiam magoar-me as tuas cartas, se, depois d'essa horrivel contestação, ficaste despeitada com teu marido?
– Sê rasoavel: uma mulher póde ficar despeitada com seu marido?
«Pois que? – exclamei furtando-me aos braços d'ella – tu perdoaste-lhe?
– Rigorosamente não – disse ella, sentando-se quebrantada – mas foi-me preciso acceitar as suas desculpas. D'esta vez, ainda assim, está tu certo que não esquecerei mais os ultrages passados.
«Perdoaste-lhe! perdoaste-lhe, Fanny! – Bradei, de pé em frente della, que olhava para mim assombrada – Não tens, pois, dignidade alguma? Não te sentes das injurias? És assim vil? Amal-o? Mentiste-me, pois, a mim? Ah! isto é que eu não acreditaria nunca!
Fanny continuava a ouvir-me silenciosa.
«Diz-me cá: por que me occultaste tanto tempo que elle te insultava?
– Não queria deshonral-o. Se tivesses mais alguma experiencia, não te espantarias do que succede. Em summa, eu não quero fallar mais n'isto. Seja-te bastante saber que se me elle restringe a liberdade, ou diz arrebatado coisas indignas, tem pesar do que faz e diz, passada a colera. Affirmo-te que o julgas mal. É possivel que eu exaggerasse os factos no primeiro momento da indignação.. mas.
«Calla-te! – bradei eu – se tens pudôr, calla-te! Ha uma coisa que parece passar-te desapercebida, e é que, á proporção que vaes fallando, não sei que idéa peçonhenta lucta, em mim, com o meu amor. Não accrescentes uma só palavra. Acceito ainda isso, por que sou vil, por que sou um fraco, por que te amo muito, por que não posso dissuadir-me de te amar; mas sabe tu que maior mal não m'o podias fazer. Supplico-t'o – não digas mais nada.
E lançando-me a seus pés, exclamei:
«O despresares-te a ti propria, seria, sobre tudo, cruelissimo!
LXI
Sempre que tivessemos algumas dessas deploraveis luctas o apartamento era frio, e eu ficava dias inteiros a reluctar com a memoria d'ella. Mentalmente eu reproduzia os ataques e os argumentos, e inutilmente sondava a causa misteriosa do seu proceder. Eu era muito moço e inexperiente: avaliava-a mal. Aquella natureza complexa, que resumia no seu caracter muitos caractéres diversos, queria eu que visse as coisas absolutamente como eu as via. Eu, o que então sabia, era que as palavras: sentimento, amor, delicadeza, ciume, e outras assim, representavam para Fanny umas idéas, e para mim outras. Ignorava que o custoso para mim não o era para ella, e que lhe bastava sempre a boa intenção para indulgencial-a d'um facto, qualquer que fosse. Em mim, não descontava nada á sua fraqueza. Depois é que apprendi a conhecêl-a.
Quantos maiores esforços eu fazia para desligar Fanny de seu marido, mais eu estreitava os vinculos relaxados por quinze annos de existencia commum. Fanny lastimava-me interiormente, mas eu devia ser-lhe pesado. Bem sentia eu que a importunava, mas não estava em mim deixar de a repellir de cada trincheira em que ella esperava o combate. Não me passava pela mente que o unico recurso para conseguir o meu fim, era mudar de tactica. Ninguem me havia dito que eu devia esconder o meu ciume, como principal causa da nossa separação. Que candura! Eu via nas manifestações do meu ciume provas de um amor que devia abalal-a. E, com tudo, tão facil me seria serenar-lhe a vida a ponto de a forçar a comparações, com vantagens minhas, entre os dois homens de quem ella dependia. Mas mais simples que tudo seria não amal-a!..
Ama ella o marido? Não acredito, nunca o acreditei. Um sentimento banal, resultante do costume e agradavel ás almas pacificas, porque naturalmente continúa as coisas, e não cansa o espirito em mudanças, esse devia tel-o. E o vêr o despota humanisado diante d'ella, commovia-a; e o receber caricias da mesma mão que a castigava rudemente, dava-lhe uma especie de satisfação. Não era isto fraqueza nem ingenita baixeza de animo; era uma certa indifferença de genio, explicavel na idade d'ella Fanny, em fim, certo, não tinha uma alma varonil, nem mesmo uma alma muito nobre, por que antes queria astuciar que combater, e antepunha o aviltar-se, repartindo-se, que transtornar o seu viver; era, porém dotada de alma recta. Cuidava, certamente, que se resgatava, em sua consciencia, da perfidia conjugal com uma submissão completa. Até certo ponto, era indemnisar o marido, o tolerar-lhe os caprichos do genio. Em que restingas, em que abysmos, em que cahos de coisas sem nome, a probidade, esta rara perola, se esconde?
LXII
Era urgente que eu accedesse á nova concessão do aproximarem-se os esposos. Mas de concessão em concessão lá se ia, desfeita em lagrimas, a minha estima. Eu humilhava-me como o escravo que não póde resistir, com gritos de raiva surda, e desejos immensos de vingança. Ah! se Fanny soubesse que ella devia accusar-se só a si da minha abominavel vingança!
LXIII
Inraivecido por não poder vencer a pertinacia do caracter de Fanny, trahi-a. Amor e ciume, quiz tentar matal-os na devassidão. Conspurquei-me voluntariamente, e acintamente, ao contacto de labios impuros da luxuria estupida. Cada noite, de proposito, como ladrão que se embusca no angulo d'uma rua, entrava rindo sarcasticamente de mim mesmo, no infame prostibulo onde eu contava apagar a sêde de vingança. Sorria amargamente ainda, como traidor que pensa na confiança dos ludibriados, eu arrastava commigo, aos braços da mulher querida, a torpe recordação das creaturas degradadas, cujas caricias não tinha podido sevar-me o rancor; e deste modo eu achava um meio de identificar Fanny commigo, sem o ella saber, e ingolphal-a commigo nas mesmas execraveis immundices.
Mas era-me maior a vergonha na sahida que a cegueira do furor na entrada. Estorcia-me os pulsos na rua, e arrancava os cabellos desesperado. Mais ciumento, mais aferrado, mal vingado, castigado por minhas proprias mãos, martyrisava-me com o profundo pensamento da inutilidade dos meus esforços. Não sei que desgosto corporal me subia aos labios. Era um horror de mim mesmo. Vagava, de ventura, toda a noite, como miseravel sem abrigo, esperando vencer com a fadiga do corpo os tormentos do cerebro. Debruçado sobre o parapeito das pontes via redemoinhar a onda negra do Sena, menos sombria e mais lodacenta que os pensamentos, irriquietos do meu espirito attribulado. Eu chafurdava nos lamaçaes, como para destruir sobre immundices impalpaveis, a impalpavel, mas real immundice que imporcalhava o meu amor. E sempre diante de mim, perpassando como phantasma nas sombras que se tiravam ao longo das ruas, via a imagem de Fanny, com o seu ar tranquillo, fronte serena, olhar sombrio, como que a visitar-me, mas forçando-me a pensar n'ella quando eu ia cuidando em matar-me para esquecêl-a. Oh! que terrivel estado aquelle, sem repouso nem treguas ás minhas angustias! que me exacerbava e prostrava! que incharcando no nôjo a minha desesperação, infamava o meu ciume sem applacal-o!
LXIV
Sustentava-me, comtudo ainda, um resto de coragem, essencial na minha indole. Estas pelejas intimas davam-me alento. Resolvera buscar o remedio até encontral-o, e, não o tendo, emprehender algum arrojo de desesperado, para arrebatar Fanny, a pezar d'ella. Ninguem sabe os estragos que uma idéa fixa póde fazer d'uma alma. Incrivelmente vos vos roja até vêr o bem nas coisas repugnantes ás menos temerosas consciencias.
Após maduro reflectir, decidi-me ao penoso sacrificio da ultima concessão. Estava eu como um doente, que desenganado da cura, pactua com o mal, e dispõe-se de modo que seja menos o soffrimento no restante de seus dias.
«Tudo te perdôo! – disse eu a Fanny.» – nunca mais te fallarei dos nossos eternos motivos de discordia. Não examinarei o teu proceder; não te sondarei os sentimentos; tudo te concêdo, tudo acceito, excepto a abominavel partilha que tanto me fez soffrer, e tão demorada tem sido. Não posso mais… antes quero vêr-te desgraçada; antes morta; quero morrer eu. Sê-me leal, supplico-t'o – accrescentei com tristeza – porque me faz um mal horrivel duvidar de ti.
– Pois bem, não haverá mais partilha – respondeu Fanny, com um aperto de mão – não te inquietes, não soffras mais. Quando meu marido voltar, approveito-me do pretexto dos ultimos insultos para impor-lhe condições. Viverei completamente separada d'elle em sua caza. E isto, por toda a vida Roger, socega, sê emfim feliz. Não dependia de mim o seres feliz ha mais tempo.
«Restitues-me a vida! – exclamei, lançando-me aos pés d'ella, e abraçando-os.
– Querido filho!
– Liguemo-nos por um juramento.
A isto sorriu-se ella, mas jurou solemnemente, dadas as mãos, e fixados mutuamente os olhos.
«E agora – disse eu – se por qualquer motivo, uma vez só, resolveres faltar á palavra, juras que me avisarás, para que não haja entre nós traição.
– Por que queres tu que eu jure.
«Pela minha vida.
Fanny sorriu outra vez, mas jurou solemnemente.
Depois d'isto fiquei totalmente tranquillo. Picou-me n'alma o ciume como a recordação de um sonho que de tempo a tempo, nos sobresalta. Reapreceu-me a vida bella e ampla. Confiava.
LXV
E por isso a chegada do marido apenas me incommodou pela impossibilidade de me avistar tantas vezes com Fanny. Chegara o estio. Fanny habitava outra vez a sua casa campestre, e eu ia vêl-a algumas vezes, por noite, no caramanchão da tapada, e mais vezes vinha ella a Pariz, quando engenhava pretexto para passar fóra um dia. Mostrava-se mais livre que d'antes, pelo menos as visitas eram mais delongadas; mas, mais que d'antes, me pareceu pensativa e preoccupada. Attribui este enleio aos infadamentos procedidos da palavra que me dera. Entendo que novos debates, novos tormentos a faziam desgraçada; e, lastimando-a de todo o meu coração, animei-a á resistencia, e consolei-a quanto em mim cabia. Fanny, porém, denotava constrangimento, suspirava, e acolhia os meus beijos á flôr dos labios, como se tivesse esfriado em seu amor.
Estava escripto que tudo, na nossa historia, fosse extraordinario, e que eu não intendesse nunca o procedimento d'esta mulher. Logo que me eu persuadia de ter-lhe penetrado a nova tristeza – imputando-a a discordia que o respeito do seu juramento devia acarear – soube um facto que me atirou, mais que nunca, a um mar de incertezas.
Recobrando o repouso do animo, dei-me a um viver menos solitario. Meus amigos procuravam-me, por que os eu procurara. Interessou-me, de novo, a sociedade. Um dia, com grande espanto, soube que, a respeito do marido de Fanny, vogavam boatos escandalosos. Dizia-se que, durante a sua ultima viagem a Inglaterra, se tinha elle namorado de uma irlandeza que se estreara no theatro da Rainha; que a tirara da scena; que a chamara para França, havia um mez. Diziam-se maravilhas da magnificencia em que elle a tinha. Era lindissima, alta e esbelta como Fanny, mas morena como as filhas do Norte, com bellas côres rosadas, e finos cabellos sedados que se desenrolavam languidamente em longos anneis até ao peito.
Jubiloso de nova tal, fiz tenção de lhanamente contal-a a Fanny, a fim de fortalecêl-a na resistencia, e ministrar-lhe um terrivel argumento contra o nosso inimigo, se elle se obstinasse em tormental-a. Nova surpreza me esperava, que devia sobrelevar todas as mais a prodigiosa altura.
Fanny, como tantas outras mulheres, atraiçoando seu marido, não queria que elle a atraiçoasse. Irritada pelo meu ar de triumpho, nem deu credito á realidade da historia, nem á sinceridade da justificação.
– Ou mangaram comsigo, ou o snr. forjou uma historia desinfadadamente, para me atormentar. O que me diz aborrece-me. A grosseria desses sentimentos enoja-me tanto que não posso perdoar-lhe, faça o que fizer. Saiba que meu marido ama-me sempre. A tristeza que soffre, de mais o demonstra. O juramento que o snr. me arrancou, lealmente o tenho sustentado. Incumbe-lhe respeitar a minha sensibilidade, cessando de calumniar um homem que, por causa do snr., é desgraçado.
Foi tamanha a minha estupefacção, que nem me occorreu a idéa de censurar aquellas estranhas palavras. Fanny mortificava-me cruelmente fallando-me da «sua susceptibilidade, do seu juramento arrancado, da minha supposta calumnia» a proposito da infidelidade exactissima, do homem que eu detestava. Cuidava eu que Fanny se daria por feliz sabendo que, emfim, espontaneamente, o marido se afastava d'ella, como ella, desde muito, se afastara d'elle. Esperava eu acções da graça, e sahiu-me cólera, orgulho offendido, retaliações, que, a meu vêr, tinham as apparencias todas do ciume. Isto era para indoudecer!