Kitabı oku: «Fanny: estudo», sayfa 9
LXXI
Ao cabo de seis semanas entrei em plena convalescença. Já os amigos me tinham deixado. Perguntou-me, muitas vezes, o creado, se eu queria receber aquella pessoa que tanto parecia amar-me, e cuja presença tão mal me fizera uma vez. Sempre com repellão lhe disse que o expulsava se a deixasse entrar. O desejo, porém, de a vêr, entrou commigo, e tornou-se emfim n'uma irresistivel necessidade. Fiz fallar o creado sobresaltado, que não intendia a minha frieza. Contou-me tudo que eu não sabia; que ella vinha diariamente, e elle já não sabia que dizer-lhe, para estorvar-lhe a entrada. Se ella vier hoje, – murmurei eu impetuosamente, corrido de vergonha, – recebo-a.
Sentia-me eu abalado como se alguma funesta esperança tentasse renascer em mim. Com o abatimento da molestia, quasi que a cólera se desvanecera; mas ganhara-me uma dôr intensa, e eu assentava – tamanho desgosto era o meu por tudo – que não podia viver. Aquella noite terrivel da traição, lembrava-me como um sonho máo. A um tempo, amava e desprezava a mulher graciosa e perfida, cuja imagem era commigo sempre. O que eu esperava para acabar com tudo, era alguma cousa indelineavel.
Estava eu sentado n'uma poltrona, ao pé da minha janella, com os olhos fechados, repassando no animo o que eu diria á prejura, quando senti apertarem-me a mão, e misturarem-se n'ella os beijos com as lagrimas. Abri os olhos. A meus pés, de joelhos, livida, mas formosa ainda, formosissima, estava Fanny, olhando-me com eloquente ternura. Senti o perfume d'ella. Nada diziamos. Eu sei que chorava.
Fanny ergueu-se, abraçou-me maternalmente a fronte e os cabellos, com os seus dois braços nús. Não resisti, porque me era aprazivel receber aquellas caricias, a que eu tinha direito, em quanto não fallasse. E por isso mesmo é que não fallava. Finalmente, como eu chorava sempre e a não abraçava, Fanny disse:
– Foi-se o teu amor, Roger?
– Ainda não – respondi, tapando o rosto com as mãos. Ella não intendeu, e deteve-se em pé e agitada defronte de mim.
– Fanny, diz-me que é um sonho, ou que estou doido. Diz-me que não devo odiar-te, porque este odio dilacera-me.
Não córou. Não impallideceu. Pura como a chamma, e crendo-se talvez ella mesmo pura, amimou-me internecida, com apparencias de admirada.
Foi então que eu, reunindo as minhas forças todas, a tomei pela cintura gentil em meus braços, e a fiz sentar defronte de mim. E disse-lhe:
– Sei tudo.
«O que? tu que sabes?
– Vi tudo.
«Mas que?
– Porque me trahiste? Tu não cedeste, porque foste tu quem o procurou, não foi elle a ti. Foste tu, que trocando despejadamente o papel, o seduziste a elle.
Fanny não perdeu ainda a côr, e quiz fallar. Eu, porém, com os olhos cravados n'ella, sem cólera, e frio como o aço, continuei:
– É necessario dizer-te tudo? Não merecias confiança. Comprei a caza vizinha da tua, em Chaville…
Aqui, impallideceu, e disse:
«E depois?
– Uma noite, horrivel noite!.. depois de te espiar em vão quinze dias, arriscando a minha vida, consegui introduzir-me sobre o balcão da tua casa. Não sei que hora era. Ajoelhado por traz da vidraça do quarto de teu marido, pude vêl-o. Como te vejo agora, tudo vi. Estava elle só. Entraste…
«Isso é falso!» exclamou Fanny, mais horrivelmente pallida. Semelhava um cadaver sentado n'uma cadeira defronte de mim.
– Será preciso dizer mais? – accrescentei. – Vestias um chambre de cachemira azul. Trazias os cabellos em desalinho, e o peito nú. Calçavas chinellas de setim. Nús, trazias os braços. Serena como sempre, no momento mesmo em que prejuravas, não amaldiçoaste aquelle que vinhas saciar, por que ha em ti dois corações, para amar dois homens, Fanny, a elle, e a mim.
Fanny sacudiu rapidamente a cabeça, e disse com voz abafada:
«É falso! é falso! tu não me conheces!
– Será preciso dizer mais?.. Exprobraste-lhe a traição, que é certissima. Defendeu-se elle, a sorrir. Tu, cem vezes, passaste diante de teu marido, por que querias fascinal-o, sem lh'o dar a intender, com os teus exteriores pudibundos. Sahiu-te tudo ao pintar, por que elle puchou-te para sobre o coração, e tu deixaste-te sentar sobre os joelhos, e nem de mim te lembravas, de mim, a agonisar, com aquelle espectaculo diante…
«Basta!» – exclamou Fanny, e ficou a olhar para mim. Parecia soffrer horrorosamente; mas não chorava. Dilatavam-se-lhe as pupilas, e crispavam os labios resequidos. Com pena d'ella, baixei os olhos, mas accrescentei:
– Sabe que eu estive ali, eu, que te adorava, e é de crêr que a vergonha e a dôr não matem, por que eu vi tudo, e não morri.
Como duas estatuas fronteiras, nas bordas d'um jazigo, assim ficamos em contemplação, e immoveis. Por fim, disse ella:
«Eu devo fazer-te horror!
– Fazes.
Ergueu-se, levantou as mãos ao céo, lançou-se a mim, como sobre uma preza, apertou-me entre os braços, sentou-se-me nos joelhos, peito a peito, e a buscar-me os labios, com estas exclamações:
– Não importa! eu adoro-te sempre.
Mas eu, levantando-me, sacudi-a, e atirei-a ao chão, e ella ahi ficou. Abismada a meus pés, como a Magdalena, soltas as tranças, nodados os braços aos meus joelhos, desfeita em pranto, exclamava:
«Perdão! piedade! Eu tinha perdido o juizo! estava doida! mas amo-te sempre! Tem compaixão de mim.
E prometteu submetter-se a tudo que eu exigisse d'ella. Propôz-me a fuga, bradando:
«Mata-me, e não me repulses! Esmaga-me aos teus pés. Sou culpada, mas não me abandones. Amo-te. Rasga-me o coração…
Fiz que se erguesse e sentasse. Estava corada, e escondia o rosto; mas eu sentia-me impiedoso. Recrudescera o meu furor com a narração do meu supplicio. Voltei as costas áquella mulher, cuja soberba, por tanto tempo me mentira. Ainda assim queria ella violentar-me, estendendo para mim os braços; mas fiz-lh'os recuar á face, com um gesto.
– Sabe que te detesto e adoro – disse-lhe eu – É isto o meu castigo, por que eu fiz minha, a mulher d'outro, e devo ser castigado. Tu, para mim, és uma deshonra, e mais nada. És um idolo attascado em lama. Vi-te, em attitude pudica, com o rosto angelical, e olhar infantil; vi-te grotesca e disforme, raivar e uivar, como a loba mordida pelos cães. Cala-te! tu fizeste peor que as creaturas com quem esse homem hediondo te compara: essas, ao menos, não mentem.
«Mas elle é meu marido! – disse Fanny.
– Não tens consciencia? Diz-me com franqueza se é certo seres tu um ser intelligente, e se uma idéa dirigiu a tua acção funesta. Quem te obrigava a ir procural-o?
Fanny, com grande esforço, respondeu:
«Eu via que elle se desprendia de mim. Não o amo, por que te amo, mas dependendo d'elle. Não é natural? Repartida entre o desejo de conservar sua affeição, e o receio de ser forçada a mostrar-lhe uma affeição semelhante, quiz segural-o quando me fugia, e, quando se approxima, é escusado tentar eu fugir-lhe. Cedi ao dever. Reciei que me deixasse. O temor de me vêr abandonada com os meus filhos, inlouqueceu-me. Perdoa-me. A mulher, que elle conheceu em Londres, é a causa de tudo. Eu preciso de paz, socega-me tu. Fiz mal, por que te amo; mas sou mulher, e tu não conheces as mulheres. Não calculas quanta honestidade pode haver nas traições d'ellas.
– E o teu juramento? – exclamei. Fanny contorcia as mãos afflictivamente. Eu prosegui:
– Mentes, quando dizes que cedeste ao dever. Não cedeste senão ao orgulho. Intristecia-te o ser abandonada por esse homem que não amas, e te não ama, e te opprime, e te despreza e insulta. Não cedeste tambem á sêde d'um prazer abominavel? Repito-te que ouvi tudo.
Neste conflicto, encontraram-se os nossos olhos. Fanny fez-se escarlate, quiz fugir, tornou para mim, e cahiu de joelhos, exclamando:
«Se soubesses quanto eu me abomino! Eu queria arrancar o coração deste corpo. O meu coração está puro. Vêr-te, ouvir-te, sentir-te ao meu lado, bastára-me sempre. Por isso mesmo que te amo, é que tu és o unico ente, mais que homem para mim. Tu és neste mundo o meu amor unico. És a minha vida.
– Amas-me! – bradei eu com raiva. – Mas de que modo me amas? Acima de mim, em teu coração tão puro, estão vãs considerações do mundo, razões de sociedade, costumeiras mesquinhas, está teu marido. Não me falles de teus filhos. Que amor é aquelle que não conhece a virtude dos sacrificios? que recua diante de qualquer respeito? que é limitado? que soffre prescripções? que não é uma abnegação absoluta do individuo, de todos os seus pensamentos, e affectos, e deveres e virtudes? Quem se perde pelo ente que ama, e destroe a honra e segurança do seu futuro, e chega, por amor delle, até ao crime, e se tortura a inventar maiores provas ainda, não dá o mais radioso testemunho da paixão exclusiva, intolerante, e soberba. Tu nunca soubeste que o amor não vive senão de si, e nada reserva fóra de si. Renegado sublime, piza os mais santos objectos, forte da felicidade que inventa, e que lhe justifica a impassibilidade. Porém, tu! mulher das dedicações mesquinhas, das virtudes pequenas, dos deveres timidos, chamas loucura a tudo isto. É alto de mais para ti! a tua vista não alcança tanto. O que tens, superior a ti, é a tua casa, é o teu bem-estar, é o luxo que te cerca, é a falsa estima do mundo que tanto se dá de ti como das outras, são as relações banaes, é um complexo de coisas miseraveis. E dizes que me amas! Supportarias tu o abandono da sociedade? Offereci-te tudo que tinha; dar-t'o era a minha felicidade; para ti roubaria eu os indigentes. Ainda assim, aceitarias tu o menor incommodo como preço da minha felicidade? Não ultrajes, pois, o amor, a paixão soberanna, que não quer ouvir em redor do seu throno, uma voz que não seja a sua. Crês que amas por te haveres entregado? Vai, já te disse que vi tudo. Estavas com elle como commigo. Custou-te tanto a passar dos meus braços para os delle como d'um vestido para outro.
Fanny, ergueu-se desesperada, e quiz partir; mas eu retive-a, atirei-a para o fundo da alcova, e collocando-me diante da porta, com os braços cruzados, exclamei:
– Hasde ouvir tudo!
Faltou-me a expressão. Arquejava de anciedade. As minhas palavras eram gritos. Cerrei os punhos em postura ameaçadora; Fanny olhava-me de revéz com inexpremivel terror. As palavras vieram, depois, impetuosas:
– Eu nunca tive crença em ti. Tanta certeza eu tinha de que me atraiçoavas, que, por minha desgraça, quiz conspurcar o nosso amor. Sabe-o, se nunca o supposeste; sabe que eu, teu adorador, atraiçoei-te com as mais rasteiras mulheres.
Fanny não me acreditava. Attribuia á impotencia do furor o que eu dissera, e fez um gesto de denegação soberba. Máo grado meu, repassado de angustia, fallei n'um tom de voz supplicante, e branda. Toda a minha cólera cahiu sob o pezo da piedade.
– Sabe, pois, murmurei eu com as mãos erguidas, que eu te amava ao mesmo tempo com amor de mãe, de mulher, de creança. Quanta piedade, respeito, e ternura que podem resumir-se em amor no coração, quantas delicias, tocam a divinisação pela maviosidade, todas senti por ti, desde o primeiro dia em que te vi passar com tuas graças, com a tua serena suavidade, com a tua formosura. Sabe que te adorei piedosamente; que só em ti pensava; que eras a minha segunda alma; que me doiam mais teus males que os meus; que, por desvanecer-te do animo uma incerteza, teria dado, risonho, a vida, que eu só amava por que te era aprazivel. Vê que choro. Tudo que era teu, amei: teus filhos, tua mãe, tua casa, teus creados; as irregularidades irritaveis do teu caracter, os teus vestidos, e as tuas rendas. Creio até que o amava a elle, por que, em meu espirito, a tua imagem andava associada á d'elle. Nem minha mãe amei como a ti. Por ti, têl-a-hia abandonado, com tudo que venero. Eras o meu eterno espirito, o meu bem mais caro, a imagem perfeita das coisas puras.
«Perdão!» exclamou ella, recahindo de joelhos.
– E tu, Fanny, calcaste aos pés este respeito, este amor incomparavel, este coração…
«Piedade!
– Recalcaste-me como a féra impassivel que esmagou com as garras as primeiras flôres do campo. E agora… aqui me tens sem futuro, como um desgraçado que não pode amar alguem, como o ancião, que viu em roda de si, morrerem todos os seus. Tudo feneceu, tudo apodreceu em meu coração. Estou velho! tenho cem annos! vou morrer! sou um sepulchro! Tu sabes de mais que estou sósinho no mundo…
«Piedade! perdão! – exclamou Fanny, indo hallucinada, esbarrar nos moveis e nas paredes. – Não me digas que és desgraçado!
– Oh! desgraçado! e não digo bem o que sou. A lingua não tem voz que o diga.
Ingrata! Não te bastava ser senhora da minha alma, do meu coração, da minha vida; vens ainda tirar-me o que eu mais amava no mundo… a estima de ti… que me era mais que tu mesma!
«Piedade! piedade!» – continuava ella exclamando.
– Assassinaste-me a mocidade. Pois bem! ouxalá que nunca soffras o que eu estou soffrendo… Adoro-te, e horrorisas-me!
Dito isto, quiz feril-a e abraçal-a ao mesmo tempo; mas cahi desfallecido: e, por noite, quando abri os olhos, e a procurei no quarto ás apalpadellas, não a encontrei.
LXXII
No dia seguinte, senti-me saciado de vingança. Experimentava aquella especie de serenidade cruel, que segue as execuções supremas. Sentia-me satisfeito, em fim, como o juiz que tem em seu poder a irrecusavel prova do crime que puniu.
Já me não afligia o pensar n'ella. Não obstante, eu previa lucidamente os graves desgostos da sua vida.
– Soffrerá longo tempo, e depois odiar-me-ha. Incadeada sob o jugo, debalde tentará soffrêl-o corajosamente. A resignação desdiz do caracter d'ella. Outro virá, mais tarde, substituir-me. Se a não amar, será despresado. Amando-a, repetir-se-hão immediatamente, e com as mesmas phrazes – identicas luctas, as mesmas perfidias, iguaes torturas. Emquanto viva, Fanny perseguirá fatalmente a sua chimera. O amor ideal que a arrasta não se dessipará mesmo nos gelos da idade; quando as rugas sobrevierem a provar-lhe que tudo é mudavel na terra, ella continuará a evocar o phantasma d'uma paixão que foi e será sempre o seu supplicio. Ha-de apartar-se da sociedade, como os soldados feridos no fogo de vinte pelejas. Como elles, afastada de tudo, saciada de tudo, tirará commoções para uma vida nova no mysterioso poema das suas remeniscencias. Os filhos, que adora, não a consolarão. Quem sabe se virão a desprezal-a?.. Condemnada a amar por egoismo, não se fará feliz a si, nem a outrem. Impotente para o bem, ser-lhe-ha martyrio eterno o procural-o. Para a felicidade propria, faltar-lhe-ha sempre um vicio; para a felicidade alheia, faltar-lhe-ha sempre uma virtude. Tem coração de mais, e coragem de menos.
Dest'arte, julgava eu, de longe, aquella mulher que eu, por ultimo conhecera, á custa da minha ventura. Não posso dizer que a lastimava. Com quanto me sentisse prostrado de fadiga, a irritação surda, contra ella, era immensa. Como se annos e annos medeassem entre nós as suas barreiras, eu me sentia separado d'ella, mas ainda a sentia viver em mim. Era-me a memoria d'ella, como o ferrete aberto com ferro em braza. O estygma intalhado a fogo no coração, não podia eu, forçado do amor desvanecêl-o.
LXXIII
Se, porém, julgando-a, me não compadecia d'ella, era-me impossivel pensar em mim, sem padecer em todas as fibras do meu ser. Quanto amor eu tinha, quanta affeição filial, ternura piedosa, e veneração, exhalava-se de mim como vapores, e dissolvia-se em lagrimas amargas, que eu tragava, sobre a cruz onde a sorte immisericordiosa me cravára. Estorturava-se, este amor, como joven robusto que saboreou a vida e não quer morrer. A affeição de filho, que eu naturalmente lhe dera, por causa da differença de nossas idades; a piedosa ternura que ella me inspirava, como um bem suavissimo; a veneração, em summa, que lhe era a ella um incenso grato, isso tudo, o melhor de minha existencia, desfazia-se em meu coração, e evaporava-se lentamente em caricias de effluvios e perfumes. Qual viajor, surprehendido, ao despertar, nas steppes infinitas da Asia, por um turbilhão fluctuando raso com o chão, tal eu me sentia perplexo nas minhas revoluções, prudencia, e coragem. Em redor de mim tudo se movia vagarosamente, derramando-se em fórmas confusas: fugia tudo; memorias queridas, votos superfluos, ternos desejos, pezares, aspirações, tudo se esvahia nas distancias do meu sonhar, e me deixava, sósinho, n'um grande espaço. E desse turbilhão nevoento de sensações, vontades, e habitos; densas oscillações impalpapeis de penas, prazeres, e esperanças, prolongadas até ao extremo limite que meus olhos viam, surdia emfim um phantasma enorme que subia, subia até ao céo, tristemente involvido em pallida mortalha. Este phantasma reconheci-o na amargura que tinha impresso na face assombrada, no atrophiamento da sua attitude, na sua mudez, no rir amargo que lhe circuitava os labios descorados. Ah! uma vez o tinha eu já visto crescer para mim, e me sentira estalejar com elle nas dobras de seu sudario. Vinte annos tinha eu. Foi quando perdi minha mãe, e da sepultura d'ella, revolvida de fresco, sahia e me aferrara nos braços a glacial SOLIDÃO.
Eu chorava. Tudo estava em redor de mim fallando-me d'ella. Todo o mal que me fizera, esqueci-o. Mil vestigios deixára Fanny n'aquelle quarto que eu preparava amorosamente para recebel-a. N'aquelle tecto que lhe cobrira a cabeça, nos tapetes pisados por ella, nos moveis que tocaram suas roupas, em tudo me apparecia serena e consoladora. Aqui me abria os braços de veludo, a poltrona onde ella se assentava tantas vezes; ali a molle pegada do seu sapato, no coxim em que ella descançava os pés; acolá, resequidas, nos vazos chinezes, desfolhando-se tristemente, as flôres que ella amava; além, as cortinas que ella tantas vezes levantava com sua mão timida; ali, se move ainda o pendulo do relogio, para o qual ella estava olhando sempre; aqui, o véo d'ella, aqui as cartas, seus dôces reflexos; além, o pente embalsamado com o perfume dos seus cabellos; e acolá, finalmente, frio e cerrado como um tumulo, o leito onde tantas vezes chorávamos.
Agora, me assoberbava a memoria, tudo o que dissemos, pensamos, e esperamos. Como longinqua musica, trazida na viração do mar, soava-me nos ouvidos o cantar de suas palavras; como emanação de flôres que se evapora com o orvalhar das noites, deliciava-me o olfacto, o perfume de sua cutis olorosa; como bafejo de primavera, perpassavam-me nos labios os effluvios de seus beijos. Ardia-me a mão que ella tocara; ardia-me a fronte que ella afagara em seu seio; ardiam-me os olhos que ella adorara, a boca em que a sua apremara nas vertigens da paixão, o peito que ella duplicara com o seu peito. Oh! que prazer me era sorrir-lhe ao retrato, e remecher nas cartas d'ella! Affigurava-se-me ouvil-a ainda; esperal-a ainda, como nos dias passados; vêl-a chegar assustada, como a cerva dos bosques, a esconder-se em meus braços. Mas, ao mesmo tempo, não sei que vaga essencia se desprendia de mim em soluços e gemidos. Quebrantava-me uma tristeza profunda; uma lethargia sem nome paralisava todas as minhas idéas. Meditativo, como póde sêl-o o homem no leito da morte, eu dizia commigo: – Acabou tudo! não nos tornaremos a vêr, nós, que tanto nos amamos!..
LXXIV
Era tamanha a minha tribulação, que eu receei succumbir á paixão. A imagem d'ella, entrava em todas as minhas meditações. Como não podia arrancal-a da memoria, fugi com ella, precipitadamente, sem voltar o rosto, como o incendiado que não quer ouvir os gritos de maldição sahidos d'entre as chammas accendidas por sua mão cruel. Parti, sem dizer onde ia, para partir, para me afastar. A minha mesma coragem me apavorava. Mas a memoria ia commigo, chorava commigo. Cançado um dia, da vista dos homens, deixei os caminhos trilhados, e intranhei-me, ao norte, nas areias que bordam a foz do Loire. Caminhei trinta horas sem parar. Ao anoitecer, apeei n'um deserto, e resolvi acabar ahi…
Não queria porém, eu, que ahi dissessem que irreflectidamente me suicidara como um louco, ou como creança infraquecido na lucta. Apozentei-me, pois, aqui, para luctar contra mim mesmo, e vêr se a cura me póde ser ministrada por um hospede menos frivolo que a morte. Impuz-me o prazo d'um anno, para viver uma vida differente, só, meditativa, austera. Estou resolvido a esperar até final. Algumas vezes, detesto-me, e todavia espero. Fio-me não sei de que. Amo, como nunca amei, a mulher que me reduzio a isto. Não a desprezo já. Absolvo-a. Eu teria feito o mesmo, se fosse ella, e affirmo que valem menos que ella, as que de outro modo se comportassem. Mas ha momentos em que a detesto, e me arrependo de a não ter esmagado. Assim, e incessantemente, vou d'um extremo de amor e piedade, ao outro extremo de furor e odio. Oh! amar! que supplicio!
As forças da minha alma estão extinctas. Já me não pulsa o coração. Hoje principalmente, que dou fim aos traços do drama da minha vida, sinto a tentação terrivel de completal-o com um sanguinario epilogo.
Mas, porque ha-de ser aqui, e não ha-de ser além ao pé d'ella? É porque me resta ainda o pudôr d'um ciume feroz, que não quer ser carpido. Qual besta-féra, que, ferida de morte, procura uma caverna onde morrer em paz, e esconder seus ossos; assim eu, se devo morrer, quero que seja n'um deserto, longe d'aquella que eu amei de mais.