Kitabı oku: «A agua profunda», sayfa 4
A baroneza de Node passou e tornou a passar, muitas vezes, pelo passeio fronteiro, para examinar a extranha habitação com uma attenção que cada vez augmentava mais a sua surpreza. A casa tinha duas janellas no rez-do-chão, uma de cada lado da porta, e tres em cada um dos andares superiores. As do rez-do-chão eram guarnecidas de vidros despolidos e protegidas por estóres; e as sacadas do primeiro e segundo andares não tinham outra particularidade senão aquella ligeira differença de côr dos vidros que attestam a grande antiguidade de certos caixilhos.
Eram guarnecidas por bambinellas brancas, com ramagens, cahidas, e com reposteiros de estôfo, apanhados por braçadeiras, e dos quaes se via sómente o fôrro de setineta crême e a franja, vermelha e azul, que os orlava.
Os passeantes estranhos ao bairro, se os havia, que se detivessem a observar uma tal frontaria, imaginavam sem duvida, por detraz d'ella uma d'estas doutas habitações burguezas, d'um sabio ou dum professor, como ha muitas entre o Luxemburgo e o Jardim das Plantas, em consequencia da proximidade do Muzeu, dos dois grandes lyceus, da Sorbonne. Mas que um tal logar podesse servir de abrigo aos amores d'uma marqueza authentica, vinda ali d'um dos mais nobres palacios do arrabalde de São Germano, constituia uma hypothese tão perfeitamente inverosimil, que era preciso que Joanna de Node fizesse um exforço enorme para se convencer de que ella estava lá dentro, e que tinha visto perfeitamente Valentina de Chalinhy collocar a mão sobre o punho de ferro, que existia a um canto da porta, á moda antiga, para o fazer soar, – empurrar a porta ao meio da qual um friso de cobre marcava a abertura d'uma caixa para cartas, destinada a receber a correspondencia, sem que o carteiro entrasse – transpôr a soleira, elevada, por tres degraus, do pavimento da rua… N'aquelle momento lá estava ella, n'um d'aquelles compartimentos fechados. E com quem?
Qual seria o homem do seu meio, que chegou a esta casa alguns momentos antes d'ella? Assim devia ser, visto que lhe abriram a porta.
Ou então era ali o abrigo d'alguma aventura ainda mais romanesca? Teria Valentina, por uma serie de circumstancias que ninguem das suas relações podia suppôr, procurado uma ligação fóra da sua casta? Juntar-se-hia ali com ella um rapaz novo que nunca tivesse ido a sua casa? Que se tratava d'uma intriga amorosa, não havia a menor duvida. O que poderia oppor-se a que viesse a esta rua, pobre, mas perfeitamente decente, se fosse ali levada por um motivo justificado? E depois, o aspecto senão rico pelo menos muito confortavel da casa, não excluia tambem qualquer idéa d'uma visita de caridade? Valentina estava junto d'um amante. Mas que amante?
A violencia da curiosidade de Joanna era de tal ordem, que, esquecendo completamente a prudencia, ficou immovel, no passeio, com a cabeça levantada, em risco de ser vista do interior, se alguem se lembrasse de olhar para a rua atravez das bambinellas. Teria talvez, na febre de tudo saber, batido á porta mysteriosa, offerecido dinheiro aos lojistas visinhos para os fazer fallar, se um novo acontecimento não viesse de repente responder á pergunta tantas vezes feita: a paragem d'uma carruagem em frente d'essa casa, cuja frontaria enygmatica e muda ella observava com o olhar.
Era um coupé d'aluguer, do qual sahiu um homem ainda novo e que parecia preocupado por ter chegado tarde, por isso que, depois de bater á porta, durante o tempo que demoravam a abrir-lh'a, consultou o relogio e fez um significativo movimento de cabeça. Aberta a porta, entrou precipitadamente, abandonando o batente que se fechou logo, mas não com tanta rapidez que Joanna de Node não tivesse tempo de ver quadros, columnas e uma escada atapetada – mas não distinguindo quem veio abrir a porta. Com difficuldade conseguiu observar os traços physionomicos do homem: uma physionomia intelligente, magro, cabellos ainda pretos, apparentando ter uns 45 annos, com uns olhos tão negros que lhe pareceram d'um brilho singular. Os seus olhares cruzaram-se e, debaixo da impressão do d'elle, Joanna córou. Para não parecer que exercia a espionagem, deu alguns passos para a frente, como uma pessoa que não está bem certa no caminho. A que classe social pertenceria este homem que, sem duvida, vinha ter uma entrevista com Valentina de Chalinhy?
Tinha-lhe parecido muito bem posto, e, comtudo não lhe havia dado a sensação d'uma pessoa pertencente ao meio em que vivia.
Deu ainda alguns passos na direcção da rua Monge, com a idéia de que o desconhecido a tivesse notado e abrisse talvez a sacada para verificar se ainda ali se conservava. Voltou a cabeça e reconheceu que as janellas da pequena habitação continuavam fechadas e que a carruagem que conduziu o homem se não ia embora. Apoderou-se d'ella a tentação de não se retirar e esperar que Valentina ou o desconhecido reapparecessem, ou até mesmo os dois juntos.
Mas que mais tinha a esperar? Para que expôr-se a avisa-los. Tinha já a tão desejada prova. Restava-lhe apenas saber o uso que devia fazer d'ella. Subiu para uma carruagem e voltou para o Paris aristocratico – o Paris de sua prima e d'ella – e a imagem do estranho sitio em que aquella occultava o romance da sua vida ter-lhe-hia parecido um sonho se a perfida voz interior á qual no primeiro sobresalto de consciencia respondeu: «não farei isso» não tivesse recomeçado a pronunciar palavras muito nitidas, muito precisas, misturadas ás realidades da sua vida presente e aos mais positivos interesses do futuro. Tinha meio de perder Valentina para com Norberto. Não o utilisaria?
V
A carta anonyma
É forçoso reconhecer, para honra ou desprestigio da natureza humana – depende isso do ponto de vista – que muitas das más acções raras vezes são commettidas expontaneamente, e como taes. As nossas ruins paixões avantajam-se em nos encobrir a sua perversidade nativa debaixo dos mais plausiveis pretextos e algumas vezes das mais justas apparencias. É muito difficil que as reconheçamos em nós mesmo. Toda a psycologia do crime se encerra na seguinte phrase cynica d'um assassino, contando a lucta com uma velha mulher sua victima: «Defendia-se a miseravel!..» Quando uma creatura odeia outra por motivos tão vis como a inveja, por exemplo, acontece, quasi sempre ver o inimigo tal qual o seu odio necessita que seja. Praticam-se para com ella as maiores infamias, e consideram-se como merecidas represalias. Esta illusão, meio voluntariosa, explica por si só, que certas más acções, d'uma ordem abominavel, possam ser praticadas por determinados seres, os quaes no fim de contas, não são verdadeiros monstros. A baroneza de Node – pois que se trata d'ella – não se deve classificar como tal. A prova está em que ao entrar em casa, de regresso da excursão de policia improvisado, de novo respondeu á voz tentadora com um «não» mais energico ainda do que o primeiro. No tempo que demorou a transpôr a distancia que separa a rua Lacépède da rua Barbet-de-Jouy, as probabilidades de reconstruir a sua existencia sobre os destroços da familia de Chalinhy – criminosa chimera, á qual se abandonára, em pensamento, durante treze dias de espectação – voltavam de novo ao seu espirito. Por uma variação singular de sua sensibilidade, desde que sabia a verdade, encontrava mais fortes argumentos para repellir uma tal idéa, e, portanto, com ella o acto denunciador que demandava, do que quando duvidava ainda. É que uma intima, uma apaixonada satisfação d'amor proprio, a inundava completamente, e, durante uma hora, amorteceu o ardor da antiga ferida da inveja.
A violencia do odio, – o principal motor da sua alma havia tantos annos – achava-se paralisado pelo orgulho de conhecer, d'esta vez de maneira que julgava decisiva, a falta da prima.
A superioridade da virtude conjugal, que todas as mulheres reconhecem no fundo da sua consciencia, muito embora apparentemente desdenhem d'ella, já a não possuia mais Valentina de Chalinhy sobre Joanna, ao contrario poderia antes ter sobre ella uma superioridade, mostrando-se generosa. «Calar-me-hei e ficaremos quites…» Esta phrase que repetia em voz alta, «Ficaremos quites…» resumia perfeitamente o estranho trabalho do seu pensamento desmoralisado pela sua vida. Punha d'um lado a affronta que tinha feito á prima roubando-lhe o marido, e encontrava este prato da balança muito leve, comparando-o com o outro no qual pesava as vantagens que sacrificava – não se julgando culpavel d'uma infamia.
Devia ir á «Opera» n'essa noite, para o camarote dos marquezes de Chalinhy, no qual tinha logar certo, uma segunda-feira em cada quinze dias.
Este convite permanente constituia uma das muitas gentilezas de Valentina para com ella, e que a encantadora mulher empregava para auxiliar a prima, apezar do desfalque na sua fortuna, a manter-se á altura da grande vida parisiense. Ordinariamente subia a escadaria do theatro que conduzia aos camarotes de primeira ordem, com uns sentimentos de acrimonia constantemente renovados.
Lembrava-se do tempo em que tinha tambem uma frisa de assignatura. Muitas vezes para lá convidou sua prima, então solteira – e agora era ella que recebia a esmola humilhadora duma galante hospitalidade! – N'aquella segunda-feira, depois do episodio da tarde, uma unica impressão a dominava, um desejo, quasi uma necessidade de tornar a ver a frequentadora da pequena casa clandestina, espiar, estudar a sua physionomia, gosar com o contraste entre a marqueza de Chalinhy, altiva e elegantemente vestida, adulada e virtuosa, que reinava no meio opulento da sua realeza mundana, e a adultera aviltada, vestida modestamente, preparando-se para seguir para essa rua perdida n'um arrabalde afastado.
Propositadamente chegou um pouco mais tarde, para já encontrar Valentina no camarote.
Teve uma verdadeira decepção, logo que entrou na antecamara que o precede, por não ver os cabellos louros, os doces olhos azues que esperava, mas sómente a pequena e caracteristica cabeça da senhora de Bonnivet, os largos hombros do duque de Arcole, a pallida e fina figura de Abel Mosé, e o rosto amargurado de Chalinhy, que se adiantou para lhe dizer:
– «A Valentina pediu-me para a desculpar para comtigo, minha cara Joanna. Sentiu-se repentinamente um pouco incommodada e deitou-se».
– «Não é nada de cuidado, não é assim?» perguntou Joanna.
– «Não», respondeu Chalinhy, «uma simples enxaqueca.»
Depois no entre acto, e quando estavam sós, sentados n'um mesmo sophá, na pequena ante-camara, na qual os frequentadores do camarote tiveram a discrição de os deixar em amavel coloquio, sem que o marido receioso se offendesse de esta vez, commentou baixo: «Não sei o que ha. Estava perfeitamente esta manhã. De tarde fez algumas visitas, e recebeu, como é costume, ás 5 horas. Ás 6 horas entrou tua tia, a senhora de Nerestaing, e estiveram sós uma meia hora, se tanto, segundo as informações que colhi. Quando eu cheguei terminaram a conversação.
«Ao sairem as duas da sala em que estavam, pelo aspecto de Valentina, notei que a senhora de Nerestaing lhe acabava de fallar de qualquer coisa grave, que me dizia respeito, ou antes que nos diziam respeito…»
– «Lá estás tu novamente com os teus receios» interrompeu Joanna, encolhendo os seus formosos hombros. «Porque imaginas que a tia de Nerestaing se occupa com as nossas pessoas?
«Estou um pouco indifferente com ella ha uns dez annos. Não me vê nunca e nem mesmo pensa em mim. E emquanto Valentina, ninguem tem nada a revelar-lhe, tenho-me cansado a repetirt'o.»
– «E eu repito-te que Valentina ainda esta manhã não suspeitava de coisa alguma. Não me teria fallado a teu respeito, sendo tão franca, pela maneira porque o fez ao almoço. Despedi-me d'ella á uma e meia, e nos termos mais affectuosos. Fui depois encontral-a completamente transtornada. Quando lhe perguntei o que tinha, vi perfeitamente que tremia ao som da minha voz. Quiz apertar-lhe a mão, com difficuldade conseguiu estender-me a sua. Ás minhas perguntas, respondeu pretextando uma violenta enxaqueca. Fallei em chamar o medico, recusou. Necessitava apenas um pouco de repouso. Deixei-a ir, porque eu estava tambem muito perturbado. Tinha receio de me trahir, se insistisse em querer saber a causa da sua mudança subita… Se isto não são provas evidentes de que ignorava tudo e tudo acabavam de lhe contar, o que é então?»
– «E se assim foi?» diz a amante, «e depois»?
– «Como, depois?» replicou Chalinhy.
– «Sim, depois», insistiu ella, «se me amas não deves estar satisfeito por ter acabado esta situação tão falsa, tão humilhante para mim sem que tu tivesses concorrido para isso? Não podemos conversar mais agora; vem alguem. – Tens razão, é Saveuse que chega. Ámanhã ás 11 horas da manhã irei saber noticias de Valentina. Não é mais do que um pretexto, tranquiliza-te…» acrescentou ella, com um sorriso d'uma ironia caracteristica, arregaçando os labios finos ao canto da bocca n'uma ruga cruel. Pouco depois já os seus labios frementes estavam calmos, e os olhos, pelos quaes passou um lampejo de cholera, se adocicavam para o frequentador dos fauteuils d'orchestra que entrava, o barão Saveuse, uma das peores linguas de Paris. Este velho mal intencionado, pondo sómente em pratica expedientes equivocos, encontrou meio de se tornar tão temido pela verdade das suas maledicencias e pelo acerado das suas observações, que é tão poupado quanto despresado.
A estima d'estas personalidades perigosas e que Joanna mais se esforçava por adquirir, depois da ligação com o marido da prima; por isso, foi particularmente amavel para este mau homem, insistindo com elle para que passasse o acto seguinte no camarote. Era d'estes propagadores da opinião que queria ter por seu lado, d'estes destruidores de reputações que desejava ver contra a prima, se em alguma occasião recomeçasse a vida em condições difficeis de ser bem recebida no seu meio. E depois, tinha ainda de renovar n'essa mesma noite uma conversação muito grave com o amante, para ser realisada debaixo do olhar inquisitorial da senhora de Bonnivet e sobre tudo d'um Abel Mosé. Calculava que Chalinhy quereria a todo o custo reatar uma tal conversa, e que não podendo fazel-o no camarote, aceitaria, no final do espectaculo, um logar que lhe offerecessem na sua carruagem.
Esta imprudencia, que raras vezes commettia, era no caso presente um acto de sisudez.
Se era inutil o saber-se que um drama intimo se desenrolava no viver dos Chalinhy, era muito util, em caso de escandalo, que se tornassem bem patentes as relações de Norberto com ella.
Se o theatro lyrico tem um successo enorme para as senhoras e cavalheiros da Sociedade, não é sómente porque o ruido da musica, «mais caro do que os outros», como dizia Gautier, acompanha agradavelmente a conversação, é tambem porque a orchestra e o canto permittem, que o ouvinte se cale, fingindo que lhes presta a maior attenção, sendo certo que se entrega a longos soliloquios interiores, nos quaes uma pessoa negligentemente encostada ao veludo vermelho do camarote, não trata nem da Salambô, nem do Lohengrin, nem do Romeo e Julietta– era a opera que se cantava n'essa noite – mas de problemas tão pouco carthaginezes, germanicos ou italianos, como o que a baroneza analysava n'aquelle momento, parecendo inteiramente absorvida pela melodia: – «A Valentina fingiu-se doente.
«Tem receio de se tornar a encontrar frente a frente comigo. Pois bem! Tanto melhor! Sómente era necessario que não tentasse inventar um subterfugio, e a sua attitude com Norberto, depois da visita da tia Chalinhy, dava mostras d'isso… Mas que fim teria em vista? Representar a comedia da indignação e abandonar a sua propria casa… Como me julga!
«Imaginou que o primeiro acto seria denuncial-a. E eu que estava resolvida a nada dizer!.. Sim, tremeu por se ver descoberta; e quer ser a primeira a romper – tomando para si o papel mais sympathico. Chamou a tia, que me detesta, para lhe contar que eu e Norberto a trahimos. É a verdade, e depois, se for accusada por sua vez, toda a familia estará do seu lado. Norberto e eu sómente a calumniamos para nos vingarmos… Se é este o seu plano, veremos. Ah! Não descançarei… Mas é necessario que Norberto esteja do meu lado, – inteiramente —é necessario…»
Este pequeno monologo, começado e recomeçado atravez dos varios incidentes d'uma representação na opera – commentarios sobre a sala e os cantores, novas visitas, ver com o binoculo os frequentadores dos outros camarotes e a orchestra – era extremamente malevolo em determinados pontos.
A baroneza de Node não estava ainda convencida disso. Sobre uma particularidade incidia toda a sua perspicacia: a necessidade de não deixar o enigmatico e complexo Chalinhy entregue ás suas proprias exhitações. A audaciosa baroneza ficou convencida desde essa tarde que não podia confiar n'elle.
De balde envolvera o seu corpo esbelto n'um bello vestido de pellucia encarnada, graciosamente decotado, de maneira a deixar a descoberto os seus hombros deliciosos, o desejo de estreitar nos braços a amante, uma tão formosa creatura, com aquella toilette tão provocante e propositadamente preparada para o estontear, actuou menos no espirito do marido de Valentina, do que o escrupulo de afrontar os olhares das pessoas das relações da esposa, que o vissem partir na carruagem com a outra.
Acompanhou-a até ao coupé e quando, depois de se ter chegado para um dos cantos para lhe dar logar, ella lhe perguntou: «Não queres que te leve a casa na minha carruagem?» respondeu: «Agradeço-te muito mas tenho de ir ao club…» Joanna ficou tão estupefacta com a resposta, que o deixou fechar a portinhola, sem nada fazer a não ser envolvel-o n'um olhar tal, que o fez córar.
– «Magoei-a» pensava elle, seguindo a pé a rua Scribe, realmente em direcção ao club, com o fim unico de, no dia seguinte, poder dar a sua palavra, sem mentir, de que o ter de ir ali foi o unico motivo da sua recusa. «Pobre rapariga! Estava tão bonita, tão terna!.. Não comprehende que a não posso defender contra a Valentina a não ser que esta não tenha provas do nosso delicto.
«E esta entrada dos dois na mesma carruagem, depois da recita na Opera, estando já Valentina avisada, era realmente uma prova.
«Foi com certeza avisada. A senhora de Nerestaing nunca gostou de mim e tambem não gosta de Joanna. Quer mostrar-nos a sua má vontade. No fim de contas podia ter referido só ditos vagos, não apontando factos positivos.
«Eu saberei tranquilisar a Valentina, contanto que a Joanna me não impeça de o fazer. É um dever para com as duas.»
Estes pensamentos reproduziam perfeitamente a falta de logica da situação, quasi sempre identica, a que chega qualquer homem, quando se deixa arrastar á perigosa tentação, tão natural em certas sensibilidades de ter duas mulheres ao mesmo tempo.
Este dualismo de affecto – porque se Chalinhy trahia Valentina, estava esta bem longe de lhe ser indifferente – complicava-se, no caso presente, com os intimos laços de parentesco, muito propicios a estreitar uma tal ligação, mas que deviam produzir no futuro peripecias bastante embaraçosas e difficeis. Por mais inconcebivel que um igual erro de previsão possa parecer, nunca este marido infiel tinha acreditado na possibilidade de ser abandonado pela mãe de seus filhos, se um acaso a fizesse conhecedora da verdade.
Tinha até então unicamente receado a sua dôr; pela primeira vez temia a sua separação. Não antevira tambem, nunca, a possibilidade real de um rompimento com Joanna, bem que a sua razão lhe demonstrasse que esta solução seria inevitavel, mais tarde ou mais cedo, e, no final, a sua salvação. Sempre – e ainda n'essa tarde, mesmo depois de ter tido a coragem de sacrificar á prudencia a entrada na sua carruagem e as voluptuosidades que promettiam os olhos da amante, tão tentadora, tão branca, em contraste com a côr do vestido – sim, sempre, que pensava n'um tal rompimento, a recordação dos beijos d'essa bocca inebriante empolgava-o. Esta recordação quebrava e fazia desfallecer a fibra da lealdade. A sua vontade enfraquecia antecipadamente, sem que esta fraqueza fosse até ao ponto de o submetter de todo á sujeição que lhe parecia ler, cada dia mais claramente, nas suas maneiras, por vezes tão imperativas:
Onde pretendia conduzil-o a amante omnipotente!
Poderia tel-o comprehendido melhor se tivesse podido ver, logo que se fechou a portinhola do coupé, crispar as lindas mãos, e, n'um accesso de cholera, quebrar o leque e repetir, gritando dentro da carruagem em que Norberto não tinha querido entrar:
– «Ah! o cobarde! o cobarde! Isto é por causa d'ella, por causa d'ella, por causa d'ella…»
E recordando-se do que sabia a respeito de Valentina, ria com um riso insultante, no qual se expandia o seu orgulho ferido…
Não era este orgulho que tinha nos olhos e em toda a physionomia no dia seguinte, pela manhã, quando transpoz os humbraes do palacio dos Chalinhy, ás 11 horas, como na vespera. Ás nove, recebeu um bilhete de Norberto perguntando-lhe se podia ir á rua Barbet-de-Jouy, ao qual respondeu que não fosse, que ia ella á rua Varenne. A noite fôra-lhe boa conselheira. Arrependeu-se de lhe haver imposto uma prova, e deante de testemunhas, á sahida da Opera.
Quando desejamos exercer um supremo esforço sobre alguem, é um erro tentar outros menores. E depois, desejava sobretudo ver Valentina, e temia que a visita de Norberto a sua casa tivesse por fim impedir um encontro entre as duas primas. Como não recebeu mais noticia alguma, depois do bilhete, concluiu que nenhum novo incidente se havia dado.
Encontrou-o, á sua espera, só, na antecamara da esposa, com o semblante sempre cheio de inquietação e os olhos inchados por não ter dormido.
– «Ainda hoje a não vi», respondeu á interrogação de Joanna. «Mandou-me dizer que estava melhor, mas que se sentia ainda muito incommodada para me receber.»
– «Não é portanto a narração que a tia Nerestaing lhe poderá ter feito a respeito da sahida da Opera que lhe forneceu novos indicios», diz Joanna com uma graça na voz e no olhar que suavisava, com uma caricia, a ironia da reprehensão, e, tomando-lhe a mão, accrescentou: «Chorei muito hontem, na carruagem, mas, afinal, reconheço que tinhas razão!..»
– «Minha amiga…» respondeu Chalinhy, attrahindo-a para si, e dando-lhe um beijo, no qual vibrou uma emoção muito differente d'aquelle delirio dos sentidos em que Joanna habitualmente fazia consistir o seu principal dominio.
Era muito intelligente para o não perceber logo, e esta evidencia fez reviver de novo o germen da inveja depositado no intimo do seu coração: este enternecimento era motivado pela perturbação do marido por causa da mulher.
Era tambem o reconhecimento para com a amante por se ter associado na vespera á tranquilidade do seu lar! Beijou-o tambem, e perguntou-lhe com meiguice:
– «Dás-me licença que a vá ver? Se me receber, disse a amante, será a prova evidente de que os teus receios são imaginarios…»
– «E se te não receber?..»
– «Recebe-me com certeza», replicou com uma grande convicção que acompanhou d'um olhar de triumpho, quando a creada veio annunciar: «A senhora marqueza espera pela senhora baroneza.» A despeito da sua ousadia, natural e alegre, a amante estava muita nervosa por ter d'ir assim ao encontro da esposa legitima. Muito embora se achasse convencida, desde a vespera, de que possuia o meio seguro de responder ás accusações da rival, não era menos verdade que, sendo estas formuladas na sua propria casa, Joanna ia talvez assistir a uma scena extremamente desagradavel, e que se arriscava a ter uma decisiva influencia no seu futuro. Se, por exemplo, Valentina lhe dirigisse uma affronta muito violenta e Norberto não tomasse o partido d'ella?..
O coração batia-lhe apressado ao entrar no quarto da prima, ao qual as bambinellas descidas davam a obscuridade tão preconisada para as enxaquecas, e suficiente para que a recemchegada não podesse ver a extrema palidez da doente.
A marqueza de Chalinhy estava deitada, e os seus bellos cabellos louros formavam uma só trança, que dando volta vinha propositadamente cahir-lhe sobre o rosto, como que para lhe encobrir a bocca e as faces.
Estas duas feições que ficavam visiveis, perdiam-se na penumbra, mas os olhos brilhavam intensamente com o brilho da febre.
Por maior que fosse a sua força de vontade – porque recebia aquella de cujas relações com o marido sabia desde a vespera, com a resolução firme de continuar a fingir que as ignorava – a sua impressão, em presença da prima, foi tão violenta, que involuntariamente se lhe cerraram as palpebras e um tremor convulso lhe agitou todo o corpo sob a coberta de finos bordados. O seu soffrimento era deveras evidente, para que a calumniadora o podesse classificar de simples comedia. Mas se Valentina tinha realmente visto a baroneza, na vespera, em frente da porta da casa das suas entrevistas, e se imaginava o seu segredo surprehendido, não era muito natural a sua perturbação, e muito natural tambem que quizesse medir-se, frente a frente, com a inimiga para, por seu lado, saber com o que podia contar? Porque então este tremor, quando a perfida se inclinou para a abraçar. Porque esta retirada involuntaria do seu rosto afogueado, esta intuitiva contracção de todo o seu ser, que ella explicou, dizendo n'uma voz quasi apagada:
– «Estou tão nervosa. Passei muito mal a noite. Não posso suportar nem a luz, nem o contacto de qualquer corpo estranho…»
– «Que tens então?» perguntou Joanna.
– «Um grande cançaço, e uma violenta dôr de cabeça. Quiz ver-te, para te pedir desculpa por não ter ido hontem á Opera. Mas não podia… Estiveste até ao fim?»
– «Estive.»
– «E acompanhaste o Norberto?» perguntou a senhora de Chalinhy.
«Elle dispensou a carruagem…»
– «Chegámos ao ponto melindroso,» pensou para si a amante.
«Recebeu-me para me fazer esta pergunta. É o pretexto para uma scena? Uma scena! Não a terá…». E disse, em voz alta:
– «Não. Offereci-lhe um logar na minha carruagem e elle recusou, dizendo que tinha d'ir ao club…»
Pareceu-lhe – a penumbra é muito enganadora – que um vivo rubôr subira ás faces descoradas da marqueza de Chalinhy e que os seus olhos denunciaram uma muito extranha emoção; mas, no seguimento da sua idéa, não interpretou devidamente estes signaes, tão faceis comtudo de comprehender. Não via n'elles a prova de que Norberto adivinhou e muito bem que a sua traição fôra revelada, d'uma maneira fulminante, áquella de quem tão facilmente tinha abusado! Um conjuncto de circumstancias muito casuaes produziu esta revelação mais tarde ou mais cedo inevitavel; mas a sua coincidencia com a descoberta feita pela propria Joanna na vespera, dava ao acontecimento uma gravidade decisiva. Eis os factos em toda a sua simplicidade: – Julio de Node, como a mulher, pensava tambem em restabelecer a sua casa, cada vez mais compromettida, por meio d'um novo e rico casamento.
Offerecia-se-lhe agora uma boa occasião. Precisava por isso, da mesma maneira que Joanna pensára, fazer transformar a acção de separação em divorcio. Esperava que a mulher lhe não levantasse difficuldades.
Sabia pelo rumor publico, e por informações mais positivas, da ligação d'ella com o marido da prima. Cortou as relações com toda a familia da esposa, excepto com a tia de Nerestaing, que, melindrada pelo procedimento da sobrinha para com ella, tomou o partido do marido.
Julio de Node calculou, pois, que a velha fidalga seria a melhor mensageira para uma negociação tão delicada. Tratava-se de ameaçar a baroneza com o escandalo, se não acceitasse o divorcio.
A velha senhora de Nerestaing chegou á rua Varenne, inteiramente preoccupada com a incumbencia, e persuadida de que Valentina nada ignorava, e que supportava tudo por causa dos filhos. – Joanna estava, pois, já em presença dos effeitos produzidos por aquella empreza.
Não a conhecia nos seus detalhes, e, ainda mesmo que a conhecesse, faltavam-lhe os dados precisos para medir bem o seu effeito na alma profunda da companheira d'infancia. Conhecia ainda menos a nobreza e a candura d'uma tão bella alma. Em compensação, julgando-se senhora do criminoso segredo, occulto por apparencias de encanto e severidade, interpretou erradamente o rubôr e os modos da prima. Não viu n'elles o pathético abalo d'um coração, no qual uma suspeita indigna produziu um grande mal, e que se debatia na agonia negra da duvida.
«Não esperava esta resposta», pensou Joanna.
«O que fará agora? E se eu propria lhe falasse da rua Lacépède?.. Ver-me-hia deante da casa? Saberá que surprehendi a sua intriga amorosa, e quererá sómente tornar-se livre, dando como pretexto a nossa intimidade!..»
E depois, alto, com todas as caricias da mais eterna amizade na dicção, dizia: Em que posso ser-te util, minha querida, que queres que faça?
– «Nada», respondeu Valentina, e, com um sorriso de soffrimento, accrescentou: «A unica cousa que presentemente podes fazer é deixar-me, pois que já te vi… Algumas horas de repouso e a doença passará. Não é mais do que um resfriamento, verás.»
Estendeu a mão a Joanna, e quando esta, para se despedir, pousou de novo os labios sobre a sua fronte ardente não sentiu o mais pequeno movimento reflexo, o instinctivo retrahimento animal de todo o momento.
Era que atravez dos vae vens do seu espirito atormentado, n'essa noite, ora acceitando, ora repellindo as provas convincentes, que, infelizmente, sua tia lhe deu – as da devassa de Julio de Node – todo o pensamento da esposa trahida se fixou n'este ponto: «Passam a noite juntos. Se é verdade o que dizem, vae com ella na carruagem…», e pela primeira vez esta sensibilidade fina e casta, tão cruelmente calumniada – em face de apparencias bastante graves – por aquella que a atraiçoava, sentiu o supplicio do ciume. O facto de saber que os dois cumplices não tinham aproveitado a opportunidade para irem na mesma carruagem, deu tréguas, por alguns instantes, á crise de dor moral que experimentava desde a vespera.
Ia realmente poder descançar e retemperar as forças, emquanto Joanna, entrando no pequeno salão onde o amante a esperava, ancioso, lhe dizia – Então Chalinhy?
– «Então! Tinha ou não tinha razão? Tem unicamente uma forte nevralgia e nada mais… Podes estar tranquilo», continuou com ironia um pouco differente do insensato motejo que empregou á chegada. «Não serás ainda d'esta vez obrigado a escolher entre nós ambas, e a preferil-a a ella.»