Kitabı oku: «Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III», sayfa 10
SCENA II
Jupiter, Amphitrião e Sosea
SOSEA
Dice mi Señora Alcmena
Que no se ha de así de estar
Con un bobo á razonar,
Que se le enfria la cena.
JUPITER
Belferrão, vamos cear.
AMPHITRIÃO
Belferrão, não me deixeis.
Como? tambem me negais?
JUPITER
Andae, não vos detenhais,
Vamos comer, se quereis,
Não ouçais hum doudo mais.
AMPHITRIÃO
Ah maos! assi me ordenais
Offensa tão mal olhada?
Eu farei, se m'esperais,
Com que todos conheçais
Os fios da minha espada.
JUPITER
As portas prestes fechemos,
Não entre este doudo cá.
SOSEA
De fuera se dormirá:
Entre tanto que cenemos,
Puede pasearse allá.
SCENA III
AMPHITRIÃO só
Oh ira para não crer,
Em que minh'alma se abraza,
Que me faz endoudecer,
E não me ajuda a romper
As paredes desta casa!
E porque? Não tenho eu
Forças, que tudo destrua?
Pois que tanto a salvo seu,
Outrem acho que possua
A melhor parte do meu;
Eu irei hoje buscar
Quem me ajude a vir queimar
Toda esta casa sem pena,
Donde veja arder Alcmena,
Com quem a vejo enganar.
SCENA IV
Aurelio e Moço
AURELIO
No hallo á mis males culpa,
Para que merezca pena
La causa que me condena.
MOÇO
Essa está gentil desculpa
Para hoje dar a Alcmena!
Tẽe-no mandado chamar,
E elle está tão descuidado!
AURELIO
Moço, queres-me matar?
Que desculpa posso eu dar
Melhor qu'este meu cuidado?
MOÇO
E não ha mais que fazer?
Com isso a boca me tapa
Para mais nada dizer?
AURELIO
Ora dá-me cá essa capa
E vamos ver o que quer:
Não trates de mais razão,
Pois não ha quem te resista.
Que vejo? outra novação!
MOÇO
Que he?
AURELIO
Ou me mente a vista,
Ou eu vejo Amphitrião.
MOÇO
Eu ouvi a Feliseo,
Quando cá trouxe o recado,
Como elle era chegado,
E quiz-me dizer que veo
Do siso desconcertado.
AURELIO
Isso quero eu ir saber,
Pois que tal cousa se sôa.
SCENA V
Aurelio e Amphitrião
AURELIO
Senhor, póde-se dizer
Que a vinda seja mui boa?
AMPHITRIÃO
Essa não póde ella ser.
AURELIO
Porque não?
AMPHITRIÃO
Porque he roubada
Minha honra sem temor,
E minha casa tomada,
E vossa Prima enganada
Por hum grande encantador.
AURELIO
Isso he certo?
AMPHITRIÃO
E manifesto:
E tudo tẽe ja por seu
Adúltero e deshonesto:
Tẽe-me tomado o meu gesto,
E faz-lhe crer que sou eu.
AURELIO
Contais hum caso d'espanto!
E pois não podeis entrar,
Defendei-me por em tanto,
Que eu hei lá de chegar
Para ver quem póde tanto,
SCENA VI
AMPHITRIÃO só
Se ver deshonra tão clara
Me não tivera o sentido
Totalmente endoudecido,
Que gravemente chorára
Ver tão grande amor perdido!
E quando vejo a verdade
Do nosso amor e amizade
Desfeita com tanta mágoa
Enchem-se-me os olhos d'ágoa,
E a alma de saudade.
Assi que quiz minha estrella,
Para nunca ser contente,
Que agora, estando presente
Viva mais saudoso della,
Que quando della era ausente.
Esta porta vejo abrir
Com impeto demasiado,
Que poderei presumir,
Que vejo Aurelio sahir,
Como homem desatinado?
SCENA VII
Amphitrião, Aurelio, Belferrão e Sosea
AURELIO
Oh estranha novidade!
Oh cousa para não crer!
BELFERRÃO
Venho cego de verdade,
Que não puderão soffrer
Meus olhos a claridade.
SOSEA
Oh triste, que vengo ciego
Con rayos, y con visiones!
Y destas encantaciones,
Si nuestra casa arde en fuego,
Han se de arder mis colchones.
AURELIO
Vamos a Amphitrião
Contar-lhe cousas tamanhas.
AMPHITRIÃO
Que vai lá? que cousas vão?
AURELIO
Maravilhas tão estranhas,
Que me treme o coração.
Porque aquelle homem, que assi
Tantos enganos teceo,
Como era cousa do Ceo,
Tanto qu'eu appareci,
Logo desappareceo.
E em desapparecendo
Com ruido grande e horrendo,
Toda a casa allumiou;
E de arte nos inflammou,
Que nos vimos acolhendo
Do raio que nos cegou.
Estes acontecimentos
Não são de humana pessoa.
Vós ouvis a voz que soa?
Escutae, estae attentos;
Vejamos o que pregôa.
JUPITER, de dentro
Amphitrião, qu'em teus dias
Vês tamanhas estranhezas,
Não t'espantem phantasias,
Que ás vezes grandes tristezas
Parem grandes alegrias.
Jupiter sou manifesto
Nas obras de admiração,
Que por mi causadas são:
Quiz-me vestir em teu gesto,
Por honrar tua geração.
Tua mulher parirá
Hum filho de mi gerado,
Que Hercules se chamará,
O mais valente e esforçado,
Que no mundo se achará.
Com este, teus successores
Se honrarão de serem teus;
E dar-lhe-hão os escriptores,
Por doze trabalhos seus,
Doze milhões de louvores.
E dessa illustre fadiga
Colherás mui rico fruito:
Enfim, a razão me obriga
Que tão pouco delle diga,
Porque o tempo dirá muito.
FILODEMO,
COMEDIA
INTERLOCUTORES
FILODEMO.
VILARDO, seu moço.
DIONYSA.
SOLINA, sua moça.
VENADORO.
MONTEIRO.
DORIANO, amigo de Filodemo.
HUM PASTOR.
HUM BOBO, filho do pastor.
FLORIMENA, pastora.
DOM LUSIDARDO, pae de Venadoro.
DOLOROSO, amigo de Vilardo.
TRES PASTORES.
ARGUMENTO
Hum Fidalgo Portuguez, que acaso andava nos Reinos de Dinamarca, como por largos amores e maiores serviços, tivesse alcançado o amor de huma filha d'el Rei, foi-lhe necessario fugir com ella em huma galé, por quanto havia dias que a tinha prenhe. E de feito, sendo chegados á costa de Hespanha, onde elle era senhor de grande patrimonio, armou-se-lhe grande tormenta, que sem nenhum remedio, dando a galé á costa, se perdêrão todos miseravelmente, senão a Princeza, que em huma taboa foi á praia: a qual, como chegasse o tempo de seu parto, junto de huma fonte pario duas crianças, macho e femia; e não tardou muito que hum pastor Castelhano, que naquellas partes morava, ouvindo os tenros gritos dos meninos, lhe acudio a tempo que a mãe ja tinha espirado. Crescidas, emfim, as crianças debaixo da humanidade e criação daquelle pastor, o macho que Filodemo se chamou á vontade de quem os baptizára, levado da natural inclinação, deixando o campo, se foi para a cidade, aonde por musico e discreto, valeo muito em casa de D. Lusidardo, irmão de seu Pae, a quem muitos annos servio sem saber o parentesco que entre ambos havia. E como de seu Pae não tivesse herdado nada mais que os altos espiritos, namorou-se de Dionysa, filha de seu Senhor e Tio, que incitada ao que por suas obras e boas partes merecia, ou porque ellas nada engeitão, lhe não queria mal. Aconteceo mais, que Venadoro, filho de D. Lusidardo, mancebo fragueiro, e muito dado ao exercicio da caça, andando hum dia no campo apos hum cervo, se perdeo dos seus; e indo dar em huma fonte, onde estava Florimena, irmãa de Filodemo (que assim lhe pozerão o nome) enchendo huma talha de ágoa, se perdeo de amores por ella, que se não soube dar a conselho, nem partir-se donde ella estava, até que seu Pae o não foi buscar. O qual informado pelo pastor que a criára (que era homem sabio na Arte Magica) de como a achára e como a criára, não teve por mal de casar a Filodemo com Dionysa sua filha, e prima de Filodemo; e a Venadoro seu filho, com Florimena sua sobrinha, irmãa de Filodemo pastor; e tambem pela muita renda que tinha e de seu Pae ficára, de que elles erão verdadeiros herdeiros. Das mais particularidades da Comedia, fara menção o Auto, que he o seguinte.
FILODEMO,
COMEDIA
ACTO PRIMEIRO
SCENA I
Filodemo e Vilardo
FILODEMO
Moço Vilardo?
VILARDO
Ei-lo vae.
FILODEMO
Fallae era má, fallae,
E sahi cá para a sala.
O villão como se cala!
VILARDO
Pois, Senhor, sahi a meu pae,
Que quando dorme não fala.
FILODEMO
Trazei cá huma cadeira:
Ouvis, villão?
VILARDO
Senhor, sim.
(Se m'ella não traz a mim.
Vejo-lh'eu ruim maneira.)
FILODEMO
Acabae, villão ruim.
Que moço para servir
Quem tẽe as tristezas minhas!
Quem pudesse assi dormir!
VILARDO
Senhor, nestas manhãzinhas
Não ha hi senão cahir:
Por demais he trabalhar
Qu'este somno se me ausente.
FILODEMO
Porque?
VILARDO
Porque ha d'assentar
Que se não for com pão quente,
Não ha de desaferrar.
FILODEMO
Ora hi pelo que vos mando,
Villão feito de fermento. Sahe Vilardo.
Triste do que vive amando
Sem ter outro mantimento,
Qu'estar só phantasiando!
Só hũa cousa me desculpa
Deste cuidado que sigo,
Ser de tamanho perigo,
Que cuido que a mesma culpa
Me fica sendo castigo.
Vem o moço, e assenta-se na cadeira Filodemo e diz avante
FILODEMO
Ora quero praticar
Só comigo hum pouco aqui;
Que despois que me perdi,
Desejo de me tomar
Estreita conta de mi.
Vae para fóra, Vilardo.
Torna cá: vae-me saber
Se se quer ja lá erguer
O Senhor Dom Lusidardo,
E vem-mo logo dizer. Vai-se o moço.
Ora bem, minha ousadia,
Sem azas, pouco segura,
Quem vos deo tanta valia,
Que subais a phantasia
Onde não sobe a ventura?
Por ventura eu não nasci
No mato, sem mais valer,
Que o gado ao pasto trazer?
Pois donde me veio a mi
Saber-me tão bem perder?
Eu, nascido entre pastores,
Fui trazido dos currais,
E d'entre meus naturais
Para casa dos Senhores,
Donde vim a valer mais.
E agora logo tão cedo
Quiz mostrar a condição
De rustico e de villão!
Dando-me ventura o dedo,
Lhe quero tomar a mão!
Mas oh! qu'isto não he assi,
Nem são villãos meus cuidados,
Como eu delles entendi;
Mas antes, de sublimados,
Os não posso crer de mi.
Porque como hei eu de crer
Que me faça minha estrella
Tão alta pena soffrer,
Que somente pola ter
Mereço a gloria della?
Senão se amor, d'attentado,
Porque me não queixe delle,
Tẽe por ventura ordenado
Que mereça o meu cuidado,
Só por ter cuidado nelle.
SCENA II
Vilardo e Filodemo
VILARDO
O Senhor Dom Lusidardo
Dorme com todo o convento;
E elle com o pensamento
Quer estar fazendo alardo
De castellinhos de vento!
Pois tão cedo se vestio,
Com seu damno se conforme,
Pezar de quem me pario;
Que ainda o sol não sahio:
Se vem á mão, tambem dorme.
Elle quer-se levantar
Assi pela manhãzinha!
Pois quero-o desenganar:
Nem por muito madrugar
Amanhece mais asinha.
Filodemo
Traze-me a viola cá.
VILARDO
(Voto a tal que me vou rindo.)
Senhor, tambem dormirá.
FILODEMO
Traze-a, moço.
VILARDO
Si, virá,
Se não estiver dormindo.
FILODEMO
Ora hi polo que vos mando:
Não gracejeis.
VILARDO
Eis-me vou:
Pois, pezar de São Fernando!
Por ventura sou eu grou?
Sempre hei d'estar vigiando? Sahe.
FILODEMO
Ah Senhora, que podeis
Ser remedio do que peno,
Quão mal ora cuidareis
Que viveis e que cabeis
N'hum coração tão pequeno!
Se vos fosse apresentado
Este tormento em que vivo,
Crerieis que foi ousado
Este vosso, de criado
Tornar-se vosso captivo?
SCENA III
Filodemo e Vilardo
VILARDO
Ora eu creio, se he verdade
Qu'estou de todo acordado,
Que meu amo he namorado;
E a mi dá-me na vontade
Que anda hum pouco abalado.
E se tal he, eu daria
Por conhecer a donzella
A ração d'hoje este dia;
Porque a desenganaria,
Somente por ter dó della.
Havia-lhe perguntar:
Senhora, de que comeis?
Se comeis d'ouvir cantar,
De fallar bem, de trovar,
Em boa hora casareis.
Porém se vós comeis pão,
Tende, Senhora, resguardo;
Qu'eis-aqui está Vilardo,
Qu'he como hum camaleão,
Por isso, bus, fazei fardo.
E se vós sois das gamenhas,
E houverdes d'attentar
Por mais que por manducar,
Mi cama son duras peñas,
Mi dormir siempre es velar.
A viola, Senhor, vem
Sem primas, nem derradeiras:
Mas sabe o que lhe convem?
Se quer, Senhor, tanger bem,
Ha de haver mister terceiras.
E se estas cantigas vossas
Não forem para escutar,
E quizerdes espirar;
Ha mister cordas mais grossas,
Porque não possão quebrar.
FILODEMO
Vae para fóra.
VILARDO
Ja venho.
FILODEMO
Qu'eu só desta phantasia
Me sostenho e me mantenho.
VILARDO
Quamanha vista que tenho,
Que vejo a estrella do dia! Sahe.
SCENA IV
FILODEMO, cantando
Adó sube el pensamiento,
Seria una gloria inmensa
Si allá fuese quien lo piensa.
Falla
Qual espirito divino
Me fará a mi sabedor
Deste meu mal, se he amor,
Se por dita desatino?
Se he amor, diga-me qual
Póde ser seu fundamento,
Ou qual he seu natural,
Ou porque empregou tão mal
Hum tão alto pensamento.
Se he doudice, como em tudo
A vida me abraza e queima,
Ou quem vio n'hum peito rudo
Desatino tão sisudo,
Que toma tão doce teima?
Ah Senhora Dionysa,
Onde a natureza humana
Se mostrou tão soberana!
O que vós valeis me avisa,
Mas o qu'eu peno m' engana.
SCENA V
Solina e Filodemo
SOLINA
Tomado estais vós agora,
Senhor, co'o furto nas mãos.
FILODEMO
Solina, minha Senhora,
Quantos pensamentos vãos
Me ouvirieis lançar fóra?
SOLINA
Oh Senhor, quão bem que sôa
O tanger de quando em quando!
Bem sei eu huma pessoa,
Que haja huma hora, e boa,
Que vos está escutando.
FILODEMO
Por vida vossa, zombais?
Quem he? quereis-mo dizer?
SOLINA
Não o haveis vós de saber,
Bofé se me não peitais.
FILODEMO
Dar-vos-hei quanto tiver,
Para taes tempos como estes.
Quem tivera voz dos Ceos,
Pois escutar me quizestes!
SOLINA
Assi pareça eu a Deos,
Como lhe vós parecestes.
FILODEMO
A Senhora Dionysa
Quer-se ja alevantar?
SOLINA
Assi me veja eu casar,
Como despida em camisa
Se ergueo por vos escutar.
FILODEMO
Em camisa levantada!
Tão ditosa he minha estrella?
Ou mo dizeis refalsada?
SOLINA
Pois bem me defendeo ella
Que vos não dissesse nada.
FILODEMO
Se pena de tantos annos
Merecer algum favor,
Para cura de meus dannos
Fartae-me desses engannos,
Que não quero mais de Amor.
SOLINA
Agora quero eu fallar
Neste caso com mais tento;
Quero agora perguntar:
E de siso his vós tomar
Hum tão alto pensamento?
Certo he minha maravilha,
Se vós isto não sentis
Bem: vós como não cahis
Que Dionysa qu'he filha
Do Senhor a quem servis?
Como? Vós não attentais
Os Grandes, de qu'he pedida?
Peço-vos que me digais
Qual he o fim que esperais
Neste caso, em vossa vida.
Que razão boa, ou que côr
Podeis dar a esta affeição?
Dizei-me vossa tenção.
FILODEMO
Onde vistes vós amor
Que se guie por razão?
Se quereis saber de mi
Que fim, ou de que theor
O pretendo em minha dor;
S'eu neste amor quero fim,
Sem fim me atormente Amor.
Mas vós com gloria fingida
Pretendeis de m'enganar,
Por assi mal me tratar:
Assi que me dais a vida
Somente por me matar.
SOLINA
Eu digo-vos a verdade.
FILODEMO
Da verdade fujo eu,
Porque se o Amor me deu
Pena de tal qualidade,
Assaz me custa do meu.
SOLINA
Fólgo muito de saber
Que sois amante tão fino.
FILODEMO
Pois mais vos quero dizer,
Que ás vezes no imaginar
Não ouso de m' estender.
Na hora que imaginei
Na causa de meu tormento,
Tamanha gloria levei,
Que por onças desejei
De lograr o pensamento.
SOLINA
Se me vós a mi jurardes
De me terdes em segredo
Huma cousa… mas hei medo
De logo tudo contardes.
FILODEMO
A quem?
SOLINA
Áquelle enxovedo.
FILODEMO
Qual?
SOLINA
Aquelle mao pezar,
Que ant'hontem comvosco hia.
Quem se fosse em vós fiar!
O que vos disse o outro dia,
Tudo lhe fostes contar.
FILODEMO
Que lhe contei?
SOLINA
Ja lh'esquece?
FILODEMO
Por certo qu'estou remoto.
SOLINA
Hi, que sois hum cesto roto.
FILODEMO
Esse homem tudo merece.
SOLINA
Vós sois muito seu devoto.
FILODEMO
Senhora, não hajais medo:
Contae-m'isso, e far-me-hei mudo.
SOLINA
Senhor, o homem sisudo,
Se em taes cousas tẽe segredo,
Saiba que alcançará tudo.
A Senhora Dionysa
Crede que mal vos não quer:
Não vos posso mais dizer.
Isto tende por balisa
Com que vos saibais reger.
Qu'em mulheres, se attentais,
O querer está visibil;
E se bem vos governais,
Não desespereis do mais,
Porque, emfim, tudo he possibil.
FILODEMO
Senhora, póde isso ser?
SOLINA
Si, que tudo o mundo tem:
Olhae não o saiba alguem.
FILODEMO
E que maneira hei de ter
Para crer tamanho bem?
SOLINA
Vós, Senhor, o sabereis;
E ja que vos descobri
Tamanho sogredo aqui,
Huma mercê me fareis
Em que me vai muito a mi.
FILODEMO
Senhora, a tudo me obrigo
Quanto for em minha mão.
SOLINA
Pois dizei a vosso amigo
Que não gaste tempo em vão,
Nem queira amores comigo.
Porque eu tenho parentes,
Que me podem bem casar;
E mais que não quero andar
Agora em boca de gentes
A quem s'elle vai gabar.
FILODEMO
Senhora, mal conheceis
O que vos quer Duriano:
Sabei-o, se o não sabeis,
Qu'em sua alma sente o dano
Do pouco que lhe quereis;
E que outra cousa não quer,
Que ter-vos sempre servida.
SOLINA
Pola sua negra vida,
Isso havia eu bem mister.
FILODEMO
Vós sois desagradecida!
SOLINA
Si, que tudo são enganos
Em tudo quanto fallais.
FILODEMO
Não quero que me creais:
Crede o tempo; que ha dous anos
Que vos serve, e inda mais.
SOLINA
Senhor, bem sei que m'engano;
Mas a vós, como a irmão,
Descubro este coração:
Sabei que a Duriano
Tenho sobeja affeição.
Olhae que lhe não digais
Isto que vos aqui digo.
FILODEMO
Senhora, mal me tratais:
Inda que sou seu amigo,
Sabei que vosso sou mais.
SOLINA
E ja que vos confessei
Aquestas fraquezas minhas,
Que ha tanto que de mi sei;
Fazei vós nas cousas minhas
O qu'eu nas vossas farei.
FILODEMO
Vós enxergareis, Senhora,
O qu'eu por vós sei fazer.
SOLINA
Como me deixo esquecer!
Aqui estivera agora
Fallando té anoitecer.
Vou-me; e olhae quanto val
O que passou entre nós.
FILODEMO
E porque vos ides vós?
SOLINA
Porque parece ja mal
Estar aqui ambos sós.
E mais vou vestir agora
A quem vos dá tão má vida.
Ficae-vos, Senhor, embora.
FILODEMO
Nessa ide vós, Senhora,
Que ja vos tenho entendida.
SCENA VI
FILODEMO só
Ora se póde isto ser
Do qu'esta moça me avisa,
Que a Senhora Dionysa,
Por me ouvir, se fosse erguer
Da sua cama em camisa!
E diz que mal me não quer.
Não queria maior gloria;
Mas o que mais posso crer,
Que nem para lhe esquecer
Lhe passo pela memoria.
Mas ter Solina tambem
Em Duriano o intento,
He levar-me a lenha o vento;
Porque s'ella lhe quer bem,
Para bem vai meu tormento.
Mas foi-se este homem perder
Neste tempo, de maneira,
Por huma mulher solteira,
Que não me atrevo a fazer
Que hum pequeno bem lhe queira.
Porém far-lhe-hei hum partido,
Porqu'ella não se querelle:
Que se mostre seu perdido,
Inda que seja fingido,
Como lh'outrem faz a elle.
E ja que me satisfaz,
E tanto nisto se alcança,
Dê-lhe fingida esperança:
Do mal que lhe outrem faz,
Tomará nella vingança.
SCENA VII
VILARDO só
Ora boa está a cilada
De meu amo com sua ama,
Que se levantou da cama
Por ouvi-lo! Está tomada:
Assi a tome má trama.
E mais crede que quem canta,
Ainda descantará;
E quem do leito, onde está,
Por ouvi-lo se levanta,
Mor desatino fará.
Quem havia de cuidar,
Que dama formosa e bella
Saltasse o demonio nella,
Para a fazer namorar
De quem não he igual della?
Que me dizeis a Solina?
Como se faz Celestina,
Que por não lhe haver inveja
Tambem para si deseja
O que o desejo lh'ensina!
Crede que se me alvoróço,
Que a hei de tomar por dama;
E não será grão destrôço,
Pois o amo quer a ama,
Que a moça queira o moço.
Vou-me; que vejo lá vir
Venadoro, apercebido
Para a caça se partir:
E voto a tal, que he partido
Para ver e para ouvir.
Que he razão justa e rasa
Que seu folgar se desconte
Em quem arde como brasa;
Que se vai caçar ao monte,
Fique outrem caçando em casa.
SCENA VIII
VENADORO só
Aprovada antiguamente
Foi, e muito de louvar
A occupação do caçar,
E da mais antigua gente
Havida por singular.
He o mais contrário officio
Que tẽe a ociosidade,
Mãe de todo o bruto vício:
Por este limpo exercicio
Se reserva a castidade.
Este dos grandes Senhores
Foi sempre muito estimado;
E he grande parte do estado
Ter monteiros, caçadores,
Como officio qu'he prezado.
Pois logo porque razão
A meu pae ha de pezar
De me ver ir a caçar?
E tão boa occupação
Que mal me póde causar?
SCENA IX
Venadoro e o Monteiro
MONTEIRO
Senhor, venho alvoroçado,
E mais com muita razão.
VENADORO
Como assi?
MONTEIRO
Que me he chegado
O mais extremado cão,
Que nunca caçou veado.
Vejamos que me ha de dar.
VENADORO
Dar-vos-hei quanto tiver;
Mas ha-se d'exprimentar,
Para se poder julgar
As manhas que póde ter.
MONTEIRO
Póde assentar qu'este cão,
Que tẽe das manhas a chave.
Bem feito? Em admiração.
Pois em ligeiro? He huma ave.
Em commetter? Hum leão.
Com porcos? Maravilhoso.
Com veados? Extremado.
Sobeja-lhe o ser manhoso.
VENADORO
Pois eu ando desejoso
D'irmos matar hum veado.
MONTEIRO
Pois, Senhor, como não vae?
VENADORO
Vamos, e vós mui ligeiro
O necessario ordenae;
Qu'eu quero chegar primeiro
Pedir licença a meu pae.
ACTO SEGUNDO
SCENA I
DURIANO
Pois não creio eu em S. Pisco de pao, se hei de pôr pé em ramo verde, té lhe dar trezentos açoutes. Despois de ter gastado perto de trezentos cruzados com ella, porque logo lhe não mandei o setim para as mangas, fez de mim mangas ao demo. Não desejo eu de saber, senão qual he o galante que me succedeo; que se vo-lo eu colho a balravento, eu lhe farei botar ao mar quantas esperanças lhe a fortuna tẽe cortado á minha. Ora tenho assentado, que amor destas anda com o dinheiro, como a maré com a lũa: bolsa cheia, amor em ágoas vivas; mas se vasa, vereis espraiar este engano, e deixar em sêcco quantos gostos andavão como o peixe na ágoa.
SCENA II
Filodemo e Duriano
FILODEMO
Ó lá! cá sois vós? Pois agora hia eu bater essas moutas, para ver se me sahieis de alguma; porque quem vos quizer achar, he necessario que vos tire como huma alma.
DURIANO
Oh maravilhosa pessoa! Vós he certo que vos prezais de mais certo em casa, que pinheiro em porta de taverna; e trazeis, se vem á mão, os pensamentos com os focinhos quebrados, de cahirem onde vós sabeis. Pois sabeis, Senhor Filodemo, quaes são os que me mátão? Huns muito bem almofaçados, que com dois ceitis fendem a anca pelo meio, e se prezão de brandos na conversação, e de fallarem pouco e sempre comsigo, dizendo que não darão meia hora de triste pelo thesouro de Veneza; e gábão mais Garcilasso que Boscão; e ambos lhe sahem das mãos virgens; e tudo isto por vos meterem em consciencia que se não achou para mais o grão Capitão Gonçalo Fernandes. Ora pois desengano-vos, que a mor rapazia do mundo farão altos espiritos: e eu não trocarei duas pescoçadas da minha etc., depois de ter feito a tosquia a hum frasco, e fallar-me por tu e fingir-se-me bebada, porque o não pareça, por quantos Sonetos estão escriptos polos troncos dos árvores do vale Luso, nem por quantas Madamas Lauras vós idolatrais.
FILODEMO
Tá, tá, não vades avante, que vos perdeis.
DURIANO
Aposto que adivinho o que quereis dizer?
FILODEMO
Que?
DURIANO
Que se me não acudieis com o batel, que me hia meus passos contados a herege de amor.
FILODEMO
Oh que certeza tamanha, o muito peccador não se conhecer por esse!
DURIANO
Mas oh que certeza maior, de muito enganado, esperar em sua opinião! Mas tornando a nosso proposito, que he o para que me buscais? que se he cousa de vossa saude, tudo farei.
FILODEMO
Como templará el destemplado? Quem poderá dar o que não tẽe, Senhor Duriano? Eu quero-vos deixar comer tudo: não póde ser que a natureza não faça em vós o que a razão não póde: o caso he este, dir-vo-lo-hei; porém he necessario que primeiro vos alimpeis como marmelo, e que ajunteis para hum canto da casa todos esses maos pensamentos; porque segundo andais mal avinhado, damnareis tudo aquillo que agora lançarem em vós. Ja vos dei conta da pouca que tenho com toda a outra cousa que não he servir a Senhora Dionysa; e postoque a desigualdade dos estados o não consinta, eu não pretendo della mais que o não pretender della nada, porque o que lhe quero, comsigo mesmo se paga; que este meu amor he como a ave Phenix, que de si só nasce, e não de outro nenhum interesse.
DURIANO
Bem praticado está isso; mas dias ha que eu não creio em sonhos.
FILODEMO
Porque?
DURIANO
Eu vo-lo direi: porque todos vós-outros os que amais pela passiva, dizeis que o amor fino como melão, não ha de querer mais de sua dama que amá-la; e virá logo o vosso Petrarca, e o vosso Pietro Bembo, atoado a trezentos Platões, mais çafado que as luvas de hum pagem d'arte, mostrando razões verisimeis e apparentes, para não quererdes mais de vossa dama que vê-la; e ao mais até fallar com ella. Pois inda achareis outros esquadrinhadores d'amor, mais especulativos, que defenderão a justa por não emprenhar o desejo; e eu (faço-vos voto solemne) se a qualquer destes lhe entregassem sua dama tosada e apparelhada entre dous pratos, eu fico que não ficasse pedra sôbre pedra: e eu ja de mi vos sei confessar que os meus amores hão de ser pela activa, e que ella ha de ser a paciente, e eu agente, porque esta he a verdade. Mas, com tu de, vá v. m. co'a historia por diante.
FILODEMO
Vou, porque vos confesso que neste caso ha muita dúvida entre os Doctores: assi que vos conto, que estando esta noite com a viola na mão, bem trinta ou quarenta legoas pelo sertão dentro de hum pensamento, senão quando me tomou á traição Solina; e entre muitas palavras que tivemos, me descobrio que a Senhora Dionysa se levantára da cama por me ouvir, e que estivera pela greta da porta espreitando quasi hora e meia.
DURIANO
Cobras e tostões, sinal de terra: pois ainda vos não fazia tanto avante.
FILODEMO
Finalmente, veio-me a descobrir, que me não queria mal, que foi para mi o maior bem do mundo; que eu estava ja concertado com minha pena a soffrer por sua causa, e não tenho agora sogeito para tamanho bem.
DURIANO
Grande parte da saude he para o doente trabalhar por ser são. Se vos deixardes manquecer na estrebaria com essas finezas de namorado, nunca chegareis onde chegou Rui de Sande. Por isso boas esperanças ao leme; que eu vos faço bom que ás duas enxadadas acheis ágoa. E que mais passastes?
FILODEMO
A maior graça do mundo: veio-me a descobrir que era perdida por vós; e me quiz dar a entender que faria por mi tudo o que lhe vós merecesseis.
DURIANO
Santa Maria! Quantos dias ha que nos olhos lhe vejo marejar esse amor? porque o fechar de janellas que essa mulher me faz, e outros enojos que dizer poderia, no son sino corredores del amor, e a cilada em que ella quer que eu caia.
FILODEMO
Nem eu não quero que lho queirais, mas que lhe façais crer que lho quereis.
DURIANO
Não… quanté dessa maneira me offereço a romper meia duzia de serviços alinhavados ás panderetas, que bastem assentar-me em soldo pelo mais fiel amante que nunca calçou esporas; e se isto não bastar, salgan las palabras mas sangrientas del corazon, entoadas de feição, que digão que sou hum Mancias, e peor ainda.
FILODEMO
Ora dais-me a vida. Vamos ver se por ventura apparece, porque Venadoro, irmão da Senhora Dionysa, he fóra á caça; e sem elle fica a casa despejada; e o Senhor Dom Lusidardo anda no pomar; que todo o seu passatempo he enxertar e dispôr, e outros exercicios d'agricultura, naturaes a velhos: e pois o tempo nos vem á medida do desejo, vamo-nos lá; e se puderdes fallar, fazei de vós mil manjares, porque lhe façais crer que sois mais esperdiçado d'amor que hum Braz Quadrado.
DURIANO
Ora vamos, que agora estou de vez, e cuido d'hoje fazer mil maravilhas, com que vosso feito venha á luz.