Kitabı oku: «Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III», sayfa 6
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EPISTOLA II
Como nos vossos hombros tão constantes
(Principe illustre e raro) sustenteis
Tantos negocios arduos e importantes,
Dignos do largo Imperio, que regeis;
Como sempre nas armas rutilantes
Vestido, o mar e a terra segureis
Do pirata insolente, e do tyrano
Jugo do potentissimo Othomano;
E como com virtude necessaria,
Mal entendida do juizo alheio,
Á desordem do vulgo temeraria
Na santa paz ponhais o duro freio;
Se com minha escriptura longa e vária
Vos occupasse o tempo, certo creio
Que com vagante e ociosa phantasia
Contra o commum proveito peccaria.
E não menos sería reputado
Por doce adulador, sagaz e agudo,
Que contra meu tão baixo e triste estado
Busco favor em vós que podeis tudo,
Se contra a opinião do vulgo errado
Vos celebrasse em verso humilde e rudo.
Dirão, que com lisonja ajuda peço
Contra a miseria injusta que padeço.
Porém, porque a verdade póde tanto
No livre arbitrio, (como disse bem
Ao Rei Dario o moço sabio e santo,
Que foi reedificar Hierusalem)
Esta m'obriga a qu'em humilde canto,
Contra a tenção que a plebe ignara tem,
Vos faça claro a quem vos não alcança;
E não de premio algum vil esperança.
Romulo, Baccho e outros que alcançárão
Nomes de semideoses soberanos,
Em quanto por o mundo exercitárão
Altos feitos, e quasi mais que humanos,
Com justissima causa se queixárão
Que não lhes respondêrão os mundanos
Favores do rumor justos e iguaes
A seus merecimentos immortaes.
Aquelle, que nos braços poderosos
Tirou a vida ao Tingitano Anteo,
E a quem os seus trabalhos tão famosos
Fizerão Cidadão do claro ceo;
Achou que a má tenção dos invejosos
Não se doma, senão despois que o véo
Se rompe corporal: porque na vida
Ninguem alcança a glória merecida.
Pois logo, se Barões tão excellentes
Forão do baixo vulgo molestados,
O vituperio vil das rudas gentes,
He louvor dos Reaes, e sublimados.
Quem no lume dos vossos Ascendentes
Poderá pôr os olhos, que abalados
Lhes não fiquem da luz, vendo os maiores
Vossos passados, Reis e Imperadores?
Quem verá aquelle Pae da Patria sua,
Açoute do soberbo Castelhano,
Que o duro jugo só, co'a espada nua,
Removeo do pescoço Lusitano,
Que não diga: Ó grão Nuno, a eterna tua
Memoria causará, se não m'engano,
Que qualquer teu menor tanto s'estime,
Que nunca possa ser senão sublime?
Nisto não fallo mais, porque conheço
Que da materia se me baixa o engenho.
Mas, pois a dizer tudo m'offereço,
E dias ha que no desejo o tenho,
Sendo vós de tão alto e illustre preço,
A vida fostes pôr n'hum fraco lenho,
Por largo mar e undosa tempestade,
Só por servir á Regia Magestade.
E despois de tomar a redea dura
Na mão, do povo indomito qu'estava
Costumado a larguezas, e á soltura
Do pezado govêrno que acabava;
Quem não terá por santa e justa cura,
Qual do vosso conceito s'esperava,
A tão desenfreada enfermidade
Applicar-lhe contrária qualidade?
Não he muito, Senhor, se o moderado
Govêrno se blasphema e se desama;
Porque o povo á largueza costumado,
Á lei serena e justa, dura chama.
Pois o zelo em virtude só fundado
De salvar almas da Tartarea flama
Com a ágoa salutifera de Christo,
Poderá por ventura ser malquisto?
Quem quizesse negar tão grã verdade,
Qual he o seu effeito santo e pio;
Negue tambem ao sol a claridade,
E certifique mais que o fogo he frio.
Se o successo he contrário da vontade
Nas obras que são boas, e ha desvio;
Está nas mãos dos homens comettellas,
E nas de Deos está o successo dellas.
Sei eu, e sabem todos que os futuros
Verão por vós o Estado accrescentado,
Serão memoria vossa os fortes muros
Do Cambaico Damão bem sustendado:
Da ruina mortal serão seguros,
Tendo todo o alicerce seu fundado
Sôbre orfãas amparadas com maridos,
E pagos os serviços bem devidos.
Quãmanha infamia ao Principe he perder-se
Pouco do Estado seu, que inteiro herdou,
Tanto por glória grande deve ter-se
Se accrescentado e próspero o deixou.
Nunca consentio Roma ennobrecer-se
Com triumphos alguem, se não ganhou
Provincia com que o Imperio s'augmentasse,
Por maiores victorias qu'alcançasse.
Póde tomar o vosso nome dino
Damão, por honra sua clara e pura,
Como ja do primeiro Constantino
Tomou Byzancio aquelle qu'inda dura.
E tu, Rei, que no Reino Neptunino,
Lá no seio Gangetico a Natura
Te aposentou, de ser tão inimigo
Deste Estado não ficas sem castigo.
Bem viste contra ti nadantes aves
Cortar a espumosa ágoa navegando;
Ouviste o som das tubas, não suaves,
Mas com temor horrifero soando;
Sentiste os golpes asperos e graves
Do Lusitano braço nunca brando.
Não soffreste o grão brado penetrante,
Que os trovões imitava do Tonante.
Mas antes dando as costas e a victoria
Á Bragancez ventura não corrido,
Déste bem a entender quão grande glória
He de tal vencedor o ser vencido.
Quem faz obras tão dignas de memoria
Sempre será famoso e conhecido,
Onde os altos juizos o estimarem,
Qu'estes sós tẽe poder de fama darem.
Não vos temais, Senhor, do povo ignaro,
Tão ingrato a quem tanto faz por elle;
Mas sabei qu'he signal de serdes claro
O ser agora tão malquisto delle.
Themistocles, da patria sua amparo,
O forte e liberal Cimon, e aquelle
Que Leis ao povo deo d'Esparta antigo,
Testimunhas serão de quanto digo.
Pois ao justo Aristídes hum robusto,
Votando no ostracismo costumado,
Lhe disse claro assi: Porque era justo
Desejava que fosse desterrado.
Pachitas por fugir do povo injusto
Calumnioso, dando no Senado
Conta de Lesbos, qu'elle ja mandára,
Se tirou co'o seu ferro a vida chara.
Demosthenes, lançado das tormentas
Populares, Ó Pallas! foi dizendo,
Que de tres monstros grandes te contentas,
Do drago e moucho, e do vil povo horrendo!
Que glórias immortaes houve, qu'isentas
Do veneno vulgar fossem, vivendo?
Pois mil exemplos deixo de Romanos,
E vós tambem sois hum dos Lusitanos.
EPISTOLA III
Mui alto Rei, a quem os Ceos em sorte
Derão o nome augusto e sublimado
Daquelle Cavalleiro que na morte,
Por Christo, foi de settas mil passado;
Pois delle o fiel peito, casto e forte,
Co'o nome Imperial tendes tomado,
Tomae tambem a setta veneranda
Que a vós o Successor de Pedro manda.
Ja por ordem do Ceo, que o consentio,
Tendes o braço seu, reliquia chara,
Defensor contra o gladio que ferio
O povo que David contar mandára.
No qual, pois tudo em vós se permittio,
Presagio temos, e esperança clara,
Que sereis braço forte e soberano
Contra o soberbo gladio Mauritano.
E o que hum presagio tal agora encerra,
Nos faz ter por mais certo e verdadeiro
A setta, que vos dá quem he na terra
Dos celestes thesouros Dispenseiro:
Que as vossas settas são na justa guerra
Agudas, e entrarão por derradeiro
(Cahindo a vossos pés povo sem lei)
Nos peitos que inimigos são do Rei.
Quando vossas bandeiras despregava
Albuquerque fortissimo com glória
Por as praias de Persia, e alcançava
De Nações tão remotas a victoria;
As settas embebidas, que tirava
O arco Armusiano (he larga historia)
Nos ares, Deos querendo, se viravão,
Pregando-se nos peitos que as tiravão.
O querido de Deos, por quem peleja,
O ar tambem e o vento conjurado
Ao atambor lhe acodem, porque veja
Que o que a Deos ama, he de Deos amado:
Os contrarios revéis á Madre Igreja
Atroarão co'o tom do Ceo irado.
Que assi deo ja favor maior que humano
A Josué Hebreo, Teodosio Hispano.
Pois se as settas tiradas da inimiga
Corda, contra si só nocivas são,
Que farão, Rei, as vossas que tẽe liga
Com a que ja tocou Sebastião?
Tinta vem do seu sangue, com que obriga
A levantar a Deos o coração,
Crendo bem que as que vós despedireis,
No sangue Sarraceno as tingireis.
Ascanio, (se trazer me he concedido
Entre santos exemplos hum profano)
Rei do Imperio, despois tão conhecido,
De Roma, e só reliquia do Troiano,
Vingou com setta e ânimo atrevido
As soberbas palavras de Numano;
E logo foi dalli remunerado
Com louvores de Apollo, e celebrado.
Assi vós, Rei, que fostes segurança
De nossa liberdade, e que nos dais
De grandes bens certissima esperança;
Nos costumes, e aspecto que mostrais,
Concebemos segura confiança
Que Deos, a quem servis e venerais,
Vos fara vingador dos seus revéis,
E os premios vos dará que mereceis.
Estes humildes versos, que pregão
São destes vossos Reinos com verdade,
Recebei com benigna e Real mão,
Pois he devida a Reis benignidade.
Tenhão (se não merecem galardão)
Favor sequer da Regia Magestade:
Assi tenhais de quem ja tendes tanto,
Com o nome e reliquia, favor santo.
EPISTOLA IV
Senhora, s'encobrir por algum'arte
Pudera esta occasião de meu tormento,
Não creias que chegára a declarar-te
Este meu perigoso pensamento.
Mas por mais que te offenda, não sou parte
No crime de tamanho atrevimento:
Elle he d'amor; e delle fui forçado
A que te declarasse o meu cuidado.
Se merece castigo a confiança
Com que descubro agora o que padeço,
Aqui prompto me tens; toma a vingança
Que por tão grave culpa te mereço.
Bem me podes negar toda esperança,
Mas eu não desistir deste comêço;
Porque tempo e Fortuna não são parte
Para deixar hum'hora só de amar-te.
Ja que ver-te os meus olhos alcançárão,
Descansem neste bem com alegria,
Pois ja com ver os teus tanto ganhárão,
Quanto, estando sem vê-los, se perdia.
Que glória querem mais, se a ver chegárão
Aquella pura luz que vence ao dia?
Qual mor bem ha no mundo que querer-te,
Se não ha mais que ver despois de ver-te?
Minhas dores mortaes, bella Senhora,
Tirárão a virtude ao soffrimento;
E fazendo-se mais em qualquer hora,
Levando vão traz ti meu pensamento:
Porém soberbos vejo desde agora,
Por a causa gentil de seu tormento,
Minha alma, meu desejo, meu sentido,
Porque á tua belleza se hão rendido.
A par de tua rara formosura
Se desconhece o mor merecimento;
A tua claridade torna escura
Do sol a clara luz em hum momento.
Se Zeuxis ao formar bella figura,
A vista em ti pudera pôr attento,
Mais alto original houvera achado
Para admirar o mundo co'o traslado.
Aquelles qu'escrevêrão mil louvores
De formosura, graça e gentileza,
Todos forão, Senhora, huns borradores
De tua perfeitissima belleza.
Agora se vê claro em teus primores
Qu'em ti s'esmerou mais a natureza;
E qu'erão os seus cantos prophecias
Do que havias de ser em nossos dias.
Vê, pois, se vinha a ser culpavel falta
Em mi o não render-te amante a vida,
E se deixar d'amar glória tão alta
Era digno da pena mais crescida.
Emfim, eu te amarei; que Amor m'exalta
Co'o castigo de culpa assi atrevida:
E quando della caia, maior glória
Tera o Tejo, que o Pó, com sua historia.
OITAVAS
GLOSA DO SONETO 14
Despois que a clara Aurora a noite escura
Com novo resplandor foi desfazendo,
E Phebo por os montes e espessura
Os seus dourados raios estendendo;
Se buscava nos valles a verdura
O manso gado a luz serena vendo,
Quando a férvida sésta ja abrazava,
Todo animal da calma repousava.
Ja por fugir do sol o fogo ardente,
As sombras os rebanhos vão buscando;
Os tenros cabritinhos juntamente
Apos as mansas mães hião saltando;
Tangendo as suas frautas docemente
Os pastores, estavão enganando
A grã chamma solar qu'então ardia;
Só Liso o ardor della não sentia.
Tristes lembranças tanto o traspassavão,
Que a dura sésta nelles só passava;
O tempo qu'em prazer outros gastavão,
Em celebrar seu mal elle o gastava;
As festas que com jogos celebravão,
Elle com suspirar as celebrava:
Nada buscava mais, mais não queria
Que o repouso do fogo em qu'elle ardia.
Os repetidos jogos dos pastores,
As lutas entre a rama repetidas,
Em nada lhe divertem suas dores;
Mas antes n'alegria as vê crescidas.
Como o repouso roubão os amores
Ás almas que para elles são nascidas,
Elle, todo o repouso qu'esperava,
Consistia na Nympha que buscava.
Com o chôro, que ja corria em fio
Por o pallido rosto, augmenta as fontes,
Que levão ágoa estranha ao claro rio
Que os valles vai regando entre altos montes.
Com suspiros a quem o ecco pio
Responde de apartados horizontes,
Os ventos parecia qu'enfreava,
Os montes parecia que abalava.
Que ás queixas de seus doces pensamentos
Se movessem os montes mais constantes,
Se parassem os mais veloces ventos,
Qu'estavão, que corrião circumstantes,
Bem se devia á dor de seus tormentos,
E inda que fosse em peitos de diamantes;
Que hum peito de diamante abrandaria
O triste som das mágoas que dizia.
Porém elle as dizia a outro peito,
Mais, que diamante, inexpugnavel, duro:
A fé lh'encarecia, a que sogeito
O tinha em pena eterna o amor puro;
Mostrava-lhe este n'alma mais perfeito,
Quanto mais offendido, mais seguro:
A Nympha mais segura tudo ouvia,
Mas nada o duro peito commovia.
As lástimas aqui tanto crescêrão,
Que s'em montes de Hircania s'escuitárão,
Tigres nos seios seus mover puderão,
E pedras nos seus cumes abrandárão.
Mas se no peito as tristes vozes dérão
Daquella fera humana que buscárão,
Elle d'as admittir se retirava;
Que na vontade de outro pôsto estava.
Desenganado ja da triste sorte,
De que mal fino amor se desengana,
Com a desperança só de sua morte
Aquellas penas últimas engana.
Deixando na espessura o claro Norte,
Para elle de outra luz mais soberana,
A hum valle aberto então sahir procura,
Cansado ja de andar por a espessura.
Deixando as suas cabras que pascessem
Naquelle verde prado as frescas flores;
Porque os Satyros leves o soubessem,
E os sylvestres Faunos amadores;
Tambem porque os pastores o entendessem,
Todo o processo e fim de seus amores
Escreveo (sem em nada haver mudança)
No tronco d'huma faia por lembrança.
Por lembrança no tronco d'huma faia,
Que vai sahindo ao ceo de puro altiva
Na verde, prateada e aurea praia,
Por onde o claro Tejo se deriva;
Porque tambem ao ceo sua dor saia
Sôbre aquella corrente fugitiva,
Escrita no papel da natureza;
Escreve estas palavras de tristeza:
Natercia, Nympha bella, por quem vivo
Em tal tormento, tempo algum me olhou;
Mas des qu'em mi sentio qu'era captivo
Daquelle brando olhar que m'enganou,
O amor tornava em desamor esquivo;
E d'hum tormento tal a outro passou.
Em cousas tão sujeitas a mudança
Nunca ponha ninguem sua esperança.
Para dar proveitosos desenganos
Dos enganos que são de Amor effeitos,
E dos dous sexos publicar, humanos,
A origem das mudanças de seus peitos;
Estas letras aqui por longos anos
Digão a corações a amar sujeitos
Em peito varonil, que de ventura,
Em peito feminil, que de natura…
Faltou-lhe aqui o alento, e ja cansado
Cahio ao pé da faia em qu'escrevia,
Não podendo seguir o começado,
Porque a alma ja do corpo lhe sahia.
Tres vezes, com accento mal formado,
Para exemplo futuro repetia:
Amantes, entendei que a mór belleza
Somente em ser mudavel tem firmeza.
GLOSA DO SONETO 194
Cá nesta Babylonia adonde mana
Hypocrisia, engano e falsidade;
Cá donde ousada toda carne humana
A todo arbitrio vive da vontade;
Cá donde enrouqueceo da Lusitana
Musa o furor heroico e suavidade;
Cá donde se produz por cega via
Materia a quanto mal o mundo cría;
Cá donde o puro Amor não tẽe valia,
Porque Baccho o tẽe hoje desterrado;
Cá donde a frecha d'ouro não feria,
Senão cabello preto e alfenado;
Cá donde a loura trança não se via,
Nem o rosto de sangue matizado;
Cá donde nada val a glória humana,
Que a mãe, que manda mais, tudo profana;
Cá donde o mal se affina, o bem se dana,
Se algum a terra em si quer produzir;
Cá donde a falsa gente Mahometana
A glória toda funda em adquirir;
Cá donde multiplica a mão tyrana,
Professa em mais crescer, matar, mentir;
Cá donde o fazer bem he villania,
E póde mais que a honra a tyrannia;
Cá donde a errada e cega Monarchia
De fabulosas leis está vivendo,
E á fôrça d'hum amor engrandecia
O nefando Alcorão em qu'está crendo;
Cá donde nada val a Poesia,
E s'está da lei della escarnecendo;
Cá donde a fidalguia Mahometana
Cuida qu'um nome vão a Deos engana.
Cá nesta Babylonia, onde a Nobreza
Da Lusitana gente se perdeo;
E do grão Sebastião toda a grandeza
Irreparavelmente se abateo;
Cá donde algum mentir não he baixeza,
E os meritos esmola (assi cresceo
Da cobiça mortal a semrazão)
Co'o esfôrço e saber, pedindo vão.
Ás portas da cobiça e da vileza
Estes netos de Agar estão sentados
Em bancos de torpissima riqueza,
Todos de tyrannia marchetados.
He do feio Alcorão summa a largueza
Que tẽe para que sejão perdoados
De quantos erros commettendo estão
Cá neste escuro cáos de confusão.
Cumprindo o curso estou da natureza,
Illustre Dama, neste labyrintho;
Mas quem usa comigo mais crueza,
He tua condição, que n'alma sinto.
Acabe-se algum dia tal tristeza,
E este sentido mal qu'em versos pinto:
E pois n'alma he sentido e coração,
Ve se m'esquecerei de ti, Sião.
A SANTA URSULA
D'huma formosa virgem desposada,
Que d'outras onze mil, tambem formosas,
Entrou no claro Olympo acompanhada,
Com corôas de lyrios e de rosas;
De Christo Esposo seu tão namorada,
Que delle as quiz fazer todas esposas;
Amor, vida e martyrio cantar quero,
Fiado no favor que della espero.
Alcança, Ursula bella, (que diante
De tão bello esquadrão foste por guia)
De teu suave Amor, que de ti cante
O seu amor que no teu peito ardia.
Meu verso para ti mais se levante,
Ó Christifera, ó heroica companhia;
Tanto se mostre aqui mais soberano,
Quanto o divino Amor excede o humano.
E vós, unica Mãe e Virgem pura,
Pois sois das que tal ordem escolhêrão,
Que fostes, sois, sereis guarda segura
Da pureza que a Deos offerecêrão;
Neste canto me dae melhor ventura
Do que atégora as Musas vãas me derão:
Vossas servas serão de mi servidas,
Cantadas suas mortes, suas vidas.
Serenissima Infante, produzida
Do grão Tronco Real, sublime Planta;
No titulo, nas obras e na vida,
Retrato natural de Ursula Santa,
Desta virgem, tambem de Reis nascida,
Ouvi com ledo rosto o que se canta;
Dae o sentido hum pouco a tal sogeito:
Não lhe tire seu preço o meu defeito.
No tempo que Ciriáco se sentava
Na Cadeira de Pedro pescador,
De que com sãa doutrina apascentava
As Ovelhas de Christo, Bom Pastor;
Teve Bretanha hum Rei, que professava
A Lei que deo no mundo o Redemptor,
Justo e temente ao Ceo, pio e devoto,
Chamado Mauro d'huns, e d'outros Noto.
De virtudes hum novo exemplo e raro,
Em idade e belleza florecia
Ursula, por quem Noto era mais claro,
Que por todo o poder que possuia;
Com quem em nada o Ceo quiz ser avaro,
Com quem todas as graças repartia;
Prudente, honesta e docta a maravilha,
De tão ditoso pae ditosa filha.
Aquella que por o ar com ligeireza
As pennas de mil azas abre e cerra,
E que com velocissima presteza
Com outros tantos pés corre por terra;
Aquella, que de sua natureza
Não cuida em quanto diz se acerta ou erra,
E d'huma em outra boca se derrama:
Aquella, emfim, a quem chamamos Fama;
Hia por todo o mundo divulgando
Extremos desta virgem soberana,
Aquella formosura celebrando
Com que Amor cego a tanta vista engana:
Mais hia a d'alma sua publicando,
Porqu'era mais divina do que humana:
Ja d'huma, e d'outra ja dizia tanto,
Qu'em huns criava amor, n'outros espanto.
Ouvidos seus louvores, muitas vezes
Desejou desta virgem fazer nora
Hum Rei que o sceptro tinha dos Inglezes,
Idolatras então, cegos agora.
Ó povo cego e leve! as torpes fezes
Aparta do ouro puro e lança fóra,
Torna-te ao teu pastor, perdido gado!
Ólha que vás sem elle mal guiado.
Hum filho deste Rei (de quem dizia
Que ser de Ursula sogro desejava)
Movido do rumor que della ouvia,
Ja dentro no seu peito a namorava.
Alli seu amor, delle, lhe offrecia;
Alli por o amor della suspirava.
Suspira elle por ella; ella suspira
Tambem por outro amor que nunca vira.
Mandou o Rei Inglez Embaixadores
Com pompa Regia e lustre sumptuoso,
(Do grande Reino seu grandes Senhores)
A Noto, Rei não tanto poderoso.
Pedio-lhe a bella filha (qu'em amores
Ardia toda do celeste Esposo)
Para esposa do filho, que sabia
Que ja d'amores della todo ardia.
O Rei Bretão se achava descontente
Com a nova embaixada de Inglaterra:
Receia que se nella não consente,
O gentio lhe mova cruel guerra:
Porque sendo mais rico e mais potente,
Assi no largo mar, como na terra,
Quando desprezos visse de seu rôgo,
Podia pôr Bretanha a ferro e fogo.
Sôbre este não errado pensamento
Do medo de perder seu senhorio,
Novo discurso tinha e novo intento,
Com que se achava mais medroso e frio.
Estranhava o fazer ajuntamento
Da catholica filha co'hum gentio;
Pois nem a Lei de Christo o permittia,
Nem Ursula fiel o admittiria.
Estando o pae em tal angústia pôsto,
Divinamente a filha ja inspirada,
Lhe assegurava com sereno rosto
Que consentir podia na embaixada;
Dizendo que se o Inglez levava gôsto
D'ella com seu herdeiro ser casada,
Primeiro lhe mandasse dez donzellas,
Do Reino as mais illustres, as mais bellas.
Que mil daria a cada virgem destas,
E que a ella outras mil tambem daria,
Todas de claro sangue, e em vista honestas.
(Dest'arte a conta de onze mil fazia)
Que por trez annos dilação nas festas,
Além do ja pedido, lhe pedia;
E naos e mantimentos, porque todas
Fossem com ella a Roma antes das bodas.
Alli sua pureza e virgindade
Queria com solemne e sacro voto
Consagrar á divina Potestade,
Que o ceo e a terra fez de proprio moto.
E que deixasse a vãa gentilidade
Seu filho, para genro ser de Noto,
Para que neste espaço doutrinado
Fosse na Fé de Christo, e baptizado.
Com estas condições Ursula disse
Ao charo pae, que, a ser dellas contente,
Podia responder; e despedisse
A proposta daquelle Rei potente:
Ou porque ouvindo-as elle desistisse,
Podendo-se acceitar difficilmente;
Ou porque, quando as virgens concedesse,
Comsigo a seu Senhor onze mil désse.
Oh Divino saber, quão soberano
Conselho he sempre o teu! quão remontado!
Oh quanto o mor saber te cede humano,
Por mais que de razões vá mais ornado!
Ja dos idolos deixa o cego engano
O Principe, da virgem namorado;
Ja terno pede ao pae quanto ella pede;
Ja o pae quanto lhe roga lhe concede.
Ja para ti, ó virgem bella e branda,
Com huma singular velocidade,
Juntar se via d'huma e d'outra banda
De feminil nobreza tenra idade.
As naos apparelhar o Rei ja manda;
Ja nellas se recolhe a Virgindade;
Ja dão para Bretanha ao vento velas.
O coração do noivo vai com ellas.
Ja vem a tomar porto onde esperava
Ursula alvoroçada em grã maneira;
Que para as receber alli se achava,
Como senhora não, mas companheira.
Quão falsa era a Lei dellas lhes mostrava,
A de Christo quão pura e verdadeira.
Ja se baptiza huma e outra Dama;
Damas Ursula ja do ceo lhes chama.
A Fama, que não sabe repousar,
Voou de Reino em Reino, d'ilha em ilha;
A gente que concorre não tẽe par,
Por ver a nunca vista maravilha.
Outros vem por servir e acompanhar
A Virgem de Rei nora, de Rei filha.
Movem-se muitos Bispos de Bretanha;
Pantalo em vida e morte os acompanha.
Por ti, deixando o Reino, co'a familia
E quatro filhas suas, s'embarcou,
Juliana, Victoria, Aurea, Babilia;
(Hum filho tinha mais que mais levou)
Gerasina, Rainha de Sicilia,
E com devido amor te acompanhou;
Qu'he justo que comtigo vão Rainhas,
Quando tu para o Rei dos Reis caminhas.
Ja se partem as bellas peregrinas,
As mãos ao claro Empyreo levantadas;
Ja rompem, ja, por ondas crystallinas
As naos de formosura carregadas.
Quando, dizei, ó ágoas Neptuninas,
Fostes de tal belleza navegadas?
Nunca, despois que a terra descobristes,
A tal frota por vós caminho abristes.
Com vento sempre igual, com mar bonança,
Sem perigos alguns, sem algum pejo,
Ceyla forão tomar, porto de França,
Onde pouca demora fazer vejo.
O coração da virgem não descança,
Saudosa do fim de seu desejo;
Manda que levem ferro, soltem linho
Que leve por o mar o negro pinho.
O vento nova posse vai tomando
Das virgens que lhe são encommendadas:
Com tal prosperidade vão voando,
Que ja deixão atraz ondas salgadas:
Ja nas doces do Rheno estão entrando,
Onde tẽe suas vidas limitadas:
Huma cidade vem á lingua da ágoa,
Que de vê-las morrer não teve mágoa.
Ah Colonia cruel, que não t'encobres
A tão formosos olhos, que seguros
As altas tôrres vião que descobres,
Lustrosos edificios, fortes muros!
Permitte o largo Ceo que fama cobres
De ser tão dura mãe de peitos duros?
Duros peitos, que a tantos, limpos de êrro
Virão abrir sem dor com impio ferro!
Estando neste porto a bella Armada
Tomando o necessario mantimento,
Para poder seguir sua jornada,
E dar terceira vez o treu ao vento;
Sendo parte da noite ja passada,
A virgem lá no seu retrahimento,
Quando estava dormindo toda a frota,
A Christo orou assi, branda e devota:
Amor, divino Amor, Amor suave,
Amor, que amando vou toda rendida;
Com quem não ha na vida pena grave,
Sem quem glória real não ha na vida;
Amor, que do meu peito tens a chave,
Amor, de cujo amor ando ferida,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?
Amor, que d'amor cheio e de brandura,
D'amor enches est'alma saudosa;
Amor, sem cujo amor e formosura,
Não póde nunca haver cousa formosa;
Amor, com cujo amor anda segura
Huma vida tão fraca e duvidosa,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?
Amor, que por amor te dispuzeste
A restaurar o mundo errado e triste;
Amor, que por amor do ceo desceste;
Amor, que por amor á Cruz subiste;
Amor, que por amor a vida déste;
Amor, que por amor a glória abriste,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?
Amor, que mais e mais sempre te augmentas
No coração que lá comtigo trazes;
Amor, que d'amor puro te sustentas
No fogo em que tu mesmo arder me fazes;
Amor, que sem amor não te contentas,
De tudo com amor te satisfazes,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?
Amor, que com amor me captivaste;
(Se livre póde ser quem não captivas)
Amor, qu'em taes prisões m'asseguraste
As esperanças d'antes fugitivas:
Amor, que suspirando m'ensinaste
A derramar por ti lagrimas vivas,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?
Quando verei hum dia em que offereça
Por ti ao cruel ferro o peito forte,
E cercada de virgens appareça
Na tua soberana e eterna Corte;
Onde lá cada huma te mereça,
Cá passando comigo a propria morte;
E todas dando o sangue juntas, todas
Celebremos comtigo eternas bodas?
Faze-me ja, Senhor, esta vontade
Que tenho de te ver, que sempre tive,
Des que me deo lugar a tenra idade,
E lume de razão nesta alma vive.
Não queiras, meu Amor, que a saudade
Sem tal bem a mi só da vida prive;
Que se muito se alarga este destêrro,
Por ella irei a ti, não por o ferro.
Desata o meu espirito saudoso,
Do nó mortal em que se vai detendo,
Primeiro que tres vezes pressuroso
O sol os doze Signos vá correndo.
Espaço he que tomei, meu doce Esposo,
Para outro esposo meu ir entretendo:
Mas a meu amor crendo, de ti creio
Que acabes com a vida o meu receio.
Inda neste fervente e justo rôgo
Ursula suspirando procedia,
Quando d'hum resplandor como de fogo
Divina voz ouvio, que assi dizia:
Ó virgem, que soubeste fazer jôgo
Do que no mundo tẽe maior valia,
Entende que da volta que fizeres,
Aqui quero que seja o que tu queres.
Tanto que tal resposta do Ceo teve,
Não quiz do que esperava perder hora:
Ja lhe parece larga a noite breve,
E que ja tarda muito a bella aurora.
Em descobrindo Apollo o carro leve,
Do porto de Colonia sahio fóra.
Ja Basilêa em breve tempo toma:
E a pé d'alli partirão para Roma.
O Pastor summo, Ciriáco santo,
As sahe a receber, e as acompanha
Com gôzo espritual, com grande espanto
De ver em tal idade fé tamanha.
Dizer se póde mal, mal cuidar quanto
Se goza o Real sangue de Bretanha,
Os veneraveis Templos visitando
Daquelles que tambem foi imitando.
Na propria noite deste proprio dia
Que Roma ver as virgens mereceo,
A quem de Pedro a Barca então regía
Revelou o que rege a terra e ceo
Que martyrio tambem receberia
Onde Ursula co'as mais o recebeo:
Deixa contente o grão Pontificado,
Desejoso de ser martyrizado.
Por mais que todo o Clero soffre mal
Mover-se por aquellas Estrangeiras,
Movido da Vontade divinal
O bom Pastor se vai com as Cordeiras.
Hum Arcebispo leva, hum Cardeal:
Tres Bispos deixão vagas tres Cadeiras,
De Luca, Ravicana e de Ravenna:
Mauricio me ficava ja na penna.
Despois de n'ágoa entrar, donde sahírão,
Com tão formoso sol tantas estrellas,
Ja as ancoras debaixo acima tirão,
E de cima ja abaixo soltão vellas.
Estas naos lá adiante outras naos vírão,
Que fazendo-se vem na volta dellas;
Conhecêrão-se logo as duas frotas:
Ambas d'hum Reino são, ambas devotas.
Alli, ja Rei erguido d'Inglaterra,
Vinha de Ursula bella o bello esposo,
Que reinar não queria ja na terra,
Do ceo ja namorado e saudoso.
Do seu primeiro amor venceo a guerra
A fôrça d'outro amor mais poderoso:
Amando ja em seu Deos a esposa bella,
Para o poder achar, buscava a ella.
A mãe, ja convertida, traz comsigo;
O pae, ja Christão feito, fallecêra,
Com que soube evitar o grão castigo
Que, morrendo Gentio, não soubera.
Amor celeste, como aqui não digo
O teu sublime obrar? (Ah quem pudera!)
Por meio d'huma virgem foste meio
Com que gente copiosa a Christo veio.
Vinha mais nesta nova companhia
Florencia, irmãa do Rei, da mãe cuidado;
Florencia, qu'em belleza florecia,
Como flor em jardim bem cultivado.
Tambem a frota Bispos dous trazia,
Hum Marcello, Clemente outro chamado:
O primeiro ja em Grecia bago teve;
Do segundo o Bispado não s'escreve.
Outra Virgem viuva alli mais vinha,
Que desposada sendo em tenra idade,
Antes das bodas enviuvado tinha,
E promettida a Christo a castidade.
Esta do mesmo Rei era sobrinha,
Filha da Imperatriz da grã cidade,
Onde por culpa nossa, ou pouca dita,
Seu throno agora tẽe o fero Scita.
Estes, que adverte repetida historia
Deixárão só por Deos altos Estados,
Com outros, de que he menos a memoria,
Forão divinamente amoestados
Que todos, para entrar juntos na glória,
Ao côro virginal fossem juntados,
Com quem na terra Martyres serião,
E no ceo para sempre reinarião.
Sería estranho o gôzo que sentírão
Aquellas bem nascidas almas santas,
Quando juntas alli todas se vírão
De partes tão remotas, e de tantas.
Sem estorvos, que d'antes o impedírão,
As duas, mais que todas, bellas plantas
Alli abraços se dão sem algum pejo,
Ambas conformes ja n'hum só desejo.
Alli faria o Rei acatamento
A quem deixou da Barca o grão govêrno;
E elle, conforme a seu merecimento,
Responderia com amor paterno.
Não faltaria em tal recebimento
Prazer exterior, prazer interno;
Inda que nos estados differentes,
Todos serião huns em ser contentes.
O vento as brancas velas não enchia,
Corria o frio Rheno então mais quedo;
Antes para Colonia não corria,
Porque as virgens não fossem lá tão cedo.
Parece que ja claro conhecia
(Oh côro virginal, sereno e ledo!)
Que lá vos esperava a impia morte.
Agora, ó Musa, conta de que sorte.
Aquelle que na fórma de serpente
Deixou aos dous primeiros enganados,
Invejoso de ver que tanta gente
Se convertia á Lei dos Baptizados;
No caração entrou manhosamente
De dous gentios Principes damnados,
Da soberba Romãa Cavaleria,
Por encurtar a Fé que s'estendia.
A Fama os assegura com certeza
Que a virgem a Colonia ja voltava,
Com toda a casta juvenil belleza
Que por amor do Ceo peregrinava.
Fizerão avisar com grã presteza
A hum parente, que Julio se chamava,
Soberbo Capitão dos Hunnos feros;
Que todos para todas forão Neros.
Eis logo o cego Principe gentio,
Com gente innumeravel de seu mando,
A praia a tomar vem do mesmo rio
Por onde as virgens vinhão navegando.
Ja descobrem aquelle, este navio
Os qu'estão do mais alto atalaiando:
Ás armas veloz corre o bruto povo,
Por de novo as tingir no sangue novo.
Vindo a frota a surgir junto do muro,
Onde lhe parecia estar segura,
(Oh virgens que buscais? lugar seguro
Adonde vos espera a sepultura!)
Entra com mão armada o povo duro
Por esta peregrina formosura:
Ja começa a provar os aços fortes;
Eis tudo sangue ja, eis tudo mortes.
Ja nu todas as virgens offrecião
O delicado collo, o tenro peito:
Era para caber quantas cahião,
Todo largo lugar lugar estreito.
Do puro sangue os rios que corrião,
Outro vermelho mar ja tinhão feito.
Tu só, Córdula, á morte t'escondeste;
Mas despois a buscaste e recebeste.
Ciriáco o primeiro, bem constante,
A vida ao ferro offrece sem espanto:
O moço Rei Inglez cahio diante
Daquelles castos olhos que amou tanto.
Espera, brando esposo, hum breve instante;
Espera a tua doce esposa, em tanto
Que outro Amor outro golpe lhe prepara;
E juntos entrareis na Patria chara.
Em qual terra, ó crueis, em qual cidade,
Entre quaes gentes mais a furor dadas,
Se não usou d'amor e de piedade
Com formosas donzellas desarmadas?
Como belleza tanta e tal idade
Vos deixou arrancar vossas espadas?
Ah lobos carniceiros, tigres bravos,
Filhos da crueldade, d'ira escravos!
De quantos animaes sustenta a terra
Nunca tanta crueza foi usada;
Inda que tenhão huns com outros guerra,
Nunca do macho a femia he lastimada:
Anda a cerva co'o cervo por a serra,
A novilha do touro acompanhada,
Á leoneza o leão defender preza:
Vós sós quebrais as leis da natureza?
Puderão outros olhos por ventura
De lagrimas divinas escusar-se,
Vendo, cuberta ja de névoa escura,
A luz de tantos bellos apagar-se?
Vendo a purpurea rosa, a cecem pura
Em tão formosas faces descorar-se?
As tranças d'ouro vendo, espedaçadas,
Por debaixo dos pés andar pizadas?
Na fôrça desta furia accesa e brava
O Tyranno cruel a vista ergueo
Á virgem, qu'invencivel animava
As almas que juntára para o Ceo.
Assi ja envolta em sangue como andava,
Da sua formosura se venceo;
E com doces razões, que Amor ensina,
A vencê-la d'amor se determina.
Fingindo se arrepende do passado,
(E de fingi-lo se arrepende azinha)
Sua vida lhe offrece e seu Estado,
Sem ver qu'Estado e vida a perder vinha.
O seu amor lhe pede confiado;
O seu amor que dado a seu Deos tinha:
Pede-lhe o seu amor; antes não seu,
Porque ja dado o havia a quem lho deu.
Usa de mil lisonjas, mil enganos,
Por conseguir o seu desejo bruto.
A flor logra (dizia) de teus anos,
Colhe d'essa belleza o doce fruto:
Não dês materia nova a novos danos,
Não pagues verde á morte o seu tributo:
Olha que tens em mi (não são cautelas)
Outro Reino, outro esposo, outras donzelas.
Não faças mentirosa a natureza
Que dá d'amor em ti grande esperança.
Que se póde alcançar d'essa belleza,
Se ja piedade della não s'alcança?
Aos tigres, aos leões deixa a braveza,
E deixa aos meus soldados a vingança.
Se por ver-me cruel queres ser crua,
Ja te vingas de mi em cousa tua.
Volve esses olhos ja com mais brandura;
Esses olhos, d'Amor doce morada:
Delles não faça em mi a formosura,
O qu'em tantos ja fez a minha espada.
Se queres derribar minha ventura,
Que delles estar vejo pendurada,
Acabarei de ver quão pouca tenho,
Pois donde a matar vim a morrer venho.
Como do rôgo meu não te aproveitas,
Quando o teu risco a me rogar te obriga?
Ou não conheces bem a quem engeitas,
Ou m'engeitas por mais que seja e diga.
Em que cuidas, Senhora? ou que suspeitas?
Mais proprio era chamar-te dura imiga.
Mas não consente Amor nome tão duro
Em parecer tão brando e tão seguro.
Os raios desses olhos ja serenos
Enxuguem desse rosto as puras rosas;
O triste suspirar ja sôe menos
Nestas concavidades saudosas.
Não fação grande mal males pequenos;
Que não soffre esperanças vagarosas
Quem anda costumado em seus amores
A medir por seu gôsto seus favores.
Que gôsto podes ter de maltratar-me,
Vendo-me do passado arrependido?
Attenta que mais ganhas em ganhar-me,
Do que neste destrôço tens perdido.
Se queres insistir em desprezar-me,
Ver-me-has, sôbre amoroso, enfurecido.
Não me declaro mais, porque não quero
Que o medo faça o que d'amor espero.
Ah perfido amador! deixa o teu êrro.
Não vês quanto enganado e cego andas?
Aquella a quem não vence o duro ferro,
Como a podem vencer palavras brandas?
Manda a sua alma ja deste destêrro,
Com essas que a seu doce Esposo mandas.
Não a detenhas mais em teus amores,
Se dobrar-lhe não queres suas dores.
Vendo o cruel, emfim, que o que dizia,
Tomava a bella virgem por affronta,
E que quanto d'amor mais se accendia,
Ella delle fazia menos conta;
No concavo arco que na mão trazia,
Huma setta embebeo d'aguda ponta,
E o peito lhe passou de banda a banda.
Assi rendeo o esprito a virgem branda.
Vae-te, Esprito gentil, desta baixeza;
As azas abre ja, ja a luz derrama;
Vôa com desusada ligeireza
Onde o teu Bem t'espera, onde te chama.
Verás baixa do mundo a mór alteza;
Verás qu'engana mais a quem mais ama;
E lá do teu Amor, cá suspirado,
O fructo colherás tão desejado.
Em paz te vae, ó alma pura e bella,
Mais bella inda no sangue que verteste;
Vae-te alegre a gozar, vae, ja daquella
Formosa Região, alta e celeste.
Coroada de glória immortal, nella
Com Christo lograrás, a quem te déste
Com tantas e tão bem nascidas almas,
(Formosura do Ceo) onze mil palmas.
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