Kitabı oku: «Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III», sayfa 7
COMEDIAS
INTERLOCUTORES
DO PROLOGO
O MORDOMO, ou DONO DA CASA.
MARTIM CHINCHORRO.
AMBROSIO, Escudeiro.
LANÇAROTE, Moço.
DA COMEDIA
ELREI SELEUCO.
A RAINHA ESTRATONICA.
O PRINCIPE ANTIOCHO.
LEOCADIO, Pagem do Principe Antiocho.
FROLALTA, Criada da Rainha Estratonica.
HUM PORTEIRO DA CANA.
HUMA MOÇA DA CAMARA.
HUM PHYSICO, ou MEDICO.
SANCHO, Moço do Physico.
ALEXANDRE DA FONSECA, hum dos Musicos.
ELREI SELEUCO
COMEDIA
PROLOGO
Diz logo o Mordomo, ou Dono da Casa
Eis, Senhores, o Autor, por me honrar nesta festival noite, me quiz representar huma Farça; e diz, que por não se encontrar com outras ja feitas, buscou huns novos fundamentos para a quem tiver hum juizo assi arrazoado satisfazer. E diz que quem se della não contentar, querendo outros novos acontecimentos, que se vá aos soalheiros dos Escudeiros da Castanheira, ou de Alhos Vedros e Barreiro, ou converse na Rua Nova em casa do Boticario; e não lhe faltará que conte. Porém diz o Autor que usou nesta obra da maneira de Isopete. Ora quanto á obra, se não parecer bem a todos, o Autor diz que entende della menos que todos os que lha puderem emendar. Todavia, isto he para praguentos: aos quaes diz que responde com hum dito de hum Philosopho, que diz: Vós outros estudastes para praguejar, e eu para desprezar praguentos? Eu com tudo quero saber da Farça, em que ponto vai. Lançarote?
MOÇO
Senhor.
MORDOMO
São ja chegadas as figuras?
MOÇO
Chegadas são ellas quasi ao fim de sua vida.
MORDOMO
Como assi?
MOÇO
Porque foi a gente tanta, que não ficou capa com friza, nem talão de çapato, que não sahisse fóra do couce. Ora vierão huns embuçadetes, e quizerão entrar por fôrça; ei-lo arrancamento na mão: derão huma pedrada na cabeça ao Anjo, e rasgárão huma meia calça ao Ermitão; e agora diz o Anjo que não ha de entrar, até lhe não darem huma cabeça nova, nem o Ermitão até lhe não pôrem huma estopada na calça. Este pantufo se perdeo alli; mande-o v. m. Domingo apregoar nos pulpitos; que não quero nada do alheio.
MORDOMO
Se elle fôra outra peça de mais valia, tu botáras a consciencia pela porta fóra, para o metteres em tua casa.
MOÇO
Oh! se o elle fôra, mais consciencia sería torná-lo a seu dono, quem o havia mister para si.
MORDOMO
Ora vem cá: vai daqui a casa de Martim Chinchorro, e dize-lhe que temos cá Auto com grande fogueira; que se venha sua mercê para cá, e que traga comsigo o Senhor Romão d'Alvarenga, para que sôbre o Canto-chão botemos nosso contraponto de zombaria. Ouves, Lançarote? ir-lhe-has abrir a porta do quintal, porque mudemos o vinte aos que cuidão de entrar por fôrça.
Indo-se o Moço diz:
Chichelo de Judeo, assi como foste pantufo, que te custava ser huma bolsa com hum par de reales, que são bons para Escudeiro hypocrita; que são pouco, e valem muito?
MORDOMO
Moço, que estás fazendo que não vás?
MOÇO
Senhor, estou tardando, e porém estou cuidando que se agora fôra aquelle tempo, em que corrião as moedas dos sambarcos, sempre deste tiraria para humas palmilhas. Mas ja que assi he, diga-me v. m. que farei deste?
MORDOMO
Oh fideputa bargante! esperae, que est'outro vo-lo dirá.
Faz que lhe atira com outro pantufo; vai-se o Moço, e diz o Mordomo:
Não ha mais mao conselho, que ter hum villão destes mimoso, porque logo passão o pé além da mão, e zombão assi da gravidade de seu amo. Mas tornando ao que importa; vossas mercês he necessario que se cheguem huns para os outros, para darem lugar aos outros Senhores que hão de vir; que de outra maneira, se todo o corro se ha de gastar em palanques, será bom mandar fazer outro alvalade; e mais, que me hão de fazer mercê, que se hão de desembuçar, porque eu não sei quem me quer bem, nem quem me quer mal: este só desgôsto tẽe hum Auto, que he como offício de Alcaide; ou haveis deixar entrar a todos, ou vos hão de ter por villão ruim.
Entra Martim Chinchorro, fallando com o Escudeiro Ambrosio, e diz:
MARTIM
Entre v. m.
AMBROSIO
Dias ha, Senhor, que ando de quebras com cortezias; e por isso vou diante. Beijo as mãos a v. m. A verdade he esta, passear em casa juncada, fogueira com castanhas, mesa posta com alcatifa e cartas; além disto Auto para esgaravatar os dentes: esta he a vida, de que se ha de fazer consciencia.
MORDOMO
Senhor, o descanso dizem lá, que se ha de ter em quanto homem puder, porque os trabalhos, sem os chamarem, de seu se vem por seu pé, que seu nome he.
MARTIM
Ora pois, Senhor, o Auto que tal dizem que he? Porque hum Auto enfadonho traz mais somno comsigo que huma prégação comprida.
MORDOMO
Senhor, por bom mo vendêrão, e eu o tomei á cala de sua boa fama. E se tal he, eu acho que, por outra parte, não ha tal vida, como ouvir hum villão, que arranca a falla da garganta, mais sem sabor que huma pera-pão, e huma donzella, que vem podre de amor, fallando como Apostolo, mais piedosa que huma lamentação.
MARTIM
Para estes taes he grande peça rapaz travesso com mólho de junco, porque não andem mais ao coscorrão, mais roucos que huma cigarra, trazendo de si enfadamento.
MOÇO
O lá Senhoras; pedem as figuras alfinetes para toucarem hum Escudeiro. Ora sus, ha hi quem dê mais? que ainda vos veja todas a mim ás rebatinhas: ora sus, venhão de mano em mano, ou de mana em mana.
MORDOMO
Moço, falla bem ensinado.
MOÇO
Senhor, não faz ao caso; que os erros por amores tẽe privilegio de Moedeiro.
AMBROSIO
Ó rapaz, não me entendes? Pergunto-te se tardarão muito por entrar.
MOÇO
Parece-me, Senhor, que antes que amanheça começarão.
AMBROSIO
Oh que salgado moço! Zombas de mi? Vem cá. Donde es natural?
MOÇO
Donde quer que me acho.
AMBROSIO
Pergunto-te onde nasceste.
MOÇO
Nas mãos das parteiras.
AMBROSIO
Em que terra?
MOÇO
Toda a terra he huma; e mais eu nasci em casa assobradada, varrida daquella hora, que não havia palmo de terra nella.
MARTIM
Bem varrido de vergonha que me tu pareces. Dize: Cujo filho es? He para ver com que disparate respondes.
MOÇO
A fallar verdade, parece-me a mi, que eu sou filho de hum meu tio.
MARTIM
Vem cá. De teu tio! E isso como?
MOÇO
Como? Isto, Senhor, he adivinhação, que vossas mercês não entendem. Meu pae era Clerigo, e os Clerigos sempre chamão aos filhos sobrinhos; e daqui me ficou a mi ser filho de meu tio.
MARTIM
Ora te digo que es gracioso. Senhor, donde houvestes este?
MORDOMO
Aqui me veio ás mãos sem piós nem nada; e eu por gracioso o tomei; e mais tẽe outra cousa, que huma trova fa-la tão bem como vós, ou como eu, ou como o Chiado.
AMBROSIO
Não! quanté disso nós havemos-lhe de ver fazer alguma cousa, em quanto se vestem as figuras. Aindaque, para que he mais Auto, que vermos a este?
MORDOMO
Vem cá, moço: dize aquella trova que fizeste á moça Briolanja, por amor de mi!
MOÇO
Senhor, si, direi; mas aquella trova não he senão para quem a entender.
MARTIM
Como! Tão escura he ella?
MOÇO
Senhor, assi a fiz e a escrevi na memoria, porque eu não sei escrever senão com carvão; e porém diz assi:
Por amor de vós, Briolanja,
Ando eu morto,
Pezar de meu avô torto.
MARTIM
Oh como he galante! Que descuido tão gracioso! Mas vem cá: que culpa te tẽe teu avô nos desfavores que te tua dama dá?
MOÇO
Pois, Senhor, se eu houve de pezar de alguem, não pezarei eu antes dos meus parentes, que dos alheios?
MORDOMO
Pois oução vossas mercês a volta; que he mais cheia de gavetas, que trombeta de Serenissimo de la Valla.
MOÇO
A volta, Senhores, he mui funda; e parece-me, Senhores, que nem de mergulho a entenderão. E por isso mandem assoar os engenhos, e metão mais huma sardinha no entendimento; e póde ser que com esta servilha lhe calçará melhor: e todavia palra assi:
Vossos olhos tão daninhos
Me tratárão de feição,
Que não ha em meu coração
Em que atem dous reis de cominhos.
Meu bem anda sem focinhos
Por vós morto,
Pezar de meu avô torto.
MARTIM
Ora bem: que tẽe de ver os cominhos com o teu coração?
MOÇO
Pois, Senhores, coração, bofes, baço e toda a outra mais cabedella, não se podem comer senão com cominhos: e mais, Senhores, minha dama era tendeira; e este he o verdadeiro entendimento.
MARTIM
E aquella regra que diz, Meu bem anda sem focinhos, me dá tu a entender; que ella não dá nada de si.
MOÇO
Nunca vossas mercês ouvirão dizer: Meu bem e meu mal lutárão hum dia; meu bem era tal, que meu mal o vencia? Pois desta luta foi tamanha a quéda que meu bem deo entre humas pedras, que quebrou os focinhos; e por ficarem tão esfarrapados, que lhe não podião botar pedaço; por conselho dos Physicos lhos cortárão por lhe nelles não saltarem erpes; e daqui ficou: Meu bem anda sem focinhos, como diz o texto.
AMBROSIO
Tu fazes ja melhores argumentos, que moços de estudo por dia de S. Nicolao.
MARTIM
Senhor, aquillo tudo he bom engenho: este moço he natural para Logico.
MOÇO
Que, Senhor? Natural para loja! Si, mas não tão fria como vossas mercês.
MORDOMO
Parece-me, Senhor, que entra a primeira figura. Moço, mete-te aqui por baixo desta mesa, e ouçamos este Representador, que vem mais amarrotado dos encontros, que hum capuz roxo de piloto que sahe em terra, e o tira da arca de cedro.
MARTIM
Senhor, elle parece que aprende a cirurgião.
AMBROSIO
Mais parece ourinol capado, que anda de amores com a menina dos olhos verdes.
MORDOMO
Emfim, parece figura de Auto em verdade.
Entra o Representador
He lei de direito, assaz verdadeira,
Julgar por si mesmos aquillo que vem;
Peloque, se cuidão que zombo de alguem,
Eu cuido que zombão da mesma maneira.
E assi a qualquer parece que está mais dobrado, sem nenhum conhecer seu proprio engano, por grande que seja. Ora, Senhores, a mim me esquece o dito todo de ponto em claro: mas não sou de culpar, porque não ha mais que tres dias que mo derão. Mas em breves palavras direi a vossas mercês a summa da obra: ella he toda de rir, do cabo até á ponta. Entrarão logo primeiramente quinze donzellas que vão fugidas de casa de seus paes, e vão com cabazes apanhar azeitona; e traz ellas vem logo oito mundanos, metidos em hum covão, cantando: Quem os amores tẽe em Cintra; e despois de cantarem farão huma dança de espadas; cousa muito para ver: entra mais ElRei Dom Sancho bailando os machatins, e entra logo Catharina Real com huns poucos de parvos n'huma joeira; e semeá-los-ha pela casa, de que nascerá muito mantimento ao riso. E nisto fenecerá o Auto, com musica de chocalho e buzinas, que Cupido vem dar a huma alfeloeira a quem quer bem; e ir-se-hão vossas mercês cada hum para suas pousadas, ou consoarão cá comnosco disso que ahi houver. Parece-me que nenhum diz que não. Ora pois ficareis in vanum laboraverunt, porque atégora zombei de vós, por me forrar do êrro da representação, como quem diz, digo-to, antes que mo digas.
AMBROSIO
Ora vos digo, Senhores, que se as figuras são todas taes, que acertarião em errar os ditos; aindaque me parece que este o não fez, senão a ser mais galante. Mas se assi he, ella he a melhor invenção que eu vi; porque jagora representações, todas he darem por praguentos; e são tão certas, que he melhor errá-las, que acertá-las.
MORDOMO
Parece-me que entrão as figuras de siso: vejamos se são tão galantes na prática, como nos vestidos.
–
Entra El Rei Seleuco, com a Rainha Estratonica
REI
Senhora, desque a ventura
Me quiz dar-vos por mulher,
Me sinto emmeninecer;
Porqu'em vossa formosura
Perde a velhice seu ser.
Hum homem velho, cansado,
Não tẽe fôrça, nem vigor,
Para em si sentir amor:
Se não he qu'estou mudado
Com ser vosso n'outra côr.
Muito grande dita tem
A mulher que he formosa.
RAINHA
Senhor, grande: mas porém
Se a tal he virtuosa,
Quer-lhe a ventura mor bem.
REI
Si, mas porém nunca vemos
A natureza esmerar
Adonde haja que taxar;
Que quando ella faz extremos,
Em tudo quer-se extremar.
Eu fallo como quem sente
Em vós está calidade,
Pelo que vejo presente;
E se me esta mostra mente,
Mente-me a mesma verdade.
Huma só tristeza tenho
Que não tẽe a meninice,
Que no mor contentamento
O trabalho da velhice
Me embaraça o sentimento.
RAINHA
Senhor, novidades tais
Far-me-hão crer de verdade…
REI
Novidades lhe chamais!
Folgo, Senhora, que achais
Na velhice novidades.
RAINHA
Senhor, dias ha que sento
Em o Principe Antiôcho
Certo descontentamento:
Dera alguma cousa a trôco
Por saber seu sentimento.
Vejo-lhe amarello o rosto,
Ou de triste, ou de doente:
Ou elle anda mal disposto,
Ou lá tẽe certo desgôsto
Que o não deixa ser contente.
Mande, Senhor, vossa Alteza
A chamá-lo por alguem,
Saberemos que mal tem,
Se he doença de tristeza,
De que nasce, ou de que vem.
REI
Certo qu'eu me maravilho
Do que vos ouço dizer.
Que mal póde nelle haver?
Ide dizer a meu filho
Que me venha logo ver.
RAINHA
Se curar não se procura
Huma cousa destas tais,
Vem despois a crescer mais.
Quando ja não se acha cura,
Toda a cura he por demais.
Entra o Principe Antiocho com seu Pagem por nome Leocadio
PRINCIPE
Leocadio, se es avisado,
E não te falta saber,
Saber-me-has dar a entender,
Quem ama desesperado,
Que fim espera de haver?
PAGEM
Senhor, não.
Mas porém porque razão
Lhe avem sabê-lo, ou de que?
PRINCIPE
Pergunto-te a conclusão;
Não me perguntes porque.
Porque he minha pena tal,
E de tão estranho ser,
Que me hei de deixar morrer;
E por não cuidar no mal
O não ouso de dizer.
Que maneira de tormento
Tão estranho e evidente,
Que nem cuidar se consente!
Porque o mesmo pensamento
Ha medo do mal que sente.
PAGEM
Não entendo a Vossa Alteza.
PRINCIPE
Assi importa á minha dor.
PAGEM
E porque razão, Senhor?
PRINCIPE
Para que seja a tristeza
Castigo do meu temor.
Porque ordena
O Amor, que me condena,
Que se haja de sentir,
E sem dizer nem ouvir.
Bem-aventurada a pena
Que se póde descobrir!
Oh caso grande e medonho!
Oh duro tormento fero!
Verdade he isto, qu'eu quero?
Não he verdade, mas sonho
De que acordar não espero.
Quero-me chegar a ElRei
Meu pae, que ja m'está vendo.
Mas onde vou? Não m'entendo.
Com que olhos eu olharei
Hum pae, a quem tanto offendo?
Que novo modo de antolhos!
Porque neste atrevimento
Devêra meu sentimento
Para elle não ter olhos,
Nem para ella pensamento.
Chega aonde está ElRei, e diz:
REI
Filho, como andais assi?
Que tanto desgôsto tomo
De vos ver como vos vi!
PRINCIPE
Não sei eu tanto de mi,
Que possa saber o como.
Dias ha ja, Senhor, que ando
Mal disposto, sem saber
Este mal que possa ser;
Que se nelle estou cuidando,
Quasi me vejo morrer.
REI
Pois, filho, será razão
Que meus Physicos vos vejão.
PRINCIPE
Os Physicos, Senhor, não;
Que os males qu'em mi estão,
São curas que me sobejão.
RAINHA
Deite-se; que na verdade
Hum corpo, deitado e manso,
Descansa á sua vontade.
PRINCIPE
Senhora, esta enfermidade
Não se cura com descanso.
RAINHA
Todavia, bom será
Que lhe fação huma cama.
PRINCIPE
(Hum coxim abastará,
Que assi não descansará
O repouso de quem ama.)
REI
Vamos, filho, para dentro,
Em quanto a cama se faz:
Repousae como capaz;
Que a mi me dá cá no centro
A pena que assi vos traz.
Vão-se, e vem huma moça a fazer a cama e diz:
MOÇA
Mimos de grandes Senhores,
E suas extremidades,
Me hão de matar de amores,
Porque de meros dulçores
Adoecem.
Então logo lhes parecem
Aos outros, que são mamados;
E os que são mais privados,
Sôbre elles estremecem.
Certo (e assi Deos me ajude!)
Que são muito graciosos,
Porque de meros viçosos,
Não podem com a saude.
Mas deixallos,
Porque elles darão nos vallos,
Donde mais não se erguerão,
Inda que lhe dem a mão
Os seus privados vassallos.
Entra hum Porteiro da Cana, e bate primeiro e diz:
PORTEIRO
Traz, traz.
MOÇA
Jesu! Quem'stá ahi?
PORTEIRO
Ja vós, mana, ereis mamada:
Para vos levar furtada
Nunca tal ensejo vi.
E vós estais descuidada!
MOÇA
E meus descuidos que fazem?
PORTEIRO
Vossos descuidos? cadella!
Ah minh'alma! Sois tão bella,
Qu'esses descuidos me trazem
Dous mil cuidados á vela.
Pois sou vosso ha tantos annos,
Mana, tirae os antolhos,
E vereis meus tristes dannos.
MOÇA
Não tenhais esses enganos.
PORTEIRO
Nem vós tenhais esses olhos;
Que de vossos olhos vem
Esta minha pena fera.
MOÇA
De meus olhos? Assim era.
PORTEIRO
Moça, que taes olhos tem,
Nenhuns olhos ver devêra.
MOÇA
E porque?
PORTEIRO
Porque cegais
A quantos olhos olhais,
Postoque por vós padecem.
Olhos, que tão bem parecem,
Porque não os castigais?
MOÇA
Deos dê siso, pois de vós
Tirou o que aos outros deu.
PORTEIRO
Desatae-me lá esses nós.
Que mais siso quero eu,
Que não ter siso por vós?
MOÇA
Fallais d'arte; eu vos prometo
Que a resposta vem á vela.
Isso he ôlho de panella.
Quanto ha ja que sois discreto?
PORTEIRO
Quanto ha ja que vós sois bella?
MOÇA
Dais-me logo a entender
Que eu sou feia, a meu ver.
PORTEIRO
E isso porque o entendeis?
MOÇA
Porque? Porque me dizeis
Que só de meu parecer
Vos procede o que sabeis.
PORTEIRO
He verdade.
MOÇA
Pois bem sento
Que o vosso saber he vento.
Fica a cousa declarada,
Meu parecer não ser nada.
PORTEIRO
Olhae aquelle argumento:
Além de bella, avisada!
Oh nem tanto, nem tão pouco!
Vêde vós o que fallais.
MOÇA
Cego no saber andais.
PORTEIRO
No siso, mas não tão louco
Como vós, mana, cuidais.
Ora dizei, duna má:
Que não amais, quem vos ama?
MOÇA
Ouvistes vós cantar ja,
Velho malo, em minha cama?
Ja m'entendereis.
PORTEIRO
Ha, ha.
Senhora, estais enganada;
Que com huma capa e espada,
E com este capuz fóra…
MOÇA
Ora bem: tirae-o ora,
E fazei huma levada.
PORTEIRO
Não: se m'eu hoje alvoróço,
Achar-me-heis d'outra feição.
Aqui tira o capuz e diz:
PORTEIRO
Tenho má disposição?
Estas obras são de moço,
Se as mostras de velho são.
MOÇA
Tendes mui gentis meneios.
PORTEIRO
Não, Senhora; faço extremos.
MOÇA
Passeae ora, veremos
Se tendes tão bons passeios.
PORTEIRO
Tudo, Senhora, faremos.
MOÇA
Virae ora a essoutra mão.
PORTEIRO
Esta disposição vêde-a;
Que tenho gentil feição.
MOÇA
Tendes vós mui boa redea.
Soffreis ancas?
PORTEIRO
Isso não.
MOÇA
Por certo que tendes graça
Em tudo quanto fizerdes.
Fazei mais o que souberdes.
PORTEIRO
Não sei cousa que não faça,
Senhora, por me quererdes.
MOÇA
Tendes vós muito bom ar.
PORTEIRO
Mais qu'isto faz quem quer bem.
MOÇA
I-vos asinha, que vem
O Principe a se deitar.
PORTEIRO
Nunca huma pessoa tem
Hum'hora para fallar!
Entra o Principe com o seu Pagem Leocadio e diz:
PRINCIPE
Seja a morte apercebida,
Porque ja o Amor ordena
A dar a meu mal sahida;
Porque o fim da minha vida
O seja da minha pena.
Não tarde, para tomar
Vingança de meu querer,
Pois não se póde dizer
Que não tẽe ja que esperar,
Nem com que satisfazer?
Os Physicos vem e vão,
Sem saberem minhas mágoas,
Nem o pulso me acharão;
E se o querem ver nas ágoas,
As dos olhos lho dirão.
Se com sangrias tambem
Procurão ver-me curado;
O temor de meu cuidado
O mais do sangue me tem
Nas veias todo coalhado.
Quero-me aqui encostar,
Que ja o esprito me cae.
Leocadio, vae-me chamar
Os Musicos de meu Pae;
Folgarei de ouvir cantar.
Aqui se deita, como que repousa e falla dizendo assi:
PRINCIPE
Senhora, qual desatino
Me trouxe a tanta tristura?
Foi, Senhora, por ventura
A fôrça do meu destino,
Como vossa formosura?
Bem conheço que não posso
Ter tão alto pensamento;
Mas disto só me contento,
Que se paga com ser vosso
O mor mal de meu tormento.
Entrão os Musicos, e diz Alexandre da Fonseca, hum delles:
ALEXANDRE
Senhor, de que se acha mal
O Principe, ou que mal sente?
PAGEM
Senhor, sei que está doente;
Mas sua doença he tal,
Qu'entender se não consente.
Os Physicos vem e vão,
Huns e outros a meude,
Sem o poderem dar são.
Quanto mais cura lhe dão,
Então tẽe menos saude.
O Pae anda em sacrificios
Aos deoses, que lhe dem
A saude que convem;
Dizendo que por seus vicios
O mal a seu filho vem.
Eu suspeito qu'isto são
Alguns novos amorinhos,
Que tera no coração.
ALEXANDRE
Amores! com quem serão,
Que lhe não dem de focinhos?
PORTEIRO
Senhores, que lhe parece
Da doença de Antiôcho?
ALEXANDRE
Diga-lha quem lha conhece.
PAGEM
Que toma morrer a trôco
De callar o que padece.
PORTEIRO
Isso he estar emperrado
Na doença; que he peor.
Tẽe-no os Physicos curado?
ALEXANDRE
Oh! que de mal del amor
No ha, Señor, sanador.
PORTEIRO
Fallais como exprimentado;
Qu'eu cuido que esta fadiga,
Que o faz com que desespere;
Y por mas tormento quiere
Que se sienta, y no se diga.
ALEXANDRE
Pois, Senhor meu, isso asselle,
Porque a pena, que sabeis,
Que eu cuido que está nelle,
Dar-lhe-ha penas crueis,
Pues no hay quien la consuele.
PORTEIRO
Folgo, porque m'entendeis.
PAGEM
Hemo-nos, Senhores, de ir,
Porque nos está 'sperando.
PORTEIRO
Pois eu tambem hei de ir;
Que não me posso espedir
Donde vejo estar cantando.
PRINCIPE
Cantae, por amor de mi,
Alguma cantiga triste;
Que todo meu mal consiste
Na tristeza em que me vi.
PORTEIRO
Mande-lhe cantar hum chiste.
ALEXANDRE
Chiste não, que he deshonesto,
E não tẽe esses extremos:
Outro canto mais modesto;
Porém não sei que diremos.
PAGEM
Gaoleão o dirá presto.
PORTEIRO
Dá licença V. Alteza
Que diga minha tenção?
PRINCIPE
Dizei: seja em canto-chão.
PORTEIRO
Pois crede qu'he subtileza.
Qu'os Anjos a comerão.
Digão esta:
Enforquei minha esperança,
E o Amor foi tão madraço,
Que lhe cortou o baraço.
ALEXANDRE
Não me parece essa boa.
PORTEIRO
Haja eu perdão,
Porque não a entenderão.
ALEXANDRE
Entender!
PORTEIRO
Bofé qu'he boa:
Não lhe cahis na feição?
ALEXANDRE
Dizei ora outra melhor,
Com que nos atarraqueis.
PORTEIRO
Ora esperae, e ouvireis:
Se a esta não dais louvor,
Quero que me degolleis.
Cantiga
Com vossos olhos Gonçalves,
Senhora, captivo tendes
Este meu coração Mendes.
ALEXANDRE
Essa parece mui taibo,
Porque mostra bom indicio.
PORTEIRO
Vós cuidareis qu'eu que raivo.
ALEXANDRE
Todavia tẽe mao saibo.
Ora mal lhe corre o offício.
PRINCIPE
Tá, não vá mais por diante
A zombaria, que he má:
Cantae qualquer dellas ja;
Qu'esse Porteiro he galante,
Ninguem o contentará.
Aqui cántão, e em acabando, diz o
PAGEM
Parece que adormeceo.
PORTEIRO
Pois será bom que nos vamos.
ALEXANDRE
Senhor, quer que nos vejamos?
PORTEIRO
Senhor vir-me-ha do ceo:
Releva-me que o façamos.
Entra a Rainha com huma sua Criada por nome Frolalta, e diz:
RAINHA
Frolalta, como ficava
Antiôcho em te tu vindo?
FROLALTA
Ficava-se despedindo
Da vida qu'então levava,
E assi seus dias cumprindo.
RAINHA
Oh grave caso d'amor!
Desesperada affeição!
Oh amor sem redempção,
Que alli te fazes maior
Onde tens menos razão!
No mais alto e fundo pégo
Alli tens maior porfia:
Razão de ti não se fia.
Quem a ti te chamou cego,
Mui bem soube o que dizia.
Por ventura hia chorando?
FROLALTA
Chorando hia e chamando
Ao Amor, Amor cruel;
E em, Senhora, se deitando
Lhe cahio este papel.
RAINHA
Que papel?
FROLALTA
Este, Senhora.
RAINHA
Amostra, que quero lê-lo.
Agora acabo de crê-lo;
Que ao que mostra por fóra,
Aqui lhe lançou o sello.
Aqui lê o papel e diz:
RAINHA
Oh estranha pena fera!
Desditosa vida chara!
Oh quem nunca cá viera,
E com seu Pae não casára,
Ou em casando morrêra!
FROLALTA
Aindaque eu pêca são,
Senhora, tudo bem vejo.
Attente, que na eleição
O que lhe pede o desejo
Não consente o coração.
RAINHA
Frolalta, pois qu'es discreta
Nada te posso encobrir;
Porque, se queres sentir,
A huma mulher discreta
Tudo se ha de descobrir.
O dia qu'entrei aqui,
Que a Seleuco recebi,
Logo nesse mesmo dia
No Principe filho vi
Os olhos com que me via.
Este principio soffri-lho,
Para ver se se mudava;
Antes mais se accrescentava:
Eu amava-o como filho,
E elle d'outr'arte me amava.
Agora vejo-o no fim
Por se me não declarar.
E pois ja que a isso vim,
A morte que o levar,
Me leve tambem a mim.
Porque ja que minha sorte
Foi tão crua e desabrida,
Que me não quer dar sahida;
Sejamos juntos na morte,
Pois o não somos na vida.
Oh quem me mandou casar,
Para ver tal crueldade!
Ninguem venda a liberdade,
Pois não póde resgatar
Onde não tẽe a vontade.
Que não ha mor desvario,
Que o forçado casamento
Por alcançar alto assento;
Que, emfim, todo o senhorio
Está no contentamento.
Não sei se o vá ver agora,
Se será tempo conforme,
Ou se imos a deshora.
FROLALTA
Despois iremos, Senhora,
Que agora dizem que dorme.
Entra o Physico a tomar-lhe o pulso, e tomando-o diz:
PHYSICO
Su madrasta oyó nombrar,
Y el pulso se le alteró:
Esto no entiendo yo,
Porque para le alterar
El corazon le obligó.
Pues que el corazon se altere,
Es porque en un momento
Algun nuevo vencimiento
De aficion terrible le hiere,
Que causa tal movimiento.
Pues que aficion cabe así
Con madrasta? Digo yo,
Dos razones hay aqui:
La una dice, que sí,
La otra dice, que no.
Empero yo determino
De exprimentar la verdad,
Y hacer una habilidad,
Que declare es agua, ó vino
Esta su enfermedad.
Porque toda esta mañana
Tengo estudiado su mal,
Sin ver causa efectual
De su dolencia inhumana,
Ni otra de su metal.
Llamar quiero este asnejon;
Mas aun debe de dormir,
Segun que es dormilon.
Sancho? ó Sancho?
SANCHO
Ah Señor.
PHYSICO
Ea, aun estás dormiendo?
SANCHO
Estoyme, Señor, vestiendo.
PHYSICO
Pues vellaco y sin sabor,
No me respondes dormiendo?
Vestios presto, ladron.
Oh qué mozo, y qué ventura!
SANCHO
(Mas qué amo y qué cabron!)
Embíeme acá el ropon,
Que no hallo mi vestidura.
PHYSICO
Que embie el ropon acá?
Parece que os desmandais.
SANCHO
Que vaya, Señor? ha, ha.
Que buenos dias hayais.
Entra o moço embrulhado em huma manta, e diz:
PHYSICO
Di como vienes así
Con la manta, y para qué?
SANCHO
Yo, Señor, se lo diré:
Por venir presto vestí
Lo que mas presto me hallé:
Porque viendo que él me llama,
Dormiendo yo sin afan,
Salté presto de la cama,
Que parezco un gavilan,
Hermoso como una dama.
PHYSICO
Mas es tu bovedad tanta,
Que vienes desta facion?
SANCHO
De mi vestido se espanta?
De noche sirve de manta,
Y de dia de ropon.
PHYSICO
Embióme ElRey á llamar
Otra vez.
SANCHO
Y á mí?
PHYSICO
Y á ti!
SANCHO
Y él qué presta allá sin mí?
PHYSICO
Qué puedes tu aprovechar?
SANCHO
Yo se lo diré de aqui:
Si por la ventura quiere
Para que le dé consejo,
Cuando doliente estuviere;
Digo, coma, si pudiere,
Y beba buen vino anejo;
Porque este es el licor
Que dá fuerza, y es sabroso;
Que segun dicen, Señor,
Vinum lœtificat cor
Hominis, y le es provechoso.
PHYSICO
Ya sabes la medicina,
Que Avicena nos refiere.
SANCHO
Pues, Señor! porque es divina.
Pero ElRey qué le quiere,
Qué manda, ó qué determina?
PHYSICO
El Principe está doliente.
SANCHO
Oh mesquino! Y qué mal ha?
PHYSICO
Y á ti, necio, que te vá?
SANCHO
O Señor, que es mi pariente!
PHYSICO
Gracioso el bovo está.
Y pues díme por tu fé:
Llorarás si se muriere?
SANCHO
No, Señor, no lloraré;
Empero, Señor, haré
La peor cara que pudiere.
PHYSICO
Ea, bovo, vé corriendo,
Y ensilla la mula ayna.
SANCHO
Véngala ensillar mejor.
PHYSICO
Oh velhaco, y sin sabor!
SANCHO
Yo por cierto no lo entiendo.
Pero una medicina
Le he de pedir, Dios queriendo,
(Porque ando atribulado,
Y no sé parte de mi
Con este nuevo cuidado)
Para un sayo esfarrapado,
Que me dicen hay allí.
PHYSICO
Ora ensilla; y nunca viva,
Pues sufro tus desatinos.
SANCHO
Señor, pasion no reciva:
Ya cavalga CalaínosA la sombra de una oliva.
Aqui sahe bolindo com a almofaça, e acorda o Principe e diz:
PRINCIPE
Oh bella vista e humana,
Por quem tanto mal sostenho!
Oh Princeza soberana!
Como? nos braços vos tenho,
Ou este sonho m'engana?
Pois como, sonho, tambem
Me queres vir magoar?
E para me atormentar
Mostras-me a sombra do bem
Para assi mais m'enganar?
Assi que, com quanto canso,
Ja não posso achar atalho,
Pois que o somno quieto e manso,
Que os outros tẽe por descanso,
Me vem a mi por trabalho.
Pois ha hi tantos enganos
Que condemnão minha sorte;
Não o tenho ja por forte,
Se á volta de tantos danos
Viesse tambem a morte.
Aqui entra ElRei com o Physico, e diz:
REI
Andae e vêde se achais
O rasto deste segredo,
Que me dizem que alcançais;
Ainda que tenho medo
Que lhe seja por demais.
PHYSICO
Plega á Dios que aqueste sea
Para salud y remedio
Desta dolencia tan fea.
Yo buscaré todo el medio,
Que presto sano se vea.
Aqui lhe toma o Physico o pulso, e diz:
PHYSICO
Aflojen, Señor, sus ais.
Como se halla en su penar?
PRINCIPE
Como me acho perguntais?
E como se póde achar
Quem sempre se perde mais?
PHYSICO
(La respuesta abre el camino.)
Imagina de contino?
PRINCIPE
Não tenho outro mantimento,
Nem outro contentamento,
Senão o em que imagino.
Aqui entra a Rainha e diz:
RAINHA
Como se sente, Senhor?
Tẽe a febre mais pequena?
PRINCIPE
Responda-lhe minha pena.
PHYSICO
(Conocido es su dolor.
Ora sea en hora buena,
Tomada está la tristeza
Á las manos.) Qué sentió?
(Usaré de subtileza.)
Diz contra ElRei:
Cúmpleme que solo yo
Platique con Vuestra Alteza.
REI
Cheguemos-nos para cá.
RAINHA
Não deve desesperar,
Qu'em fim, se bem attentar,
Para tudo o tempo dá
Tempo para se curar.
PRINCIPE
Que cura poderá ter
Quem tẽe a cura, Senhora,
No impossivel haver?
RAINHA
Ficae-vos, Senhor, embora,
Que vos não sei responder.
Vai-se a Rainha, e diz ElRei:
REI
Neste mal, que não comprendo,
Que meio dais de conselho?
PHYSICO
Señor, nada entiendo dello;
Y supuesto que lo entiendo,
Yo quisiera no entendello.
REI
Porque?
PHYSICO
Porque he entendido
Lo mas malo de entender,
Para lo que puede ser,
Porque anda, Señor, perdido
De amores por mi muger.
REI
Santo Deos! que! tal amor
Lhe dá doença tão fera!
Que remedio achais melhor?
PHYSICO
Forçado será que muera,
Porque no muera mi honor.
REI
Pois como! a hum só herdeiro
Deste Reino não dareis
Vossa mulher, pois podeis;
Que tudo faz o dinheiro?
Pois este não o engeiteis;
Dae-lha, porque eu espero
De vos dar dinheiro e honra,
Quanto eu para elle quero.
PHYSICO
No tira el mucho dinero
La mancha de la deshonra.
REI
Ora bem pouco defeito!
He pequice conhecida,
Quando deixa de ser feito;
Porque com elle dais vida
A quem vos dara proveito.
PHYSICO
Cuan facilmente aporfia
Quien en tal nunca se vió!
Del consejo que me dió,
Vuestra Alteza que haria
Si agora fuese yo?
REI
A mulher que eu tivesse
Dar-lha-hia. Oxalá
Que elle a Rainha quizesse!
PHYSICO
Pues déla, si le parece,
Que por ella muerto está.
REI
Que me dizeis?
PHYSICO
La verdad.
REI
Sem dúvida, tal sentistes?
PHYSICO
Sin duda, sin falsedad.
Pues, Señor, ahora tomad
Los consejos que me distes.
REI
Certamente, qu'eu o via
Em tudo quanto fallava.
Como o vistes? porque via?
PHYSICO
Nel pulso, que se alterava
Si la via, ó si la oia.
REI
Que maneira ha de haver?
Qu'eu certo me maravilho,
Possa mais o amor do filho,
Do que póde o da mulher.
Finalmente hei-lha de dar,
Que a ambos conheço o centro.
Quero-o ir alevantar,
E iremos para dentro
Neste caso praticar.
Diz contra o Principe:
Levantae-vos, filho, d'hi
O melhor que vós puderdes,
E vindo-vos para aqui;
Porque, emfim, o que quizerdes
Tudo havereis de mi.
PAGEM
Ah Senhores, oulá, ou?
PORTEIRO
Viestes em conjunção
A melhor que póde ser:
Haveis aqui de fazer
A tosquia a hum rifão.
PAGEM
Deixae-me, Senhor, dizer:
Haveis isto de acabar,
Coração, hi bugiar,
No esteis preso en cadenas,
Que pois o amor vos deo penas,
Que vos lanceis a voar.
PORTEIRO
Por certo que bem comprou.
PAGEM
Ora sabeis o que vai?
Antiocho que casou
Com a mulher de seu Pai,
E o mesmo Pae o ordenou.
PORTEIRO
Isso como?
PAGEM
Não o sei;
Porque dizem que a amava,
E que só por ella andava
Para morrer; e ElRei
Deo-a a quem a desejava.
PORTEIRO
Se o casa por querer bem
Com a moça, a quem elle ama,
Direi eu que a mim me inflama
O amor mais que a ninguem.
PAGEM
Pois pedi-lhe a nossa dama.
PORTEIRO
Por São Gil, que ei-los cá vem,
Elle pela mão com ella.
Entra ElRei, e Antiocho com a Rainha pela mão, e diz:
REI
Que mais ha hi que esperar?
Olhae qu'estranheza vai!
O muito amor ordenar,
Ir-se o filho namorar
D'huma mulher de seu Pai!
Querer bem foi sua dor,
Negar-lha será crueldade;
Assi que ja foi bondade
Usar eu de tal amor,
E de tal humanidade.
Ella deixou de reinar
Como fazia primeiro
Por se com elle casar;
E por amor verdadeiro
Tudo se póde deixar.
Eu que nella tinha pôsto
Todo o bem de meu cuidado,
Deixei mais que ella ha deixado;
Que mais se deixa no gôsto,
Que no poderoso estado.
Mas ja que tudo isto vemos,
Hajão festas de prazer,
As que melhor possão ser;
Porqu'em tão grandes extremos,
Extremos se hão de fazer.
Hajão cantos para ouvir,
Jogos, prazeres sem fundo;
Porque, se quereis sentir,
Deste modo entrou o mundo,
E assi ha de sahir.
Aqui vem os Musicos e cántão, e depois de cantarem, sahem-se todas as figuras, e diz
MARTIM CHINCHORRO
Ora, Senhor, tomemos tambem nosso pandeiro, e vamos festejar os noivos; ou vamos consoar com as figuras, porque me parece que esta he a mor festa que póde ser. Mas espere v. m., ouviremos cantar, e na volta das figuras nos acolheremos. Moço, accende esse mólho de cavacos, porque faz escuro, não vamos dar comnosco em algum atoleiro, onde nos fique o ruço e as canastras.