Kitabı oku: «Fanny: estudo», sayfa 4
XXX
Logo que ella partiu, fui impetuosamente no encalço do solitario passeador. Via-o outra vez na volta d'uma rua. Passou, como primeiro, deante de mim, sem me perceber, sempre sombrio, sempre meditativo. Curei de surprehender alguma involuntaria palavra que me revelasse a causa da sua concentração. Mas tinha cerrada a bôcca, e impassivel a fronte. Subindo para casa, accelerou o passo. No patamar, parou, olhou o céo estrellado com sombria seriedade, e alongou para elle os braços, como se do coração lhe fugisse alguma prece ameaçadora. E eu exclamei mentalmente: «É elle, pois, desgraçado tambem!»
XXXI
Passei os oito seguintes dias em angustia inexprimivel. Não parava em parte alguma. Os temores, as suspeitas subiam-me ao cerebro em borbotões, como os vapores da vinolencia. Pensava n'ella só! Dizia-me não sei que de convicto e infallivel que eu estava ameaçado de perder Fanny. Era como um espectro deante de mim a imagem d'uma separação violenta. Não atinava com o modo de aliar esta especie de previdencia com a certeza de que o marido ignorava tudo; mas esta previdencia justificava-se tanto que eu entrei a tomal-a como aviso do céo.
Ao oitavo dia, á hora costumada, puz-me a caminho; mas, d'esta vez não esperei a hora indicada, nem me acautelei para entrar em casa de Fanny. Não. Caminhava deante de mim mesmo, com a violencia e direitura d'uma balla, resolvido a procural-a mesmo no seu quarto, se a não encontrasse no pavilhão. Timido de tudo, sem poder definir o objecto dos meus temores, esporeava o cavallo, que se espadellava com a terra, alternadamente contrahido e distendido como um grande arco atormentado por mãos febris. A lua alumiava de travez a estrada silencioza que eu levava, zebrando-a de listas de prata, e parecia voltar-se para mim melancolicamente seguindo-me com os seus fulgidos olhares. Desfillavam a meu lado as arvores, rapidas e negras como phantasmas vertiginosamente marulhados n'um rodopio. Os cães, que dormiam nos pateos, atiravam-se aos portões latindo ao estrepido das ferraduras do meu cavallo, que estalavam na calçada. E o vento que me açoitava a cara, murmurava-me aos ouvidos palavras irritantes. Tudo me impellia e me vaticinava algum drama em que eu ia representar um papel. Armei-me para isso, decidido a não succumbir sem luctar com todas as forças que a desesperação desde muito me tinha dado. Quão exaggerado eu era na espectativa como nos preparatorios! Este meu espirito enthusiasta não sonhava senão combates sobrehumanos, desinteresse fero, esforços heroicos!.. Ai! e que desenlace tão vulgar me esperava!
XXXII
Transpondo o muro, fiquei surpreso de vêr Fanny assentada na margem d'um passeio. Mais d'uma hora me tinha eu antecipado, e receava que seu marido estivesse ainda fóra. Logo, porém, que me avistou, Fanny, veio para mim, sem se esconder, como se fosse natural entrar eu em sua casa pelo caminho dos malfeitores. Tomei-lhe a mão. Pareceu-me vêl-a inleada e cuidadosa.
«Que aconteceu? – perguntei, levando-a para debaixo das arvores.
– Tinhas mais que rasão, Roger; meu marido não tem ciumes – disse ella – Nunca se fiou tanto de mim. Não me cancei a interrogal-o. Hontem contou-me a causa da sua preoccupação. Os seus haveres todos, depositados em Inglaterra, estão em risco com a fallencia d'um banqueiro. Esta manhã partiu para salvar alguns restos, se ainda for tempo. É forçoso que a inquietação fôsse grande – ajuntou Fanny suspirando – por que nunca foi commigo tão expansivo.
Não achei palavra com que responder a esta afflictiva noticia, com quanto nos consolasse a ambos de tamanho pezo. Fiquei atordoado como homem que soffreu violenta pancada na cabeça. Regorgitavam-me nos labios os sarcasmos; mas eu represava-os.
«Nada respondes, meu amigo? – disse Fanny.
– Que heide responder? – exclamei, perdida a consciencia da minha brutalidade. – Lamento-te se tinhas grande apego ao luxo de que vaes ser privada; lamento-te, principalmente, por teus filhos; mas… «Mas?» atalhou ella.
– Mas não posso lamentar-te por teres sido ameaçada de perder-me, e te achares hoje mais livre que nunca para amar-me.
Fanny ergueu as mãos ao céo, como invocando o seu testemunho, com expressão de piedade, e disse brandamente:
«Não fallemos mais de mim. Eu heide ser sempre um livro fechado para ti.
Passeamos, depois d'isto, debaixo das arvores vagarosamente, sem nos darmos o braço, sem dizer palavra, durante meia hora: por fim, parou ella deante de mim e tomou-me ambas as mãos, e disse em tom de voz submissa:
«Roger, por que não fallas?
– Não tenho consolações que dar-te.
«Por que?
– Por que eu mesmo tenho talvez necessidade de ser consolado.
«Pois que te succedeu?
– Nada.
Continuamos a passear, ao acaso, entre o arvoredo, silenciosos, ella curvando-se debaixo das franças, eu, erguendo-as, para ella passar.
– Agora vamos nós tomar quinhão nas amarguras d'elle – disse eu de repente. «Assim deve ser» respondeu ella com tranquillidade.
O remate do nosso encontro foi magoado por um começo que eu não podera prevenir. O pensamento de Fanny vagueava por outra parte. O meu, a meu pesar, tambem. E, todavia, eu não poderia justificar-me d'um certo prazer inquieto que me dava a idea d'um successo que podia apartal-a do marido para sempre.
– Quem sabe – pensava eu commigo – se a sua ruina fará o que a minha dôr não pôde fazer?
XXXIII
Depois d'este dia só em Paris nos tornamos a vêr. Era facil a Fanny ausentar-se, agora que a ninguem devia contas de suas sahidas. Por isso tornamos ao antigo viver. O que eu, porém, previra realisava-se com um rigor de desesperar. Não era só o pensamento senão a vida de Fanny que estavam n'outro logar. Cada vez o sentia mais. Nossa tranquillidade, prazeres, expansões, jubilos dependiam absolutamente das cartas que o marido lhe escrevia. Se faltava o correio, ficava distrahida, não me ouvia. Se recebia de manhã carta inquietadora, ficava preoccupada e taciturna. Quando a carta era de esperanças, irrompia ella em explusões d'amor e d'alegria. Esta alegria, porém, molestava-me muito mais que a tristeza, e aquelle amor, cuja explosão atava a alguma coisa que não derivava d'elle mesmo, indignava-me. Gélido deante de sua inquietação, mudo se ella estava triste, irritado pela sua alegria, recuzava energicamente a receber a repercussão das novidades que tanto a preoccupavam; e quiz-me parecer que Fanny não se incommodava ou nem dava fé dos meus enfados. Isto desesperava-me.
Em summa, aborrecido de me vêr assim atado ao meu rival pela mulher, que, repartindo-se equitativa por nós, dava todos os seus pensamentos aquelle que ella julgava ter mais urgente precisão de suas sympathias; indignado por compartir dessas penas, e esperar-lhe anciosamente as alegrias que só podiam fertilisar as minhas; aguilhoado da tristeza, do ciume, e da desgraça, resolvi tentar um supremo esforço para recobrar o socêgo, arrancando-lh'a a elle. Desde muito que se me gerava no animo o desejo de exigir de Fanny o maior sacrificio que ella podia fazer-me; mas, retido pelo vago receio d'uma recusa dolorosa, deferi de dia para dia o momento de sollicitar-lh'o. Azou-se a occasião. Foi ella que a deu.
XXXIV
«Uma mulher que se aliena – disse-me ella, uma vez, sem nexo que explicasse o improviso, e olhando-me com ar piedoso – Uma mulher, que se aliena, não pode amar sem tornar o seu amante o mais desgraçado dos homens. Quanto mais me examino, Roger, mais conheço que, fartes vezes, com desgosto meu, te devo fazer soffrer muito.
Commovido por este exordio, respondi balbuciante:
– E, todavia, a nossa alliança podia ser ditosa.
«Sim – disse ella amargurada – O que ha de mais entre nós é o amor.
O castigo secreto d'esta ligação é isso. Estas relações só duram com a condição de serem banaes; e, se o são, devem repugnar a corações nobres e delicados; se são profundas e intimas, tornam-se o supplicio de quem as sente.
E suspirou. Respondi assim:
– Vou mais longe que tu, Fanny.
Um amante, ainda mesmo que o seu amor seja mero capricho, deve soffrer com uma partilha que offende os sentimentos humanos todos. O amor proprio, por igual com o amor, tem seus ciumes, seu pudor, suas torturas. Uma amante, qualquer que seja o seu theor d'amar, conhece sempre a existencia do marido. O marido, por via de regra mais feliz, não conhece a existencia do amante.
«Isso é ir longe de mais – disse ella a meia voz; depois, alçando os hombros, poz os olhos no céo, e exclamou: – Que é o amor proprio, Deus meu?
Folgando em fim de encontrar Fanny em tal disposição de espirito, aventurei-me. Peguei-lhe da mão, e erguendo-me, em quanto ella me olhava affectuosa, disse, n'um tom supplicante:
«Com tudo… se tu quizeres…»
Fanny corou logo, comprehendendo que se demaziava.
– Que queres tu dizer-me?
Não ousei responder; mas ella, por certo me adivinhou, por que me apertou meigamente a mão, e disse suspirando: – creança!
Eu fiz com a cabeça um gesto negativo! «Deixa-me! – disse ella de sobresalto, em tom de precipitada – Curar-te has assim? Não posso fazer-te feliz. Caza-te!» – A dôr anniquilou-a. Repelli-lhe rudemente a mão, e fitei-a colerico, por essas phrazes que me pareceram uma ameaça. Mas tão quebrantada a vi, que não tive coragem de a levar ao extremo, e murmurei por de mais:
– Bem sabes que não é possivel isso.
Replicou:
«Dei-te quanto podia haurir d'affectos em meu coração, e és tu quem me castigas!
Estava offendida: foi preciso aquietal-a, e jurar-lhe submissão; ella, porém, não perdoava assim, e exclamou:
«Que queres que eu faça mais?
– Se me amas, como creio, o teu dever está traçado.
Corou outra vez: é que comprehendera.
«Meu dever! meu dever! Muito indiscreto és em proferir semelhante palavra, Roger! Ignoras tu que o meu mais restricto dever me ordena de não deixar a caza que governo?
– Ah! Fanny! – exclamei eu – que insignificancia tu trazes para me ferir… que confronto!..
«A caza – replicou ella baixando os olhos – é o posto d'honra confiado á mulher! Mulher que se respeita, não a abandona nunca!
Quiz interrompêl-a, mas ella continuou, de repente applacada, e olhando-me com ternura:
«Raciocina um pouco, meu querido filho: póde uma mulher abandonar sua familia honorifica, sem perder a estima de si propria? Póde ella desquitar-se publicamente de todos os seus deveres sem despenhar-se aos olhos do mundo entre as mulheres perdidas?
– São bem tristes considerações as da sociedade quando as cotejas com a minha vida… – respondi eu.
Ficamos em silencio, alguns minutos. Fanny proseguiu:
«Se eu seguisse os conselhos que me deixas adivinhar por que és muito honesto para m'os dar claramente, ser-te-hia forçoso, algum dia, fazer-me arrepender.
Eu quiz jurar; mas ella cortou-me a palavra.
«Podemos nós supprimir o passado? Não és tu zeloso mesmo do passado? Oh! quero poupar-te! – accrescentou Fanny, levantando-se, e lançando-me um braço em roda do pescoço, em quanto com a mão sobre o meu peito, cravava ternamente nos meus os seus olhos azues – «Em teu logar, crê-me, eu seria tambem ciosa… Muito resististe!.. disse ella, cahindo sobre uma cadeira, e escondendo entre as mãos a face: «Por que me não fugiste, quando era ainda tempo!
«Já era tarde, Fanny, bem o sabes, no dia mesmo em que te vi, pela primeira vez, passar deante de mim.
Ergueu-se outra vez, e abraçou-me com mudo transporte. Pensativo, alheado, recebia, como insensivel, as caricias. A final, pude dizer-lhe:
– O amor, Fanny, póde consolar muitas dôres, remir muitas humilhações, substituir muitos affectos. Diz tu: o que é a estima do mundo, os tranquillos sentimentos da familia, comparados á absorpção d'uma existencia por outra existencia? É acaso tão longa a vida que possamos consentir em immolal-a a coisas tão frivolas? E, de mais, que se lucra? Quem nol-o agradece?
«Roger! Roger! – interrompeu Fanny – que estranha moral!
E eu prosegui:
– Não estás cançada de córar, de tremer, de te esconderes? Não tens, emfim, vergonha da vergonha? E não te repugna ao coração esperar, esperar mais, esperar sempre, para trazer-me os beijos avidos á minha bôca faminta? No espaço d'um anno, com grande custo, apenas teremos cem horas de viver juntos… a felicidade, de que devemos contentar-nos, é isto? Se ao menos essa felicidade fosse pura, estrema, absoluta! Mas tu não pódes ouvir-me, sem que a lembrança de tuas inquietações, perigos a que te expões, os meus proprios tormentos, te não impallideçam; e eu, tão desgraçado! não posso uma só vez abraçar-te, sem que logo um espectro…
«Supplico-te – bradou ella impetuosamente – se me amas, não me digas que és desgraçado, por que me matas.
– E se tu quizesses – continuei, fitando-a internecido – se quizesses!.. Não haveria no mundo existencia para competir com a nossa. O que eu te peço é ser eu só o encarregado de te fazer serena a vida, desvelar-me por ti eu só, preparar, suavisar sob os teus pés a vereda do futuro; ser só a amar-te; o que eu quero é ser para ti o meio e o fim da felicidade; é tomar sobre mim todas as penas, e dar-te em troca todos os meus sonhos, prazeres, e felicidades; o que eu quero é ser a um tempo teu filho, teu amante, teu pai, reunindo sobre a tua cabeça querida as mais dôces e solidas affeições, é concentrar em ti as lembranças do passado, as felicidades do presente, os anhelos do porvir, de modo que venhas a ser toda para mim, e que não haja na minha vida inspiração que não seja tua, que não proceda de ti, que não sejas tu! Se tu quizesses… Não ha ahi paizes onde livremente os que a sorte separou e o amor ajunta pódem emfim saborear aquelle particular repouso que resulta da plenitude da felicidade que é a vida? Em meus sonhos, muitas vezes me figuro que somos voluntariamente proscriptos na immensidade d'alguma solidão, onde, sob um céo azul sempre, á sombra d'arvores sempre veridentes, á beira d'um mar sempre sereno e sobre tapetes de musgo sempre em flôr, ahi, nos saboreamos por nós mesmos, como se a nossa dupla existencia mais não fosse que uma palpavel recordação. Que desgraça poderia ferir-nos ahi? que inquietações assaltear-nos? que suspeita incutir-se-nos? que ciume contristar-nos na felicidade de dias sempre eguaes? se tu quizesses… Seria pouco para mim amimar-te sempre como a uma creancinha melindrada? procurar incessantemente debaixo de tuas palpebras o olhar meigo de teus olhos azues? escutar-te muito tempo o halito a brincar-te por entre os labios? dormir com a boca presa á tua espadua, a mão inlaçada na tua mão? vêr-te todos os dias, andar, ir, voltar, mais bella, mais tranquilla, mais graça que o sonho das virgens? Ouve mais: não seria nada para ti o teres-me sacrificado todos os prejuizos que formam o coração das mulheres? teres-me tirado do abysmo de tristeza, no fundo do qual me estorço ha tanto tempo? teres-me dado tu só mais felicidade do que homem na terra póde cobiçar? Oh Fanny! Nunca mais, a chorar, eu te diria: «amo-te!.. se tu quizesses!..»
Estava suspensa dos meus labios Fanny. Bebia-me as palavras, ebria de prazer. Inclinada para o hombro a cabeça, cahidos os braços, as palpebras descidas, ouvia-me como ao longe a musica, de que não queremos perder nada, arrobada n'um extasis que reunia todas as sensações e quebrantos. Arfavam-lhe as rozadas azas do nariz; suaves respostas inintellegiveis lhe ciciavam os labios; convulções electricas lhe crispavam a cutis; tremiam-lhe as mãos em vibrações dulcissimas. Já não poderá conter-se. Correu-me ao seio, e debulhou-se em lagrimas no meu pescoço que ella cingia soffrega. Oh! que delicioso apertar aquelle!
«Não se falle mais n'isso – disse ella, com expressão de angustia, recuando a face, e apertando-me a fronte com a mão – Isso faz-me um grande mal. Querido Roger, o sacrificio, que queres fazer, é egual ao que me pedes. A felicidade debuxada por tua boca persuasiva é o mais bello sonho dos meus encantos; mas, ai! não passa d'um sonho! Meu Roger, amemo-nos, adoremo-n'os; mas, por piedade de mim, não falles assim mais!
XXXV
Não me dei por vencido d'aquelle grito de desesperação que me revelava, ao mesmo tempo, aspirações ardentes, e dôres mysteriosas. Nenhum de nós nesta affectuosa discussão, havia empregado os verdadeiros argumentos. Um tanto satisfeito por expôr a suprema questão da minha vida áquella que devia resolvêl-a, deliberei deixal-a reflectir, para pouco e pouco a ir affazendo. Esperava azo propicio para reluctar e vencer a minha adorada inimiga.
Depressa veio o ensejo. Terrivel e imprevisto era elle: havia ahi uma só alternativa: vencer os extremos escrupulos de Fanny, ou perdêl-a para sempre.
XXXVI
Fanny pareceu-me preoccupada um dia. Fallava precipitadamente em muitas bagatellas, como se quizesse abafar alguma coiza gravissima. Abstive-me de interrogal-a, e fiz que não dava fé da sua turvacão. Acariciou-me vivamente, e eu a ella, mas nossos espiritos e vontades pareciam alheios aos affagos. Houve um instante em que um e outro esgotamos as palavras ociosas. Tinha Fanny a cabeça inclinada sobre o meu braço, e eu, todo attento no rosto d'ella, em muda anciedade a estava contemplando. Subiu-lhe aos labios em suspiros do intimo a respiração suffocada; aos meus olhares interrogadores respondia o descahir das palpebras, e o voltar os olhos, córando.
Tomei-lhe a mão sem dizer palavra. Apertou-m'a com força febril.
«Falla em nome do céo!» disse-lhe eu empallidecendo. Abraçou-me convulsamente, aconchegando-me o peito da face d'ella.
Fugiu-lhe dos labios a narrativa cruel, cortada por mil reticencias confusas. Mas, desde a primeira palavra que proferiu, comprehendi tudo. N'essa manhã mesma, o marido lhe dissera em carta muito expansiva, que seria provavelmente obrigado a estabelecer-se em Inglaterra, por espaço de alguns annos. Em tal caso – accrescentava elle – deveria Fanny metter no collegio os filhos mais velhos, e ir ter com elle, levando o filho mais novo. Fiquei aterrado. Irritou-me a coragem que ella tivera para em fim proferir as abominaveis palavras de separação. Dessimulei, porém, as angustias que me alanceavam o peito, e deixei só transparecer no semblante os traços de dôr profunda. Abracei-a, comprehendi, e exclamei:
«Não será assim, Fanny! – juro que não, por que é arrancarem-me o coração o separarem-me de ti.
– Que hei-de eu fazer, meu Deus? – disse ella retorcendo as mãos.
«Amarmo-nos – respondi exaltado, com quanta força temos, e tirar um recurso da horrivel necessidade.
– Recurso!.. – e eu interrompi-a logo: «Fanny! este momento é solemne; não ha que vêr com subtis considerações do mundo e dos ciumes, do passado: trata-se de viver ou morrer. Deante de Deus, te dou em penhor a minha vida. Queres dar-me a tua? Atirou-se aos meu braços, repetindo:
– Que hei de eu fazer?
«Fugirmos para tão longe que ninguem nos veja mais.
XXXVII
Dito isto, cahimos em profundo silencio, Fanny retirou-se lentamente de meus braços, poz-me ambas as suas mãos nos hombros, e fixou-me.
Baixei os olhos, receando-lhe a ira. Mas que mal a conhecia eu! O que ella me revelou foi piedade sómente. Repartida entre o seu amor, e o dever que lhe apontava o logar digno ao pé do chefe de familia, a luctar sósinho no exilio para defender seus bens, Fanny deu-me testemunho d'uma agonia que não cabe n'alma sem rasga-la. Bem sabia ella que eu devia horrivelmente soffrer, pensando no proximo fim de união tão cara; mas tambem comprehendia que lhe não era possivel desobedecer á voz que a chamava. E isto flagelava-a com uma dôr sem nome. Perder-me e ser ella, uma vez ainda, a causa unica de meus infortunios.
– Meus filhos! – exclamou ella em fim, impallidecendo, com uma despedaçadora angustia. E pendurava-se-me do pescoço, fitando-me os olhos penetrantemente – Meus pobres filhos, tão creanças! Pensas tu n'isto? Tu que és bom, e me amas, podes-me exigir que os deixe?
Immediatamente comprehendi pela commoção que me estorcia o animo, que quanto d'ahi em diante tentasse seria baldado. A pesar da resistencia, senti um surdo protesto subir-me das entranhas em gritos de indignação. Eu mesmo, no secreto de minha alma, não queria esse monstruoso abandono de mãe, nem mesmo o covarde desamparo d'um marido por sua mulher que adorava.
Mas, confessal-o-hei? – não me instigava tanto á lucta o desejo de passar a minha vida com aquella mulher, como a idea de fazer cessar a partilha execravel. Absolva-me dos males que causei um momento de franqueza! Eu senti, abraçando de novo Fanny, que soffria menos com a certeza de a perder que com a idéa de que ella ia unir-se ao marido. E, horrorisado de mim, dôr nova para ajuntar a tantas, disse comigo mesmo:
«Aqui ha mais ciume que amor.» Entretanto, mais tranquilla, mas sempre affavel, Fanny encostara-se ao cotovello e, voltada para mim, discutia sósinha. Escutei-a.
«Se eu ousasse… se eu não temesse mortificar-te…
– Falla, que estou de animo assente para ouvir tudo. Já agora, não ha nada ahi que possa fazer-me mais desgraçado.
Acariciou-me febrilmente, e disse, quasi desfallecida:
«Pois bem! eu não tenho coragem de arruinal-o. Hoje, o unico recurso d'elle está no meu dote.
– É isso só? deixa-lhe tudo o que tens. Não sou eu bastante rico para nós ambos?
«Não é isso! não é isso! – disse ella, meneando a cabeça.
Encarei-a. Estava enleada e escolhi vagas palavras com que disfarçar a idéa. Continuou, a meia voz, como reprehendendo-se do que ia dizer:
«Como condemnal-o á solidão n'este supremo momento em que elle lucta tanto por mim como por elle! Nunca voluntariamente me desgostou. Ama em mim a companhia de quinze annos da sua vida, a mãe de seus tres filhos…
– Por que o enganaste? – atirei-lhe eu em rosto, no impeto doloroso da minha colera; mas, com uma só phrase me esmagou ella:
«Por que te amava!» e com expressão de orgulho que a engrandecia a cima de si mesma, accrescentou: – Mas a perfidia não competia a ti reprovar-m'a, Roger!
D'esta arte, quantos golpes eu lhe apontava, eram logo rigosamente rebatidos; mas, nem assim, eu desistia do ataque. E se nos descobrissem! repliquei eu, na certeza de que este golpe era difficil de aparar, fitou-me fixamente como receando que a eu denunciasse para a possuir, talvez, por esse infame meio.
Depois de olhar-me longo tempo, disse:
«Que desgraçado elle seria!..
Voltei-lhe o rosto, e Fanny concluiu:
«Elle diria com horror de mim: Nem por amor d'estas creancinhas…
Puz-lhe a mão nos labios, e, convulsivo, olhei para ella. Estava coberta de lagrimas. Posto que perturbado, não pude deixar de admirar-lhe a franqueza nobre que nem, neste lance, me poupava. Estava toda embevecida na victima!
«Que faria elle?» murmurei. Fanny, levou as mãos á face, e respondeu com voz abafada:
– Talvez me perdoasse… —
E, passados os soluços que lhe embargavam a voz, disse:
– Estamos demasiadamente castigados! Se obedeço ao dever, abandonando-te; se não lhe obedeço, deshonro-me. De ambos os lados só vejo a desgraça, e faço desgraçados. Infeliz por ti, por elle, por meus filhos, por mim propria, nem me resta o recurso da morte para restituir a paz a todos! Deus meu, que me has dado o coração, que me não serve para consolar os entes que amo, e nem as suas dôres posso incerrar n'elle, como thesouros caros!
E, a luz crepuscular na alcôva, sobre as rendas dos flacidos travesseiros, enlaçados os braços e unidas as faces assim choravamos… Quem acreditaria que, desde muitos dias, se passavam assim todas as nossas entrevistas!