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Kitabı oku: «Fanny: estudo», sayfa 5

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XXXVIII

Desde este dia funesto entendi que não devia esperar mais nada d'este amor, e vivemos na penosa espectativa da decisão de um outro. Mas, como se o destino houvesse resolvido não dos poupar em dôr alguma, a solução todos os dias esperada, não chegava nunca.

Já as cartas não eram sómente assustadoras para Fanny. Era eu que as desejava, e inquiria o contheudo dellas, e fazia ferventes votos pelo bom exito d'aquelle que, máo grado meu, não luctava energicamente. Com tudo por dar alguma coragem á desgraçada mulher, exaggerava a minha confiança, e encomiava a esperteza conhecida, a firmeza de caracter e a força de vontade de seu marido. Affirmava-lhe que elle ressarciria os seus haveres, obteria justiça, e recobraria o tão merecido socego. N'elle se estribavam todas as minha esperanças: pensava n'elle só, e tomava apaixonadamente a peito a sua pendencia. A menos esperada ventura que eu entrevia em meus vagos sonhos e almejava com o ardor da desesperação, era a volta do meu rival, em cujos braços devia cahir a mulher que eu adorava!

Se eu podesse coadjuval-o!.. dizia eu commigo; mas de que sirvo eu? E agora me pezava o inepto pudor que me não deixava entrar n'aquella caza – Se eu tivesse menos orgulho, se eu não tivesse querido exaltar-me, singularisando-me por uma delicadeza affectada, que, dos meus proprios olhos, me não lava da minha acção; se, como fazem tantos nas minhas circumstancias, eu me fizesse amigo do homem, cuja mulher roubava, resgatando hoje a pequena parte remissivel de meus actos, poderia achar algum lenitivo para esta afflicção. Mas eu tivera sempre mais orgulho que bom senso. Pungia-me, então, a idéa de que, por falta minha, n'aquelle desastre em que cada qual heroicamente desempenhava o seu dever, estava eu sendo um ente inutil. Contrapondo á minha consciencia taes subtilezas, tão futeis ellas eram, que não me illudiam. Mas, á maneira do naufrago que se agarra aos limos fluctuantes, sem esperar salvar-se, eu me escorava á minha propria dôr, accuzando-me de faltas não commettidas, falsificando meu proceder e sentimentos n'isso mesmo que elles tinham de honra, por que eu não sabia que fazer para readquirir uns longes de esperança.

XXXIX

Fanny visitava-me como visitamos um doente incuravel, e retiramos sempre admirados de encontral-o vivo. Palavras de alento não as tinha para m'as dizer, que não carecia menos ella de ser consolada. Se eram boas as noticias, suspirava; se eram más, chorava. Como ella, um dia desenvolvesse em toda a sua horrivel extensão, a pesada cadeia das mais secretas miserias que entrevia – atterrada por se não sentir com forças para arrastal-a – eu rompi o silencio subitamente, e, com simplicidade, lhe offereci todos os meus teres para desempenhar a honra de seu marido, que, por derradeiro ludibrio, fôra entregue aos azares do jogo.

Mas, a pesar mesmo deste novo desastre sobreposto ao antigo, e tão afflictivo que já fazia esquecer o outro, Fanny foi o que devia ser:

«É desgraçada a nossa situação – me disse ella com severidade extraordinaria – Roger! amo-te agora mais do que nunca; mas não sou livre; por isso mesmo que te adoro, é que tu és o unico homem de quem não posso acceitar nada.

XL

A adversidade cansou. As cartas vinham cada vez mais animadoras, e já não havia questões de honra, nem de miseria, nem se quer da separação que tanto temeramos. Quando muito era só a perda de ametade dos bens que podia preoccupar Fanny. Vieram o socego e os risos para ella; mas eu, como um miseravel que tem duas chagas a pençar, senti immediatamente despertar o ciume, mais ardente que nunca. O marido estava a chegar, e esta vinda, d'antes tão desejada, incutia-me agora invencivel horror. Dezejei-lhe a morte. Tornei-me sombrio, desconfiado, interrogador. Recomeçaram as nossas luctas.

XLI

Nunca me viera a idea de romper com Fanny; mas travados outra vez em guerra, de repente me appareceu, fulgurante como um relampago. E eu senti entrar com ella em meu coração a suave caricia da esperança. Mas esta esperança, ai! não durou mais que um segundo. Máo grado meu, tremulo de horror, dei-me pressa em repulsar a idea do meu resgate.

XLII

Depois de uma discussão em que, mais uma vez, eu expozera aos olhos d'ella as minhas angustias, Fanny veio de moto proprio a devassar d'um pensamento que eu não ousara nunca deixar-lhe vêr.

– Não fui esperta – disse ella. Eu devia fingir-te a minha vida. Por muito improvavel que fosse o que eu te contasse, tu acreditarias tudo, por que iria no acredital-o o teu interesse. Não fui esperta, mas é que eu nunca soube mentir.

Esta confissão foi para mim uma subita revelação, suppuz logo que ella á semelhança d'outras mulheres, orgulhosa de ser feliz, escondia vaidosamente a um tempo, vicios e dôres, e, desgraçada, queria que a suppozessem feliz. Esta suspeita inquietou-me oito dias; mas a esperança que me ella gerava no coração não podia durar. Instei Fanny, facilitando-lhe recursos para desmentir-se e patentear-me tudo de sua vida. Admirando-se de eu duvidar d'ella, Fanny confirmou glacialmente o que me havia dito e tornou-me á desesperação.

XLIII

Approximava-se, n'esta conjunctura, o praso que o marido designara para voltar. Parecia-me que devia ser esse o dia da nossa separação, e da morte para mim. A idea da partilha enojava-me. Resolvi cem vezes explicar-me com Fanny á cerca d'este assumpto horrivel, mas não me attrevia. Havia n'ella uma especie de renascimento: nunca a vira tão terna e submissa. Ao mesmo tempo deu em ser muito expansiva. Nos ultimos tempos, coisas insignificantes tocantes á sua vida intima, andavam sempre em nossas praticas; d'ahi vinha o continuar ella agora a fallar-me dos minimos incidentes da sua vida. É o que devia, mais tarde collocar-nos face a face, na attitude ameaçadora de dois inimigos.

Não sei como se deu, nem qual de nós foi causa da scena atroz que sobreveio; lembra-me só que Fanny estava já para sair, e ambos nós em pé. Acabava ella de apertar as fitas do chapéo, deante do espelho do fogão, ao qual eu me encostava; já tinha o chale nos hombros, e buscando com os olhos o lenço, que pozera sobre uma meza, acabava de abotoar as luvas. Assim, continuavamos em termos meio affectuosos e familiares uma contenda que intendia com ella e com o marido. Estavamos ambos serenos quando lhe aconteceu proferir uma palavra que me gelou o sangue nas veias:

– Eu mentiria, se dissesse que não tinha affeição a meu marido.

Logo que reflectiu na crueza d'essas palavras, tão imprudentes como inuteis, arrependeu-se de as ter dito. Sem accrescental-as, nem desmentil-as, acercou-se de mim, affastou o chale para me cingir o pescoço com o braço, amimou-me o rosto com a mão livre, e alteou-se nas pontas dos pés para abraçar-me.

Era carinhoso o olhar, que exorava perdão á crueldade da bôca. Forcei-a lentamente a desprender-se-me do peito, e disse-lhe severamente:

«Vós outras, as mulheres, não tendes delicadeza alguma no coração.»

«Córou, fez-se mais meiga, mais insinuante, e quiz outra vez abraçar-me.

Puz-lhe a mão no hombro e affastei-a: dizendo-lhe, tremulo de furor:

– Ha dias que me falla em seu marido, incarecendo-o muito. Esquece-se de que não é elle agora o mais digno de lastima?

Apertou-me inergicamente a mão, em quanto com os labios cerrados, á mingua de palavras, me fitava com ternura supplicante.

Mas a colera recrudescia a proporção que Fanny denunciava arrependimento. Continuei:

«É justo que o ame, por isso mesmo que a sua estima se lhe deve com preferencia a tudo.

Conheceu Fanny que não poderia apaziguar-me. Não sabendo que mais fazer, deixou passar aquella phraze de interpretação doble, desdeu os laços das fitas do chapeo, pousou o chapéo e o chale sobre a cama, e assentou-se n'uma poltrona defronte de mim. Com o cotovelo esquerdo apoiado no braço da cadeira, a face na palma da mão, os olhares ondulantes, assim ficou na sua habitual posição. Mais que nunca linda, com aquelles braços maravilhosos, cuja alvura assombrada de pennugem destacava da seda negra do vestido; com as grandes luvas de pelle da Suecia que lhe cobriam os pulsos; com o collo flexivel e inclinado; e côr pallida; e os cabellos louros voluptuosamente annelados sobre a fronte pura: era a semelhança de algum bello retrato de Rubens. Por de sob a fimbria do vestido, sahiam os pequenos pés reunidos e assentes no chão. Nas escuras dobras da seda envolvia-se o braço direito, cuja mão, meio fechada, permanecia immovel como se fôra de marmore.

XLIV

Quando o publico soube o desastre do marido de Fanny, soubera eu que em Pariz circulavam boatos deshonrosos para elle. De ser rico e altivo grangeou muitos inimigos. Deviam de ser calumniosos os ditos que sahiam de bôcas invejosas. Não os desmenti por prudencia, mas fiz nota d'elles. Bem sabia eu que um dia me serviria d'elles para vingar-me.

Esperava eu, exasperado pelo furor, que uma palavra, provocando-me de novo, me desculpasse a crueldade. Ella, porém, de astucia não fallava, adivinhando que eu interpretaria á feição de minha raiva tudo que me dissesse. Assim ficamos ambos immoveis, callados, ella, esperando o golpe final, eu reunindo as minhas forças todas para descarregal-o.

Decidi-me em fim: e, com uma só phraze cortante como gume de espada, attacando o mais sagrado da honra do meu rival, repeti as infamias em que eu não cria.

A resposta foi prompta e terrivel. Isso é indigno! – exclamou ella erguendo-se hallucinada, escarlate, com uma expressão de colera e indignação que me assombrou.

Não quero que se rosse na honra do chefe de familia! Não quero que se deshonre aquelle cujo nome eu trago! Por isso que o trahi; por isso que conspurquei a parte de sua honra que elle me confia, é que eu prohibo que se ultraje a outra… e principalmente ao snr!.. Envergonhe-se!.. Se acreditou essas calumnias, competia-lhe defendel-as commigo, pois foi commigo que…

Interrompeu-se. Eu immudeci, e ella proseguiu: Fallou-me ahi na indelicadeza de coração das mulheres; e eu fallarei do orgulho dos homens. Não é só do amor das mulheres que carecem para estrado… Querem tudo o que ellas prezam, tudo o que respeitam: estima do mundo, familia, filhos, repouso, e até a honra de seus maridos. Tudo lhes é mister para desvirtuar e rediculisar essa honra. Estou de mais castigada por ter crido que podia impunemente amal-o! Fui prudente; e por isso não é meu marido ultrajado que castiga a minha culpa; mas – castigo mil vezes mais cruel – é o meu amor. Mereço esta pena… e é o snr. que me pune!

Continuei callado: e ella, com a boca a trasbordar sarcasmos, proseguiu:

É como todos! O que ahi ha é orgulho. Não sabe amar!

Desta vez, respondi turvado:

«Não sou desculpavel por aggredil-o?

– Aggrida-o como homem. Não tem tantas causas para o fazer?

«Por Deus que o farei!

Furioso, com os olhos injectados de sangue, os dentes cerrados, avancei para Fanny, mas ella suspendeu-me a tres passos com um olhar glacial que eu nunca lhe vira. Depois vagarosamente embrulhando-se no chale, da cabeça aos pés, como a sacerdotiza antiga, sombria, feroz, desesperada, deixou cair sobre mim outro relancear de olhos despresador, e sahiu.

XLV

Que farei para apasigual-a? – Tal foi a ignobil pergunta que eu me fiz, ao amanhecer do dia seguinte.

Escrevi-lhe uma longa carta tão submissa que não pude revêl-a sem pejo. Rasguei esta carta, comecei outra, mas tão acerba de estylo que devia exasperar quem eu queria commover. Não a conclui, e andei uma hora a passear phreneticamente em todas as direcções no meu quarto. Primeiro tive ideias de rompimento immediato; depois desvaneceram-se. Rebentou em chamas o furor e o ciume; depois apagaram-se. Por fim, comprehendi que o procedimento a que eu quizera impellir Fanny, era um crime, o qual, consumando irremediavelmente a desgraça d'uma familia inteira, devia tornar-nos desgraçados para sempre. Era-me pavoroso pensar que, a ter-me ella attendido, durante a nossa existencia toda, viriam interpor-se entre ella e mim as imagens de seus filhos abandonados.

Mas ao mesmo tempo escasseava-me força para o resgate. Affizera-me ás minhas dôres, e não ousava trocal-as por dôres desconhecidas. É preciso ter sido, como eu fui, o tudo nas ternuras e affeições d'uma mulher, o coração que incessantemente regia os movimentos d'outro coração, para poder comprehender os horrores da solidão que segue um rompimento. Eu delirava de raiva e dôr. Por fim, commovi-me, erguendo os olhos para o retrato de Fanny.

– Que mal me fez ella? – dizia eu. Chorei; e, indeciso, vesti-me, e sahi.

XLVI

Seriam oito horas. O calor dos ultimos dias d'agosto purpureava o céo carregado. As trevas, semelhantes a mortalhas espargidas, desciam com a nevoa opaca atravez das arvores da grande avenida dos campos-Elyseos. Os passageiros davam-se pressa para fugir á tempestade que trovejava surdamente ao longe. As estrellas brilhantes das lanternas, aqui e além, corriam, cruzavam-se e desappareciam. Nuvens de pó sacudido pelo vento subiam diante de mim e toldavam o espaço. A meio-caminho, quasi entre Rond-Point e o «Arco do triumpho» parei.

Era alli. Encostei-me a um tronco de arvore, levantei o rosto, e olhei. A meus pés era a passagem das carruagens que vão do portal á avenida. Sobre a porta estavam abertas as quatro janellas da sala. Uma só lampada, por certo, illuminava o recinto, por que a claridade que translusia dos vidros escassamente brilhava como um clarão duvidoso. Nenhuma sombra passava entre a lampada e os vidros. A casa está vasia – pensei eu – e todavia Fanny não está em Chaville por que a sala tem luzes.

Estalou, neste momento, mais forte a trovoada.

Relampaguearam os coriscos. Um bulcão rugiu na ramagem dos alamos da avenida, remoinhando turbilhões de folhas e terra. Então vi uma sombra de homem chegar á ultima janella, e fechal-a. As outras tres fecharam-as mais tarde. Depois, a froixa claridade que alumiava a sala bateu nas vidraças mais tensa e viva: havia-se accendido uma segunda lampada.

E depois, mais nada. A avenida deserta, a tempestade no céo de todo negro, eu em pé debaixo da minha arvore, e a sala vasia com as quatro janellas lusentes. Soaram onze horas no relogio d'uma egreja visinha.

De repente, o estrepito de rodas acceleradas, mordendo a areia, passou ao pé de mim. Eu dera, sem saber porque, alguns passos authomaticos.

– Arreda! Arreda! gritou uma voz irritada. Saltei para a margem da estrada. Um coupé vasio passou bamboando sobre o eixo, effeito dos sacões; depois uma grande carroça de viagem tirada por quatro cavallos, voltou de repente sobre si mesmo, ao tempo que se abriam os dois batentes da porta-cocheira. Remirei a carroça com assombro. Ao fundo estava um homem, que eu bem conheci – era elle. Ao seu lado uma mulher que lhe fallava: era Fanny. Entre elles, sobre os joelhos, e nos braços, tres meninos de cabellos louros. Foi uma visão rapida. Não sei se me viram. A carroça desappareceu por debaixo do arco do portal, e logo os dois pezados batentes rodaram nos gonzos, e bateram entre si com estrondo lugubre e cavernoso.

Acabava eu pois de me arredar para dar passagem ao meu rival que entrava como senhor em sua casa.

XLVII

Por que me não esmagou elle com as suas rodas? – exclamei, com a morte na alma, retirando-me, e caminhando ao acaso como um ebrio.

Passava uma sege de praça; entrei – onde quer ir? – diz o boleeiro, embrulhando-se no seu capote – onde quizeres, ao Bosque, onde quizeres. E senti-me arrebatado d'aquelle sitio funesto.

A chuva escorria sobre as vidraças corridas. Encolhido n'um angulo da sege, com os braços cruzados, e a face encostada á almofada, vi de lado, ao clarão dos relampagos, estorcerem-se as arvores atormentadas pelos furacões. A intervallos, resalteavam no ar as astilhas dos coriscos. E eu dizia: Esta tormenta não os aterrará? Não sei que tempo passei blasphemando, rasgando o peito com as unhas, chorando, dentro dessa sege que corria atravez das arvores do bosque, ao clarão avermelhado dos relampagos. Sentia-me abafar. Desci os vidros e a chuva batia-me na cara e nas mãos. Encostei-me ao rebordo da portinhola, com a face deitada nos braços. Tomou-me uma sensação horrivel de frio. Tinha febre. «Quer que recolhamos?» dizia de espaço a espaço o boleeiro cançado.

– Quero – disse eu, fatigado já tambem.

XLVIII

Nascia a aurora lagrimosa no mal enchoto céo, quando, erguendo a face, reconheci uma casa á margem da estrada. Era a della. Todas as portadas da janella estavam fechadas, e as luzes extinctas. Apenas um clarão avermelhado excessivamente mortiço, semelhante ao que sahe d'uma lamparina, brilhava como um ponto entre duas taboinhas de persiana, na ultima janella da direita, em uma alcova lateral ao salão. Debrucei-me longo tempo sobre o apoio da portinhola para enxergar o ponto vermelho e expirante. Mas não chorava já. Ia tranquillo, de gelo, prostrado de fadiga. – Dormirá ella agora? – me dizia eu.

XLIX

Os primeiros dias, que seguiram esta noite horrivel, passei-os n'um estado de stupor de que não havia arrancar-me. Esperava não sei que, que devia terminar-me a vida e os males. – Isto não póde acabar assim! – dizia eu. Vinte vezes ao dia, pedia a minha correspondencia mas nem se quer abria as cartas que o meu creado me trazia. Bastava-me vêr a lettra dos sobre-escriptos. De Fanny não vinha alguma. Affigurava-se-me que ella tinha morrido. Isto amedrontava-me. Cheguei a duvidar da minha rasão.

Ao oitavo dia, depois da nossa ultima entrevista, tive um presentimento de que ia vêl-a. Preparei tudo o que queria dizer-lhe. Senti-me vencido. Queria pedir-lhe perdão; declarar-lhe que estava prompto a submetter-me; queria supplicar-lhe alguma piedade para os meus padecimentos. Esperei-a em vão até noite fechada, contando as horas nas pulsações alternadamente precipitadas e desfallecidas do meu pulso. Não veio. Não escreveu. Ninguem me deu um instante de esperança fazendo vibrar a campainha da minha porta.

Ao anoitecer, sahi na direcção da casa d'ella. Chegando á alameda fiquei surprehendido, vendo tudo fechado. A ideia de Fanny ter ido para longe, tão longe que eu não podesse vêl-a mais, atravessou-me o cerebro como um dardo. Com horrivel angustia, mas affoitamente, como um covarde, a cuja cabeça subiram as fumaças da bravura, bati á porta e perguntei ao creado se a senhora estava em casa. Eu estava pallido e tremulo; mas elle não deu fé. – A senhora está no campo – respondeu, «Onde? em Chaville?» – sim, senhor.

Fui encostar-me a uma arvore por que me sentia desmaiar.

Ao cabo de alguns minutos decedi-me a ir para casa. Era meia consolação saber que Fanny estava ausente. Comprehendi, emfim, o motivo que lhe estorvara a vinda; mas não comprehendi por que me não escrevera durante oito dias. Eu deveria suppor tambem que ella esperaria carta minha; mas havia ainda muito egoismo no meu despeito.

– Quem sabe se ella me espera lá – dizia eu para consolar-me.

Apenas esta ideia se me abriu no espirito que um desejo imperioso de vêr Fanny, á custa de tudo, e logo, me assaltou. Estava então perto de casa. Entrei rapido e pedi o meu cavallo. Ajudei mesmo o creado a apparelhal-o. E lancei-me ao caminho, cheio de esperança, com as esporas cravadas nas ilhas sacudindo as redeas, á desfilada, enlameando passageiros, sem mandar arredar ninguem.

Tanto corri que receei ter-me desencaminhado, e não conheci a casa de Fanny, que estava em frente de mim, vagamente alumiada, debaixo das agigantadas arvores. Mas, alçando-me sobre os estribos, para olhar por cima do muro conheci o pavilhão. Apeei, e entrei no bosque para prender o cavallo a uma arvore. Depois, retrocedi, e vi com surpreza que a graderia do jardim estava aberta. Um creado de farda estava á porta. Ao cabo da aléa, no cunhal da casa, vi brilhar as duas lanternas d'uma sege immovel.

A meio caminho entre a casa e a grade, um pouco á esquerda, no centro de um amplo taboleiro de relva, os vidros coloridos do pavilhão fulguravam aos raios d'um candieiro posto no interior.

– Que segnifica tudo isto? – perguntei eu, caminhando ao longe do muro para encontrar a brecha por onde eu passára duas vezes. Mas apenas puz o pé no jardim, fiquei como pregado no chão. Estava ouvindo imprecações e soluços; do pavilhão, a vinte passos de mim, é que elles sahiam.

Cobriu-me o corpo todo um suor frio. Eu tremia como a folhagem dos arbustos, sob as quaes me escondera.

Neste momento, a sege correu a grande trote dos cavallos para a grade; de certo o cocheiro obedeceu a um chamamento que eu não tinha ouvido. Ao chegar defronte de mim, parou, e o creado da almofada abriu a portinhola. Tinham cessado os gritos e os soluços. Sahiu um homem do pavilhão, e fechou-se a porta. Reconheci-o. Que outro poderia ser? Assentou-se nos coxins, o creado subiu para a almofada, o cocheiro picou os cavallos, a sege passou a grade, rodou sobre a calçada sonora, e a grade foi fechada pelo creado de farda que estava ao pé.

Logo que este homem, caminhando para casa, se sumiu entre o arvoredo, avancei precipitadamente, sem precauções. Antes, porém, de levantar o trinco da porta, examinei atravez dos vidros. No centro do pavilhão estava uma meza redonda, com um candieiro em cima. Em toda a roda corria um amplo divan; e deitada sobre este divan, vi uma mulher chorando, com a face entre as mãos, dando soluços de rasgar o coração, era ella! Fanny! ella! Entrei precipitadamente abri-lhe os braços, e lancei-me de joelhos a seus pés.

Mal me havia reconhecido, quando expediu um grito lacerante, apertou-me a cabeça entre os braços, e abafou-me contra o seio. Eu não podia fallar nem respirar. Fanny beijava-me os cabellos, desgrenhava-os com a face, mordia-os para suffocar os gritos; depois ergueu-me a cabeça e eu senti cahirem-me lagrimas nas faces, em quanto os seus labios frementes se agitavam sobre os meus vertiginosamente, e suas mãos palpitavam por sobre meus hombros, face, pescoço, em phrenetica inquietação. Finalmente, cahindo desfallecida e quebrada de dôr tirou por mim, e arrastou-me na quéda sobre o divan. Ergui-me. A partida do marido, e as lagrimas d'ella, eram-me coisas incomprehensiveis. Entretanto, fiz quanto pude por chamal-a á vida. O candeeiro, cahindo, apagara-se. Caminhei para Fanny ás apalpadellas, arranquei-lhe os colchetes do vestido, e tirei-lhe a pedaços o colete. Depois, á força de caricias, rogos e orações, aquecendo-lhe as mãos com as minhas, e bafejando-a com o meu halito ardente, consegui reanimal-a. Soltou um longo suspiro, e ergueu-se amparada nos meus braços, e parecia reflectir. Torrentes de lagrimas lhe rebentaram dos olhos, e lançou-se a mim com tanto amor, e com ar de tanta piedade, que eu, a soluçar tambem, a comprimi ao peito.

– Oh! Roger! meu Roger – exclamou Fanny com a voz entrecortada – se soubesses que desgraçada eu sou! Consola-me. Ama-me. Soccorre-me. Oh! que bem me faz o chorar sobre o teu coração… Meu querido Roger!

Os soluços embargaram-lhe as palavras. Instei com ella que se explicasse. Eu não sabia ainda que dôr podia ser esta, que rompia em gritos de indignação.

– Teu marido sabe tudo, sim? disse-lhe eu. Fanny fez um meneio de cabeça negativo, e respondeu:

«Não, não é isso; mas ha um anno que te minto. Eu sou a mais desgraçada, a mais humilhada, a mais insultada das mulheres. A escoria, o opprobrio, as infimas mulheres não são mais desgraçadas que eu!

A este grito, que lhe fugia do peito não tinha eu que oppor. Fiquei estupido e estupefacto. Não achava palavra que lhe dissesse. O que eu fazia era abraçar convulsamente a lagrimosa mulher. Subito, um raio de luminosa previdencia me esclareceu o espirito. – Se não aproveito esta occasião para confessal-a, nunca saberei nada – dizia eu commigo. Tranquilla deste lance, nunca mais fallará.

Era judiciosa esta idéa. Fiz bem escutar-lhe a inspiração. Empenhei, pois, toda a minha eloquencia para tirar desta pobre mulher o segredo, que por tão largo tempo, me havia occultado. Instei, animei-a, interroguei-a, mostrando-me consternado por sua dôr. Entrei, pois, no segredo d'uma deploravel historia, não d'uma vez, mas arrancando-lh'a a promenores, a pedaços, por que a sua exaltação, deixando-se ir até dizer tudo, era intervallada de reticencias nos mais delicados pontos da narrativa.

Fez-se luz então para mim tudo o que houvera escuro e incomprehensivel na sua vida e proceder.

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Litres'teki yayın tarihi:
28 eylül 2017
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